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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.1 Belo Horizonte June 2017

 

Artigo

 

A inserção da psicologia no sistema único de assistência social: notas introdutórias

The insertion of the psychologist in the social assistance system: introductory notes

Bruno Ricardo Bérgamo Florentino1; Walter Melo2

 

1 Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ); bruno_psicologia@hotmail.com

2 Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ); wmelojr@gmail.com

 

 


RESUMO

A implantação do Sistema Único de Assistência Social, para além de representar uma nova estratégia na prestação dos serviços socioassistenciais, baseada no paradigma dos direitos, apresenta-se como uma perspectiva de abandonar o assistencialismo e adentrar a profissionalização dessa política. Diante do exposto, o presente artigo discutirá a inserção da Psicologia nesse contexto, assinalando as principais considerações que envolvem as equipes de referência que ofertam os serviços socioassistenciais, a destacar, sobretudo, as possibilidades e desafios do psicólogo. A partir de uma revisão de literatura, utilizando o método descritivo, os resultados apontam que a inserção da Psicologia no SUAS representa uma grande possibilidade para a efetivação dessa política pública; no entanto, para tal, os profissionais terão de enfrentar alguns desafios inerentes à própria constituição da assistência social e da profissão.

Palavras-chave: Sistema Único de Assistência Social; psicologia; assistência social; exercício profissional.

 


ABSTRACT

Deploying Unified Social Assistance, as well as representing a new strategy in the provision of social assistance services, based on the paradigm of rights, is presented as a perspective from leaving welfare and entering the professionalization of this policy. Given the above, this article will discuss the inclusion of psychology in this context, noting the main considerations that involve reference teams that offer the social assistance services, to highlight above all the possibilities and challenges for the psychologist. From a literature review, using the descriptive method, the results indicate that the inclusion of psychology in ITS is a great possibility for the realization of this policy, however, for such professionals will face some challenges inherent to constitution of social assistance and the profession.

Keywords: Attitudes; violence in schools; adolescents; scale; validity.

 

Introdução

A atual política de assistência social, edificada sobre as matrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), atravessa um contexto praticamente inédito (se comparado à história da assistência social no Brasil) no que se refere à garantia dos direitos sociais. É inegável que se trata de uma política social que, nos últimos anos, vem se transformando e aprimorando seu modus operandi.

Dentre algumas transformações, ressalta-se o nobre esforço para profissionalizar a política de assistência social, ofertando ações, serviços e benefícios abalizados por uma concepção de direitos sociais e recusa a qualquer tipo de “boas intenções” realizadas por voluntários ou “sujeitos com um bom coração”.

Uma das interessantes inovações do SUAS é justamente a possibilidade de integração entre diferentes categorias profissionais, as quais, dependendo das peculiaridades do território, vão compor as equipes de referência – dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS) – que ofertarão os serviços e benefícios socioassistenciais.

Nesse ínterim, as recentes normatizações da política de assistência social – como a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social e a Resolução nº 017 de 2011 do Conselho Nacional de Assistência Social – passaram a considerar a Psicologia como uma profissão que obrigatoriamente deverá estar presente tanto nos CRAS como nos CREAS, o que leva à necessidade de se investigar determinadas questões: O que a inserção da Psicologia nesse contexto pretende oferecer à sociedade? Quais são as principais novidades, expectativas e desafios que os psicólogos vão vivenciar? O que esse espaço de trabalho representa para a profissão?

Este artigo, estruturado a partir do método descritivo, apoiou-se em diferentes referências bibliográficas, sobretudo as recentes produções do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Centro de Referência em Psicologia e Políticas Públicas de Minas Gerais (CREPOP-MG), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e de alguns autores que já se debruçaram sobre o tema em questão.

A discussão está estruturada em três momentos distintos e complementares. Inicialmente, apresentar-se-á certos aspectos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como as características, as diretrizes e a reorganização da oferta de serviços socioassistenciais, com destaque para uma nova representação de proteção social e a profissionalização da política de assistência social.

No segundo momento, discutir-se-á a profissionalização das ações, serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais a partir da constituição das equipes de referência. De modo geral, será assinalada a complexidade das necessidades sociais que legitimam o trabalho social desenvolvido por equipes multidisciplinares – tanto na proteção social básica como na proteção social especial.

Por fim, destacar-se-á a inserção da Psicologia no SUAS e os principais aspectos desse recente e expansivo campo de trabalho. Será discutido o processo de reconstrução das práticas psicológicas no campo social, a relação com o tema da vulnerabilidade social e com os sujeitos que demandam os serviços e, sobretudo, as principais orientações, atribuições e desafios que o exercício profissional dos psicólogos envolve nesse contexto.

O objetivo deste estudo, fundamentalmente, é descrever a expansiva inserção da Psicologia no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), assinalando as atribuições e os desafios dos psicólogos que integram as equipes de referência. Ressalta-se que este artigo não deseja assumir o compromisso de explicar os fenômenos que descreve, embora possa servir de base para algumas explicações e futuras investigações. Logo, todo o conteúdo que está por vir poderá oferecer uma perspectiva da realidade de parte dos profissionais envolvidos nesse contexto e, inclusive, um conjunto de questões que precisam ser ponderadas e transformadas.

 

1 O Sistema Único de Assistência Social enquanto reorganização da política de assistência social

No Brasil, até pouco tempo, predominava a compreensão de que a assistência social se constituía através de ações majoritariamente voltadas a minorar ou combater a pobreza, não havendo, portanto, a compreensão de que essa seria uma política igualmente necessária para promover a proteção social.

Lopes (2006) afirma que, no nível federal, até 2003, a política de assistência social apresentava as seguintes características: estrutura estatal paralisante, burocracia excessiva, não consolidação de um comando único nacional, desconsideração das deliberações das conferências nacionais, congelamento orçamentário e execução financeira inexpressiva, fragmentação entre serviços e benefícios, descompasso entre gestão e planejamento financeiro, além de outros fatores que corroboravam as afirmações de que a política de assistência social não era matéria de grande interesse na esfera pública governamental.

Para agravar a situação, alguns programas mais relevantes – como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o Projeto Agente Jovem e o Programa Sentinela –, do ponto de vista de sua natureza e objetivos, nunca receberam regulações adequadas, financiamento projetado, transparência nos critérios de partilha e o devido controle social. Toda essa falta de definição no nível federal também se manifestava nos demais entes federados, fazendo com que a política de assistência social ofertada pelos estados e municípios também apresentasse características indefinidas, inexistência de orçamentos, precariedade nas formas de atendimento, desarticulação entre os gestores, além de outras realidades que apenas contribuíam para a manutenção de uma concepção conservadora e a prevalência da rede filantrópica em vez de uma rede de serviços públicos (Lopes, 2006).

Com a implantação do SUAS, em 2005, além da possibilidade de considerar as particularidades locais e regionais, organizar, normatizar, padronizar e racionalizar os serviços prestados, veio, também, a expectativa de superar uma característica extremamente indesejada e incômoda para muitos: o assistencialismo, cuja lógica acaba reforçando práticas clientelistas, patrimonialistas etc.

Carvalho (2006), ao registrar os principais avanços decorrentes do SUAS, assinala que este: traduz e delimita os serviços socioassistenciais em todo o território nacional e, por conseguinte, para todos os cidadãos que dele necessitar; regula um sistema único (federativo e descentralizado) que define os serviços de acordo com as complexidades; elege a família como unidade de intervenção, buscando, assim, a possibilidade de romper com as tradicionais segmentações de seu público-alvo; elege o Centro de Referência de Assistência Social1 (CRAS) como equipamento e serviço de proteção social básica, sendo a porta de entrada para o sistema; elege o Centro de Referência Especializado de Assistência Social2 (CREAS) como equipamento de referência da proteção social especial de média e alta complexidade, responsável pelo atendimento das famílias que se encontram sem referência.

A proteção básica, ofertada no CRAS, apresenta-se como possibilidade de prevenir:

[...] situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situações de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras). (Brasil, 2004, p. 34)

Os trabalhadores do CRAS, nesse contexto, são os principais responsáveis pelo planejamento e execução dos serviços3, pela articulação entre serviços e benefícios e pela integração do equipamento à rede de serviços socioassistenciais e intersetoriais, de forma a potencializar a família como unidade de referência. Todas as diretrizes revelam a expectativa de que o CRAS seja um espaço de protagonismo de seus usuários, por meio da oferta de serviços que visam estimular a convivência, a socialização e o acolhimento de famílias cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos, isto é, situações consideradas de menor complexidade (Brasil, 2004).

Nessa perspectiva, espera-se que os serviços do CRAS estejam disponíveis, de alguma forma, para o maior número de sujeitos que se encontrem em situações de risco ou vulnerabilidade social4, os quais poderão acessá-los a qualquer momento, tornando-se referência para famílias, grupos e indivíduos.

A proteção social especial, por sua vez, divide-se em duas modalidades: média e alta complexidade. A proteção social especial de média complexidade5, ofertada pelo CREAS, organiza-se para acolher e dar respostas a situações em que os direitos dos sujeitos estão ameaçados e/ou violados por omissão ou ação de pessoas e/ou instituições. Os profissionais que atuam nessa modalidade de proteção se deparam com situações mais complexas, as quais, comumente, exigem a permanente articulação com outras políticas públicas e com o sistema de garantia de direitos, tais como o Conselho Tutelar, o Ministério Público e o Poder Judiciário (Brasil, 2004).

As diretrizes determinam que os profissionais do CREAS promovam ações e proteções socioassistenciais para os indivíduos e famílias que se encontram em situações de risco pessoal e social, decorrentes de: abandono, maus-tratos físicos e/ou psíquicos, violência sexual, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, além de outras situações que violam os direitos (Brasil, 2004).

A proteção social especial de alta complexidade6, acionada nos casos que requerem proteção integral dos indivíduos e famílias, objetiva garantir o atendimento das necessidades básicas – sobretudo moradia, alimentação e higienização – dos sujeitos que se encontram sem referência, o que pode decorrer de vínculos rompidos, pessoas que foram retiradas de seu núcleo familiar ou comunitário, ou as vítimas de desastres naturais (Brasil, 2004).

A configuração de tais modalidades de proteção, ao menos no plano normativo, significa que a implantação do SUAS propulsionou a oferta de serviços relativamente novos no contexto da política de assistência social, os quais possuem (ou pelo menos deveriam possuir) ações específicas a diferentes segmentos que, para acessá-los, não dependem de qualquer tipo de contribuição prévia (caráter não contributivo).

Diante de todo o conteúdo apresentado, até o momento, observa-se que o SUAS representa a possibilidade de unificação das ações da assistência social de modo que os serviços e benefícios possam ser “[...] geridos a partir de um padrão nacional que respeita as diversidades e condições locais com outras possibilidades para se desenvolver [...]” (Lopes, 2006, p. 89), ratificando o caráter de política universal em prol da garantia de direitos individuais e coletivos.

Nesse contexto, o debate sobre os recursos humanos que compõem as equipes de referências – dos CRAS e CREAS – permanece no cerne dos princípios organizativos e operacionais da política de assistência social; afinal, a ruptura com as tradicionais formas de atendimento é uma grande preocupação para a consolidação e aprimoramento do SUAS.

 

2 Equipes de referência: tecnologias fundamentais

Para Aldaíza Sposati (2006), seja no CRAS ou no CREAS, os recursos humanos7 representam um dos principais aspectos para que a política de assistência social cumpra seus objetivos. Considerando que o SUAS não opera por tecnologias substitutivas, o trabalho social, realizado pelas equipes de referências, torna-se imprescindível para a concretização das diretrizes expressas pelos diversos documentos normativos.

Com a finalidade de regulamentar as equipes de referência - da proteção social básica e especial de média e alta complexidade -, o Conselho Nacional de Assistência Social publicou, em 17 de junho de 2011, a Resolução nº 017/2011, com o objetivo de:

[...] ratificar a equipe de referência definida pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS e reconhecer as categorias profissionais de nível superior para atender as especificidades dos serviços socioassistenciais e das funções essenciais de gestão do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. (Brasil, 2011, p. 1)

Com a publicação da resolução 017/11 do Conselho Nacional de Assistência Social8, a inserção da Psicologia na política de assistência social passa a ser obrigatória (e não mais preferencial, como era até então) em todos os níveis de proteção social. Apesar da obrigatoriedade de algumas categorias profissionais, sobretudo a Psicologia e o Serviço Social, a resolução também reconhece outras categorias profissionais de nível superior que também poderão integrar as equipes de referência, a saber: Antropologia, Economia Doméstica, Pedagogia, Sociologia, Musicoterapia e Terapia Ocupacional (Brasil, 2011).

Em atendimento às requisições específicas dos serviços socioassistenciais, tais categorias profissionais poderão compor as equipes de referência com o objetivo de atender as especificidades e particularidades locais e regionais, do território e das necessidades dos usuários, com a finalidade de aprimorar e qualificar os serviços socioassistenciais. O documento também sugere os profissionais que, preferencialmente, deverão compor a gestão do SUAS, sendo eles: psicólogo, assistente social, advogado, administrador, antropólogo, contador, economista, pedagogo, sociólogo e terapeuta ocupacional (Brasil, 2011).

Couto (2006) defende que o trabalho profissional, entre as diferentes categorias profissionais, constitui-se num requisito fundamental para a garantia dos direitos dos usuários. No campo da definição de estratégias e formulação dos serviços, “[...] o Suas vai impor com clareza a necessidade de estudos, pesquisas, referenciais teóricos que retiram a improvisação e o bom-senso como forma de estruturar o atendimento” (p. 51).

Ao percorrer parte das transformações em movimento, logo se chega à conclusão de que a política de assistência social atravessa uma transição marcada por interesses, subjetividades, relações e atribuições que exigem um amplo esforço interpretativo por parte de todos os profissionais – técnicos e gestores – que compõem esse sistema. Partindo dessa premissa, os trabalhadores são diariamente desafiados a transformar a demanda dos usuários em ações condizentes com o arcabouço normativo que regula a assistência social, atendendo os sujeitos através de processos igualitários, contínuos e de qualidade.

Raichelis (2010) alerta que o movimento de implantação do SUAS, caracterizado por uma grande complexidade, vai impor diversos desafios aos profissionais, pois a própria implementação das políticas sociais e públicas carrega uma série de tensões que precisam ser desvendadas criticamente. A autora comenta que as respostas do Estado à questão social se inserem num modelo caracterizado pela fragmentação e setorização das necessidades sociais, recortando-as em problemas sociais distintos ou “particulares”, como a fome, o desemprego, a violência, o analfabetismo, a doença e outros. Esse “recorte” dos problemas sociais dificulta a explicitação de sua raiz comum numa perspectiva de totalidade, “[...] provocando a atomização das demandas e a competição entre os segmentos demandantes do acesso a parcelas do fundo público” (p. 75).

Cruz e Guareschi (2009), ao refletirem acerca do trabalho social desenvolvido pelas equipes de referência da proteção social básica e especial de média e alta complexidade, questionam: como trabalhar com os programas de orientação e apoio sociofamiliar de forma a promover a autonomia, os direitos das famílias, sem que a ação dos trabalhadores sociais se transforme em mais um veículo de controle? Seriam esses programas os novos aparelhos da “polícia das famílias”?

A indagação anterior, realizada de modo bastante contundente, possibilita a incitação de outros questionamentos acerca do trabalho social desenvolvido junto ao público da política de assistência social: de que modo os profissionais têm olhado para o sujeito que requisita os serviços e benefícios? Qual é a leitura que os profissionais realizam sobre a permanência e a superação da pobreza e extrema pobreza?

São perguntas extremamente necessárias, pois a ausência dessa reflexão poderá implicar em uma equivocada compreensão de que muitas questões são atributos individuais do sujeito que não se empenha o suficiente para superá-las. Em outros termos, a afirmação anterior se traduz em afirmativas de que “a família prefere receber o Bolsa Família a procurar um emprego”, “só não trabalha quem não quer”, “as mulheres estão engravidando cada vez mais para aumentarem o valor do Bolsa Família”, além de outras concepções inadmissíveis para o psicólogo ou qualquer profissional que trabalha nos equipamentos de referência do Sistema Único de Assistência Social.

 

3 A Psicologia no SUAS: alguns desafios

Ainda que a atuação do psicólogo tenha assumido lugar de destaque apenas com a criação do SUAS, sabe-se que a atuação da categoria na assistência social antecede a implantação da política. Não há registros consistentes acerca de sua trajetória nessa política, o que dificulta identificar um marco de entrada desse profissional (Coimbra, 2003). Todavia, sabe-se que a presença do psicólogo na assistência social aumentou consideravelmente após o período de implementação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), nos últimos dez anos (Nery, 2009).

Oliveira (2012), ao refletir a relação entre Psicologia e assistência social, afirma que uma primeira observação a ser mencionada é que os modelos de atuação nessa política, independentemente da categoria profissional em discussão, ainda estão em construção. No caso da Psicologia, até a implantação do SUAS, as referências ou sistematizações eram praticamente inexistentes, seja para o fornecimento de subsídios à atuação profissional, seja para a elaboração de modelos de trabalho.

Os principais desafios na construção de parâmetros de atuação para o psicólogo na Assistência Social têm múltiplos aspectos. Alguns podemos chamar de macroestruturais, das políticas sociais nos marcos do modo de produção capitalista; outros, referentes ao desenvolvimento histórico e à consolidação da Psicologia como ciência e profissão. Sem dúvida, ambos fazem parte de um mesmo processo histórico-dialético. (Oliveira, 2012, p. 43)

Fontenele (2008) alega que, de certo modo, há psicólogos que desconhecem os meandros do Sistema Único de Assistência Social, de forma que muitos profissionais se mantêm presos a práticas tradicionais e conservadoras dentro do arcabouço instrumental da profissão. Nesse ínterim, algumas ações – como a visita domiciliar, o estudo social, a busca ativa e a territorialização – são incorporadas com um certo “estranhamento” por parte dos psicólogos, ou mesmo identificadas como atribuições exclusivas do assistente social.

Oliveira (2012) complementa a perspectiva anterior afirmando que, para muitos psicólogos, as atividades que conferem uma identidade profissional distinta daquela do assistente social são as de escopo da clínica tradicional, como as psicoterapias e a avaliação e o aconselhamento psicológicos – embora as diretrizes do CRAS não permitam tal prática profissional, causando desconforto em grande parte da categoria que trabalha nesse equipamento.

Com a crescente inserção dos psicólogos no SUAS, diversos autores (Afonso, 2009; CFP, 2007; Crepop-MG, 2011; Cruz & Guareschi, 2009; argumentam que, nesse contexto, a Psicologia precisa enfrentar um processo de ressignificação do seu exercício profissional, revendo sua relação com o tema da vulnerabilidade social e desconstruindo determinadas concepções estáveis e práticas cristalizadas pelo tempo, abrindo-se para a emergência do novo, da descoberta, do acontecimento.

Afonso (2009) esclarece que esse processo de reconstrução – das práticas psicológicas – no campo social é fruto do “fantasma da psicologização da questão social” (p. 5), como ela denomina. Isso porque o histórico paradigma assistencialista, individualista, moralizante e de culpabilização da questão social, alavancado por parte dos psicólogos (e demais profissionais), por vezes, atendeu a manutenção da ideologia dominante. As lembranças desse período (não tão longínquo), atualmente, reacendem o medo de despertar o fantasma da psicologização das mazelas sociais e do indivíduo, fazendo “[...] com que a incorporação da Psicologia ao sistema passe a ser, a um só tempo, temida e desejada” (p. 5).

Para não incorrer nos mesmos desacertos do passado, a parceria da assistência social com a Psicologia pressupõe o reconhecimento de que o trabalho social – exercido pelos psicólogos – foi devidamente ampliado para considerar as questões subjetivas e intersubjetivas que impactam no cotidiano dos usuários que recorrem à política de assistência social. Nesse contexto, Afonso (2009) menciona a entrada de um “sujeito social” em cena, e não apenas um “usuário” passivo dos serviços.

Cruz e Guareschi (2009) reforçam que a entrada desse sujeito social implica outro desafio a ser encarado pelo psicólogo: a transparência da informação. Isso porque, muitas vezes, a população não reconhece seus direitos, não é informada a respeito dos programas disponíveis e, mesmo nas ocasiões em que aciona os equipamentos, adota uma postura de descrédito quanto à efetividade dos serviços, programas e projetos.

A relação desse sujeito com o psicólogo, usualmente, acontece através de situações que envolvem: conflitos familiares, brigas de pais/mães/responsáveis e filhos, “devolução dos filhos” à mãe ou aos pais biológicos, crianças que não possuem a referência maternal ou paternal, presença de alcoolismo e drogas no contexto familiar, desemprego e/ou emprego informal, além de outras inúmeras situações.

Nesse contexto:

A escuta surda da agonia de ideais modernos na qual é vívida a falta de recursos metodológicos e técnicos da Psicologia que sejam pertinentes a essa realidade vem fortalecer o compromisso ético/político/científico de ressignificar o fazer da Psicologia em relação aos “sujeitos vulneráveis” e a necessidade de políticas públicas que enfrentem os seus efeitos não desejáveis. (Cruz & Guareschi, 2009, p. 66)

Para os autores, o processo de ressignificação da prática profissional passa pela necessidade de descontruir alguns conceitos já cristalizados pela profissão. A desconstrução, nesse caso, não seria tomada como uma destruição dos conceitos e significações, mas como uma retomada circular que permita a emergência de novos pressupostos e perspectivas. Esse surgimento do novo não corresponde ao abandono, negação ou substituição da história do conhecimento já existente, mas à “[...] invenção como um processo de criação que coloca em análise o conhecimento a partir das situações que precisam ser escutadas” (Cruz & Guareschi, 2009, p. 67).

Sobre a ausência de recursos metodológicos e técnicos da Psicologia, sabe-se que há situações que realmente devem ser identificadas e encaminhadas à reflexão. Uma delas refere-se ao fato de que, muitas vezes, o psicólogo se depara com demandas que extrapolam suas possibilidades de intervenção e os próprios limites institucionais do SUAS, isso é, ele pode se encontrar com famílias, grupos e indivíduos que carregam tantas vulnerabilidades que a falta de recursos técnicos e operativos acaba gerando uma angústia por não conseguir dar respostas a determinadas questões.

Por um lado, não é possível desconsiderar que diversas orientações e objetivos, por vezes quiméricos, são atribuídos ao exercício profissional do psicólogo no contexto do SUAS. É comum depararmo-nos com diretrizes recomendando que o psicólogo fortaleça os usuários como sujeitos de direitos sociais, contribua para o aprimoramento das políticas sociais e públicas, execute ações para desenvolver a autonomia e cidadania dos sujeitos, além de outras complexas atribuições.

Como trabalhador da área da assistência social, o psicólogo deverá atuar criando condições sociais para o exercício da cidadania (oferta de serviços, construção de rede, respeito aos princípios dos direitos humanos e direitos de cidadania, participação social, protagonismo, entre outros) e, ao mesmo tempo, apoiando e promovendo as condições subjetivas para o seu exercício (circular informação, fortalecer participação e protagonismo, desenvolver potencialidades no contexto social, facilitar os consensos, eleição de objetivos e princípios para a ação individual e coletiva, comunicação, mediação de conflitos, processos decisórios, cooperativos e proativos, entre outros, junto aos indivíduos e grupos, incluindo a família). (Afonso, 2009, p. 18)

O próprio Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2007), ao discorrer sobre a inserção da Psicologia no SUAS, afirma que o psicólogo deverá integrar as equipes de referência em igualdade de condições e com liberdade de ação, “[...] num papel de contribuição nesse processo de construção de uma nova ótica da promoção, que abandona o assistencialismo, as benesses, que não está centrada na caridade e nem favor, rompendo com o paradigma da tutela, das ações dispersas e pontuais” (p. 27).

Nesse contexto de extensas ponderações, entretanto, verifica-se a necessidade de novos estudos acerca da confluência entre o exercício profissional dos psicólogos que atuam nos CRAS e CREAS com as orientações, normatizações e diretrizes do SUAS; afinal, cada vez mais, é inegável que a inserção da Psicologia nesse contexto é algo que veio para transformar, tanto os direcionamentos da política de assistência social como a profissão.

 

Considerações finais

A assistência social disponível à população brasileira, durante séculos, fez-se através de pequenas tutelas destinadas aos mais miseráveis, as quais, na maior parte dos casos, aconteciam por meio de ações constrangedoras e vexatórias aos sujeitos que delas necessitavam. Tanto tempo de assistencialismo consolidou um paradigma que ainda está impregnado no cotidiano dos trabalhadores da política de assistência social, exigindo a constante reflexão sobre os possíveis caminhos que poderão levar, definitivamente, a extinguir esse passado indesejado: quais são as estratégias para romper essa realidade que ainda hoje se apresenta com tanta frequência no contexto do SUAS?

Ao considerar as principais transformações da política de assistência social nos últimos anos, é possível notar a existência de uma nova concepção de proteção social e do modo como as ações, os serviços e os benefícios devem ser planejados e executados pelos profissionais. A implantação e implementação do Sistema Único de Assistência Social, assim, representa um momento de possibilidades e desafios.

Esse momento distinto, inclusive, apresenta-se na forma de desafios lançados aos trabalhadores do SUAS, a destacar: a proposta de debater categorias e conceitos que jamais foram incorporados nas políticas públicas; a intenção de operar a assistência social como uma política de inclusão, de direitos, e não mais com o caráter de favor de algum político de plantão; a junção de diferentes categorias profissionais acerca de um objetivo comum; além de outros.

Com o SUAS, a assistência social oportunizou a abertura para que diferentes categorias profissionais componham seu quadro de recursos humanos. Isso significa que a assistência social deixou de ser um campo de trabalho específico do assistente social e passou a requerer os serviços técnico-especializados de outros profissionais, sobretudo do psicólogo. Em outros termos, nota-se que o trabalho social desenvolvido por equipes de referência multiprofissionais representa uma das principais estratégias para que a política de assistência social alcance os seus objetivos.

A junção de diferentes categorias profissionais acerca de um projeto comum, para além de convocar e valorizar a prestação de serviços dos psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados ou demais profissionais que formalmente estão aptos a participar do processo de implantação e implementação da política de assistência social, também apresenta desafios de convivência, relacionamento, proposição de ideias e especificação das atribuições profissionais.

Já a inserção específica dos psicólogos na política de assistência social, para além de um grande e novo campo de trabalho, também representa um marco histórico para a profissão. O trabalho do psicólogo no SUAS, a princípio, significa o reconhecimento da categoria profissional e de suas possíveis contribuições para a política pública, que atualmente recebe um grande aporte de investimentos por parte do governo federal.

Visto que a política de assistência social vem requisitando em grande escala os serviços técnicos dos psicólogos, o próprio Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), destaca a constante necessidade de se realizar pesquisas, investigações, relatos de experiência e outras contribuições que possam ampliar o arcabouço teórico-metodológico e técnico-operativo dos psicólogos inseridos no contexto do SUAS.

Por fim, considera-se que a inserção da Psicologia no Sistema Único de Assistência Social evidencia o reconhecimento de que a categoria profissional adquiriu um acúmulo de conhecimentos relevantes para o contexto dessa política pública. Em outros termos, essa inserção indica que, novamente, o Estado brasileiro lança mão dessa “bagagem” de saberes adquiridos pela profissão e deposita a expectativa de que os serviços psicológicos podem ser úteis para amenizar determinadas formas de exclusão, além de evitar a cronificação dos quadros de vulnerabilidade e risco social.

 

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Recebido em 03/05/2014

Aceito em: 10/07/2015

 

Notas informativas

1 O Informativo SUAS nº 50, de 24 de julho de 2012, apontou a existência de 7.854 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), presentes em 5.477 municípios brasileiros. Ao revelar a quantidade de CRAS instalados pelo país, o informativo também revelou que o MDS possui a meta de atingir 100% dos municípios e aumentar a cobertura da oferta de serviços.

2 O Informativo Suas n° 50 também apontou que o Brasil possui 2.109 CREAS cofinanciados pelo MDS, nos quais há 580 mil adolescentes atendidos pelo Pró-Jovem Adolescente e 853,7 mil crianças e jovens inseridos no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e em atividades de convivência e fortalecimento de vínculos familiares existentes em 3.597 municípios.

3 A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2009) destaca que a proteção social básica deve se responsabilizar pelos seguintes serviços: a) Serviço de Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF), b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e c) Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas. O Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, por sua vez, realiza-se em públicos específicos: para crianças de até seis anos, para crianças e adolescentes de seis a 15 anos, para adolescentes e jovens de 15 a 17 anos e para idosos.

4 De acordo com a PNAS (Brasil, 2004), as situações de risco ou vulnerabilidade social são decorrentes de situações que envolvem: perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e/ou no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho – formal e informal.

5 A proteção social especial de média complexidade representa uma proposta de proteção aos indivíduos e às famílias que enfrentam dificuldades para se protegerem e/ou se desenvolverem enquanto unidade familiar. Assim, espera-se que o CREAS ofereça espaços para fortalecimento dos vínculos afetivos e sociais das pessoas que necessitam dos seguintes serviços: plantão social; abordagem de rua; cuidado no domicílio; acompanhamento psicossocial; serviço apoio e orientação aos indivíduos e às famílias vítimas de violência; serviço de enfrentamento à violência, ao abuso e à exploração sexual contra crianças e adolescentes e suas famílias; serviço de orientação e acompanhamento a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade e suas famílias; serviço de habilitação e reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência (Brasil, 2004).

6 A proteção social especial de alta complexidade se materializa por meio de programas, instituições e serviços de acolhimento e abrigamento dos sujeitos, a destacar: casa lar, casa de passagem, albergue, abrigos, lar de idosos, família substituta, família acolhedora, medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade (internação provisória e sentenciada) (Brasil, 2004).

7 O Informativo Suas n° 50 revelou que a política de assistência social conta com um total de 232 mil trabalhadores, isto é, um número que representa aproximadamente 70% a mais em relação aos que trabalhavam no setor em 2005, ano em que o SUAS nasceu.

8 O parágrafo único da resolução apresenta o seguinte texto: Compõem obrigatoriamente as equipes de referência: I – da Proteção Social Básica: Assistente Social; Psicólogo; II – da Proteção Social Especial de Média Complexidade: Assistente Social; Psicólogo; Advogado; III – da Proteção Social Especial de Alta Complexidade: Assistente Social; Psicólogo (Brasil, CNAS, 2011, p. 1).

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