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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.spe Juiz de fora Dec. 2015

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

A análise da implicação como dispositivo de transformação do processo de trabalho1

 

Analysis of implication as a transformation tool in the work process

 

 

Cláudia Maria Filgueiras Penido2

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Relato de experiência que aborda efeitos da análise da implicação de apoiadores matriciais em saúde mental no seu processo de trabalho. A Análise Institucional e a teoria Paidéia foram referenciais teórico-metodológicos. Apresenta-se um analisador das implicações dos profissionais no apoio matricial em saúde mental e clarifica-se como a análise da implicação pode ser um dispositivo de transformação do processo de trabalho. Os apoiadores constataram sua sobreimplicação nos objetivos pedagógicos do apoio, eventualmente em detrimento das necessidades dos usuários e perceberam a necessidade de negociação mais horizontal na condução do trabalho entre as equipes de apoiadores e de saúde da família.

Palavras-chave: Saúde Mental, Atenção Primária à Saúde, Estratégia de Saúde da Família.


ABSTRACT

An experience report that approaches the effects of the implication analysis of matrix supporters in mental health in their work process. Institutional Analysis and the Paidéia theory were the theoretical-methodological referentials. An analyzer is presented of the implication of professionals in the matrix support in mental health, and the way the analysis of implication may be a transformation tool in the work process is clarified. The supporters carried out their superimplication in the pedagogical objectives of support, sometimes to the detriment of the users' needs, and noticed the need for more horizontal negotiations in the conduction of the work between the teams of supporters and those of family health.

Keywords: Mental Health, Primary Health Care, Family Health Strategy.


 

 

O presente relato de experiência é um desdobramento de uma pesquisa de doutorado que teve por objetivo geral analisar as implicações de apoiadores matriciais em saúde mental (psiquiatras e psicólogos) e profissionais de equipes de Saúde da Família (enfermeiros, médicos e agentes comunitários de saúde) no Apoio Matricial em Saúde Mental (AMSM). A pesquisa foi realizada em cidade de médio porte da região metropolitana de Belo Horizonte, entre 2010 e 2011, quando a autora era coordenadora da equipe de AMSM há pelo menos 4 anos, o que lhe conferiu um estatuto híbrido de profissional e pesquisadora, usualmente denominado, na França, praticien-chercheur3.

O AMSM é basicamente um encontro entre generalistas e especialistas apoiadores para ampliação do escopo de raciocínio e intervenção dos primeiros em questões relativas à saúde mental, no nível da Atenção Primária em Saúde. O termo matricial deriva de matriz, que em sua origem latina significa o lugar onde se geram e se criam coisas, além de indicar, na Matemática, um conjunto de números que guardam relação entre si quer os analisemos na vertical, na horizontal ou em linhas transversais. Assim, o emprego desse nome - matricial - sugere que a equipe de Saúde da Família (eSF), considerada a equipe de referência do paciente e a equipe de apoiadores mantenham uma relação horizontal e não vertical, como usual na tradição dos sistemas de saúde (Campos & Domitti, 2007)

Na prática do município em questão, as equipes de AMSM são itinerantes e visitam as eSF a cada quinze dias, durante duas horas, para prestar esse apoio. Durante esse período, algumas das estratégias utilizadas que contam com a colaboração in loco dos especialistas em saúde mental são: discussão de casos, atendimentos compartilhados e visitas domiciliares compartilhadas. Em caso de necessidade, os psicólogos do AMSM também podem retornar à unidade básica de saúde uma vez por semana, para atendimentos pontuais de alguns usuários. Além da dimensão assistencial, o AMSM tem por objetivo pedagógico colaborar na construção da autonomia da eSF, almejando o aumento de sua potência de pensar, raciocinar, intervir e criar em questões relativas à saúde mental.

Para a pesquisa, partiu-se do pressuposto de que a incorporação do AMSM por políticas oficiais da área da saúde (Ministério da Saúde, 2004) e sua exaltação como dispositivo produtor de mudanças da estrutura gerencial e assistencial dos serviços pelo estímulo ao compromisso das equipes a favor da produção de saúde (Campos, 1998; 1999), não garante a apropriação da estratégia pelos profissionais envolvidos.

Como nos diz Cecilio (2007), o trabalhador da saúde não pode ser tomado como um "trabalhador moral"4, "desistorizado, desterritorializado e pronto a orientar, de forma automática, sua prática pelas diretrizes definidas pelos dirigentes das organizações" (p. 346). Eles não são trabalhadores "'moralmente comprometidos' com determinados projetos, na medida em que justos e necessários na avaliação de quem os formula" (Cecilio, 2007, p. 346). Assim sendo, torna-se necessário conhecer como os trabalhadores lidam com tais diretrizes.

Para tal, foram realizados grupos focais tanto com a equipe de AMSM quanto com os profissionais da eSF. A Análise Institucional de René Lourau foi o referencial teórico-metodológico daquela pesquisa, notadamente o seu conceito de implicação (Lourau, 1996), compreendido como sendo a relação que os atores estabelecem com a instituição. Nesse sentido, a implicação não pode ser tomada como sinônimo de engajamento ou envolvimento, uma vez que existe mesmo que não a desejemos (Monceau, 2008), tratando-se de analisar mais o modo de implicação - sempre existente - do que a sua existência ou quantidade -, visto não poder ser medida.

Além da autora, os dados coletados em grupos focais foram analisados por pelo menos dois pesquisadores ligados ao Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUPESC), grupo de pesquisa do qual ela fazia parte na Universidade Federal de Minas Gerais. Para analisar as implicações da praticien-chercheur, análise realizada transversalmente à pesquisa, foi utilizada a escrita diarística.

Posteriormente, as análises de implicação de trabalhadores e coordenadora foram discutidas em reuniões semanais ordinárias entre praticien-chercheur e equipe matricial em saúde mental. Em geral, a pauta dessas reuniões incluía a discussão de dificuldades do processo de trabalho, como conflitos entre as equipes (AMSM e eSF) e a construção de estratégias de enfrentamento. Desta forma, foi oportuna a integração dessa restituição da pesquisa a esse cenário, que se revelou uma oportunidade de observar o efeito da análise da implicação - posta em continuidade por sua própria discussão - no processo de trabalho do AMSM. À luz da Socioanálise - Análise Institucional em situação de intervenção -, esses encontros foram considerados dispositivos de autoanálise e autogestão, tomando-se por base a noção de dispositivo formulada por Lourau:

O dispositivo não é estrutural, mas operacional. No referencial imposto pelo estruturalismo, nós pensaremos também em matemática, nos operadores de funções por categoria ou transformadores da estrutura. A reflexão aqui desenvolvida tenta escapar a esta velha e sempre nova problemática. O dispositivo é, por hipótese, estrutura-ação ou, mais simplesmente, um evento produzido para organizar o porvir segundo um plano que, se não submetido aos constrangimentos do segredo institucional ou da clandestinidade, pode se mostrar, se analisar, se justificar [tradução nossa]5. (Lourau, 1998-1999, p.11, inédito).

Nesse sentido, a própria restituição é considerada um dispositivo cuja tarefa é a análise coletiva da situação presente segundo as diversas implicações de cada um com e na situação (Lourau, 1993).

Considerando-se o exposto, o presente texto tem como objetivo geral relatar os efeitos da discussão dos resultados da referida pesquisa sobre a análise da implicação dos apoiadores matriciais em saúde mental no seu próprio processo de trabalho. Como objetivos específicos, pretende: a) apresentar um dos analisadores das implicações dos profissionais na estratégia do AMSM, identificado na pesquisa e discutido com os apoiadores e b) clarificar como a análise da implicação pode ser um dispositivo de transformação do processo de trabalho.

Por princípio, a estratégia do AMSM é baseada na corresponsabilização e compartilhamento entre equipes. Substitui-se a lógica do encaminhamento ao especialista - frequentemente acompanhada de desresponsabilização pelo paciente - pela lógica de compartilhamento dos saberes e dos casos. Desta forma, compreende-se que o AMSM é tanto uma metodologia de trabalho quanto um novo arranjo de gestão em saúde, que transversaliza os profissionais envolvidos no cuidado em saúde, democratizando a gestão (Campos & Domitti, 2007).

Entretanto, a relação entre tais equipes nem sempre se apoia no preceito democrático, como veremos a seguir.

 

O conflito em torno da estratégia do atendimento compartilhado como analisador das relações de saber/poder no contexto do AMSM

Dadas as dimensões desse texto, vamos nos ater a uma situação considerada analisadora da implicação dos profissionais na estratégia do AMSM.

Inicialmente, identificamos (o grupo de pesquisadores) uma situação produtora de conflito entre equipes no tocante à marcação do atendimento compartilhado (consulta com o usuário da qual participam conjuntamente os profissionais de ambas as equipes): não é permitido que a eSF agende esse tipo de atendimento sem antes discutir o caso com a equipe de AMSM ou sem que pelo menos médico ou enfermeiro possam estar presentes6. São os especialistas que decidem sobre a necessidade do atendimento compartilhado, geralmente quando a discussão do caso entre equipes não é suficiente e a eSF já esgotou suas possibilidades de raciocinar e intervir sozinha, no nível da Atenção Primária à Saúde.

Nos grupos focais, os especialistas consideraram que a magnitude epidemiológica dos transtornos mentais na Atenção Primária à Saúde não permite estender o atendimento compartilhado, que consome mais tempo, a todos os usuários. Lembraram ainda que outro objetivo da consulta compartilhada é estimular que a eSF, considerada coordenadora da assistência, se aproprie do caso do usuário, contribuindo para aumentar o vínculo entre eles e a chance de uma abordagem mais resolutiva.

Identificou-se, entretanto, já ter ocorrido de profissionais da eSF combinarem com o usuário um atendimento compartilhado sem que os especialistas tivessem conhecimento. Isso ocorreu em dois tipos de situações: profissionais da eSF recém-chegados ao serviço que ainda não tinham se familiarizado com esta "norma" do AMSM; profissionais - sobretudo médicos - que não aceitavam a falta de autonomia de marcar um atendimento compartilhado sem antes ter discutido o caso do usuário com os especialistas, detentores do poder de decisão.

O tensionamento foi assim exposto:

Uma queixa que o médico faz é que ele, às vezes, gostaria de já agendar com o paciente no dia do encontro com os apoiadores, e a gente não pode fazer isso. Teoricamente nós não podemos fazer isso. Nós temos que primeiro discutir o caso e a equipe [refere-se aos especialistas] decidir (Grupo focal com enfermeiros).

Além disso, constatou-se que a equipe de AMSM estava tão presa à estratégia pedagógica da consulta compartilhada que ela podia recusar ver um usuário se o enfermeiro ou o médico da eSF não estivesse disponível para partilhar a consulta, ainda que o usuário estivesse aguardando na unidade de saúde. Tal situação gerava grande tensão entre equipes e entre elas e o usuário. A eSF se queixava de que nem sempre podia assegurar que um de seus profissionais tivesse disponibilidade no horário combinado entre equipes, tomando por consideração seu cotidiano atribulado. Os apoiadores diziam que a eSF queria se desresponsabilizar pelo usuário, voltando à antiga prática dos encaminhamentos, a qual o apoio matricial pretendia substituir pela lógica do compartilhamento.

Foi curioso perceber que os enfermeiros, quando perguntados, não conseguiam identificar o motivo da equipe matricial não realizar atendimentos compartilhados sem a presença deles ou do médico. Tal fato fazia pensar se eles não poderiam compreender a absoluta questão que se fazia da presença deles como um capricho. A situação referida nos sugeriu, ainda, uma precária pactuação sobre a indicação e funcionamento da estratégia de atendimento compartilhado - tanto pelos profissionais quanto pela gestão - e aludiu a um uso vertical do poder paradoxalmente a favor das práticas de corresponsabilização ou compartilhamento, como se os fins justificassem os meios. Esta frágil pactuação entre os envolvidos, frequentemente observada na implantação das políticas públicas no nosso país, foi identificada como um momento fundador (Lourau, 1981) que influenciou sobremaneira a relação dos profissionais com a instituição do AMSM.

Consideramos ainda, que a sobreimplicação da equipe de AMSM nos princípios do apoio matricial, alimentada por um forte engajamento ideológico e organizacional, fazia com que os psicólogos e psiquiatras apoiadores fossem pouco abertos às mudanças demandadas pela eSF no processo de trabalho. Esta sobreimplicação, entendida como a impossibilidade de analisar a implicação, era caracterizada pela aceitação de práticas de verticalidade no uso do poder, o que os próprios sujeitos afirmavam recusar (Monceau, 2008). No caso, os apoiadores se tornaram tão instituídos no fazer que se esqueceram da horizontalidade própria da metodologia matricial. Dessa forma, a situação relatada acima se traduziu em uma forte contradição institucional, tal como no exemplo dado por Monceau (2008), em outro contexto: "Por exemplo, um professor que se recusa em teoria que a polícia intervenha na escola, poderá aceitar a vinda da polícia à escola sob a condição de que ela permita que o aluno continue na escola" (p. 24).

Constatamos que a prática do atendimento compartilhado não era discutida entre equipes, assim como também o uso do poder por parte da equipe matricial - justificado pelo saber. A recusa do atendimento compartilhado na ausência de médico ou enfermeiro da eSF, enfim, gerava conflitos não analisados entre as equipes.

Campos (2005) considera que um dos recursos metodológicos úteis à função de apoio é "incluir as relações de poder, de afeto e a circulação de conhecimentos em análise" (Campos 2005, p.95), o que os analistas institucionais chamariam "análise de implicação", segundo ele.

Sem necessariamente a nomearmos como tal, passamos a restituir a análise de implicação feita na pesquisa descrita, à equipe de AMSM, durante as reuniões semanais entre a coordenadora (praticien-chercheur) e apoiadores.

 

Efeitos da análise da implicação no processo de trabalho

Mas qual o interesse de se discutir a análise da implicação dos profissionais nas reuniões de equipe de apoiadores?

Neste processo, discutimos, antes de mais nada, o interesse da praticien-chercheur que ultrapassava o interesse de restituição da pesquisa à equipe. A escritura diarística evidenciou, da sua parte, uma intenção de que a discussão da análise da implicação possibilitasse aos apoiadores a experimentação daquilo que ela compreendia como função deles: para além e ao longo do trabalho assistencial e pedagógico do AMSM, abordar a circulação dos saberes, afetos e poderes no cotidiano de trabalho, tal como sugerido pelo método Paidéia de Campos (2005). A aposta feita era de que tal discussão desestabilizaria o instituído e reforçaria uma importante função dessa nova forma de gestão designada apoio especializado ou matricial, qual seja a discussão dos processos de trabalho, partindo-se do pressuposto de que a gestão e a clínica são indissociáveis. Havia a expectativa de que o dispositivo da restituição da pesquisa disparasse um "efeito dominó" que poderia ser assim resumido: a oportunidade de discutir a circulação de saberes, poderes e afetos intraequipe poderia favorecer a mesma discussão interequipes, no caso, entre eSF e AMSM. Tal aposta foi prontamente acolhida pela equipe de apoiadores.

A discussão do interesse da praticien-chercheur, aos poucos, abriu espaço para uma questão: indagamo-nos se os interesses dos apoiadores estariam claros para as eSF e, antes de tudo, para os próprios. E, se razoavelmente claros, se tais interesses e constrangimentos - tanto no seu sentido de limitação quanto de sujeição - eram tomados como objeto de diálogo entre eles.

Segundo Lourau (1975, p. 267), "o regulamento pode ser mais ou menos interiorizado ou sentido como um puro constrangimento, conforme se trate de um regulamento elaborado pela coletividade, ou aceito por ela, ou ainda imposto por uma parte da coletividade"7. Dessa forma, importava saber como os profissionais percebiam a estratégia do atendimento compartilhado e seu protocolo. Nos depoimentos dos grupos focais, verificamos que havia profissionais da eSF que os percebiam como uma imposição e não como fruto de uma negociação coletiva.

Segundo os apoiadores, a análise de implicação também contribuiu para que eles percebessem, de sua parte, algumas crenças que colaboravam para tensionar a relação entre equipes. Por exemplo, os apoiadores identificaram que entendiam a resistência da eSF como desresponsabilização pelos pacientes, como se médico e enfermeiro quisessem empurrar os pacientes para que eles os atendessem em seu lugar. Justificavam que não estavam tensionando a eSF para o atendimento de casos graves - para os quais eram acionados os serviços especializados em saúde mental existentes no município -, mas tão somente para aperfeiçoarem a sua possibilidade de atender os pacientes de forma integral, levando-se em conta os aspectos psicossociais8. Além disso, ocorria-lhes a impressão de certa alienação da eSF, revelada em um cotidiano consumido pelo "tarefismo".

Por outro lado, ficaram surpresos em descobrir que a eSF considerava os especialistas tão afeitos ao que chamavam de "regrinhas" que não os ajudavam tanto quanto poderiam na resolução das necessidades mais prementes dos usuários. As mencionadas regras eram consideradas pelas eSF como algo imposto pela equipe matricial. De fato, percebemos que os apoiadores se legitimavam frequentemente pelo saber para justificar decisões sobre aspectos do processo de trabalho, sem a devida construção coletiva que efetivamente tornariam legítimas as decisões. Isso era a fonte mais importante de conflitos com a eSF, mais do que qualquer outra razão tal como falta de tempo desta equipe ou assoberbamento com as tarefas diárias.

Também como um dos efeitos da restituição da pesquisa, houve um amplo debate sobre o que a equipe de AMSM e respectiva coordenação entendiam por compartilhamento da clínica. O ponto em questão era: o compartilhamento do caso e a função pedagógica do apoio só poderiam se dar no momento do atendimento ou poderiam ser resgatados a posteriori, na discussão do caso entre equipes, caso apenas os especialistas participassem, eventualmente, do atendimento?

No caso da querela entre equipes, foi percebido que as narrativas dos trabalhadores da eSF insinuavam uma demanda de inversão do que propunham os especialistas: em vez das equipes discutirem previamente o caso para decidir sobre o atendimento compartilhado, preferiam que pudessem marcar alguns atendimentos para os especialistas - ainda que eventualmente não compartilhados - para melhor compartilharem o caso nos encontros entre equipes.

Refletir sobre este ponto pareceu, aos apoiadores, simplificar a questão que tanto mobilizava afetos e resistências. Eles passaram a desnaturalizar a presença do médico ou do enfermeiro durante o atendimento compartilhado como garantia de compartilhamento da clínica e do processo de trabalho. Nesse sentido, passaram a perceber outras formas de compartilhar, a começar pelo compartilhamento das decisões e planejamentos no processo de trabalho. Nas reuniões semanais, contaram sobre como passaram a rever, junto com as eSF, a melhor forma de compartilhar a clínica e o trabalho, e não necessariamente o atendimento em si. Passaram a experimentar a sustentação do que Campos (2005) chama recurso metodológico dialético - próprio à função de apoio - o qual tanto traz ofertas externas quanto valoriza as demandas do grupo apoiado. Ou seja, tentavam explicitar e negociar, antes de mais nada, os interesses de cada equipe.

Isso não significou, entretanto, a consolidação definitiva do pacto em torno da substituição da lógica de encaminhar os usuários aos especialistas pela lógica da corresponsabilização e compartilhamento da clínica. Às vezes ainda era difícil de sustentar a intenção da equipe matricial de não fazer clínica no lugar dos profissionais de saúde da família, mas de fazer clínica com eles (Penido, 2011).

Além de ter perturbado o instituído, integrar a discussão da análise da implicação nas reuniões de equipe do AMSM, contribuiu para trazer vários elementos que, não tendo surgido nas falas dos grupos focais, não pôde ser abordado na análise da pesquisa. Foi assim que tal discussão, como nos diz Monceau (2013), oportunizou trazer o que não foi trazido, apesar de partir do que foi trazido. A análise, cada vez mais coletiva, produziu efeitos na dinâmica das equipes, fazendo evoluir o domínio da informação e exercício do poder (Monceau, 2013). Avaliamos (praticien-chercheur e apoiadores), que a análise da implicação contribuiu para ampliar, para todos, a capacidade de analisar o processo de trabalho. Isso estimulou uma negociação mais horizontal na condução do trabalho entre as equipes envolvidas e colocou em pauta o fato de que o interesse pedagógico do AMSM não poderia se sobrepor às necessidades das equipes e dos usuários.

Finalmente, os apoiadores descobriram que, além de não ser desejável fazer apoio para os outros ou pelos outros, mas junto com os outros, também não se faz apoio apesar dos outros.

Assim, no exercício dialético do meu estatuto de praticien-chercheur, foi-me permitido voltar a campo (sem dele nunca ter saído) para discutir as análises de implicação com os próprios profissionais, o que tanto alimentou outras análises da implicação dos profissionais quanto algumas mudanças nas suas práticas, nutridos pela análise e reanálise feita sobre elas. Desta forma, penso ter, eu mesma, experimentado aquilo que já foi indicado por Monceau (2013): ser praticien-chercheur é mais do que a justaposição de duas funções, mas a alteração recíproca delas no mesmo indivíduo, sendo o produto da interferência entre as duas.

Além dos efeitos aqui descritos e creditados à discussão da análise da implicação entre praticien-chercheur e equipe de apoiadores, há outros tantos que, certamente, escaparam à autora. Tanto melhor. Esta será, então, uma grande oportunidade de produzir outros efeitos, outras análises, outros...

 

Referências

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Recebido em: 16/08/2015
Aceito em: 22/12/2015

 

 

1 Este texto é uma tradução do original, escrito em língua francesa e publicado nos anais do Congresso Actualité de la Recherche en Education et en Formation, de 2013, realizado em Montpellier (França).
2 Contato: claudiamfpenido@gmail.com
3 Praticien-chercheur é um termo que se refere ao sujeito engajado, ao mesmo tempo, em uma prática sócio-profissional e em uma prática de pesquisa, tendo por objetos seu próprio campo e sua própria prática.
4 Segundo Cecílio (2007, p. 345) "o trabalhador moral é aquele que fará adesão automática a determinados conceitos, modos de se organizar o cuidado e modos de se fazer a gestão, formulados por militantes/intelectuais/gestores engajados na reforma sanitária, por serem eles, em princípio, justos e necessários".
5 Le dispositif n'est pas structurel, mais opérationnel. Dans le cadre de référence imposé par le structuralisme, on pensera aussi, en mathématiques, aux foncteurs ou transformateurs de structure. La réflexion ici développée tente d'échapper à cette vieille et toujours jeune problématique. Le dispositif est, par hyphotèse, une structure-action ou, plus simplement, um évènement produit en vue d'organiser l'avenir selon un plan qui, s'il n'est pas soumis aux contraintes du secret intitutionnel ou de la clandestinité, peut s'afficher, s'analyser, se justifier (Lourau, 1988-1999, p.11, inédito). Agradeço à Gilles Monceau a cessão de cópia desse manuscrito.
6 A não inclusão dos agentes comunitários de saúde no atendimento compartilhado é justificada, pelas equipes, pelo direito do usuário ao sigilo profissional e pelo foco pedagógico para facilitar a abordagem clínica dos usuários quanto ao manejo da entrevista, distinções diagnósticas e intervenções psicofarmacológicas, quando for o caso - o que não competiria aos agentes, na opinião deles.
7 No original em francês: "le règlement peut être plus ou moins intériorisé, ou ressenti comme pure contrainte, selon qu'il s'agit d'un règlement élaboré par la collectivité, ou accepté par elle, ou encore imposé par une partie de la collectivité".
8 É importante de sublinhar que as discussões e as intervenções conjuntas das equipes não se restringem aos casos de usuário com transtornos mentais. A eSF pode solicitar este suporte para todos os casos de aspectos psicossociais que coloquem algum problema, como nas situações de baixa adesão ao tratamento (Penido, 2011).

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