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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.spe Juiz de fora dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Uma questão preliminar às ações coletivas de combate ao machismo

 

A preliminary issue to collective actions to combat machismo

 

 

Paulo César de Carvalho Ribeiro1

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Partindo da constatação da dificuldade encontrada nas relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres na atualidade, algumas reflexões sobre a relação do machismo com a constituição do inconsciente e da sexualidade são apresentadas. Procura-se ir além dos aspectos sociais e culturais do machismo com o objetivo de traçar suas raizes na situação de passividade inerente à sedução originária, tal como descrita por Jean Laplanche. Os três textos de Freud reunidos sob a rubrica "contribuições à psicologia do amor" são tomados como referência, e um texto recente, amplamente veiculado na internet, intitulado "A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que um homem não quer", é analisado criticamente.

Palavras-chave: Machismo, Sexualidade, Inconsciente.


ABSTRACT

Starting from the difficulty found in loving and sexual relations between men and women today, some thoughts on machismo in relation to the constitution of the unconscious and sexuality are presented. An effort is made to go beyond the social and cultural aspects of machismo in order to trace its roots in the passive situation inherent in the original seduction, as described by Jean Laplanche. Freud's writings gathered under "contributions to the psychology of love" are taken as references, and a recent text, widely disseminated on the Internet, entitled "The incredible generation of women that was brought up to be everything a man does not want", is critically analyzed.

Keywords: Machismo, Sexuality, Unconscious.


 

 

Uma questão preliminar às ações coletivas de combate ao machismo

Entre 1910 e 1918, Freud (1910, 1912, 1918/1996) publicou suas famosas Contribuições à psicologia do amor. Os três artigos reunidos sob essa rubrica abordam aspectos intrigantes do relacionamento sexual e amoroso entre homens e mulheres no início do século passado e não deixam de tangenciar questões ligadas ao machismo. Os tratamentos conduzidos por Freud são a principal fonte dos dados por ele utilizados na análise dos mecanismos psíquicos envolvidos nas escolhas de objeto sexual e nos destinos das relações amorosas. Esses artigos me servirão de inspiração na retomada desse tema inesgotável. Neste trabalho, abordarei alguns aspectos do relacionamento amoroso e sexual de homens e mulheres na atualidade, baseando-me em relatos obtidos no âmbito da supervisão de atendimentos clínicos realizados por estagiários de psicologia, em compartilhamentos observados por mim e por pessoas próximas a mim nas redes sociais, em conversas informais em diferentes ambientes profissionais e sociais e em algumas publicações de jornais e revistas de grande circulação. Não partirei, portanto, de dados obtidos por meios considerados científicos, e sim de uma percepção específica compartilhada por muitas pessoas. Trata-se da constatação de que entre as mulheres brasileiras jovens que buscam algum tipo de relacionamento amoroso heterossexual estável, tornou-se quase uma unanimidade a queixa relativa à dificuldade de encontrar um homem com o mesmo interesse e que preencha os requisitos considerados básicos por cada uma delas. Entre esses requisitos, destaca-se o respeito e admiração pela independência que elas conquistaram. Em outras palavras, um homem liberto de pelo menos essa característica do machismo seria a condição sine qua non para o estabelecimento de uma relação amorosa desejável. Por outro lado, além do machismo, o desinteresse pelo compromisso e a consequente superficialidade das relações seriam as características negativas mais comumente apresentadas pelos homens na atualidade. À primeira vista teríamos então, em nosso meio, um grande número de mulheres muito interessadas em relacionamentos estáveis e uma escassez de homens dispostos a assumir esse tipo de compromisso. Com a ajuda de um olhar um pouco mais atento e de relatos obtidos em situações que favorecem a expressão de aspectos mais reservados da vida das pessoas, é possível, no entanto, perceber que também do lado dos homens o interesse pelo relacionamento estável com uma mulher existe e encontra obstáculos mais difíceis de serem explicitados ou até mesmo nomeados. Para eles, não se trata de alegar falta de interesse das mulheres pelo compromisso, mas quando se busca saber com alguma precisão a natureza da dificuldade encontrada, geralmente as respostas são evasivas. A insistência para que o motivo seja explicitado conduz, na maior parte das vezes, a alegações estereotipadas tais como a necessidade de esperar o momento certo ou o encontro com a "alma gêmea". Neste artigo pretendo apresentar um ponto de vista psicanalítico sobre alguns fatores que considero determinantes das dificuldades encontradas por homens heterossexuais no estabelecimento de relações amorosas e sexuais duradouras, fatores esses conectados direta ou indiretamente ao machismo, geralmente não confessados, ou até mesmo inconscientes.

Um estudo sobre o ciúme dos homens heterossexuais, desenvolvido ao longo dos últimos quatro anos, no âmbito de uma pesquisa acadêmica, levou-me à formulação de algumas hipóteses psicanalíticas sobre as relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres que me parecem trazer algum esclarecimento sobre as dificuldades apontadas acima (Ribeiro, 2012). Visando a fazer uma extrapolação dessas hipóteses relacionadas ao ciúme dos homens para esse campo mais amplo, lançarei mão de um breve texto publicado na internet e que obteve grande repercussão nas redes sociais logo após sua publicação. Trata-se do texto intitulado A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que um homem não quer, cuja reprodução integral é necessária para o desenvolvimento de minhas ideias. Antes, porém, de reproduzi-lo, considero fundamental assinalar que a posição adotada pela autora nos remete aos primórdios do movimento feminista, quando as reivindicações de igualdade com os homens dominava a luta dessa primeira geração de feministas. Trata-se, portanto, de uma posição que aparentemente desconsidera o que, segundo Kristeva (2002), caracteriza as novas gerações de feministas, a saber, a valorização da singularidade irredutível do feminino, decorrente da diferença sexual e de sua incidência sobre o contrato social. Retornarei a essa questão da diferença sexual na discussão do texto reproduzido em seguida.

Às vezes me flagro imaginando um homem hipotético que descreva assim a mulher dos seus sonhos:

"Ela tem que trabalhar e estudar muito, ter uma caixa de e-mails sempre lotada. Os pés devem ter calos e bolhas porque ela anda muito com sapatos de salto, pra lá e pra cá.

Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma viagem sozinha pelo leste europeu. Precisa dirigir bem e entender de imposto de renda.

Cozinhar? Não precisa! Tem um certo charme em errar até no arroz. Não precisa ser sarada, porque não dá tempo de fazer tudo o que ela faz e malhar.

Mas acima de tudo: ela tem que ser segura de si e não querer depender de mim, nem de ninguém."

Pois é. Ainda não ouvi esse discurso de nenhum homem. Nem mesmo parte dele. Vai ver que é por isso que estou solteira aqui, na luta.

O fato é que eu venho pensando nisso. Na incrível dissonância entre a criação que nós, meninas e jovens mulheres, recebemos e a expectativa da maioria dos meninos, jovens homens, homens e velhos homens.

O que nossos pais esperam de nós? O que nós esperamos de nós? E o que eles esperam de nós?

Somos a geração que foi criada para ganhar o mundo. Incentivadas a estudar, trabalhar, viajar e, acima de tudo, construir a nossa independência. Os poucos bolos que fiz na vida nunca fizeram os olhos da minha mãe brilhar como as provas com notas 10. Os dias em que me arrumei de forma impecável para sair nunca estamparam no rosto do meu pai um sorriso orgulhoso como o que ele deu quando entrei no mestrado. Quando resolvi fazer um breve curso de noções de gastronomia meus pais acharam bacana. Mas quando resolvi fazer um breve curso de língua e civilização francesa na Sorbonne eles inflaram o peito como pombos.

Não tivemos aula de corte e costura. Não aprendemos a rechear um lagarto. Não nos chamaram pra trocar fralda de um priminho. Não nos explicaram a diferença entre alvejante e água sanitária. Exatamente como aconteceu com os meninos da nossa geração.

Mas nos ensinaram esportes. Nos fizeram aprender inglês. Aprender a dirigir. Aprender a construir um bom currículo. A trabalhar sem medo e a investir nosso dinheiro. Exatamente como aconteceu com os meninos da nossa geração.

Mas, escuta, alguém lembrou de avisar os tais meninos que nós seríamos assim? Que nós disputaríamos as vagas de emprego com eles? Que nós iríamos querer jantar fora, ao invés de preparar o jantar? Que nós iríamos gostar de cerveja, whisky, futebol e UFC? Que a gente não ia ter saco pra ficar dando muita satisfação? Que nós seríamos criadas para encontrar a felicidade na liberdade e o pavor na submissão?

Aí, a gente, com nossa camisa social que amassou no fim do dia, nossa bolsa pesada, celular apitando os 26 novos e-mails, amigas nos esperando para jantar, carro sem lavar, 4 reuniões marcadas para amanhã, se pergunta "que raio de cara vai me querer?".

"Talvez se eu fosse mais delicada Não falasse palavrão. Não tivesse subordinados. Não dirigisse sozinha à noite sem medo. Talvez se eu aparentasse fragilidade. Talvez se dissesse que não me importo em lavar cuecas. Talvez"

Mas não. Essas não somos nós. Nós queremos um companheiro, lado a lado, de igual pra igual. Muitas de nós sonham com filhos. Mas não só com eles. Nós queremos fazer um risoto. Mas vamos querer morrer se ganharmos um liquidificador de aniversário. Nós queremos contar como foi nosso dia. Mas não vamos admitir que alguém questione nossa rotina.

O fato é: quem foi educado para nos querer? Quem é seguro o bastante para amar uma mulher que voa? Quem está disposto a nos fazer querer pousar ao seu lado no fim do dia? Quem entende que deitar no seu peito é nossa forma de pedir colo? E que às vezes nós vamos precisar do seu colo e às vezes só vamos querer companhia pra um vinho? Que somos a geração da parceria e não da dependência?

E não estou aqui, num discurso inflamado, culpando os homens. Não. A culpa não é exatamente deles. É da sociedade como um todo. Da criação equivocada. Da imagem que ainda é vendida da mulher. Dos pais que criam filhas para o mundo, mas querem noras que vivam em função da família.

No fim das contas a gente não é nada do que o inconsciente coletivo espera de uma mulher. E o melhor: nem queremos ser. Que fique claro, nós não vamos andar para trás. Então vai ser essa mentalidade que vai ter que andar para frente. Nós já nos abrimos pra ganhar o mundo. Agora é o mundo que tem que se virar pra ganhar a gente de volta (Manus, 2014).

Alguns dos comentários de leitores, publicados no próprio site onde o texto foi veiculado, evidenciam uma discordância com as opiniões e argumentos da autora. O essencial da discordância, que certamente é compartilhada por um grande número dos leitores desse texto, refere-se à pressuposição de que a maioria dos homens não tolera, ou tolera mal, as mulheres com as características descritas, ou seja, trata-se de uma discordância em relação à ideia central apresentada pela autora. De fato, a julgar pelas declarações que poderíamos obter da maioria dos homens na faixa etária entre 20 e 40 anos, o interesse por uma mulher com o perfil apresentado não seria pequeno, pelo menos no que diz respeito à inteligência, competência profissional, independência financeira e gosto por atividades que por muito tempo foram associadas ao mundo masculino. Restaria, em defesa do ponto de vista expresso pela autora do texto, a possibilidade de um desacordo entre o discurso manifesto dos homens e o que a maioria deles de fato pensa e sente a respeito dessa geração de mulheres. Por trás de uma aceitação que atenderia às exigências atuais para ser reconhecido como um homem evoluído, de mente arejada, prevaleceria uma rejeição não confessada. Porém, mesmo admitindo a existência desses dissimuladores, são muitas as evidências, perceptíveis tanto no âmbito do compartilhamento de experiências e opiniões entre as pessoas quanto no vasto domínio das mídias, de que dificilmente eles seriam maioria nessa geração de homens. Portanto, alguma outra explicação deve ser buscada para a inegável dificuldade encontrada nas relações entre homens e mulheres na atualidade. Uma abordagem desse problema que privilegie o campo da sexualidade pode, a meu ver, oferecer respostas mais adequadas.

A leitura atenta do texto transcrito acima permite constatar a ausência de referências claras à sexualidade e às práticas sexuais dessa geração de mulheres. Algumas alusões ao comportamento sexual são feitas - como na passagem em que se fala de não "ter saco pra ficar dando muita satisfação" ou serem "criadas para encontrar a felicidade na liberdade e o pavor na submissão" -, porém nada é aprofundado. Tem-se a nítida impressão que o tema foi evitado pela autora, o que me parece surpreendente em um texto que se propõe justamente a debater a vida amorosa e a busca de relacionamentos duradouros entre homens e mulheres. Se me fosse dada a tarefa de preencher essa evidente lacuna do texto, acrescentaria o seguinte à descrição que o homem hipotético, criado pela autora, faria da mulher dos seus sonhos:

Ela tem que ter conhecido muitos homens antes de mim; tem que ter tido experiências sexuais diversas, sempre querer ter novas experiências sexuais e ser capaz de distinguir um homem "bom de cama" de um homem pouco hábil sexualmente; tem que ser uma mulher que não se contente com pouco no âmbito sexual e que nunca me deixe seguro de sua fidelidade. Enfim, tem que ser alguém que vive a sexualidade como eu, com a única diferença de sentir-se atraída por homens e não por mulheres.

Com a exceção de alguns homens que entram na categoria daqueles a quem Freud (1910/1996) atribuiu "uma escolha especial de objeto", e sobre os quais voltaremos a falar mais adiante, muito dificilmente um homem comum incluiria essas características na descrição da mulher dos seus sonhos, por mais seguro de si e por mais que possua uma mentalidade evoluída. Em contrapartida, não me parece tão difícil que um homem comum descreva a mulher dos seus sonhos como alguém que trabalhe e estude muito, seja independente financeiramente, faça o que bem entende com seu salário, dirija bem, entenda de imposto de renda, seja segura de si e não dependa de ninguém. Não creio que haja uma grande dificuldade dos homens jovens atuais com a independência das mulheres, com a inserção delas no mundo do trabalho ou com o desinteresse que elas vêm demonstrando pelo mundo doméstico. Parece-me haver, em contrapartida, uma grande dificuldade desses homens com a independência sexual das mulheres dessa geração.

Entramos aqui em um terreno muito mais delicado do ponto de vista psíquico e social do que o terreno das demais conquistas que trouxeram as mulheres para um patamar de igualdade com os homens. Se o machismo ainda sobrevive nessa geração de homens jovens, ele se refugia preferencialmente no campo da sexualidade e se manifesta na maioria das vezes de forma silenciosa, como resistência ao compromisso, o que necessariamente leva à superficialidade das relações. Tendo se tornado um signo de aprisionamento aos ideais conservadores e à mentalidade retrógrada, é difícil encontrar ou até mesmo imaginar um jovem, atualmente, que ouse atribuir valor à virgindade. Manifestar interesse em saber, mesmo que seja aproximadamente, o número de parceiros sexuais que uma mulher já teve é considerado, há muito tempo, algo recriminável; querer ter algum tipo de controle sobre os relacionamentos virtuais ou reais de alguém, homem ou mulher, tornou-se algo imperdoável e até mesmo ridículo para a maioria dos jovens na atualidade. É preciso, portanto, uma escuta um pouco mais atenta e refinada para que se perceba por trás desse discurso e desse comportamento liberal dos jovens o rumor incessante de um grande desconforto. Os consultórios de psicoterapeutas, psicanalistas e também de alguns médicos passaram a ser o principal repositório dos conflitos e sofrimentos que se tornaram inconfessáveis nas relações sociais.

Algumas falas colhidas em situações diversas - que vão desde a supervisão dos atendimentos clínicos realizados por estagiários de psicologia até entrevistas com pacientes psiquiátricos internados em hospitais públicos - podem servir de exemplo desses conflitos dificilmente explicitados pelos homens jovens.

Um deles põe em palavras o pensamento que lhe veio à mente ao receber o convite de casamento de um amigo: Mais um que vai oferecer whisky e champagne para no mínimo uns dez caras que já comeram a mulher dele; e ainda vai receber abraço e tapinha nas costas de cada um deles. O mais interessante sendo, nesse caso, que o tom crítico da observação não foi suficiente para afastar totalmente a suspeita de uma ponta de inveja do noivo.

Um outro jovem, neurótico obsessivo, depois de muito hesitar, resolve perguntar à jovem com quem estava se relacionando havia algumas semanas, e com quem pensava assumir um namoro, com quantos homens ela já tinha se relacionado sexualmente. Quarenta e oito, responde a moça sem hesitar, mas deixando nele a dúvida quanto ao caráter de verdade ou de troça da resposta. Ele então pergunta "Sério?" e ela responde "sim" com um sorriso que, mais uma vez, o deixa em dúvida sobre a veracidade ou não da resposta. Desde então, o número 48 tornou-se para ele uma obsessão que se manifestava de várias formas, tais como a compulsão de contar o número de pessoas em um determinado recinto para se certificar de que não era 48, o receio de ver o número em placas de carro, na numeração das casas e prédios nas ruas, na soma ou subtração dos preços no cardápio de um restaurante, ou seja, em infindáveis situações que os obsessivos são especialmente capazes de criar e que têm em comum a característica de unir, em um mesmo ato ou pensamento, o movimento de aproximação e afastamento do desejo inconsciente.

Um terceiro, com idade de 24 anos, relata, em uma sessão de psicoterapia, o término de um namoro de poucos meses, marcado por crises de ciúmes: No final [da discussão que culminou no término] ela me disse 'Eu dou pra quem eu quiser e você come quem você quiser, tá bom?'. Fiquei puto demais, calei a boca e fui embora. Queria ter falado pra ela que comer é muito diferente de dar. Se ela tivesse dito que iria comer quem ela quisesse tava tudo bem, mas dar não; eu não posso dar pra ninguém, como que ela pode dar pra quem ela quiser?!. Também aqui é difícil imaginar uma declaração mais clara do compromisso entre desejo e interdição.

Qualificar como machistas essas declarações seria se contentar com o óbvio e perder de vista algo que resiste a décadas de revolução sexual. De fato, como afirma Jacques André (1994) ao tratar da sexualidade feminina, "não há tratamento social do conflito psíquico" (p. 7), ou seja, nenhum fenômeno social, logo, nenhuma revolução sexual, por mais liberalizante que seja, tem o poder de abolir ou enfraquecer o que é constitutivo do inconsciente e da sexualidade. Esse pensamento não difere do ponto de vista de Freud (1912/1996) ao tratar do que ele denominou de tendência universal à depreciação na esfera do amor. Para ele também, a existência de obstáculos à satisfação sexual era uma condição para a preservação da excitação em níveis elevados. Admitir que sexualidade e recalcamento são inseparáveis nos deixa ainda com a tarefa de conhecer os objetos preferenciais do recalcamento e algum possível núcleo irredutível do recalcado. Trata-se aqui de uma questão que tem ocupado um grande número de psicanalistas desde os primórdios da psicanálise. As indicações deixadas por Freud sobre o recalcamento primário e secundário serviram de base para inúmeros desenvolvimentos teóricos que por razões óbvias não retomaremos aqui. Com o intuito específico de propor uma explicação para a dificuldade dos relacionamentos entre homens e mulheres na atualidade, limitar-me-ei a apresentar, de forma resumida, alguns pontos fundamentais de uma posição teórica que venho desenvolvendo há algumas décadas.

 

Relação de penetração, identificação e gênero

Partindo de uma concepção do inconsciente e da sexualidade como efeitos da ação do outro (adulto) na constituição do psiquismo do bebê, procurei mostrar em várias publicações anteriores (Ribeiro, 2000; 2007; 2011; 2012), a importância de se pensar a imitação precoce, assim como os primeiros processos de identificação, como fenômenos passivos por meio dos quais elementos vindos do outro participam da constituição psíquica e instalam no bebê uma dimensão de alteridade em torno da qual toda a sexualidade inconsciente irá se organizar. Nessa empreitada teórica, a Teoria da Sedução Generalizada, de Jean Laplanche (1987) serviu-me de linha mestra, justamente por ser uma teoria em que as primeiras descobertas freudianas sobre o papel do adulto na formação do inconsciente no bebê são retomadas e elevadas ao grau máximo de importância, a despeito da existência de um extravio do próprio Freud relativamente à originalidade e importância dessas primeiras descobertas. Ao analisar o famoso abandono, por Freud, da teoria da sedução, Laplanche (1987) assinala que a substituição de uma etiologia da histeria fundada na ação sedutora do outro sobre a criança por uma etiologia baseada na fantasia traz como principal consequência um extravio biologizante. A suposição da existência de fantasias oriundas de impulsos internos põe em primeiro plano os fatores endógenos e nos distancia dos fatores alteritários não só na etiologia das neuroses como também na constituição do psiquismo. Laplanche (1987) insiste, então, que além da ocorrência excepcional de uma sedução pedófila, encontra-se o caráter geral e inevitável de uma sedução não perversa da criança pelo adulto, decorrente da existência, neste último, de uma sexualidade inconsciente que o condena a inocular, sem que ele o saiba, elementos sexuais que se apresentam à criança como invariavelmente enigmáticos e potencialmente traumáticos. Essa assimetria entre o adulto portador de uma sexualidade que ele desconhece em grande parte e o bebê desprovido de defesas capazes de impedir a inoculação inconsciente do sexual é o que caracteriza a posição de passividade do bebê durante o processo que Laplanche (1987) denomina de sedução originária.

Para tornar mais clara minha visão da passividade do bebê perante o outro, justificar a importância que lhe atribuo na constituição psíquica e evidenciar sua relação com a imitação precoce e a identificação é necessário analisar a relação entre as primeiras estimulações recebidas pelo bebê e a forma de percepção que se produz nele.

O ponto de partida para avançar na análise dessa questão deve ser a retomada do seguinte problema: quais são as condições da percepção no bebê anteriormente à constituição das instâncias psíquicas capazes de formar representações e fazê-las funcionar? Dito de outro modo: se estamos de acordo sobre a existência de uma abertura sensorial primária do bebê ao mundo, que tipo de experiência perceptiva seria a sua anteriormente ao surgimento do eu?

Em um texto publicado em 2000, propus a seguinte resposta a essa questão:

a excitação que atribuímos ao bebê nos primeiros dias de vida não é, rigorosamente falando, vivenciada como excitação de nenhum bebê, de nenhum indivíduo possuidor de uma representação de si e nem mesmo de nenhum corpo ao qual corresponda uma representação psíquica. Ela não é vivenciada como excitação de, mas simplesmente como excitação. Talvez pudéssemos dizer que a existência do bebê nos seus primórdios resume-se a isto: o absolutismo de excitações decorrente de uma radical abertura ao mundo [] antes de ser percebido como objeto pelo bebê, a presença do outro equivale às excitações que ele produz ou aplaca. Dizemos "equivale" não no sentido de que essas excitações estejam associadas ao outro, mas no sentido de que elas são a única manifestação de uma presença que não tem como ser percebida enquanto tal. Isso quer dizer que, no princípio do princípio, o mundo não seria "percebido" pelo bebê, ele simplesmente "existiria" e se "imporia" ao bebê como pura excitação (Ribeiro, 2000, p. 221).

Nessa mesma época, valendo-me do conceito laplancheano de sedução originária, descrevi a relação inicial adulto/bebê como uma relação de penetração, estabelecendo assim certas particularidades da mesma:

A sedução originária não se limita à imposição de vivências penetrantes ao corpo e ao psiquismo da criança, mas inclui também, e com intensidade equivalente, a utilização metafórica da criança como objeto penetrante pela mãe. Se o bebê de fato é, em algum momento, o falo da mãe, nossa hipótese é que ele o seja não apenas por representar, na fantasia da mãe, a completude neutralizadora da inveja do pênis, mas principalmente por ser um objeto que a mãe envolve com seu corpo, num movimento de contenção e acolhimento, que, à semelhança de uma grande boca ou de um útero, instala o bebê num espaço interior metafórico e sustenta, com esse envolvimento, os limites corporais nos quais o eu se apoia. Naturalmente, é a noção de holding, concebida por Winnicott, que subjaz a essas informações. Insistimos, no entanto, na dimensão de penetração que esse holding comporta, cujo protótipo é o corpo materno envolvente, que, ao segurar contra o seio o bebê, o transforma num objeto de prazer instalado num espaço metaforicamente interno, imitando, assim, a boca onde seu mamilo penetra. Toda a linguagem corporal que domina a relação da mãe com o bebê e que, na maioria das vezes, faz parte de uma intimidade exercida na privacidade de recintos reclusos, é uma linguagem profundamente marcada pela sexualidade inconsciente da mãe, na qual se encontram todas as marcas da sedução que ela própria sofreu e cujos restos pulsionais transpiram nos cuidados prodigados e no amor onipotente que ela derrama sobre sua cria. Ao reproduzir os balbucios do bebê e modelar seu próprio rosto com expressões infantis, a mãe não está apenas imitando voluntariamente seu bebê, mas principalmente cedendo a exigências pulsionais ativadas por ele, e que transformam afetivamente seu corpo num corpo inteiramente marcado pela sexualidade infantil. [] o bebê e a mãe são as duas faces de uma mesma relação de penetração, na qual não se distinguem o penetrante e o penetrado, pois, no jogo especular das imitações, a criança se imita ao imitar a mãe. Mais do que um mero jogo de palavras, isso quer dizer que a sexualidade da mãe é inoculada no bebê por meio da imitação que ela (a mãe) faz do infantil, por meio da tradução corporal (gestos, jeitos, toques, sons, afetos) daquilo que o contato com o bebê induz nela e que ela não sabe que é um derivado de sua própria sexualidade recalcada (Ribeiro, 2000, p. 272-273).

Desde a formulação inicial da teoria da sedução generalizada, em 1987, um grande debate se estabeleceu em torno dessa teoria. Encontros periódicos foram realizados desde então entre Laplanche e um grande número de psicanalistas com o objetivo de esclarecer os novos conceitos criados, submetê-los ao crivo da prática clínica e assim aperfeiçoar o que se apresentou como novos fundamentos para a psicanálise. Como parte desse processo de aprimoramento da teoria e certamente motivado pelas discussões em curso, Laplanche (2003) passou a considerar, a partir de 2003, a aquisição da identidade de gênero um fator decisivo no quadro da sedução originária.

Visto que nosso objetivo principal neste texto é a busca de uma compreensão das dificuldades do relacionamento entre homens e mulheres na atualidade, dois aspectos fundamentais destacados por Laplanche (2003) devem ser considerados sobre a aquisição da identidade de gênero. São justamente os aspectos que nos ajudarão a esclarecer o que denominamos de relação de penetração e suas consequências psíquicas.

O primeiro deles é o caráter passivo da aquisição da identidade de gênero, fato inteiramente ligado à designação do gênero pelo outro, ou seja, pelas pessoas que compõem o ambiente social no qual o bebê se encontra. Provém desse pequeno socius familiar a função designativa espontânea que resultará na formação de uma identidade de gênero feminina ou masculina, cujo poder de marcar definitivamente o modo de ser e de se reconhecer do bebê dá a medida da força identificadora do outro e da passividade radical de quem é identificado numa ou noutra dessas categorias.

O segundo aspecto advém do fato de que a designação consciente do gênero pelo pequeno socius familiar é um processo identificatório que se instala e se desenvolve sobre o solo completamente colonizado por uma série de outras experiências passivas relacionadas a todos os efeitos sensoriais produzidos no corpo do bebê durante os primeiros meses de vida. Isso quer dizer que essas experiências passivas adquirirão, a posteriori, significados inesperados e muitas vezes conflitivos a partir do momento em que o menino ou a menina passarem a perceber as implicações de se pertencer a um determinado gênero.

Retomemos neste ponto o que formulei anteriormente sobre a relação de penetração a fim de reunir em uma síntese os pontos da teoria em torno dos quais articulei minha reflexão, a saber, o papel da imitação e da identificação na sedução originária, sua relação com a passividade e o efeito de ressignificação que a designação de gênero produz sobre as experiências passivas iniciais.

De fato, conceber a sedução originária como uma relação de penetração não é senão uma maneira de ressaltar o fundo concreto, corporal, sobre o qual vem se assentar toda a constituição psíquica. Antes de se saber possuidor de órgãos genitais que não são iguais em todos os seres humanos; antes também de poder discernir a relação que essa diferença anatômica dos sexos, a ser descoberta, tem com o gênero que lhe foi designado, bebês de ambos os sexos já terão sido marcados pela estimulação não de um corpo propriamente dito, mas de uma superfície epidérmica fragmentada e sensível, dotada de órgãos dos sentidos não coordenados entre si, que são expostos a todos os estímulos e principalmente a todas as penetrações, sobre as quais nenhum controle lhes é facultado, uma vez que ainda inexiste qualquer instância à qual poder-se-ia atribuir algum tipo de controle, de contenção e de ligação. Esses fragmentos sensíveis de superfície corporal, esses órgãos do sentido ainda descoordenados, guardam registros de experiências sensíveis que são "memórias" de ninguém, de nenhum agente, de nenhum bebê; são "memórias" dos órgãos, dos fragmentos de um corpo que ainda não se unificou e sobre o qual ainda não recaiu nenhuma autorrepresentação.

Essa situação de sedução originária concebível como uma relação de penetração, determinante no processo de constituição psíquica, justamente por preceder não apenas à existência de uma instância de autorrepresentação e unificação, como também à descoberta da diferença anatômica e sua relação com o gênero, produz o que considero uma das principais características da sexualidade infantil, a saber, o desconhecimento ou a não-efetividade da distinção entre penetrar e ser penetrado. O sexual infantil recalcado apresenta-se, assim, como um resto que resiste ao efeito de separação/exclusão do penetrante e do penetrado, provocado pela introdução da diferença masculino/feminino, ligada, respectivamente, ao fálico e ao orificial. Essa partição recalcante introduzida pela designação de gênero, derivada da diferença anatômica, não se faz, entretanto, da mesma maneira relativamente a uma e outra dessas categorias. Em outros termos, o efeito de recalcamento produzido pela designação de gênero não se assenta apenas na partição masculino ou feminino, mas depende principalmente da criação de oposição entre essas categorias: o masculino se opõe ao feminino, assim como o fálico se opõe ao orificial, assim como o penetrante se opõe ao penetrado. Essa criação de oposições leva a um esforço permanente de negação de um dos polos pela afirmação do outro; compreensivelmente, sempre a negação do penetrado pela afirmação amiúde superlativa do penetrante. Os fundamentos dessa oposição e dessa negação encontram-se na própria constituição do eu, que é uma instância de ligação e unificação cuja existência se apoia totalmente na oposição a todas as forças de dispersão e desintegração. Seja em decorrência da imaturidade fisiológica dos primeiros meses de vida, seja devido aos aportes traumáticos provenientes do outro que seduz sem saber que o faz, a situação originária do bebê é de completo desamparo; e só não é desesperadora porque lhe falta a capacidade de se ver, de se representar. O surgimento do eu se confunde com o recalcamento primário dessas experiências de invasão e fragmentação do corpo desmembrado, sem sujeito, anterior ao surgimento de qualquer autorrepresentação. O eu, como instância recalcante, estará para sempre irremediavelmente vinculado ao infindável combate contra as forças pulsionais de desligamento e de morte. Se o efeito traumatizante da invasão das fronteiras corporais pelo outro é o protótipo da ameaça à unificação sustentada pelo eu, nada mais compreensível que as defesas egóicas sejam erigidas à semelhança de barreiras contra a penetração e que sejam afeitas ao poder de penetrar, de ferir e de aniquilar o outro, potencialmente agressor. Há, portanto, uma relação de similaridade entre o objeto do recalcamento e a ameaça à qual o recalcamento se opõe. A posição passiva de ser penetrado ou penetrada funciona como uma metáfora das forças de desligamento e dispersão pulsionais que atacam permanentemente o psiquismo a partir do interior. Somos conduzidos assim a admitir que gozar com a penetração é o equivalente corporal dos efeitos de alteridade no interior do psiquismo. Da mesma forma, torna-se claro que toda ação traumática é ou uma efração psíquica transposta para o corpo, ou uma efração do corpo transposta para o psiquismo. Em suma, todas essas questões me levam a concluir que a situação de ser penetrado sempre irá correr o risco de remeter à alteridade e ao trauma com muito mais propriedade do que a situação de ser o agente da penetração.

A partir dessa tese que estabelece, em última instância, a tradução dos processos somáticos em processos psíquicos, a afirmação "a anatomia é o destino" (Freud, 1912/1996) ganha uma nova significação. A existência de orifícios penetráveis, assim como a existência de um interior do corpo acessível por esses orifícios estabelecem a forma psíquica da alteridade, definindo igualmente as vias de representabilidade do ataque pulsional. Independentemente do órgão genital que se tem, será sempre possível e ameaçador colocar-se em uma posição passiva, expondo-se assim à possibilidade de ser penetrado e de sentir no interior do corpo a autonomia invasiva de algo que, conjugando-se com a alteridade, está em condição de agir por si mesmo, quer dizer, de adquirir um funcionamento autônomo. Será sempre possível combater esse gênero de ameaça pelo exercício de um órgão penetrante ou pela negação do órgão penetrável. A lógica fálica se origina dessa possibilidade defensiva: ela é eminentemente uma reação contra a lógica da alteridade que se transforma rapidamente em lógica do ser penetrado.

Essa lógica tem uma relação estreita com as contribuições freudianas à psicologia do amor, principalmente nos dois primeiros textos dessa série. No primeiro deles, Um tipo especial de escolha de objeto feita por homens, Freud (1910/1996) busca compreender porque alguns homens só se sentem atraídos ou por prostitutas ou por mulheres que estejam se relacionando sexualmente com outros homens. No segundo deles, trata-se de explicar a impotência sexual psicogênica de homens que só reencontram a plenitude dessa potência em companhia de mulheres marcadas por algum tipo de depreciação moral ou social, ou seja, prostitutas ou mulheres provenientes de extratos sociais considerados mais desfavorecidos. Nesses textos, Freud (1910/1996, 1912/1996) reconhece que a liberdade sexual da mulher, ou até mesmo sua promiscuidade, são vistas pelos homens como um fator ao mesmo tempo desejável e condenável, o que os conduz tanto à valorização extrema dessas mulheres quanto ao engajamento no permanente esforço de protegê-las dos perigos advindos de sua conduta sexual. Não é difícil apontar como denominador comum aos textos dessa trilogia freudiana a existência, do lado dos homens, do paradoxal repúdio à castidade e à promiscuidade, concomitante à paradoxal exaltação da virtude e do vício. Esses homens descritos por Freud seriam aqueles cujos conflitos inconscientes poderiam ser traduzidos nas seguintes afirmações: "Eu desejo a prostituta a quem quero salvar da depreciação, mas eu devo amar a virgem que não me desperta nenhuma excitação". "Por favor, me mostre que você é a mais infiel das esposas para que eu possa te mostrar que sou o mais fiel dos amantes". Do lado das mulheres, os efeitos não são menos paradoxais de acordo com o ponto de vista expresso por Freud nesses textos. Uma boa tradução do conflito que nelas se instala poderia ser a seguinte: "Proíbam-me de ser penetrada, exijam-me a virgindade e, posteriormente, a fidelidade, para que eu possa gozar ao transgredir cada uma dessas proibições".

Os malabarismos de Freud para encaixar desejos tão incongruentes no formato estreito da proibição do incesto e da trama edipiana clássica estão à disposição de quem quiser reler essas contribuições à psicologia do amor. O que me parece evidente é que a solução dos problemas tão bem identificados por Freud requer que se considere outra possibilidade: homens e mulheres desejam e repudiam, de formas diferentes, a mesma penetração.

 

Conclusão

A partir do exposto, é possível deduzir que mulheres e homens sempre tenderão a adotar a lógica fálica uma vez que ela protege contra a alteridade traumática. Retomando alguns dos termos utilizados no pequeno texto da internet que reproduzimos no início deste artigo, a saber, o pavor à submissão, a capacidade de liderar e ter subordinados, o destemor e o cultivo permanente da independência em todos os níveis, pode-se dizer que essas são as características que aproximam homens e mulheres justamente porque todos eles e todas elas compartilham o mesmo recalcamento: todos e todas se defendem da invasão pelo outro e seus efeitos de fragmentação e morte. Mas enquanto à mulher uma derivação erótica dessa invasão traumática das origens é franqueada, aos homens heterossexuais essa derivação é vetada. Ou seja, enquanto para as mulheres heterossexuais a possibilidade de ser penetrada na relação sexual pode se afigurar como uma experiência egossintônica, para os homens heterossexuais ela sempre permanecerá uma experiência diretamente vinculada ao trauma. A dificuldade dos homens com a liberdade sexual das mulheres se origina, portanto, em grande parte, na delegação a elas do esforço de conter a experiência traumática. Assim como a excitação sexual dos homens heterossexuais se vincula à identificação inconsciente com a posição penetrada da mulher, a interdição que lhes é imposta desse gozo também se vincula à identificação inconsciente com a contenção dessa experiência na mulher. Em outras palavras, os homens heterossexuais depositam inconscientemente nas mulheres tanto seu desejo de ser penetrado quanto suas defesas contra esse desejo. Entregar-se livremente à penetração pelo outro é tudo o que os homens heterossexuais não podem desejar abertamente para si mesmos nem conseguem tolerar irrestritamente nas mulheres que lhes interessam.

É evidente que o machismo é um fenômeno profundamente assentado em aspectos socioculturais e atende a diversos interesses de dominação e exclusão. Esse fato inegável não impede, porém, que suas raízes se estendam à existência de fatores pulsionais relacionados à constituição da sexualidade inconsciente a partir da inevitável sedução da criança pelo adulto e dos efeitos traumáticos que ela acarreta. Se de fato estamos interessados na análise em profundidade do mal-estar nas relações entre homens e mulheres na atualidade, não há como escapar de uma reflexão cada vez mais ampla sobre a sexualidade e seus efeitos sociais. Não basta condenar o machismo, ou acreditar que ele se encontra em franco declínio, quando é possível perceber seu trabalho silencioso mesmo em setores da sociedade onde prevalece o discurso da igualdade entre os sexos. O desconforto da grande maioria dos homens heterossexuais com a liberdade sexual das mulheres pode ser algo indesejável e reprovável, mas isso não impede que ele continue a existir. Compreender as razões desse desconforto que vão além dos fatores socioculturais e se conectam com a origem alteritária da sexualidade parece-me uma condição preliminar a qualquer ação coletiva ou individual capaz de promover uma efetiva superação do machismo e das evidentes dificuldades que ele acarreta nos relacionamentos amorosos e sexuais entre homens e mulheres na atualidade.

 

Referências

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Recebido em: 24/05/2015
Aceito em: 20/09/2015

 

 

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