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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.spe Juiz de fora dez. 2015

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Saúde mental e estratégia de saúde da família: uma primeira experiência de aproximação

 

Mental health and family health strategy: first approaching experience

 

 

Cláudia Maria Filgueiras Penido1; Izabel Christina Friche Passos; Ilda Costa de Andrade

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Relato de experiência que discute a primeira tentativa de aproximação entre equipes de saúde mental e saúde da família em cidade da região metropolitana de Belo Horizonte (Minas Gerais). Capacitações em saúde mental são usadas como recursos, paralelamente aos processos de mapeamento e confecção de catálogo de recursos socioculturais feitos por agentes comunitários de saúde, acompanhados por estagiários de Psicologia. A experiência lança as bases para a implantação do apoio matricial em saúde mental no município e é criticamente analisada nos dias de hoje quanto a atravessamentos do poder institucional e o limite das capacitações para a transformação das práticas.

Palavras-chave: Saúde Mental, Atenção Primária à Saúde, Estratégia de Saúde da Família.


ABSTRACT

Report of an experience discussing the first attempt to bring the mental health and the family health teams close to gether, in a town in the metropolitan region of Belo Horizonte (Minas Gerais). Qualifications in mental health are used as resources, parallel to the mapping process and the manufacture of a catalogue of sociocultural resources by community health agents and Psychology trainees. The experience sets the basis for the implementation of Mental Health Matrix Support in the town, and it is critically analyzed nowadays as to the interference of the institutional power and the limit of the qualifications for the transformation of practices.

Keywords: Mental Health, Primary Health Care, Family Health Strategy.


 

 

O relato de experiência que se segue irá tratar do primeiro movimento de aproximação entre Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família (ESF) em um município de médio porte da região metropolitana de Belo Horizonte. A articulação foi planejada pela equipe de saúde mental do município, que entendia como desnecessários e iatrogênicos os crescentes encaminhamentos de usuários por parte das equipes de saúde da família. O excessivo referenciamento sobrecarregava o serviço especializado em saúde mental e prejudicava o acesso dos usuários com transtornos mentais mais graves. Uma capacitação em saúde mental foi planejada para estimular o acompanhamento, pela ESF, de pessoas com transtornos mentais leves e aprimorar a identificação dos casos que demandavam atendimento especializado.

Nesse contexto, destacamos o trabalho desenvolvido pelo estágio de Psicologia então em curso, que disparou o processo de mapeamento dos recursos socioculturais do município, realizado pelos agentes comunitários de saúde (ACS). O objetivo do estágio era aproximar os alunos de Psicologia do cotidiano da Saúde Coletiva, mais especificamente das ações de apoio à ESF relacionadas à saúde mental e à articulação intra e intersetorial de acordo com o caso. O mapeamento foi vislumbrado como uma intervenção capaz de sensibilizar os atores envolvidos em relação à necessidade de repensar a clínica praticada na ESF, principalmente focada na doença e na medicação. A intenção era de que os ACS

pudessem se tornar multiplicadores de uma concepção ampliada de saúde, atenta aos aspectos psicossociais que intervêm na vida de todos e de cada um.

A primeira e terceira autoras deste artigo foram protagonistas da experiência. A terceira era, à época, estagiária de Psicologia e a primeira, psicóloga da equipe de saúde mental e professora supervisora do estágio. Passados alguns anos, a segunda autora juntou-se a elas no movimento de releitura da experiência. Esse olhar, estrangeiro, somado a um distanciamento temporal da experiência vivida pelas protagonistas, produziu um estranhamento que nos pareceu fecundo para uma análise crítica desse fazer. Foi-nos possível ressignificar a experiência de modo a compreendermos melhor suas limitações e também sua contribuição para a subsequente implantação do Apoio Matricial em Saúde Mental em todo o município.

Este texto tenta ainda minimizar o exíguo espaço da literatura destinado à recuperação de fragmentos micropolíticos da história de construção da articulação entre Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família país afora, fazendo com que muitos aspectos importantes dessas variadas experiências - sejam eles dificultadores ou potencializadores - deixem de ser compartilhados. O relato foi escrito, portanto, com o desejo de apresentar a singularidade de uma prática e, ao mesmo tempo, de ampliar as possibilidades de compreender, criticar e atualizar outras tantas práticas cotidianas que se dão alhures.

 

A oferta de capacitação como tentativa de enfrentamento de dificuldades em saúde mental e aproximação entre equipes

A experiência que ora relataremos foi iniciada em 2005, quando o município em questão contava com dois ambulatórios de saúde mental, um destinado a adultos e outro a crianças e adolescentes, para atender aos seus aproximadamente 220.000 habitantes2. Tratava-se de uma estrutura em transição, visto que o município aguardava o credenciamento do Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II) e do Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), o que se deu algum tempo depois.

Vivia-se um contexto político favorável, decorrente da relação de parentesco de um trabalhador de saúde mental com o então secretário de saúde, o que colaborou para a anuência quanto à nomeação de um coordenador técnico para a Saúde Mental - que contava com um grupo de profissionais que trabalhava de forma desarticulada. Da mesma forma, o Estágio Supervisionado de alunos de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) também foi aprovado.

A primeira providência do coordenador técnico nomeado foi reunir a equipe para a construção de um projeto de saúde mental para a cidade, quando se deparou com a inevitabilidade de se pensar a articulação da Saúde Mental com a ESF, questão que adquiria um caráter urgente dado o assoberbamento da primeira com o volume de encaminhamentos feitos pela segunda. Esse número chegou a 1.300 usuários em um único mês, a maioria com transtornos mentais considerados leves ou mesmo com sofrimentos da vida que sequer poderiam ser descritos naqueles termos. Segundo o manual distribuído pelo Ministério da Saúde para informar aos profissionais de saúde e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) sobre os CAPS, "é a rede básica de saúde o lugar privilegiado de construção de uma nova lógica de atendimento e de relação com os transtornos mentais" (Ministério da Saúde, 2004, p. 25). Esse foi o desafio em que miramos.

Nessa ocasião, pensou-se que a oferta de uma capacitação previamente planejada e dirigida aos médicos da ESF, principais agentes encaminhadores à Saúde Mental, seria a melhor opção para refletir sobre as possibilidades de cuidado daqueles usuários no âmbito da ESF. A capacitação, sob responsabilidade de um dos psiquiatras da equipe de saúde mental, foi distribuída em quatro encontro se discutiu: a Reforma Psiquiátrica e o projeto de Saúde Mental do município, construído pela equipe de saúde mental; o sistema de referência e contrarreferência de usuários; os critérios de encaminhamento à Saúde Mental; os transtornos mentais mais comuns e as respectivas condutas medicamentosas.

Paralelamente, o estágio de Psicologia propôs outra estratégia. Ao invés da oferta de uma capacitação previamente preparada, optou-se por ir ao encontro de ACS e enfermeiros, antes da capacitação, com o intuito de fazer um levantamento sobre ações de saúde mental já protagonizadas na ESF. O objetivo era identificar ações que poderiam já acontecer no seu dia a dia de trabalho, bem como crenças, dificuldades e necessidades relacionadas à saúde mental, a fim de subsidiar o planejamento do curso de capacitação que seria então ofertado a esses profissionais. Ao longo de alguns dias, as estagiárias de Psicologia aplicaram questionários a todos os enfermeiros e agentes comunitários. As perguntas eram abertas e foram respondidas por escrito e individualmente. No caso dos ACS, o questionário foi aplicado em situação de pequenos grupos compostos por trabalhadores de uma mesma unidade; no caso dos enfermeiros, por serem apenas um ou dois profissionais por unidade e o projeto não prever grupos heterogêneos, todos foram entrevistados individualmente. Os questionários para enfermeiros e para ACS foram distintos, uma vez que cada grupo tem atribuições diferentes, o que inclui a responsabilidade dos enfermeiros pela supervisão do trabalho dos ACS de sua equipe.

Assim, para os enfermeiros, aplicou-se o seguinte questionário:

1 - Que tipo de situação, encontrada em sua atividade profissional diária, tem relação com a saúde mental? Exemplifique.

2 - Quais são as condutas adotadas por você nos casos descritos acima?

3 - Você é solicitado(a) a dar algum tipo de suporte aos ACS sobre questões que envolvem a saúde mental? Em caso afirmativo, você tem algum tipo de dificuldade nessa situação? Descreva-a(s).

4 - O que você entende por transtorno mental? Que critério usa para identificá-lo?

5 - O que você deseja que um curso de capacitação em saúde mental ensine ou discuta com você?

6 - Você sugere algum tipo de capacitação ou educação continuada no que se refere à saúde mental?

Já para os ACS, o questionário foi o seguinte:

1 - Que vivências na sua atuação profissional têm relação com a saúde mental?

2 - Como costuma lidar com as situações descritas acima?

3 - Você recebe algum tipo de suporte para lidar com tais situações? Em caso afirmativo, qual(is)?

4 - O que você entende por transtorno mental? Que critérios usa para identificá-lo?

5 - Nas visitas domiciliares, quando identificado um usuário com transtorno mental, qual conduta é adotada por você?

a) Quando ele já é usuário da Saúde Mental.

b) Quando ele não é usuário da Saúde Mental.

6 - O que você deseja que um curso de capacitação em saúde mental ensine ou discuta com você?

No caso dos ACS, depois das respostas do questionário, as estagiárias propuseram uma discussão entre os participantes do mesmo grupo, acerca das questões que já haviam respondido individualmente, supondo que o momento coletivo poderia trazer dados diferentes dos registrados no questionário, considerando-se o caráter socializador e dinâmico dos grupos.

Na análise do material, agrupamos os dados coletados com enfermeiros e ACS sob cinco categorias:

1) Vivências: situações da prática profissional que guardam alguma relação com saúde mental.

2) Condutas: procedimentos adotados diante das vivências da prática profissional e que guardam relação com a saúde mental.

3) Concepção de transtorno mental: compreensão e critérios utilizados para identificação de transtorno mental.

4) Suporte: no caso dos enfermeiros, capacidade de auxílio (esclarecimentos, orientações, etc.) aos ACS, a partir de dúvidas ou dificuldades surgidas em suas práticas diárias e necessidades de suporte permanente (para os enfermeiros) na execução dessa tarefa; no caso dos ACS, auxílio (esclarecimentos, orientações, etc.) recebido para lidar com questões relativas à saúde mental na sua prática profissional.

5) Expectativas em relação à capacitação/educação continuada: desejos relativos à aquisição de competências para lidar com questões de saúde mental na própria prática profissional.

Depois de proceder à análise temática dos dados (Minayo, 2004), constatamos que os profissionais encontravam muitas dificuldades nas ações relacionadas à saúde mental. Por parte dos ACS, os dados indicavam: dificuldade de identificar e abordar o usuário com algum transtorno mental; desconhecimento do seu potencial para acompanhamento do usuário em aspectos relacionados aos cuidados em saúde e orientação da família e da comunidade; reducionismo relativo à compreensão de seu papel no tocante à saúde mental (restrito ao agendamento de consultas); falta de suporte técnico para orientar a sua atuação.

Em relação aos enfermeiros, constatamos: dificuldades quanto ao diagnóstico e abordagem das pessoas com transtornos mentais; desconhecimento do potencial terapêutico do acolhimento; reducionismo relativo à compreensão do seu papel no tocante à saúde mental (desempenhavam basicamente o papel de "encaminha-dores" à equipe de saúde mental); dificuldade de considerar ações de saúde mental não centradas em procedimentos, tais como consultas, medicação, etc.; identificação da medicação como praticamente único recurso no cuidado à saúde mental na ESF.

Cientes da realidade exposta, preparamos uma capacitação em saúde mental para enfermeiros e depois para ACS, cuja primeira parte era dedicada à devolução da análise dos dados coletados nos levantamentos, o que orientaria as discussões privilegiadas no encontro. Várias das dificuldades consideradas por enfermeiros e ACS eram retomadas a partir de dramatizações. Em geral, discutiu-se a proposta da Reforma Psiquiátrica e o projeto de saúde mental do município; a perspectiva do trabalho em rede e a responsabilidade compartilhada pelo usuário; complexidade, multiprofissionalidade e interdisciplinaridade na saúde mental.

Se o objetivo geral das capacitações era dar subsídios às equipes de Saúde da Família para que pudessem sustentar o acompanhamento de pessoas com transtornos mentais leves e aprimorar a identificação dos casos que demandavam atendimento especializado, com o tempo, percebeu-se que seria importante discutir também a saúde de forma mais ampliada, a fim de estimular ações não centradas apenas em procedimentos como consultas ou medicação.

Um mês depois de finalizadas as primeiras capacitações para os médicos, enfermeiros e ACS, houve uma diminuição de aproximadamente oitenta por cento (80%) no número de encaminhamentos mensais feitos pela ESF à Saúde Mental, o que foi um resultado surpreendente para todos os envolvidos.

Com o passar do tempo, entretanto, observou-se o recrudescimento do número de encaminhamentos, o que indicou a necessidade de um suporte permanente da equipe de saúde mental, sobretudo em se considerando a rotatividade dos profissionais na ESF.

 

Apoio Matricial em Saúde Mental: projeto piloto

Naquela ocasião, alguns profissionais da equipe tiveram contato com a discussão da estratégia do Apoio Matricial em Saúde Mental no XI Congresso Mundial de Saúde Pública/ VIII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), ocorrido em 2006, no Rio de Janeiro (RJ).

Pensando na perspectiva de dar um suporte permanente, em saúde mental, às equipes de Saúde da Família, foi proposta à coordenação de saúde mental do município a adoção da estratégia do apoio matricial, prevista pelo Ministério da Saúde, e assim definida:

O apoio matricial constitui um arranjo organizacional que visa outorgar suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população. Nesse arranjo, a equipe por ele responsável compartilha alguns casos com a equipe de saúde local (no caso, as equipes da Atenção Básica responsáveis pelas famílias de um dado território). Esse compartilhamento se produz em forma de co-responsabilização pelos casos, que pode se efetivar através de discussões conjuntas de caso, intervenções conjuntas junto às famílias e comunidades ou em atendimentos conjuntos. (Ministério da Saúde, 2004, p.79)

O recurso a uma estratégia como essa, que propunha a substituição da lógica do encaminhamento pela lógica da responsabilização compartilhada dos casos (Ministério da Saúde, 2004), pareceu adequado às necessidades locais. Dessa forma, foi apresentado um projeto piloto de Apoio Matricial em Saúde Mental, que foi aceito pela Secretaria de Saúde, que vinha acompanhando a significativa diminuição dos encaminhamentos da ESF à Saúde Mental, ocorrida após as capacitações. Não existia, àquela época, financiamento federal para essas ações, o que só se consolidou com a portaria de criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), em 2008 (Portaria n. 154, 2008). O município passaria a fazer jus à verba somente em 2011, tendo bancado o apoio matricial em saúde mental, com recursos próprios, de 2007 até aquele ano.

Como eram muitas as equipes de saúde da família e pouco o tempo dos profissionais da equipe de saúde mental destinados ao matriciamento, dividiu-se o município em grandes microáreas, que indicavam uma de suas Unidades Básicas de Saúde (UBS) para sediar as reuniões do projeto piloto de Apoio Matricial, que aconteciam a cada quarenta dias. Nessas reuniões, um psiquiatra da equipe de saúde mental se encontrava com até oito equipes de saúde da família para oferecer suporte para questões relativas à saúde mental. O tempo exíguo dos profissionais de saúde mental foi justificativa usada para, inicialmente, mobilizar apenas psiquiatras para essa tarefa, visto que apenas esse profissional poderia discutir qualquer aspecto referente ao caso, considerando-se que os demais não poderiam orientar sobre medicação. Da mesma forma, o exíguo espaço físico das UBS e o elevado número de ACS por microárea foi justificativa apresentada pelas equipes para não incluí-los nos encontros matriciais. Nesse contexto, o estágio de Psicologia foi pensado como um apoio em saúde mental para os ACS do município, que só vieram a participar das reuniões de matriciamento tempos mais tarde.

Nesse contexto, o estágio de Psicologia se propôs a trabalhar com os ACS o mapeamento dos recursos socioculturais do município e a elaboração do Catálogo de Recursos Socioculturais, abordados a seguir.

 

Os processos de mapeamento e confecção do catálogo de recursos socioculturais

Levando-se em conta o levantamento realizado sobre as ações de saúde mental, em que foi identificada a dificuldade da ESF de considerar ações não centrada sem procedimentos como consultas ou medicação, pensou-se em aproveitar o potencial dos ACS para sensibilizar a equipe de saúde da família para a possibilidade do acionamento de recursos da comunidade para o cuidado em saúde. O convite à confecção de um catálogo de recursos socioculturais seria um ensejo para refletir, com esses profissionais, sobre a dimensão psicossocial na clínica com o usuário. Dessa forma, tentava-se deslocar a centralidade da medicação, pelo menos junto a esses profissionais da ESF. Nessa direção, os ACS poderiam passar a desempenhar um trabalho mais criativo e autônomo de aproximação com a comunidade por vias não medicalizadas ou medicalizantes.

Acreditou-se que o ACS era o elemento-chave para realizar a tarefa, dado seu conhecimento do território em função de nele viver e circular, diariamente, a trabalho. Além disso, fazem parte de suas atribuições as ações de promoção da saúde.

Foram considerados como recursos socioculturais as entidades, os grupos organizados e os programas que pudessem acolher o cidadão do município e ajudá-lo a cuidar de si e de sua saúde, tomando por base que

As ações de saúde mental na Atenção Básica devem obedecer ao modelo de redes de cuidado, de base territorial e atuação transversal com outras políticas específicas e que busquem o estabelecimento de vínculos e acolhimento (Ministério da Saúde, 2004, p. 77).

Para prepará-los para a tarefa, optou-se por reunir os ACS em subgrupos, tendo em vista o grande número deles. Foi tomada como referência a divisão por microáreas utilizada para o matriciamento em saúde mental.

Inicialmente foi utilizada uma dinâmica de grupo para abordagem do tema do "trabalho em rede". Em seguida, foram discutidas questões como a responsabilização partilhada do usuário do SUS, finalizando com uma oficina para construir com os ACS modos de se identificar o que seriam recursos socioculturais. Ressaltou-se a importância de se incluir tais recursos na construção do projeto terapêutico dos usuários e foi enfatizada a importância dos agentes na identificação de recursos do território, o que justificava o convite para que fossem os atores privilegiados na tarefa do mapeamento sociocultural.

Na sequência, a turma foi dividida em pequenos grupos para discussão de casos. O objetivo era que identificassem, a partir da história de um determinado usuário, recursos da comunidade que pudessem ser cogitados com ele para a construção de seu projeto terapêutico. Esse momento serviu também para verificar a compreensão dos ACS sobre o que seria um recurso sociocultural e fazer um levantamento inicial de quantos e quais recursos já eram identificados no respectivo território.

Foram estabelecidos como critérios para inclusão no catálogo: o potencial da instituição (programa, serviço, atividade, etc.) para acolher e vincular o usuário; a gratuidade ou contribuição monetária apenas simbólica (quando houvesse). As instituições religiosas só poderiam ser incluídas se fornecessem atividades não forçosamente vinculadas a qualquer tipo de crença.

O processo de levantamento dos recursos socioculturais pelos ACS, que contou com o acompanhamento das estagiárias, levou cerca de um mês. Na sequência, iniciou-se a confecção da versão final do catálogo. Para tanto, os dados coletados foram agrupados e categorizados de acordo com o tipo de atividades oferecidas aos usuários. As categorias que agruparam os recursos socioculturais da cidade foram as seguintes: Trabalhos Manuais; Ginástica e Prática Esportiva; Cursos de Formação Profissionalizante; Creches; Educação; Educação Especializada; Crianças e Adolescentes; Abrigo; Coral e Música; Teatro, Dança e Artes Circenses; Bibliotecas; Terceira Idade; Dependência Química (grupos de abordagem) e Serviços Assistenciais.

Ao final, em comemoração ao dia da Luta Antimanicomial, realizou-se uma cerimônia oficial de lançamento do Catálogo, em que estiveram presentes as equipes envolvidas, usuários, alguns gestores - como a Coordenadora Estadual de Saúde Mental e o Prefeito Municipal - e diversos segmentos da comunidade. Os próprios ACS, aludindo ao trabalho em rede, entregaram a diversos atores envolvidos no cuidado à saúde e a um representante dos usuários o Catálogo de Recursos Socioculturais, resultado de um trabalho feito por muitos.

 

A experiência revisitada

A retomada dessa experiência, anos depois, nos permitiu experimentar alguns estranhamentos que nos foram produtores das considerações que se seguem.

Na realidade, a principal motivação que levou a equipe de saúde mental a propor uma aproximação com a ESF foi a necessidade de diminuir encaminhamentos para o serviço de saúde mental. Não se trata de desmerecer a experiência em questão, mas de pontuar que, na ausência de planejamento, os atores agem em benefício de seus domínios, o que apenas por vezes coincide com a necessidade dos outros trabalhadores e dos usuários. A motivação, portanto, não partiu da intenção de construir um projeto coletivo ou de articular atores, serviços e ações em saúde, mas de intervir no que sobrecarregava a equipe de saúde mental. Tal como o próprio projeto de saúde mental do município, essa aproximação foi delineada com base na proposta e nos interesses de um grupo de trabalhadores da saúde mental, o que pode ter colaborado para despotencializar o engajamento de outros trabalhadores e gestores na articulação pretendida.

A iniciativa da equipe de saúde mental de se aproximar da ESF e, posteriormente, de tentar organizar a rede de cuidados em saúde mental no território é também indicativa das dificuldades da ESF em assumir o papel de coordenação do cuidado em saúde (Portaria n. 2.488/GM, 2011). Trata-se, certamente, de uma função cujo exercício requer um protagonismo intersetorial. Observamos, no entanto, que mesmo as ações intrasetoriais eram desarticuladas.

Outro aspecto a se considerar é o modelo de capacitação escolhido para a primeira tentativa de aproximação entre equipes. Sabe-se que a capacitação tem limitada possibilidade de transformação da realidade das práticas de saúde, conforme já apontado por Ceccim (2005). As capacitações resultam pouco proveitosas no cotidiano do trabalho, surpreendido com realidades distintas das exemplificadas. Além disso, a capacitação dos médicos, feita por um psiquiatra, embora tenha abordado o ideário da Reforma Psiquiátrica, reforçou a reflexão e as ações pautadas pelo paradigma biomédico, enfatizando o diagnóstico dos transtornos mentais e a terapêutica medicamentosa.

Ademais, ao localizar no psiquiatra e na medicação o eixo da experiência piloto do apoio matricial, aceitando separar os ACS para uma abordagem específica, a equipe de saúde mental reforçava tanto a centralidade da medicação nas ações de saúde mental, quanto uma hierarquia institucional da ESF que em geral considera, na prática, os ACS como categoria semiprofissional ou subalterna, embora o trabalho que realizem seja basilar para a estratégia. Inicialmente, a exclusão dos ACS foi justificada por uma questão de logística, como indicado. Entretanto, chamou-nos a atenção, tempos depois, o fato de que, quando o apoio matricial passou a ser ofertado para cada equipe em separado, houve uma delas que não permitiu a presença dos ACS, justificando-se pela necessidade de se manter sigilo sobre os casos discutidos, sobretudo em áreas violentas como aquela. Acreditamos, com Fortes e Spinetti (2004), que essa suspeita em relação aos ACS não se justifica, posto que é comum os usuários dividirem com eles os seus problemas de saúde antes mesmo de fazê-lo com o restante da equipe. Perguntamo-nos, sobre essa situação, se o paradigma orientador ainda se basearia no modelo tradicional da clínica, reservada a especialistas, desqualificando as contribuições de uma Clínica Ampliada (Penido, 2012).

Outro ponto crítico foi a não inclusão dos técnicos de enfermagem nesse processo. Temos de reconhecer a desqualificação desse profissional pela equipe de saúde mental, que não representa suas funções como relacionadas a ações de saúde mental. Também seu papel na ESF fica relegado a ações auxiliares de baixa complexidade, como vacinação e realização de curativos. Assim, o projeto de estágio reproduziu o funcionamento hierárquico dos serviços, não se autorizando à produção de espaços heterogêneos de discussão que propiciassem aos diferentes profissionais uma discussão em conjunto. Essas decisões retratavam atravessamentos do poder institucional não analisados à época, mantidos invisíveis ou pouco problematizados pelos atores inseridos na realidade.

 

Considerações finais

Apesar das considerações acima expostas, reconhecemos que a iniciativa das capacitações em saúde mental como tentativa de lidar com as dificuldades e aproximar as equipes de saúde mental e de saúde da família teve a sua importância como um primeiro passo. Elas foram uma preparação do terreno para as ações de Educação Permanente em Saúde (EPS), posteriormente encampadas pelas equipes no formato do apoio matricial em saúde mental de forma mais ampliada. A vantagem da EPS, nesse sentido e a nosso ver, se apresenta como um passo adiante, para além da redução quantitativa da demanda mensal endereçada ao serviço de saúde mental, abrindo a possibilidade de se discutir o aspecto qualitativo do cuidado prestado aos usuários que permaneciam apenas sob o cuidado da ESF.

Por outro lado, embora o estágio não tenha rompido com a hierarquia institucional, é possível perceber uma dimensão inovadora na sua proposta alternativa para uma primeira abordagem dos enfermeiros e, sobretudo, dos ACS, distinta do formato de capacitação previamente preparada. Nessa perspectiva, o estágio funcionou como um dispositivo instituinte, contribuindo para estratégias dialogicamente construídas e para percepção crítica sobre as práticas incorporadas e instituídas no cotidiano dos serviços.

O processo de confecção do catálogo de recursos socioculturais, mais do que agrupar recursos materiais, permitiu a construção de uma narrativa de possibilidades. Como observado por Ribeiro, Caccia-Bava e Guanaes-Lorenzi (2013, p. 385), em estudo sobre os recursos dos profissionais da ESF para o cuidado em saúde mental, à medida que os "trabalhadores ampliam suas narrativas sobre recursos, podem também ajudar os pacientes a ampliarem as suas próprias narrativas, construindo novos modos de relacionamento com os problemas em seu cotidiano".

Finalmente, observamos que a abertura a experiências como a que descrevemos aqui depende de contextos políticos locais favoráveis, considerando-se que as diretrizes ministeriais para a área sempre vão esbarrar no princípio da descentralização das ações em saúde. Essa é uma situação que expõe um dos maiores desafios postos ao nosso sistema de saúde dito único, visto que cada município tem autonomia para decidir sobre sua política de gestão e atenção em saúde, o que restringe, em muitos casos, as possibilidades dos agentes locais e a qualidade do cuidado prestado aos usuários do SUS.

 

Referências

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Fortes, P. A. C., & Spinetti, S. R. (2004). O agente comunitário de saúde e a privacidade das informações dos usuários. Cadernos de Saúde Pública, 20(5),1.328-1.333.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2004). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8ª ed. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Ministério da Saúde (2004). Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Penido, C. M. F. (2012). Análise da implicação de apoiadores e trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família no apoio matricial em saúde mental. Tese de Doutorado. Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.         [ Links ]

Portaria n. 154, de 24/1/2008. Cria e estabelece os critérios para credenciamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Recuperado em 25 de julho de 2010, de http://www.saude.gov.br/dab        [ Links ]

Portaria n. 2.488/GM, de 21/10/2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Recuperado em 30 de outubro de 2011, de http://www.saude.mt.gov.br/upload/legislacao/2488-[5046-041111-SES-MT].pdf        [ Links ]

Ribeiro, M. O. P., Caccia-Bava, M. do C. G. G., & Guanaes-Lorenzi, C. (2013). Atenção à saúde mental na Estratégia Saúde da Família: recursos não reconhecidos. Psicologia USP, 24(3), 369-390.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 16/08/2015
Aceito em: 06/10/2015

 

 

1 Contato: claudiamfpenido@gmail.com
2 Fonte: IBGE, 2006.

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