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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.2 Juiz de fora Dec. 2016

 

ARTIGOS

 

A padronização no fast-food e seus efeitos na subjetividade do jovem trabalhador

 

The standardization of fast-food and its effects in the subjectivity of the young worker

 

 

Felipe Salvador Grisolia1; Lucia Rabello de Castro

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda os efeitos da racionalização no trabalho do fast-food no processo de subjetivação dos jovens trabalhadores desse tipo de restaurante. Realizou-se uma pesquisa-intervenção, contando com observações participantes em dois restaurantes, e entrevistas semiestruturadas com 26 funcionários e ex-funcionários. Os resultados demonstram que a racionalização leva a uma alta divisão do trabalho e padronização das tarefas na Empresa estudada. A maioria dos entrevistados entende a forma prescrita de trabalhar como a maneira correta de se exercer o trabalho. Entretanto, tais ingerências causam um mal-estar nos funcionários, que se incomodam em apenas reproduzir as atividades estipuladas. Mal-estar esse, que, em alguns casos, ultrapassa as barreiras do local de trabalho, atingindo seu cotidiano. Os funcionários se utilizam de outras formas de se fazer o trabalho e de brincadeiras com os colegas para fugir ao trabalho prescrito.

Palavras-chave: Jovens, Trabalho, Subjetividade, Fast-food.


ABSTRACT

The present article intends to approach the effects of the standardized work in the fast-food industry, regarding the subjective process of the young workers of these restaurants. An intervention research was performed, which included the observation of the contributors in two participating restaurants, in addition to performing semi-structured interviews with 26 workers and ex-workers. The results show that the rationalization of work leads to an extreme division of labor and to the standardization of the activities within the studied company. The majority of young interviewees understand the written procedures to be the correct form to perform the job. However, such procedures lead to discomfort in the workers, who get concerned to just reproduce the prescribed activities. In some cases, this discomfort surpasses the barriers of the work site, reaching the everyday life of the workers. The employees use alternate forms of doing their work, as well as joking with their peers in order to escape the prescribed work.

Keywords: Young adults, Labor, Subjectivity, Fast-food.


 

 

1 Introdução

O presente texto, recorte de uma pesquisa de mestrado realizada entre 2013 e 2015, busca elucidar os efeitos subjetivos gerados pela organização do trabalho de uma Empresa multinacional de fast-food (nota de fim de texto2) localizada no Rio de Janeiro.

Partimos da visão de que é pelo trabalho, agente mediador entre o homem e a natureza, que o ser humano pode satisfazer suas necessidades e construir a sociedade, visão compartilhada por diversos autores (Antunes, 1995; Alves, 2007; Marx, 1844/2003). Ao longo da história, diversas foram as formas com que os humanos trabalharam e construíram suas sociedades, ou seja, diversas foram as formas de se organizar o trabalho.

O presente trabalho conceitua tal organização como a forma de os seres humanos dividirem, entre si, a realização de determinadas atividades, assim como as hierarquias que sustentam e legitimam tal divisão (Dejours, 1988). Duas formas de se organizar o trabalho podem ser destacadas por sua influência na atualidade. São elas o taylorismo/fordismo, caracterizado pela alta divisão de tarefas, e o toyotismo ou acumulação flexível, caracterizado pela flexibilidade (Antunes, 1995).

Castoriadis (2004) sustenta que uma das maiores diferenças que fundamentam o trabalho e sua divisão no capitalismo, se comparado a outras épocas, é que tal organização e divisão pretende ser racional, embora não necessariamente o seja. Dessa forma, enquanto a divisão de tarefas em sociedades de castas poderia ser explicada a partir de um viés religioso ou genético, no capitalismo essa divisão se basearia em fatores tidos como racionais. Alguns exemplos poderiam ser: a procura por formas de se produzir mais em um menor tempo possível e na suposta capacidade (nota de fim de texto3) do empregado para realizar determinada tarefa.

Entendemos a subjetividade como processual (Castro, 2001), sendo, portanto, produzida por condições culturais, institucionais e políticas que perpassam o jovem, e pelas ações engendradas por este como ator social. Esse processo dialético, no qual as condições de ação do jovem e seu próprio agir produzem sua subjetividade, é entendido como o processo de subjetivação (Tassin, 2012).

Fazemos a ressalva de que ao nos debruçarmos sobre os processos de subjetivação na contemporaneidade não podemos ignorar as características políticas, sociais e culturais que permeiam esse tempo histórico específico. Portanto, devemos levar em conta o fato de que o modelo de subjetivação predominante nos dias atuais diz respeito a uma sociedade individualista, consumista e com a desagregação de coletivos (Lipovetsky, 1983; Bauman, 2009). Acreditamos que esse deve ser o pano de fundo que deve ser levado em conta ao se analisar qualquer processo de subjetivação realizado na atualidade.

1.1 Racionalização do trabalho no capitalismo.

Marx (1844/2003) coloca que no advento do capitalismo o trabalho se concentra em relação à propriedade privada. Existem para o autor dois tipos de pessoas, as que detêm os meios de produção, como fábricas, oficinas, terras e seu respectivo maquinário produtivo; e as que não possuem tais meios, tendo apenas a sua força de trabalho para vender. A primeira classe comporta os capitalistas, enquanto a segunda comporta os potenciais trabalhadores. Os capitalistas contratam alguns indivíduos para trabalhar em sua propriedade em troca de um salário. Estão ai as bases do que entendemos por emprego nos dias de hoje: um sujeito se encontra empregado quando se insere em uma relação e é pago para realizar determinado serviço para outrem.

Nessa relação de compra e venda de força de trabalho, Marx (1867/1974) assevera que na realidade o capitalista compra algumas horas do dia de seu empregado, horas essas em que o segundo deve se dedicar para produzir para o primeiro. Dentro dessa ordem, é de interesse do capitalista que o empregado produza o máximo possível. O autor cita alguns mecanismos, como o investimento em tecnologia e o estabelecimento de um código penal na fábrica, que funcionariam na direção de otimização do trabalho do empregado. Além disso, funcionários como supervisores e contramestres tinham como atividade fiscalizar e incitar a produção. A racionalização de tarefas também possui essa mesma função.

A literatura afirma que a racionalização de tarefas no ambiente de trabalho consta como a forma científica de se fazer o mesmo, tendo sido inventada por Taylor (Weil, 1951/1979). Weil (1951/1979) sustenta que Taylor foi um contramestre do tipo daqueles que "se julgam nascidos para servir como cães de fila aos patrões" (p. 116). A autora diz que Taylor tinha a obsessão de acelerar o ritmo de trabalho dos funcionários, e para isso se utilizou de laboratórios e da ajuda de cientistas cedidos pelo patronato da fábrica onde trabalhava. Ainda é Weil (1951/1979) quem diz que por meio desses experimentos, se utilizando do parcelamento dos movimentos mais rápidos necessários a uma operação e a sua cronometragem, Taylor acaba por descobrir as formas mais rápidas de se realizar determinado trabalho. Essa informação era cedida à direção, que poderia assim determinar o tempo ótimo que um funcionário deveria demorar para executar determinado serviço. Dessa forma, o trabalho é padronizado e parcializado em pequenos movimentos que devem ser executados em uma velocidade ótima, sendo essas as bases da organização de trabalho taylorista-fordista. De posse do tempo básico que um funcionário tem para realizar um trabalho, os administradores da fábrica podem estabelecer a quantidade de trabalho que um funcionário deve executar em uma hora e pagá-lo referente a essa produção (Weil, 1951/1979) ou estabelecer a velocidade de sua linha de montagem (Linhart, 1986).

Portanto, o que pode ser visto é que o capitalista compra certas horas do dia de seu empregado e o primeiro tem interesse que o segundo produza o máximo possível em sua jornada de trabalho. Nesse ponto, a racionalização do trabalho aparece como um instrumento do capitalista, que pode fazer com que o trabalhador produza mais. O método de organização estabelece que o trabalhador deva produzir uma quantidade, e aqueles que estiverem abaixo desta são identificados e podem sofrer as ingerências da organização, recebendo penalizações, advertências, remanejamentos na fábrica ou até mesmo serem demitidos.

Anteriormente, foi posto que esse modelo de organização do trabalho diz respeito ao paradigma de trabalho taylorista-fordista. Isso não quer dizer que o taylorismo/fordismo tenha desaparecido, já que existem modelos mistos de organização do trabalho. Interessante destacar que a organização do trabalho dos dias de hoje se acentuaria em um modelo de produção diferente, o japonês, toyotista ou regime de acumulação flexível. Enquanto a produção taylorista-fordista era caracterizada pela grande indústria, divisão e padronização de tarefas, o novo modelo se caracterizaria por produção em cadeias menores, trabalho em grupo, flexibilidade e supressão das hierarquias (Alves, 2007; Antunes, 1995; Boltanski & Chiapello, 2007; Castel, 1996; Harvey, 1992). Logo, pode-se pensar que a padronização e o controle da organização do trabalho sobre os mais finos gestos de seus empregados seriam experiências que datam de outra época do capitalismo e que não se aplicariam mais nos dias de hoje. Alguns teóricos chegam a assegurar que o movimento de trabalho em uma direção mais intelectualizada, que implique na tomada de decisões e na participação subjetiva do trabalhador, é uma tendência irreversível (Lazzarato & Negri, 2001).

Se formos analisar a rotina de determinados empregos na contemporaneidade, como o de trabalhador do fast-food, foco do presente trabalho, ou o operador de telemarketing estudado por Braga (2009), tal tipo de asserção não parece se sustentar. Neste ponto, o presente trabalho segue a linha de Antunes (2012), que afirma haver uma mescla entre elementos do modo de produção fordista e do modo de acumulação flexível em nosso país. Embora haja um certo discurso que aponte a superação do modelo taylorista-fordista e de uma economia de disciplina sobre os gestos daqueles que trabalham, tal afirmação não se confirma na realidade de muitos trabalhadores. De fato, Alves (2007) diz que esse tipo de discurso tem a função de legitimar a atual ordem organizacional e de esconder os conflitos que permeiam a organização flexível. Tal forma de organização flexível do trabalho acaba por ter efeitos nefastos na relação do jovem com o mundo do trabalho.

1.2 Juventude e trabalho na atualidade

Diversos autores concordam que na passagem da organização de trabalho tayloristafordista para a organização flexível tem-se a queda de um modelo de emprego que era caracterizado por ser fabril, formal, de longa duração e a emergência de um novo modelo de trabalho caracterizado mais por ser descontínuo e flutuante (Alves, 2007; Bajoit & Franssen, 1997; Boltanski & Chiapello, 2007; Castel, 1998, 2006; Forrester, 1997; Harvey, 1992; Monteiro, 2011; Rosavallon, 2011; Sennett, 2009). Dessa forma, as inserções profissionais se tornam fluidas, pode-se estar empregado em um dia e desempregado no outro. Além disso, a condição de empregado se complexifica, visto que há a emergência de novos tipos de contrato, como o trabalho temporário e a terceirização, o que faz com que os trabalhadores, principalmente os menos qualificados, circulem entre empregos formais, informais e o desemprego (Cassab, 2007; Forrester, 1997). Diversos estudos, tanto nacionais quanto internacionais, ratificam que essas mudanças geraram grandes prejuízos para a juventude como categoria social específica (Camarano & Mello, 2006; Cassab, 2007; Castel, 1998, 2006; Dib & Castro, 2010; Forrester, 1997; Guimarães, 2006; Maia & Mancebo, 2010; Monteiro, 2011).

Alguns dados estatísticos demonstram que os jovens foram um dos grupos mais prejudicados no que diz respeito à precarização das relações de trabalho. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese, 2012) apontam que os jovens de regiões metropolitanas entre 16 e 24 anos correspondem a 42,6% do total de desempregados acima dos 16 anos e têm duas vezes mais chances de ocupar um cargo assalariado sem terem carteira de trabalho assinada e seus direitos respeitados. Na mesma direção, Faleiros (2008), usando como base os dados de 2007 levantados pela Organização Internacional do Trabalho, mostra que os jovens no Brasil recebem menor remuneração e estão em trabalhos mais precários se comparados ao restante da população que trabalha.

Assim, os jovens parecem estar mais expostos ao desemprego e aos empregos precários do que os adultos. Faz-se a ressalva de que isso não quer dizer que os adultos estejam livres dos efeitos negativos das mudanças do trabalho. De fato, o movimento de precarização das relações trabalhistas ataca a sociedade como um todo e existem grupos sociais que também sofrem em maior grau as consequências dessa precarização, como as mulheres (Camarano & Melo, 2006; Guimarães, 2006) e as gerações mais velhas (Cardoso, 2013).

No que diz respeito aos jovens aqui estudados, trabalhadores da indústria de fast-food, o sítio da Empresa que realiza as contratações nos diz quais são os pré-requisitos mínimos exigidos para ocupar a vaga. Os candidatos com menos de 18 anos devem estar cursando ou ter terminado o ensino médio, enquanto os candidatos com mais de 18 anos devem estar cursando, no mínimo, a sexta série do ensino fundamental (nota de fim de texto4).

Logo, o jovem aqui estudado se encontra em condições específicas: eles conseguiram realizar uma entrada no mercado formal, ainda que em um emprego tido como precário. Portanto, só os jovens que conseguiram chegar a certa formação educacional, que os permitiu competir pela colocação nesses lugares disputados, em um cenário em que o desemprego e a informalidade se fazem muito presentes, são participantes da presente pesquisa. Esta visa investigar os possíveis efeitos subjetivos da racionalização do trabalho nos jovens trabalhadores do fast-food.

 

2 Metodologia

O presente texto é recorte de uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2013 e 2015, na qual se realizou uma pesquisaintervenção qualitativa inspirada na etnografia com os jovens trabalhadores da indústria do fast-food de uma Empresa específica. Apesar de ser um método mais caro às pesquisas antropológicas, Sato e Souza (2001) argumentam a favor de sua utilização em Psicologia, na medida em que permite observar como as subjetividades se constroem e se expressam no cotidiano.

Além disso, a pesquisa-intervenção, conforme posto por Sato (2008), coloca em questão dois aspectos da pesquisa tradicional: a saber, a diferença entre pesquisar e intervir e a entre pesquisador e objeto de pesquisa. A pesquisa, por si só, já consta como uma intervenção, na medida em que introduz relações que não estavam dadas previamente entre o pesquisador e o pesquisado. A pesquisa-intervenção dá ênfase a esse processo, a essa relação social entre o sujeito que pesquisa e o sujeito pesquisado, sendo que aspectos intersubjetivos não previstos pelo pesquisador acontecem. Esse outro não é concebido como um participante passivo, ou apenas respondente ao desejo do pesquisador, tendo o papel de apenas fornecer os dados requeridos pela pesquisa, mas é tido como um agente nesta, que se coloca e cria conhecimento junto com o pesquisador, mesmo que não se coloque de forma consciente ou formal nessa posição. Tal posicionamento se coaduna com a visão teórica estabelecida em relação ao jovem que está subjacente à pesquisa, uma vez que este foi visto como um sujeito capaz de agir e exercer sua influência sobre o mundo e a cultura (Castro, 2001).

Foram realizadas observações participantes em dois restaurantes localizados no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, e entrevistas com 26 funcionários e ex-funcionários do restaurante.

As observações participantes tiveram o objetivo de colocar os pesquisadores em contato com o cotidiano dos jovens trabalhadores da Empresa e com o processo de subjetivação engendrado nesse local. Tais observações se deram por cinco meses, entre maio e setembro de 2014. Quanto à participação no restaurante da Empresa, a presença do pesquisador principal se deu da seguinte forma: ele chegava ao restaurante aproximadamente uma ou duas horas antes do fim do turno de alguns funcionários. Durante esse tempo, tal pesquisador se sentava no salão e observava a dinâmica do restaurante, interagindo com clientes e funcionários, seja com breves conversas ou olhares. Quando os funcionários terminavam o seu turno, eram abordados, no restaurante ou na rua, para realizar a entrevista. Dessa forma, realizaram-se 21 entrevistas semiestruturadas com funcionários da Empresa, sendo esses atendentes e treinadores (nota de fim de texto5) a maioria. Tais entrevistas foram gravadas com anuência dos jovens e transcritas em momento posterior. Já os ex-funcionários foram contatados pela internet por meio da estratégia bola de neve (nota de fim de texto6) e responderam a um questionário virtual enviado por e-mail. Totalizaram-se cinco entrevistas com ex-funcionários por intermédio desse procedimento.

 

3 Resultados

Após cada dia de observações e entrevistas realizadas no restaurante, um dos pesquisadores realizou anotações em um diário de campo que diziam respeito: ao funcionamento da Empresa, às conversas e interações do pesquisador com os funcionários e destes entre si, e de suas impressões sobre tais experiências. Esse trabalho totalizou em um documento que condensa a experiência do pesquisador em campo.

Como dito antes, as entrevistas concedidas pelos funcionários foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Já as realizadas com os ex-funcionários não necessitaram de transcrição, uma vez que já estavam em formato digital por terem sido realizadas pela internet.

A partir da leitura sistemática desses documentos, elaborou-se um tópico de análise que se mostrou proeminente, sendo este: a padronização de trabalho e de subjetividade na Empresa. A partir deste tópico, podemos analisar os efeitos subjetivos do trabalho racionalizado sobre o jovem que o exerce.

3.1 A estrutura padronizada da empresa

Ao adentrar na Empresa, percebemos que ela é frequentada por crianças e jovens, constituindo este o grosso de seus consumidores e trabalhadores. O consumidor jovem aparece como aquele que a Empresa quer conquistar e atrair. Isso fica evidente na decoração dos restaurantes visitados e na trilha sonora. Diversas referências visuais, como banners e enfeites de mesa, faziam referência ao brinde que estava sendo vendido com o lanche infantil. Observou-se que tal brinde foi alterado com certa frequência ao longo dos meses em que se deu a pesquisa, variando de super-heróis a personagens cômicos. Além disso, os restaurantes estavam sempre sintonizados na rádio da Empresa, que tocava diversos hits internacionais e passavam uma atmosfera de que aquele é um ambiente jovem, descolado e antenado com os novos sucessos da música. Não à toa, os pesquisadores puderam observar que grande parte dos consumidores, principalmente na parte da tarde, era de adolescentes uniformizados com roupas de escolas particulares da região ou de famílias com filhos pequenos.

Quanto aos trabalhadores da Empresa, parece também haver um certo padrão. A maior parte dos entrevistados era composta de jovens estudantes. Quase todos estavam cursando o ensino médio ou pararam de estudar assim que o terminaram, com exceção de dois jovens que estão fazendo curso superior e de outra jovem que parou de estudar por começar a trabalhar no mesmo horário de sua escola. Muitos dos que estão cursando ou terminaram o ensino médio sonham em fazer algum curso de qualificação profissional ou faculdade para conseguir uma melhor inserção no mercado de trabalho. Além disso, a maioria dos jovens entrevistados eram moradores da Cidade de Deus, comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro próxima aos restaurantes pesquisados. Se crianças e jovens de classe média são conclamados a ocupar a Empresa na condição de consumidor, os jovens de camada popular também não ficam de fora da experiência do fast-food, mas são demandados a ocupar os cargos de trabalhador que a Empresa oferece. No jogo de oferta e procura de mão de obra (Marx, 1844/2003), parece caber aos jovens menos afortunados o lugar de empregados desse tipo de estabelecimento.

O empregado padrão da Empresa além de jovem também possui outro signo visual que o faz ser reconhecido, o uniforme. Ao começar a trabalhar no McDonald's (nota de fim de texto7), Wallraff (1989) conta que, assim como os hambúrgueres que lá são vendidos, ele também foi "[...] embrulhado com as embalagens da casa: boné, camiseta e calça" (p. 38). O empregado da Empresa também é embrulhado de forma semelhante, mas o embrulho que o jovem usa está diretamente ligado ao cargo que ocupa. Os atendentes e treinadores se utilizam de uma roupa com aparência mais jovial. Esse uniforme é composto por calças jeans, um cinto listrado com as cores da loja, uma camiseta cinza, um tênis, uma rede na cabeça para evitar que fios de cabelo caiam sobre a comida e um boné por cima dessa rede. A diferença que existe no uniforme entre os atendentes e seus supervisores diretos, os treinadores, consta nesse último item, o boné. Enquanto os primeiros possuem um boné bege que apenas ostenta a logomarca da Empresa, os segundos possuem um boné azul com a palavra treinador escrita na lateral. Já os gerentes usam um uniforme com aspecto mais sério, adulto, que consta de sapato, calças sociais pretas e camisas sociais brancas ou amarelas e dispensam o boné, apesar de ainda usarem a rede na cabeça. Espalhadas por diferentes partes das vestes de todos os funcionários da estrutura hierárquica há a logomarca da Empresa. Esta então parece se utilizar de uma hierarquia geracional que é reproduzida em seus uniformes. Ao jovem trabalhador cabe se vestir de acordo com um jovem e obedecer às ordens do gerente, aquele vestido de adulto. Aqui nos lembramos de Bourdieu (1983), quando diz que há uma divisão geracional do poder. Signos como a experiência e a responsabilidade são usados pela estrutura hierárquica do restaurante, que utiliza tais signos em algumas figuras de autoridade, que incorporam o papel de adulto. Já aos que estão em um degrau inferior da estrutura, cabe usar roupas que denotam a sua jovialidade e, portanto, a sua inexperiência. Isso tudo para tornar mais legítima uma ordem na qual cabe a alguns poucos mandar ou supervisionar e a outros obedecer. Ordem que não possui nada de natural e que está diretamente ligada ao sistema capitalista de produção, em que alguns pensam o trabalho enquanto outros o executam (Castoriadis, 1985) e que equivale à máxima taylorista: "uns pensam, outros fazem".

Pode ser visto que a racionalização do trabalho não conduz apenas à divisão e padronização das tarefas, mas ela afeta as próprias pessoas que frequentam a Empresa e qual a posição que elas ocupam. Conforme colocado por Ortigoza (1997), o sistema de restaurante em franquias "[...] dita as regras: quem vai consumir, como vai consumir, como vai manipulá-lo, etc." (p. 23). Portanto, não se trata apenas de a Empresa padronizar suas operações de trabalho, mas de instaurar outros tipos de relações, outros tipos de padronização. Como colocado pela autora, se trata de estabelecer quem vai ou não consumir o produto, em quais locais estará disponível para consumo e em quais não, quais pessoas vão trabalhar na confecção, quais irão consumi-lo e quais apenas sonharão com ele. Longe de afetar apenas a produção, temos um local padrão de consumo, um consumidor padrão e um trabalhador padrão.

Tal sistema obedece ao modelo estabelecido no McDonald's, primeiro restaurante de fast-food que alcançou um nível global e que funcionou como paradigma copiado por uma série de outros estabelecimentos semelhantes, como Burger King, Kentucky Fried Chicken, Taco Bell, entre outros (Love, 1996). De acordo com Cherto (conforme citado por Fontenelle, 2013), o sistema de franquia funciona quando "o detentor de um nome ou marca, de uma ideia, de um método ou tecnologia, segredo ou processo" (p. 81) permite que um terceiro tenha os direitos de explorar esse produto. No caso da Empresa e da maior parte de outros restaurantes similares, esse terceiro compra o direito de usar uma marca e vender determinado produto, mas acompanhado dessa compra se estabelece uma série de máquinas, padrões e modelos que o franqueado deve seguir (Love, 1996; Fontenelle, 2013; Ortigoza, 1997). Esse modelo visa atender à necessidade da matriz de manter uma unidade dos procedimentos adotados nas diferentes lojas, além de permitir um controle sobre os franqueados, garantindo que eles sigam as receitas, menus e os padrões de higiene e qualidade estabelecidos. Love (1996) conta como o McDonald's tinha uma equipe que viajava pelos Estados Unidos para fiscalizar os franqueados.

Mais uma vez é Love (1996) e o McDonald's que nos elucidam sobre quais os tipos de locais em que os restaurantes de fast-food pretendem se instalar e quais consumidores eles planejam conquistar. O autor nos conta que havia todo um estudo por parte do McDonald's antes de abrir uma franquia. Eram procurados locais ideais, como subúrbios e cidades de médio e grande porte, para que o restaurante pudesse atender seu público-alvo, a família americana de classe média. De forma semelhante, pode ser visto que no Rio de Janeiro a Empresa não se encontra em qualquer lugar. Seus locais favoritos são grandes shoppings e bairros de classe média, onde pode atrair seu público-alvo.

Love (1996) ainda destaca que conquistar as crianças era importante para que o McDonald's atingisse as famílias. O autor relata que esse restaurante foi um dos primeiros a tratar a criança com seriedade, fazendo com que ela pudesse ir ao caixa com dinheiro para realizar seu pedido. Essa atitude por parte do restaurante em relação às crianças passava a imagem de que era um espaço propício a elas, fazendo com que muitas pedissem para que seus pais as levassem para lanchar lá. Posteriormente, o autor cita como o restaurante visa cativar ainda mais esse público de outras formas: com anúncios em programas infantis, com a formulação do palhaço Ronald McDonald, com a presença de pequenos parques de diversão em alguns restaurantes e os brindes infantis. Já Fontenelle (2013) realiza uma comparação do McDonald's com a Disneylândia. Para a autora, o restaurante fast-food, assim como o parque de diversões, se vende como espaço ideal para que crianças e jovens possam comer e se divertir, uma espécie de bolha separada do mundo real e de seus problemas, um local de diversão e de sonhos, um mundo perfeito. Se o McDonald's aparece como pioneiro na conquista de crianças e jovens, pode ser visto que ele não é o único restaurante do ramo a se dedicar a esse segmento da população. Outros restaurantes semelhantes também oferecem lanches e brindes infantis, como o Burger King, Bob's, Habib's e Giraffas.

No que tange ao trabalho realizado, a produção do restaurante fast-food é altamente racionalizada e obedece aos preceitos do taylorismo-fordismo. O leitor que já foi ao Subway ou ao Spoletto, dois conhecidos restaurantes de comida rápida de nosso país, pode verificar como a linha de montagem se desdobra em sua frente, sendo ele mesmo uma parte dessa montagem. O funcionário atende ao cliente sempre da mesma forma, com o mesmo cumprimento inicial, sorriso no rosto e polidez. Depois, o primeiro pede que o segundo escolha um pão ou massa e os demais ingredientes que vão compor a sua refeição, que vai sendo preparada na frente do cliente, que anda junto com o produto que está sendo preparado, de um canto do restaurante até a caixa registradora. Semelhante processo é realizado na Empresa, mas nela o consumidor não anda junto com a sua comida, esta é preparada na cozinha, que pode ser vista através do balcão.

Vale ressaltar que a Empresa também se utiliza de técnicas do modelo de produção flexível (Harvey, 1992; Antunes, 1995, Oliveira, 2006), pois os trabalhadores executam mais de uma tarefa; há mecanismos de controle de qualidade e participação do funcionário e a produção é eminentemente orientada pelo consumidor, não se utilizando de um grande estoque. Como já vimos, Antunes (2012) acentua que há uma mescla entre elementos do Fordismo e do modo de produção flexível na produção e nos serviços de nosso país.

Pode ser visto que a Empresa se utiliza de um modelo padrão de funcionamento já imposto e colocado. O ambiente dos dois restaurantes visitados mostra a mesma coisa, jovens de camada popular servindo os mesmos lanches e brindes a famílias e estudantes de classe média. A seguir, abordamos os relatos dos jovens trabalhadores sobre sua atividade nesse contexto.

3.2 Pequenas brechas e possibilidades de ser sujeito no trabalho racionalizado

Como já foi dito, o trabalho padronizado de cunho taylorista-fordista toma conta da maior parte da rotina dos jovens trabalhadores, o que aparece em seu processo de treinamento. Os próprios jovens explicam:

Quando você entra, você fica três dias pra ser avaliado, aí você vai e é avaliado, por exemplo, na chapa; depois de três dias, ele vai te avaliar. Aí vê na LV (nota de fim de texto 8) e você tem que tirar mais de 90%, se você tirar mais de 90%, você vai pra outra área. (Pedro, 18 anos, atendente, nota de fim de texto9)

É, eles te dão três dias pra você aprender as coisas. Por exemplo, eles te ensinam, eles fazem pra você, ficam te explicando as coisas, como tem que, como é que ativa (nota de fim de texto10), como é que se limpa, como é que passa o esfregão... […] Por exemplo, hoje, hoje eu fiquei no quiosque. Se eu não soubesse quiosque eu ia ficar lá três dias até eu aprender, depois ia lá ou um treinador ou um gerente ia lá me avaliar, pra ver se eu sei mesmo o quiosque, se eu posso mesmo ficar no quiosque. (Laura, 18 anos, atendente)

Como relatado, o jovem fica durante três dias em um setor específico da Empresa, que é denominado de área. Durante esses três dias, o jovem deve realizar os procedimentos daquela área da forma como é estipulado pela Empresa. Após esses três dias, o jovem passa por uma avaliação e se tiver sucesso ele pode ficar na área sozinho. O processo se repete se ele for colocado em uma nova área.

Esse treinamento é visto com bons olhos pela maioria dos funcionários, pois é a partir deste que eles aprendem coisas novas e a maneira correta de se fazer o trabalho. Na fala dos funcionários:

[O treinamento] Foi, foi muito bom. Pra aprender a fazer direito. (Pedro, 18 anos, atendente)

"Foi importante. […] Porque aí eu aprendo várias coisas novas. (Milena, 21 anos, atendente)

Não, o treinamento..., o treinamento assim é sempre a melhor, vai ser assim a melhor coisa, no sentido de preparar o funcionário para estar apto no trabalho, na área do trabalho. (Caio, 29 anos, atendente)

O relato mais extenso de outro funcionário também atesta essa opinião:

Acho que sim [que o treinamento é importante] [...] Pelo que a gente aprende. [...] Ah, aqui a gente... cada crescimento, avanço que a gente vai tendo na loja é um, deixa eu ver como é que eu posso explicar, é uma experiência a mais que a gente vai tendo, mais um conhecimento de uma coisa que em outros lugares a gente não ia ter. (Breno, treinador)

Logo, a forma de trabalho imposta pela Empresa, que é aprendida com treinamento e repetida dia após dia pelos funcionários, aparece aos olhos da maior parte deles como a maneira correta de se trabalhar. Se de alguma forma o funcionário não acredita nisso, a Empresa possui seus meios de coerção para garantir que ele faça as coisas da forma que ela estipula. Como posto por Milena (21 anos atendente), "Não, eu faço tudo que eles mandam, senão eles dão advertência, suspensão...".

É dessa forma que as operações padrão são ensinadas aos jovens e cabe a eles a sua reprodução quando estão no trabalho. O relato de um jovem exemplifica como um hambúrguer é feito:

Ele pega o pão e coloca numa pistadeira (nota de fim de texto11) e vai passar por alguns segundos, de 17 a 21, depois que o pão descer, ele vai passar o pão pra pessoa da condimentação, que vai colocar todos os condimentos no sanduíche. [...] Duas no máximo três [pessoas realizando essa operação]. Porque aí outra pessoa também coloca as carnes. (Eduardo, 18 anos, treinador)

Pelo discurso anterior, fica evidente que a racionalização do trabalho leva à alta padronização e divisão de tarefas, isto é, vemos que três pessoas podem ser usadas para a confecção de um simples sanduíche, seguindo os padrões do taylorismofordismo.

A padronização atinge todos os aspectos do trabalho, chegando até mesmo à fala que os empregados devem direcionar à clientela:

Tudo é muito mecanizado na Empresa, desde os procedimentos na cozinha até o atendimento. Me expressei mal quando disse mecanizado... digamos que seja robótico. Tipo, os mesmo comprimentos, mesmas falas, mesmas sugestões... como se fôssemos máquinas operando o caixa!" (Vitor, 26 anos, ex-funcionário)

O que pode ser visto na fala de Vitor é uma espécie de mal-estar em ser tratado como uma máquina ou robô. Se, por um lado, a forma de realizar o trabalho imposta pela empresa aparece como a certa e a natural aos olhos dos funcionários, ela também parece causar incômodo neles. Tal incômodo também aparece à medida que o padrão e o ritmo de trabalho imposto pela Empresa extrapolam os limites do que é considerado aceitável pelo empregado. No relato de algumas entrevistadas: "E ali é tudo muito rápido, tudo muito rápido, [...] Mas é mania de correr, tá todo mundo correndo, chego em casa e faço tudo correndo, parece até que to devendo" (Pâmela, atendente). Outros funcionários relatam:

Muito ruim, muito ruim [as condições de trabalho], porque você trabalha muito e não tem tempo pra nada. Se você limpa tudo, você já faz tudo, tá tudo limpo; no fim do dia, eles mandam você fazer alguma coisa, você não pode ficar encostado. (Antônio, 17 anos, atendente)

Toda comunicação que o gerente te dá você tem que falar "ok, obrigada", é que nem eu. Eu já tô tão apegada a isso que quando eu chego em casa eu escuto meu marido e eu falo: "ok, obrigada", acabou. [...] Sério, te juro menino. Aí eu brigo com a minha mãe e falo: "ok, obrigado" e viro as costas, de tanto "ok, obrigado". (Letícia, atendente)

Assim, vemos como a prescrição de atividades pode ser considerada prejudicial pelos funcionários. Sua falta de liberdade para poder fazer as coisas no seu ritmo, usar de seu corpo ou colocar a sua opinião aparecem como algo que frustra os sujeitos em sua própria humanidade. Colocar-se integralmente a serviço da Empresa e de seus interesses causa mal-estar nos jovens trabalhadores. Importante notar pelas falas anteriores que a prescrição do trabalho e o modelo subjetivo que este requer podem chegar a ultrapassar as barreiras do trabalho. Dessa forma, Pâmela coloca que faz tudo correndo em casa e Letícia aponta que responde "ok, obrigada" a interpelações que ocorrem em momentos do cotidiano. A velocidade e a conformidade às ordens são características apreciadas pela Empresa que as trabalhadoras entrevistadas acabam por reproduzir fora da situação de trabalho. Essa situação se assemelha a vivências das telefonistas estudadas por Le Guillant (conforme citado por Dejours, 1988), que também seguiam o script de atuação de sua profissão no dia a dia. Essas funcionárias acabavam por reproduzir suas falas de trabalho ao escutar o barulho da descarga ou o som do metrô.

Em resposta a essa desapropriação de si experienciada pelo sujeito e que é imposta pela gerência e pelas atividades padronizadas, alguns funcionários realizam as tarefas de forma diferente da prescrita. Tal fuga do padrão aparece em diferentes situações e não necessariamente estão ligadas a movimentos contestatórios contra o ritmo e o padrão da Empresa. Apenas um funcionário pareceu corajoso a ponto de questionar essas ordens publicamente, respondendo em tom de revolta ou de deboche em relação àqueles que representam a autoridade na Empresa: "Às vezes eu faço [o trabalho] do jeito que eu quero fazer. [...] levo esporro todo dia, mas eu não ligo não" (Claudio, 16 anos, atendente). Entretanto, na maioria das vezes que qualquer coisa que sai do padrão é relatada, ela aparece de uma forma mais velada, informal. Como posto por dois entrevistados: "Ah, do meu cargo eu faço sempre o que, o que é obrigado a fazer, mas às vezes para facilitar alguma coisa eu, eu faço do meu jeito mesmo" (Romulo, 18 anos, treinador). "Sempre se dá um jeitinho [de fazer as coisas de outra forma]" (Sara, 32 anos, ex-funcionária).

Os jovens e as jovens relatam que algumas vezes a fuga da padronização serve mesmo para manter a Empresa funcionando de forma adequada. "Eu procuro fazer sempre do jeito que tá ali, mas tem coisas que é impossível fazer daquele jeito. [...] Sanduíches, a gente tem a política de fazer dois por vez, mas dependendo do movimento a gente acaba fazendo muito mais..." (Breno, treinador). Na mesma linha, outro funcionário acrescenta:

Quando a gente não consegue fazer no padrão geralmente é, vou te falar um motivo aqui, às vezes não é nem porque a gente não quer, às vezes é porque realmente não dá pra fazer, é o tempo todo..., por exemplo, hoje foi um dia movimentado, aí quando o dia é movimentado demais às vezes você não consegue fazer tudo o que você quer certinho, entendeu? Aí tem momentos que a gente se descabela, nesse sentido né, do padrão. Mas é aquilo, no geral, no total geral, se você tentar você consegue fazer muita coisa certa, entendeu? No padrão de acordo com os procedimentos que são passados para você na hora do treinamento. (Caio, 29 anos, atendente)

Essa fuga do padrão realizada na empresa se coaduna com o pensamento de autores que partem da concepção de que há sempre uma diferença entre o trabalho prescrito e o trabalho real (Barros & Mendes, 2003; Dejours, 2004). Para esse último autor, o trabalho é primordialmente aquilo que o sujeito deve fazer e que não está previsto de antemão, visto que o real do trabalho sempre surpreende aqueles que trabalham. Dessa forma, a padronização na empresa nunca pode ser total, os sujeitos acabam por conseguir colocar um pouco de si em seu trabalho, mesmo que de uma forma velada, e em alguns momentos isso pode até mesmo concorrer para o bom funcionamento da empresa.

Por fim, cabe destacar que há outras formas de escapar da rotina padronizada estabelecida pela Empresa. O ritmo de trabalho no restaurante responde à demanda do consumidor, o que faz com que a carga de trabalho seja flutuante. Há momentos em que o restaurante está cheio e os trabalhadores são submetidos a um ritmo infernal, como destaca Walraff (1989), ao falar dos momentos de pico de movimento no McDonald's alemão; e outros momentos em que o restaurante está praticamente vazio e os funcionários podem conversar e brincar uns com os outros. Nesse momento, os funcionários parecem estar em outra relação para com os seus pares, superiores e com o seu trabalho. Parecem todos mais despreocupados, podem fazer as coisas em um ritmo mais devagar e interagir uns com os outros, por meio de conversas e brincadeiras físicas em que ficam se abraçando, se empurrando ou se agarrando. Frequentemente, um mostra o celular para o outro, provavelmente compartilhando algum tipo de foto, vídeo ou mensagem de teor cômico, pois são comuns as risadas daqueles que estão vendo o aparelho. É interessante notar que alguns gerentes participam dessas brincadeiras. Entretanto, vale ressaltar que os superiores reclamam se as brincadeiras duram muito tempo ou se consideram que estão passando de alguns limites, mas essas advertências são feitas de uma forma jocosa, não muito séria. Mesmo assim, os funcionários param com as brincadeiras e vão realizar alguma atividade. Esses momentos de descontração podem ter importância subjetiva para os trabalhadores, na medida em que aparecem como pequenos espaços de "liberdade" dentro do trabalho, de divergência ao que está padronizado. O dicionário Michaelis on-line destaca, entre outras, as seguintes definições de divergência: "4 Desacordo, discordância. 5 Desvio". De um lado, a brincadeira aparece como uma forma de discordar do que é estabelecido, de mostrar descontentamento com a falta de humanidade que o trabalho impõe; e, de outro, aparece como desvio ao inserir uma gama de relações que fogem ao que pode ser prescrito pela gerência, ao trabalho racionalizado. Entretanto, tal discordância é expressa de uma forma mais individualizada, na medida em que os funcionários brincam com aqueles mais próximos, seus amigos, não se sustentando em uma coletividade maior que pudesse questionar as determinações da gerência e da organização do trabalho. Já os desvios que podem ser engendrados pela brincadeira são rapidamente cortados pela gerência, que ordena que os jovens voltem ao trabalho.

 

4 Discussão

Neste artigo, foi abordada a racionalização do trabalho, que submete os jovens trabalhadores do fast-food a uma rotina de alta padronização e divisão de tarefas, e os efeitos subjetivos desta. Foi visto que não são apenas as atividades laborais realizadas que são padronizadas, mesmo os funcionários e os consumidores da Empresa parecem ter um padrão na sociedade desigual e de consumo em que se assentam. A experiência do fast-food serve de forma diferente às classes sociais, ao jovem pobre cabe servir, enquanto ao jovem de classe média cabe ser servido. No que tange ao trabalho realizado, apesar de os funcionários considerarem a forma padrão como a correta, também há um mal-estar em se portar da maneira que a Empresa prescreve. Esse mal-estar supera as barreiras do local de trabalho, uma vez que alguns funcionários chegam a se portar da maneira prescrita pela Empresa em situações familiares e domésticas de seu dia a dia. Diante desse incomodo, situações de fuga do padrão de caráter ambíguo na Empresa se dão, uma vez que a fuga pode funcionar tanto para humanizar o trabalho, como quando os trabalhadores podem brincar entre si e fugir do padrão, quanto para manter a Empresa funcionando de forma adequada.

Castoriadis (2004) diz que o progresso da técnica aplicada ao sistema capitalista almeja cada vez mais a retirada do homem da produção, já que ele é o mais difícil de dominar na relação empregatícia. Dessa forma, a fuga à padronização pode ser lida como uma resistência do sujeito, que não quer ser assimilado a uma máquina ou a um mero reprodutor de falas e ações da empresa. Portanto, nesses momentos é que o trabalhador pode, de alguma forma, fugir das ingerências do trabalho e não agir como aquele que tem de realizar um trabalho prescrito. Seria o momento do trabalho em que os jovens poderiam se portar como humanos e não como extensões de caixas, grelhas, ativadores, fritadeiras e chapas.

Essa fuga aparece em diversos momentos, como quando o trabalhador faz as coisas do seu jeito, seja para atender a uma maior demanda por parte dos clientes, seja por simplesmente fazer as coisas a sua maneira, mesmo que acabe por levar bronca do superior por isso. Entretanto, o momento por excelência quando tal fuga é realizada parece ser o das brincadeiras entre os funcionários, visto que estas não estão minimamente estabelecidas pela Empresa e fogem do papel de subordinação e execução de ordens aos quais os jovens trabalhadores estão submetidos. Não parece ser à toa então que os gerentes chamem a atenção dos funcionários que brincam demais, mesmo que não haja qualquer cliente para atender ou trabalho para fazer. Parece ser necessário reestabelecer a ordem normal das coisas e deixar claro para os trabalhadores que eles não passam de subordinados naquele lugar. A brincadeira então pode ser vista como o momento de divergência em relação às ordens estabelecidas pela Empresa, ainda que tal divergência não se assente em um sujeito coletivo que realmente questione a racionalização do trabalho.

Parece então que a padronização tem efeitos ambíguos na subjetividade dos trabalhadores da Empresa. De um lado, os jovens legitimam a forma como o trabalho é prescrito e realizado e a entendem como sendo a melhor forma de trabalhar, aquela que deve ser realizada. Porém, os funcionários se ressentem por ser meros reprodutores de falas e gestos impostos pela Empresa. Cabe obedecer ou fingir ao que é estabelecido, agindo nas entrelinhas e escapando das ingerências da padronização por meio de outras práticas, como o fazer diferente de forma velada, a conversa e a brincadeira com o outro.

O modelo de subjetivação no contemporâneo parece funcionar no sentido de produzir sujeitos consumidores. Quase todos almejam consumir certos produtos, signos de um suposto sucesso em um mundo globalizado. O lanche e a experiência proporcionados pela Empresa parecem cumprir essa função. Entretanto, em uma sociedade de classes, desigual, tal experiência vai se colocar de maneira diferenciada, dependendo da posição de classe do sujeito, o que aparece nos padrões impostos pela Empresa no que tange a seus clientes e funcionários. Cada qual parece ter um papel bem definido: aos clientes, cabe desfrutar da experiência que a Empresa proporciona, e aos funcionários, cabe obedecer as suas determinações, no que diz respeito ao trabalho e à relação com o outro, seja esse outro funcionário ou cliente. Entretanto, parece haver furos nessas determinações da Empresa que podem funcionar como linhas de fuga ao processo de subjetivação que o jovem trabalhador sofre e que permite a ele, seja de forma consciente ou não, questionar, ainda que de forma incipiente, seu papel de funcionário que apenas obedece às regras.

 

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Recebido em: 11/05/2016
Aceito em: 19/08/2016

 

 

1 Contato: flpgrisolia@gmail.com
2 Esta capacidade seria racional, na medida em que é avaliada segundo diplomas escolares, cursos ou demais treinamentos e qualidades que o funcionário possui.
3 No momento da entrevista com os jovens, foi informado a eles que o nome da empresa estudada não seria dito. Isso foi posto na tentativa de deixar os jovens mais à vontade para falar o que pensassem da Empresa sem medo de qualquer represália por parte da organização.
4 A Empresa parece fazer vista grossa a um ou outro desses requisitos, dependendo da situação. Uma entrevistada relatou que não estava cursando o ensino médio justamente por conta da Empresa, pois ela estudava à noite e começou a trabalhar à noite também. Logo, ela teve que suspender os seus estudos por conta do trabalho.
5 De acordo com um entrevistado, esta é a estrutura hierárquica da Empresa: atendente, anfitrião, treinador, coordenador, gerente de plantão e gerente de loja.
6 Tal estratégia consistiu em pedir que os ex-funcionários entrevistados indicassem o contato de outros ex-trabalhadores, para que estes também fossem entrevistados. A esse novo entrevistado, também era pedido o contato de outros ex-funcionários, e assim por diante.
7 Como já informado, o presente estudo foi feito em uma Empresa de fast-food que não será nomeada, um compromisso que o pesquisador teve com os jovens entrevistados de não revelar o nome da Empresa. Se o nome do McDonald's aparece no texto, ele o faz pela relevância que este restaurante teve em estabelecer as cadeias de fast-food tal como a conhecemos hoje, como evidenciado no livro de Love (1996). E não porque a pesquisa tenha sido feita nele.
8 LV é a sigla de um formulário de avaliação que a Empresa utiliza.
9 Os nomes dos jovens aqui são fictícios.
10 O processo de fazer algumas carnes na Empresa tem este nome. Isso se dá pois algumas delas não são fritas na chapa, mas colocadas em uma máquina que possui várias gavetas com um tipo de óleo que as prepara.
11 Espécie de forno que esquenta o pão.

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