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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.1 Juiz de fora jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Os registros iniciais da falta de objeto e suas implicações simbólicas na constituição do sujeito

 

The early registers of lack of objetc and its symbolic implications to the constitution of the subject

 

 

Ângela Maria Rezende Vorcaro1; Giselle Gonçalves Mattos Moreira; Marcela Reda Guimarães; Maxsander Almeida de Souza

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo pretendeu-se discutir a noção de objeto em psicanálise tal como a considera Lacan em seu Seminário IV (1956-7/1995), dedicado, todo ele, à problemática do objeto. Interessou-nos especialmente a consideração do que Lacan denominou falta de objeto como estatuto fundamental de sua localização do problema. Traçou-se o percurso e a dinâmica em que recorrem estes chamados registros da falta na organização primitiva da cadeia simbólica no infans, a partir da teorização do psicanalista francês acerca de dois dos três tipos de falta de objeto, a saber, a frustração e privação - sendo que, o terceiro, a castração, não foi alvo deste artigo. Os registros da falta aqui apontados serão articuladores para o conceito que Lacan fará de fantasia e de objeto. Apesar de ainda não tecer sua teoria sobre a fantasia já é dado o lugar lógico do objeto como sendo recoberto pela falta.

Palavras-chave: Psicanálise; Lacan; Constituição do sujeito.


ABSTRACT

In the present article one has intended to discuss the notion of object in psychoanalysis, as is considered by Lacan in his Seminar IV (1956-7), all being dedicated to the problem of the object. We were particularly interested by the consideration of that which Lacan called lack of object as the fundamental feature of the problem. From the theorization of the French psychoanalyst on two of the three types of lack of object, that is, frustration and privation (the third form - castration - is not the subject of this article), one has outlined the path and dynamics in which these so called registers of the lack in the primary organization of the infans' symbolic chain fall back on. The registers of the lack pointed out in this article will be important to Lacan to articulate the concept of fantasy and object. Although not yet formalized his theory of fantasy is already given the logical place of the object as being covered by the lack.

Keywords: Psychoanalysis; Lacan; Foundations.


 

 

Lacan (1956-7/1995) debate, no Seminário 4, As relações de Objeto, três modalidades da falta de objeto que fundamentam a constituição do sujeito, posicionando-o na cadeia simbólica. Pretendemos, neste artigo, localizar especialmente a instância do objeto a partir da consideração lacaniana do mesmo como aquilo que não contêm a si próprio, isto é, como referente de uma falta que se instaura mais além do objeto. Nessa perspectiva, Lacan distingue três registros da falta: a privação, a frustração e a castração. Limitar-nos-emos aqui aos dois primeiros registros por estarmos voltados para aquilo que de mais fundamental encontramos nos primórdios da constituição do sujeito.

A noção de aparelho psíquico e de objeto

A estrutura do aparelho psíquico proposta inicialmente por Freud (1895/1995) se edifica a partir da condição primária do organismo que busca a manutenção do estado de menor tensão possível, isto é, a geração de uma "homeostase psíquica". A sustentação deste estado de quantum mínimo é alcançada por um mecanismo que poderíamos nomear "reflexo", na medida em que ele é responsável pela descarga dos excessos de tensão que porventura ameacem a integridade do sistema. Portanto, a tendência primária do organismo é a de alçar a redução dos estímulos provenientes de perturbações/excitações que sobre ele incidam advindos de um meio externo (mundo exterior) ou interno (necessidades fisiológicas). O estatuto desta formulação tem como base o conceito de inércia, tal como o propõe Freud, isto é, a condição de tensão mínima à manutenção da vida, alvo do mecanismo exposto e corolário do princípio do prazer.

Lacan (1968-9/1995) retoma esta noção do aparelho psíquico do Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1995) e a situa em relação aos progressos posteriores da teorização freudiana. Em sua leitura, apesar de o aparelho neurônico proposto no Projeto figurar como referência para o que se passa no ser humano, Lacan considera que o modelo per si não compreende toda a cota de manifestações da linguagem e o que se organiza em torno dela enquanto referente à dimensão do inconsciente.

As quantidades endógenas de estimulação não cessam, constituindo-se como "mola pulsional do mecanismo psíquico" (Lacan, 1968-9/1995, p. 30). Entretanto, por não poder se livrar autonomamente das cargas produzidas internamente é necessário ao organismo o empreendimento de trabalho por meio do aparelho psíquico.

O estado idealizado de inércia é sempre interrompido dado que o organismo é impotente para aliviar a estimulação endógena, que não se reduz suficientemente ante a mera descarga. Somente a partir da geração de uma ação no mundo exterior pode-se reestabelecer o equilíbrio inicial (provimento de alimentação e cuidados). O acúmulo de tensão no aparelho psíquico está relacionado ao desprazer, conquanto a redução de tensão às experiências de prazer. Para o cumprimento desta ação, o trabalho do organismo, ainda incipiente, reduz-se ao grito de descarga que, sem satisfazer a necessidade, pode, entretanto, convocar uma ação específica vinda de um outro, em geral, o outro materno, que lhe oferece o seio que alimenta e os cuidados que amortecem. A isto, Freud nomeou vivência de satisfação, vivência que estabelece a marca de um traço no aparelho psíquico. Não se trata, contudo, da inscrição do objeto da satisfação (por exemplo, o seio) no aparelho in situ, mas da inscrição de uma marca desta vivência de satisfação, que produz um registro mnemônico naquele. Mais tarde esta proposição, já presente na obra freudiana, reaparecerá na formulação de Lacan (1966-7/1995), resublinhando a ausência de um objeto real da satisfação.

A reincidência da tensão no organismo provocará a reativação - operada pelo aparelho psíquico - da marca mnemônica da vivência de satisfação, objetivando o equilíbrio inicial. É o que configura a experiência alucinátoria da satisfação que, por sua condição ficcional, implica necessariamente no fracasso da redução da tensão. Nessa tentativa de reestabelecimento do equilíbrio por via do traço mnemônico da satisfação, o que está em operação é, em última análise, a reativação de facilitações (Bahnung) - ou trilhamentos -, e não a reprodução da vivência mesma. A diferença entre a vivência e sua reativação implica que o objeto da satisfação inicial esteve desde sempre perdido.

Retomando esta ideia freudiana, Lacan (1956-7/1995) propõe que há nessa trama uma espécie de nostalgia que liga o sujeito a este objeto perdido, alvo de sua busca, o que, por sua vez, aponta para o "signo de uma repetição impossível" (p.13), já que o objeto buscado não será jamais o mesmo daquele que esteve em jogo na satisfação ficcionada:

É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se o procurava. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto (Lacan,1995/1956-7, p.13).

Há um distanciamento entre uma construção satisfatória do mundo e o estabelecimento da relação com o outro que fala, distanciamento essencial a ser considerado para que não se confundam o estabelecimento da realidade e a noção de objetividade e plenitude do objeto. Dessa perspectiva, o objeto em psicanálise não é um simples correspondente do sujeito, cooptado segundo a sua demanda. Ele é instrumento que máscara e enfeita o fundo de angústia da relação do sujeito com o mundo, como pode ser constatado em seus modos primários de organização psíquica. Assim, à guisa de exemplificação, vemos na fobia o objeto constituído para colocar o medo à distância, mantendo o sujeito a seu abrigo e ligado à emissão de um alarme. O medo dá ao objeto seu papel de sentinela avançada contra a angústia. Por outro lado, também o fetiche tem função de proteção contra a angústia ligada à negação da ausência do órgão fálico na mulher. Neste caso, o objeto tem função de complementar algo que se apresenta como um furo. Assim, sob o fundo de uma angústia fundamental, fobia ou fetiche são convocados como medida de proteção ou de garantia do sujeito. Entretanto, a abordagem acerca da propriedade que teria o objeto de regularizar suas relações com todos os outros objetos é insuficiente.

Nesse sentido, também no que diz respeito ao domínio da pulsão não se pode considerar que haja encontro com um objeto que lhe seja ligado originalmente. Freud (1915/2004) afirma que o objeto é o que há de mais variável nas vicissitudes da pulsão, asseverando não haver harmonia pré-estabelecida entre o objeto e a pulsão.

Articulados dialeticamente, o princípio da realidade está implicado na tensão fundamental do princípio do prazer. Entretanto, há entre os dois uma descontinuidade: o princípio do prazer tende a realizar o objeto de forma alucinada, enquanto o princípio da realidade exige uma organização autônoma que condiciona a apreensão de um objeto diferente do desejado. Portanto, ou o objeto é alucinado ou ele é outro que o desejado. É o que faz incidir, na primeira relação supostamente dual entre mãe e criança, um objeto mediador, terceiro, de ordem imaginária, distinguido, por Lacan (1956-7/1995), como sendo o falo. Seja alucinado, distinto do desejado ou na posição fálica, o objeto propriamente dito não comparece na relação primária. A função do objeto só aparece na medida em que ele falta.

No seminário 4, Lacan (1956-7/1995) enreda três modalidades da falta de objeto que fundamentam a constituição do sujeito, posicionando-o na cadeia simbólica. Interessa-nos especialmente localizar a instância do objeto como sendo aquilo que não contêm a si próprio, como aponta Lacan, isto é, como referente de uma falta que se instaura mais além do objeto. Nessa perspectiva, Lacan distingue três registros da falta: a privação, a frustração e a castração.

A Falta de Objeto

A relação dual entre mãe e criança que se verifica na situação originária é, desde seu início, atravessada por um movimento da criança. Frente à tensão provocada pelo organismo, esse sujeito sob a injunção da necessidade (fome, desamparo) chora, lançando assim um signo captado pelo agente materno. Por sua vez, devido a sua inserção consumada no campo simbólico, a mãe interpreta a manifestação da criança sob a forma de demanda à satisfação, respondendo-a por meio da oferta do alimento, objeto que visa satisfazer a necessidade. Neste sentido, o que se introduz na relação mãe-bebê não é uma organização significante na forma de demanda, mas algo da ordem do signo: considerado pela mãe como um apelo que se direciona a ela, ativa seu desejo e perpetra a resposta que localiza o apelo conferindo-lhe estatuto de demanda. Por aplacar a tensão da necessidade, a resposta materna torna-se objeto de satisfação.

É devido a sua condição subjetiva, que compreende a inscrição da castração (alguém a quem falta algo), que a mãe pode captar este signo de apelo (manifestação de mal-estar) do bebê sob a forma de demanda (apelo transposto à ordem simbólica). Assim, identificando uma falta de saciedade também no filho, a mãe especificará a qualidade da sua resposta (seja leite, cobertor, colo ou embalo). Ressalta-se, além disso, que é ao conceber-se como não-toda, isto é, privada do objeto de seu desejo e, portanto, capaz de operar simbolicamente por meio de trocas e substituições, que ela pode oferecer distintos objetos passíveis de satisfazer o apelo do filho. Tais objetos são inseridos na dinâmica do campo do outro materno como objetos simbólicos, representantes de seu desejo.

Se considerarmos que a criança neonata está circunscrita ao real2, a simbolização do real será a operação efetuada por um agente - no caso, a mãe - que, com seu imaginário, antecipa a posição da criança, situando-a como já inscrita na ordem simbólica. Portanto, ela distingue a descarga de tensão do organismo neonato por via do grito e a significa como sendo demanda de um sujeito.

A frustração nos leva a outro plano de inscrição da falta onde o que se coloca como pano de fundo é a operação de um dano imaginário. Lacan (1956-7/1995) introduz esta noção - a de dano imaginário - para referir-se a uma mudança no estatuto do objeto suposto existir que passa a categoria de objeto reinvindicado. "A frustração é, por essência, o domínio da reinvindicação" (p.36) e refere-se, portanto, à suposição de um dom. Quando se introduz uma interrupção no encontro mãe-bebê, a mãe, até então apresentada como matriz simbólica, passa também a se apresentar como real. Os objetos que a mãe oferece a criança, nesse momento são tomados como objetos reais, passam a configurar objetos portadores de dons simbólicos, que podem ou não ser oferecidos à criança. Poder-se-ia dizer que o que está em jogo nesta dialética é a suposição de que aquele que poderia ofertar algo - o objeto em questão - não o faz, isto é, sinto-me privado de algo por um outro a quem eu suponho a potência de dar-me o que busco: ele poderia me dar.... O outro aparece neste plano como portador de um objeto-dom. A frustração se delineia em torno desta suposição do dom.

Os dons são objetos que se encadeiam como sendo signos-símbolos do amor, isto é, são instaurados quando os objetos da necessidade são tomados pela via simbólica, incluindo-se no eixo pulsional, sob a operação do significante. Retirado da categoria de objeto da necessidade, o objeto-dom é aquilo que é oferecido pela mãe à criança em resposta ao seu pedido, porém esta reinvindicação só pode se referir a algo que não está mais presente.

O objeto real na dialética da frustração

Freud (1920/2006) relata a observação de uma brincadeira do seu neto, que joga com um carretel fazendo-o desaparecer e retornar, acompanhado por expressões de interesse e satisfação. Essa imagem captada por Freud como "uma grande aquisição cultural da criança" (p.142) é posteriormente trabalhada por Lacan. O psicanalista francês afirma que para reivindicar um objeto é preciso que, antes, ele tenha estado presente, podendo, portanto, ser suposto. É, ainda, na medida em que o objeto pode ser afastado ou rejeitado, que poderá ocorrer o apelo a sua presença. Lacan (1956-7/1995) pontua que quando o objeto está presente, ele se manifesta como sendo apenas signo do dom, não respondendo como objeto de satisfação, dado que é um substituto da mãe: "Ele está lá justamente para ser rejeitado na medida em que é este nada." (p.186). Este jogo simbólico tem caráter fundamentalmente decepcionante, dado que se trata de um objeto substituto, que por essência é diferente daquele que poderia hipoteticamente satisfazer plenamente a criança. Porém, isso não quer dizer que a criança não obtenha uma quota de satisfação advinda desse fundo decepcionante da ordem simbólica. Há uma satisfação advinda do objeto substituto que é recusado, trata-se de uma compensação: a criança anula o que há de frustrante na ordem simbólica na captura do objeto real de satisfação, que é inicialmente o seio.

Essa "dolorosa dialética do objeto" (Lacan, 1956-7/1995), presente e ao mesmo tempo ausente, é simbolizada no jogo do Fort-Da: "relação com a presença sob fundo de ausência, e com a ausência na medida em que esta constitui a presença" (p. 186). De posse do objeto substituto da mãe, a criança aniquila o que há de fundamentalmente insaciável nessa relação. Assim, apaziguada, ela pode adormecer.

Para Lacan (1956-7/1995), nesse momento, no qual a satisfação da necessidade entra em jogo e substitui a satisfação simbólica, dá-se uma transformação. Quando o objeto real torna-se signo de dom é a atividade que assume valor simbólico. A ênfase se coloca na modalidade pela qual o objeto é apreendido pela criança, seu modo de captura, pois, no momento em que essa atividade torna-se a primeira substituição da exigência de amor ela é, então, erotizada. Portanto, a oralidade ganha destaque psíquico, já que inicialmente o objeto responde à fome visando à conservação. Ao ser alçado à função de substituto materno, ele comparece imantado da mãe. Assim, sua captura oral porta libido sexual que o erotiza.

O objeto que vem substituir a mãe gerando uma quota de satisfação não é um eleito em específico, embora tampouco seja qualquer um. Uma criança que não é amamentada pelo seio materno poderá capturar outro objeto e isso não impossibilita que este tenha valor na origem da dialética sexual da erotização da oralidade. Lacan (1956-7/1995) aponta que não é o objeto que é o essencial, "mas o fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se ordena na ordem simbólica" (p.187). Esse processo pode ser levado ao extremo de não existir objeto real, o que ocorre na anorexia mental, em que longe de ser o não comer que está em jogo, trata-se de comer nada. Não é a negação de determinada atividade, pelo contrário: há uma satisfação substitutiva à decepção simbólica. Esse nada saboreado é empregado pelo sujeito diante daquele do qual depende. A criança, dessa forma, inverte a dialética da dependência a seu favor.

É no nível do objeto anulado como simbólico que a criança põe em cheque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada. [...] A partir daí, é ela quem depende por seu desejo, é ela quem está a sua mercê, a mercê das manifestações de seu capricho, à mercê da onipotência de si mesma (Lacan, 1956-7/1995, p.190).

Por esta operação a criança inverte a cadeia de dependência, introduzindo a mãe num jogo onde o imperativo se situa em torno da dependência do outro materno em relação à sobrevivência da criança. É como se, por isto, a criança visasse a manutenção de um vazio, em torno do qual se articula o desejo, e não fosse situada apenas no plano da necessidade. É aqui que o objeto está fora do eixo da necessidade relativa à manutenção do vital, ganhando o estatuto de exigência amorosa correlativa a operação da ordem simbólica. Uma vez alçado à categoria simbólica de representante do Outro, em seguida, é considerado insuficiente para aplacar a demanda de amor. O símbolo do amor é sempre o que está em jogo na demanda, e para que um objeto ocupe este lugar, o de objeto-dom, ele deve sempre estar relacionado à falta.

Para sua própria insatisfação, a criança encontra um substituto na dialética simbólica da atividade oral. Já no que tange à insatisfação da mãe, a criança mesma se faz de engodo. Nas palavras do autor: "Para satisfazer o que não pode ser satisfeito, a saber, esse desejo da mãe que, em seu fundamento, é insaciável, a criança engaja-se na via de se fazer a si mesma de objeto enganador. Este desejo que não pode ser saciado trata-se de enganá-lo." (Lacan, 1956-7/1995, p. 198). Quando a criança assume o papel de falo imaginário da mãe, sendo aquilo que não é, inicia-se um movimento em torno do qual o eu assume sua estabilidade, e assim ela passará a conceber o desejo no outro. Esse desejo é insaciável, portanto, essa mãe insatisfeita procura o que devorar: o objeto real que a própria criança encontrou outrora para anular a sua insaciedade simbólica será reencontrado como uma "boca escancarada" (Lacan, 1956-7/1995, p.199).

Dessa forma, enredada na dependência materna, a criança se colocará no lugar daquilo que falta à mãe, isto é, ocupando a categoria do que suporta em si mesma o estatuto de objeto da mãe, com o objetivo de assegurar a obtenção dos objetos de satisfação que podem ou não ser dados pela mãe. É justamente porque a mãe está situada num plano de proximidade à satisfação da criança que esta última se coloca a restituir aquilo que falta à mãe, mantendo-se no jogo de alienação ao outro materno. A criança pode, então, ocupar o lugar do falo materno.

Em torno desta cadeia de três, mãe-criança-falo, é que se organiza a dialética da frustração. Estando a criança introduzida na dinâmica da frustração, o objeto real perde sua especificidade, embora não se torne sem valor. Como vimos, a atividade da criança sobre o objeto assume uma função erotizada no plano do desejo, ordenando-se na ordem simbólica.

O que está em jogo é o horizonte de referência que a mãe assume ao operar a oferta de alimento, isto é, o lugar que ocupa ao fazê-lo, seja a partir da tomada do objeto oferecido no eixo da necessidade, ou a partir de outro ponto, satisfazendo a criança, no plano do objeto de dom.

Esta operação de passagem do estatuto do objeto real ao plano de objeto de dom assume função singularmente importante na inserção da criança no mundo simbólico, logo, na linguagem. É notório que o aparecimento do dom se organiza em torno do apelo da criança, o que já configura uma inserção na ordem simbólica.

Ao rejeitar isto que não está lá, ou seja, a ausência do objeto da satisfação, a criança engendra algo de seu desejo ainda incipiente, incidindo sobre essa transformação que se veicula na língua por palavras, posto que o que está em jogo não é um objeto da satisfação que dissolva seu desejo. Trata-se de uma exigência de amor.

Nesse contexto, Lacan comenta o que se instala no caso da jovem homossexual de Freud (1920/1996), ordenando a operação da frustração em torno da perda do objeto desejado: o filho do pai. O caso da jovem homossexual, ou sob o título que Freud designa, Psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher, é um relato sobre uma jovem de dezoito anos, que impressionava pela beleza e inteligência, oriunda de uma tradicional família vienense.

A jovem desperta a atenção de seus familiares por fazer corte a Dama, uma mulher considerada a época, sem grandes valores morais. O pai da paciente de Freud não consentia com o relacionamento de sua filha, e ao encontrar as duas juntas lança o que a jovem entende como um olhar de repreensão. Diante deste encontro a jovem se joga de um parapeito sobre uma pequena estrada de ferro. Após este incidente ela inicia o tratamento psicanalítico com Freud.

Um tanto menos e um tanto mais isso figura em torno da proposição de Lacan acerca da frustração: um tanto menos que o objeto em si mesmo, posto que o que interessa não é a dimensão concreta do objeto; e um tanto mais além do objeto, seja, então, a dimensão de dom que ele representa. O que se poderia esperar neste caso do sujeito a quem se estende a suposição da jovem era um signo de amor, o cumprimento de um laço imaginário. Daí pensar-se em dano imaginário como efeito da operação de frustração:

A frustração é por si mesma o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. O centro da noção de frustração, na medida em que esta é uma das categorias da falta, é um dano imaginário. É no plano imaginário que ela se situa (Lacan, 1956-7/1995, p.36).

O objeto-dom surge quando da passagem do objeto da necessidade à via simbólica, de forma que, para tanto, há que se verificar a nulificação do objeto da necessidade - a morte do objeto -, posto que o alvo da demanda não se encontra presente. Os três tempos da subjetividade, alçados à dialética da frustração, podem ser facilmente identificados se tomarmos, conforme indica Lacan, a posição inicial do problema, qual seja, a presença ou ausência de um objeto imaginário, o falo. Lacan (1956-7/1995) indica a conclusão: "No extremo do amor, no amor mais idealizado, o que é buscado na mulher é o que falta a ela. O que é buscado, para além dela, é o objeto central de toda a economia libidinal: o falo" (p.111).

A noção de privação

Conforme aponta Lacan (1956-7/1995), a frustração, como vivida originalmente, só tem importância e interesse na medida em que desemboca nos outros dois registros de falta: castração e privação. O que está em jogo na privação é uma falta real, mas se o real simplesmente é, como conceber-se privado de algo que por essência não se tem? Por que esperar que algo esteja em algum lugar onde justamente não está? A falta é referida no plano real, entretanto "tudo que é real está sempre e obrigatoriamente em seu lugar, mesmo quando se o perturba" (Lacan, (1956-7/1995, p. 38). Na privação, a falta não está no sujeito, mas para além dele, não se tratando de uma privação experimentada.

Lacan (1956-7/19957) elucida que a localização da ausência de algo no real implica "necessariamente" um mapeamento da ordem simbólica, pois só na medida em que pela lei define-se onde um objeto deveria estar é que ele pode faltar no lugar que é seu. Para conceber o real como diferente do que ele é, a criança já deve ser capaz de simbolizá-lo. Como já salientado, ela não está só nesse processo: o agente da frustração é quem, através desse registro de falta, confere ao objeto real estatuto de dom para a criança, inserindo-a na ordem simbólica. Portanto, a criança que consegue simbolizar torna-se capaz de sentir-se privada de algo que, por essência, ela não tem. Na privação o objeto é simbólico:

A noção de privação [...] implica a simbolização do objeto no real. Pois, no real, nada é privado de nada. Tudo que é real basta a si mesmo. Por definição o real é pleno. Se introduzimos no real a noção de privação, é na medida em que já o simbolizamos bastante, e mesmo plenamente. Indicar que alguma coisa não está ali é supor sua presença possível, isto é, introduzir no real, para recobri-lo e perfurá-lo, a simples ordem simbólica (Lacan, (1956-7/1995, p.224).

Segundo Lacan, os registros da privação - falta que se inscreve como furo real - e da frustração - falta que se inscreve sob a forma de dano imaginário - já haviam sido apontados como equivalentes no âmbito da experiência, mormente aqui se conceba uma diferença fundamental entre estes dois registros, que consiste em considerar a privação como uma falta real só introduzível na dialética da falta de objeto mediante uma operação de simbolização do real. Esta proposição faz-se clara no clássico exemplo tecido por Lacan (1956-7/1995) ao propor a ideia de um sujeito que busca um livro numa biblioteca que, entretanto, não se encontra em seu lugar na estante. Ainda que o livro se encontre no recinto, não poderá ser localizado, posto que está fora de seu lugar, ou seja, fora da cadeia simbólica que constitui a organização da biblioteca. Há aqui uma falta real.

A privação, ao operar a simbolização da falta real, é o registro que demarca a noção de castração. A castração passa pela apreensão da ausência de falo na mulher, ou seja, o dar-se conta da diferença sexual. Por sua vez, o próprio fato da existência da diferença entre os sexos e todo progresso da integração do homem e da mulher ao seu próprio sexo exige o reconhecimento de uma privação.

Existe, de fato, uma parte dos seres da humanidade que é, como se diz nos textos, castrada. É claro que este termo é perfeitamente ambíguo. Eles são castrados na subjetividade do sujeito. No real, na realidade, naquilo que é invocado como experiência real, eles são privados (Lacan, (1956-7/1995, p. 223-4).

A imagem da mãe é, portanto, marcada por uma "privação fundamental". A falta que nela incide reflete na criança a ameaça da "privação suprema", ou seja, sua incapacidade de satisfazê-la enquanto falo imaginário. É nesse momento, no qual a criança percebe que não pode satisfazer a mãe, que entra em cena o agente da privação, o pai imaginário, chamado assim, porque ele "está integrado à relação imaginária que forma o suporte psicológico das relações com o semelhante" (Lacan, 1956-7/1995, p.225). É através do pai imaginário que o sujeito tem acesso à identificação paterna. Essa imagem não se refere necessariamente ao pai da criança, mas à figura caricata e agressiva do pai que tantas vezes intervém nas fantasias infantis e que desempenha função de agente no que tange ao registro da falta real.

A privação incide de maneira diferente sobre a criança quando esta se vê privada da mãe, conquanto objeto real de sua satisfação (o seio que alimenta, por exemplo). Note-se que, frente a esta dinâmica, operada em ambas as direções por um pai imaginário, o que se coloca desde já é o estabelecimento de uma assimetria fundamental na relação mãe-criança. Este desencontro fundamental é o correspondente, segundo Lacan (1964/2008), de uma cena primitiva traumática, sustentada por um fato fictício, leia-se, a equivalência da relação. Ainda que tudo ocorra como o esperado, na satisfação da necessidade infantil, há sempre um desencontro temporal, um fora-do-tempo que desalinha a relação entre a mãe e o bebê.

 

Conclusão

A temática dos registros da falta de objeto, da qual destacamos a frustração e a privação, reaparecerá na teorização de Lacan ao longo de seus seminários a partir do ano de 1957 (1956-57/ 1957-58/ 1961-62). Os dois registros da falta aqui apontados funcionam como articuladores dos quais se valerá Lacan para forjar o conceito de fantasia e de objeto. A tese defendida por Lacan aponta para o fato de que somente na medida em que o objeto perde seu estatuto de objeto real, ele pode existir como alvo da demanda, o que, por sua vez, o eleva ao estatuto simbólico, representante de uma falta. A essa altura, Lacan ainda não tece considerações importantes sobre a fantasia, mas já vislumbra o lugar lógico do objeto como sendo recoberto pela falta, condição que institui os vários enquadres da fantasia. Lacan se refere à função de véu, ou encortinamento, função que sustenta a suposição da presença de algo, ausência que suporta uma presença. Os enquadres fantasmáticos, marcados por esse jogo de ausência e presença, são necessariamente particulares e marcam a dimensão da assimetria das relações.

Nossa perspectiva de distinguir os primórdios da subjetivação ressalta, a partir da elaboração de Lacan no Seminário 4, o delineamento da relação com o outro, marcada pelo desencontro que ganha um arranjo apenas quando permeada pela dimensão da palavra, que media o que se faz fora do tempo. Essa mediação é o que torna possível, por vias fantasmáticas, a relação com o outro.

Não se diferencia aqui uma linearidade que estabeleça a primariedade da privação ou da frustração. Trabalhos posteriores de Lacan explicitarão sua concomitância lógica. Essa delimitação inicial dos registros da falta em Lacan será retomada em outro trabalho, por um lado, avançando em direção ao registro da castração, mais elaborado no Seminário 5 (1957-8/1999), por outro lado, formalizando com novos elementos os dois registros aqui discutidos.

 

Referências

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Lacan, J. (2008). O seminário - livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. (M.D. Magno tradutor;) Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)        [ Links ]

Vorcaro, A. (2004). A Criança na Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

 

 

Recebido: 07/12/2014
Aceito: 09/07/2015

 

 

1 Contato: angelavorcaro@uol.com.br
2 Nesse momento de sua teorização, apesar de já vislumbrar a dimensão do termo, como veremos adiante, Lacan não havia ainda discernido a especificidade que o real terá em sua obra, como o suporte para o inconsciente, "a coisa inapreensível este cúmulo de sentido que constitui enigma, o único quinhão de saber que se tem. Enquanto dimensão pura de existência (Há), é obstáculo do qual nada pode ser deduzido. A incessante impossibilidade de se dizer disso qualquer coisa faz com que esse existente sustente a repetição do indefinível" (Vorcaro, 2004, p.68).

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