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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.1 Belo Horizonte jun. 2017

 

Artigo

 

Adaptação transcultural brasileira da escala de estigma internalizado de transtorno mental – ismi-br

Brazilian cross-cultural adaptation of the “stigma scale of internalized mental illness - ismi-br”

 

Telmo Mota Ronzani1; Rhaisa Gontijo Soares2; Fabricia Creton Nery3; Pollyanna Santos Silveira4

 

1 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tm.ronzani@gmail.com

2 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), rhaisags@yahoo.com.br

3 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), fabriciacnery@gmail.com

4 Universidade Católica de Petrópolis (UCP), pollyannassilveira@gmail.com

 

 


RESUMO

O Estigma internalizado tem sido apontado como um aspecto que acarreta prejuízos significativos para a população portadora de transtorno mental. Investigações nessa área são importantes, sobretudo no desenvolvimento de instrumentos de medidas, tendo em vista os ganhos clínicos e acadêmicos que os instrumentos podem proporcionar no avanço do conhecimento. O objetivo do presente estudo foi traduzir e adaptar para o contexto brasileiro a Escala de Estigma Internalizado para Transtorno Mental (Internalized Stigma of Mental Illness – ISMI). A tradução e adaptação cultural consistiu em cinco estágios: tradução do instrumento original, síntese das traduções, retrotradução, avaliação do comitê de peritos e pré-teste. A versão brasileira da ISMI-BR mostrou-se semanticamente equivalente à original e culturalmente adequada à realidade brasileira. A escala apresentou ser de fácil aplicação e adequada na compreensão dos itens pelos entrevistados. A versão brasileira da ISMI-BR mostrou-se apropriada para ser testada em suas qualidades psicométricas.

Palavras-chave: psicometria, estigma social, saúde mental.


ABSTRACT

Internalized stigma has been identified as an issue that causes significant harm to the population with mental illness. Investigations in this area are important, especially in the development of instruments, which can provide advances in clinical and academic knowledge. This study aimed to translate and adapt the Internalized Stigma of Mental Illness (ISMI) scale to the Brazilian context. The translation and cultural adaptation consisted of five stages: translation of the original instrument, synthesis of translation, back translation, expert committee review and pretest self-assessment. The Brazilian version of ISMI-BR was semantically equivalent to the original and culturally appropriate for the Brazilian reality. The scale was easy to use and the items were understood properly by the participants. The ISMI-BR was shown to be suitable for psychometric analyses.

Keywords: psychometrics, social stigma, mental health

 

Introdução

O estigma relacionado à doença mental tem sido discutido na literatura como um processo que acarreta prejuízos significativos para essa população, incluindo desde a integração social à sua recuperação (Fung, Tsang, Corrigan, Lam, & Cheng, 2007). O processo de estigmatização caracteriza-se por uma desvalorização do indivíduo, associada ao isolamento social, ao julgamento moral e à discriminação, tendo por base uma característica pessoal considerada negativa (Corrigan & Watson, 2002). Autores argumentam que o estigma ocorre quando a rotulação, a perda de status, os estereótipos e a discriminação coexistem dentro de uma estrutura de poder (Link & Phelan, 2001).

Uma das principais consequências do estigma social é a internalização do estigma que ocorre quando um subgrupo se torna consciente dos estereótipos negativos atribuídos a ele, concorda com esses estereótipos e os aplica a si mesmo (Corrigan & Watson, 2002). Uma série de consequências negativas pode ser desencadeada pela internalização do estigma, como evitação das interações sociais e formas de tratamento; baixa autoestima; baixa autoeficácia; baixa satisfação no trabalho, no funcionamento psicossocial e nos relacionamentos e percepção subjetiva de desvalorização e marginalização (Ritsher, Otilingam, & Grajales, 2003; Alexander & Link, 2003; Link, 1987; Corrigan, Watson, & Barr, 2006; Watson, Corrigan, Larson, & Sells, 2007).

O estudo do estigma internalizado é pouco desenvolvido no Brasil em comparação à produção internacional, que tem apresentado um crescimento significativo (Link, Struening, Neese-Todd, Asmussen, & Phelan, 2001; Boyd, Adler, Otilingam, & Peters, 2013). A produção no Brasil é ainda menor no que se refere ao desenvolvimento de instrumentos psicométricos para esse tema (Soares, Nery, Silveira, Noto, & Ronzani, 2011). Desenvolver instrumentos de medida confiáveis e válidos para investigar o estigma internalizado e suas implicações aponta-se como uma necessidade brasileira, uma vez que estudos nesse campo do conhecimento possibilitam o desenvolvimento de intervenções efetivas de redução do estigma e consequente melhora na qualidade de vida do estigmatizado (Luoma, Rye, & Kohlenberg, 2010).

Um procedimento confiável para o desenvolvimento de um instrumento é o processo de tradução e adaptação cultural de uma medida validada em outra linguagem e contexto, em detrimento da construção de uma nova medida, propiciando a comparação dos resultados em estudos multicêntricos e minimizando tempo e custo (Guillemin, Bombardier, & Beaton, 1993). É relevante destacar que a estratégia de adaptação cultural de um instrumento vai além da tradução dos itens, devem ser levados em consideração o sentido e o uso dos termos e o real significado da palavra em diferentes contextos (Beaton, Bombardier, Guillemin, & Ferraz, 2000).

O presente estudo objetiva descrever o procedimento de tradução e adaptação cultural da Internalized Stigma of Mental Illness, ISMI - BR.

 

Método

Descrição do instrumento original

A Internalized Stigma of Mental Illness (ISMI) é um instrumento que tem por finalidade mensurar o estigma internalizado entre portadores de transtorno mental geral. A ISMI foi originalmente publicada em 2003 nos Estados Unidos da América (Ritsher et al., 2003). Os procedimentos de verificação das propriedades psicométricas do instrumento foram apresentados em outro estudo desenvolvido pelo mesmo grupo de pesquisa (Soares, Silveira, Noto, Boyd, & Ronzani, 2015).

Para a construção da ISMI, os autores desenvolveram grupos focais de pessoas com transtornos psiquiátricos que recebiam tratamento do Department of Veterans Affairs (VA) ou do sistema público de saúde mental dos Estados Unidos. Feita uma discussão geral sobre o estigma, aliada a ideias presentes na literatura, elaboraram-se afirmações correspondentes ao que pessoas com alto e baixo nível de estigma internalizado diriam acerca de como é viver como um portador de transtorno mental. Após a construção da escala, 127 pacientes do ambulatório de saúde mental com diagnóstico de transtorno mental, com ou sem comorbidades, responderam o questionário. Os respondentes eram, em sua maioria, homens que conviviam com o transtorno mental havia muitos anos, mas que ainda necessitavam receber algum tipo de assistência do governo.

O questionário utilizado continha 55 itens relativos ao estigma internalizado, os quais foram examinados e reduzidos para uma escala de 29 itens. Embora a versão com 55 itens tenha mostrado uma alta confiabilidade (α = 0,92), os autores optaram por uma escala mais curta para facilitar o seu uso em trabalhos futuros. Para cada uma das cinco subescalas, os itens que tiveram baixa correlação item-total (r < 0,40) foram excluídos. Em relação às opções de resposta, utilizou-se um sistema de pontuação do tipo Likert: (1) discordo totalmente; (2) discordo; (3) concordo; (4) concordo totalmente. Nas instruções, não foi utilizado o termo “doentes mentais”. Os respondentes foram encorajados a pensarem sobre si mesmos como quisessem. Os itens foram agrupados tematicamente em cinco subescalas: 1) Alienação (seis itens), busca medir a experiência subjetiva de ser avaliado de forma inferior aos demais membros da sociedade, ou ter a identidade deteriorada; 2) Aprovação do Estereótipo (sete itens), procura medir o grau de concordância dos respondentes com os estereótipos sobre as pessoas com transtorno mental; 3) Percepção de Discriminação (cinco itens), busca identificar a percepção dos respondentes da maneira como são frequentemente tratados pelos outros; 4) Evitação Social (seis itens), busca identificar estratégias de evitação nas relações sociais; 5) Resistência ao Estigma (cinco itens), procura descrever a experiência de resistir ou não ser afetado pelo estigma internalizado. Essa subescala verifica a validade das respostas, pois a pontuação é invertida.

Em relação aos resultados, a ISMI composta por 29 itens apresentou consistência interna satisfatória, obtendo coeficiente alfa de Cronbach igual a 0,90 (N=127). As suas cinco subescalas apresentaram os seguintes níveis de confiabilidade na primeira aplicação dos questionários (alfa de Cronbach) e no teste-reteste: Alienação (0,79; 0,68), Aprovação do Estereótipo (0,72; 0,94), Percepção de Discriminação (0,75; 0,79), Evitação Social (0,80; 0,89), Resistência ao Estigma (0,58; 0,80). Pelo fato de a subescala Resistência ao Estigma ter obtido um baixo coeficiente de consistência interna, os autores testaram uma versão da escala ISMI composta por 24 itens correspondentes às outras quatro subescalas. Essa versão com 24 itens teve um coeficiente alfa de 0,91 e a correlação no teste-reteste de 0,73.

As análises fatoriais realizadas indicaram que a ISMI foi positivamente associada à escala Desvalorização-Discriminação (r = 0,35) e à escala CES-D (r = 0,53) e inversamente associada às escalas de autoestima (r = -0,59), empoderamento (r = - 0,52), encorajamento pessoal (r = -0,34) e orientação de recuperação (r = -0,49). Para todas as análises, adotou-se valor de p < 0,01. O grau com o qual o constructo de estigma internalizado foi diferenciado do constructo de medida dos outros instrumentos foi analisado através da Análise Fatorial Exploratória de Máxima Verossimilhança para a articulação dos itens da ISMI e de cada outra escala. O contraste agudo entre os fatores foi fechado usando a rotação varimax. Em geral, os resultados mostraram que a ISMI possui boa confiabilidade e evidências de validade satisfatórias. A análise fatorial indicou que o constructo medido pelos 29 itens da ISMI é distinto dos constructos medidos pelas outras escalas. Concluiu-se, portanto, que a escala ISMI mostrou ser um instrumento útil para medir o estigma internalizado no transtorno mental (Ritsher et al., 2003).

 

Procedimento

Antes de iniciar o procedimento de adaptação transcultural, a principal autora do instrumento original foi contatada e concedeu autorização para que a escala fosse traduzida e adaptada para o Brasil, caracterizando um estudo de parceria entre a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e a University of Califórnia, San Francisco (UCSF).

A escolha do referido instrumento, em detrimento de outros existentes na literatura internacional (Soares et al., 2011) se deu em função da boa qualidade psicométrica apresentada pelo instrumento original, da estrutura curta e simples, do fácil acesso à escala na íntegra e da facilidade de contato e do interesse da autora principal em participar do processo de tradução e adaptação cultural.

A adaptação transcultural da presente escala para o contexto cultural brasileiro foi realizada segundo os procedimentos recomendados por Beaton, Bombardier, Guillemin e Ferraz (2002). De acordo com esses autores, o processo de tradução e adaptação cultural consiste em cinco estágios: tradução do instrumento original, síntese das traduções, retrotradução, avaliação do comitê de peritos e pré-teste.

Tradução do instrumento original: A tradução do instrumento original foi realizada por dois tradutores (T1 e T2), trabalhando independentemente. Os tradutores são naturais do Brasil e possuem domínio semântico, conceitual e cultural do idioma do instrumento original. Um dos tradutores teve acesso aos objetivos básicos de que trata o instrumento, para conduzir uma tradução que considerasse as peculiaridades do tema estudado. O outro tradutor desconhecia o tema, não tendo ligações com a área de estudo. Sua tradução ofereceu uma linguagem usada pela população em geral.

Síntese das traduções: Dois juízes se reuniram para sintetizar em uma versão única as duas traduções (T1 e T2). Foram discutidas e anotadas as divergências das traduções. Essa etapa resultou na versão única (T12), que manteve o consenso dos juízes.

Retrotradução: A partir da síntese do instrumento, foram feitas 2 retrotraduções (RT1 e RT2), por 2 retrotradutores, os quais eram especialistas na língua do país do instrumento original e trabalharam com a versão única (T12) construída pelas duas traduções, sem conhecerem o instrumento original. Essa etapa se destinou a averiguar se a versão única traduzida refletia os mesmos conteúdos que a versão original, assegurando a consistência da tradução.

Comitê de Peritos: O penúltimo passo foi submeter todo o material – as duas traduções (T1 e T2), a versão única (T12) e as duas retrotraduções (RT1 e RT2) ao Comitê de Peritos. Foram consideradas as observações feitas pelos tradutores, retrotradutores e juízes de síntese em cada uma das etapas. O Comitê foi minimamente formado por um professor de línguas, pelos juízes de síntese, por dois professores metodologistas, conhecedores do tema do questionário, e pela autora da escala original. Por se apresentar de maneira mais clara, optou-se por encaminhar a retrotradução 2 (RT2) à autora, de forma que ela pudesse compará-la com escala original e, assim, avaliá-la. O objetivo desse estágio foi produzir uma versão final, sintetizando todas as versões produzidas anteriormente.

Foram discutidas instruções, itens, formato do instrumento, entre outras questões. As decisões desse comitê foram tomadas procurando garantir a equivalência semântica, idiomática e cultural entre o instrumento original e o instrumento traduzido. As equivalências semântica e idiomática correspondem ao significado das palavras e ao uso de expressões nos respectivos idiomas, e a equivalência cultural corresponde às situações apresentadas no instrumento, as quais devem se referir às situações vivenciadas no contexto da população à qual se destina (Beaton et al., 2002).

Durante todos os procedimentos, manteve-se contato com a autora do instrumento original, e cada possibilidade de mudança foi discutida com a mesma. Optou-se pela adaptação em formato de entrevista, levando em consideração as limitações que poderiam interferir nas respostas caso se optasse pela forma de aplicação autoadministrada, como o analfabetismo e problemas de linguagem. A utilização de entrevistas no Brasil permite a aplicação de questionários a sujeitos com baixo nível de escolaridade, sendo essa uma adequação importante para a população dos serviços de saúde mental (Bandeira, Calzavara, Costa, & Cesari, 2009).

Pré-teste: Esse estágio teve por objetivo avaliar a compreensão dos itens, o entendimento das instruções e das opções de respostas, a estrutura do questionário, a dificuldade de responder e o grau de atenção do respondente. Objetivou-se detectar as possíveis necessidades de ajuste para a aplicação à população-alvo do instrumento.

Esse estágio foi realizado em uma instituição pública da cidade de Juiz de Fora, MG, especializada no atendimento a pessoas com transtorno mental. Foram entrevistados 20 pacientes em atendimento no serviço diagnosticados como portadores de transtornos mentais (leves e moderados). As entrevistas foram realizadas por uma autora do estudo. Para a aplicação da escala, o entrevistador utilizava um cartão contendo as alternativas de resposta, a fim de facilitar a compreensão e memorização dos números correspondentes a cada opção de resposta.

O aplicador foi treinado pela equipe de pesquisadores do estudo, o que incluiu a leitura minuciosa da escala, a discussão dos artigos relacionados ao estudo, a simulação da entrevista e a discussão da experiência em campo. Durante o processo de aplicação, o avaliador se atentou às dúvidas e dificuldades no decorrer da entrevista, registrando-as em um diário de campo. Depois de encerrada a aplicação do questionário, o entrevistado foi questionado sobre eventuais dúvidas e dificuldades ao longo da entrevista.

Cada entrevista teve duração média de 15 minutos. Não foi necessária nenhuma alteração na escala, sendo essa versão considerada satisfatória.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora – Parecer nº 057/2010. Todos os participantes leram e concordaram em participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido. Assinado o termo, iniciou-se a aplicação do instrumento, conduzido no interior do serviço ao qual o paciente se vinculava.

 

Resultados

1ª estágio – Tradução

Algumas divergências foram detectadas nas versões das traduções (T1 e T2) da ISMI. Essas divergências foram analisadas pelos juízes no processo de síntese das traduções. No entanto, as versões foram significativamente próximas.

2º estágio - Síntese das Traduções

Neste passo, os juízes mesclaram as duas traduções, atentando para a clareza do instrumento e sua compreensão pela população a ser estudada. A versão síntese (T12) foi encaminhada a dois retrotradutores.

3º estágio - Retrotradução

As duas versões do trabalho de retrotradução foram semelhantes entre si (RT1 e RT2). Os itens 6, 12 e 16 foram idênticos entre as duas retrotraduções, apesar de o retrotradutor 1 ter usado o termo “mental disorder”, e o retrotradutor 2, “mental illness”, para se referirem a “doença mental”. Os demais itens foram semelhantes entre as duas retrotraduções. Ao comparar as retrotraduções com a versão original da escala, observou-se que nenhum item da RT1 era idêntico ao da escala original, enquanto os itens 7 e 8 foram idênticos entre a RT2 e a escala original.

4º estágio - Comitê de Peritos

O Comitê de Peritos teve por objetivo construir uma versão brasileira que mantivesse as mesmas características do instrumento original, avaliando todos os elementos referentes às equivalências. Foram consideradas todas as observações e resultados das traduções e retrotraduções anteriormente citadas.

Tendo por objetivo manter a referência internacional da escala, optou-se por manter o nome do instrumento original traduzido e a sigla original. O nome final da escala foi Escala de Estigma Internalizado de Transtorno Mental – ISMI-BR. No que se refere às instruções dadas ao respondente no início da aplicação do instrumento, manteve-se a tradução literal.

A partir da análise do comitê de peritos e em parceria com a autora da escala, 11 itens tiveram alterações, sendo eles: 1, 10, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 21, 24 e 29. Os demais 18 itens não sofreram modificação a partir da síntese das traduções (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 16, 17, 20, 22, 23, 25, 26, 27 e 28). A seguir, serão descritas as alterações elaboradas nos 11 itens.

No item 1, a palavra “excluído” foi substituída por “deslocado”, e o item foi enviado para nova retrotradução e, posteriormente, reenviado para a autora da escala. No entanto, foi sugerida a tradução literal do termo “out of place in the world”, visto que “deslocado do mundo” sugere que a pessoa não está no mundo. O original "fora de lugar no mundo", por sua vez, sugere que a pessoa não possui um lar, mas ainda está no mundo. A sugestão foi acatada.

No item 10, a palavra “gratificante” foi substituída por “satisfatória”. Nos itens 12 e 29, a expressão “estereótipos” foi alterada para “imagens”. Segundo o avaliador do comitê de peritos, “estereótipo” é um termo pouco usual e pouco preciso para a população geral. A palavra “imagem” pode ser um conceito mais claro e, ao mesmo tempo, está relacionada à conceituação técnica da palavra “estereótipo”.

No item 13, as expressões “out of place” e “inadequate” da escala original haviam sido traduzidas para “deslocado” e “inadequado” e retrotraduzidas para “displaced” e “inappropriate”. No entanto, como os significados das expressões da retrotradução se distanciaram das palavras originais, pediu-se aos retrotradutores que encontrassem um sinônimo para “displaced” e “inappropriate”. Feito isso, a palavra “deslocado” foi alterada para “fora de lugar”, e obteve-se a confirmação com o retrotradutor de que o termo “inadequado” poderia ser a tradução de “inadequate”.

O sentido da frase do item 14 foi alterado durante a síntese das traduções, prejudicando a retrotradução. Portanto, o item foi reenviado aos dois tradutores – procedeu-se novamente à síntese das traduções – e reenviado para nova retrotradução. No processo de análise do comitê, realizou-se a substituição da expressão “pessoa mentalmente doente” para “pessoa com doença mental”, por se considerar que o segundo seria mais compreensível para os entrevistados.

No item 15, a palavra “patronize” da escala original havia sido traduzida corretamente como “condescendência”. No entanto, houve a inclusão entre parênteses do termo “aprovação” como uma maneira de explicar a expressão. Contudo, na medida em que “aprovação” não é um sinônimo de “condescendência”, somente a palavra “condescendência” foi mantida na frase.

No item 18, houve mudança de sentido da frase na retrotradução, devido a falha na tradução. Assim, a ordem da oração traduzida foi modificada, reenviada para nova retrotradução e a versão final se apresentou como “As pessoas percebem que eu tenho uma doença mental pela minha aparência”.

No item 19, a expressão “for having”, retrotradução de “por eu ter”, foi substituída por um sinônimo, por sugestão da autora da escala. No entanto, a versão em português não sofreu alterações, visto que correspondia à expressão da escala original.

No item 21, a palavra da escala original “possibly” havia sido traduzida como “provavelmente” e retrotraduzida como “probably”. Apesar de próximas, “possibly” e “probably” possuem sinônimos distintos. Portanto, “provavelmente” foi substituída por “possivelmente”, e a frase foi enviada para nova retrotradução, não ocasionando outras alterações.

Por fim, no item 24, a retrotradução “made me feel” não correspondeu à expressão equivalente da escala original, “has made me”, devido a um equívoco na síntese da tradução. Assim, a expressão “fez com que eu me sentisse” foi substituída por “me tornou”, e a frase foi enviada para nova retrotradução, não ocasionando outras alterações.

Ao final desse processo, procedeu-se à substituição do termo “doente/doença mental” para “transtorno mental”, uma vez que o segundo foi considerado mais apropriado para se referir à população. Após a consolidação dos itens do instrumento, os mesmos foram cuidadosamente analisados e transcritos na 3a pessoa, de modo a facilitar a leitura das questões pelos entrevistadores, uma vez que a escala será aplicada em formato de entrevista. As modificações realizadas tiveram como objetivo tornar o instrumento compreensível para a população-alvo e contextualizar os itens na realidade brasileira, procurando aumentar a equivalência de significado geral dos termos.

Os itens da escala original e a adaptação final podem ser analisados na Tabela 1. Após a reunião do comitê de peritos, e acatando as sugestões e os esclarecimentos fornecidos pela autora da escala, pôde-se concluir a versão para o pré-teste.

 

 

5º Estágio - Pré-teste

Este procedimento auxiliou na verificação da compreensão dos itens por parte dos respondentes e da adequação das respostas. O pré-teste possibilitou assegurar que o instrumento estava compreensível, que os itens se adequavam culturalmente ao contexto brasileiro e que a escala mantinha as dimensões dos itens originais. Não foram constatadas dificuldades de entendimento ou adequação dos itens. Este procedimento possibilitou a consolidação da versão final do instrumento.

 

Discussão

A escolha do instrumento traduzido e adaptado no presente estudo fundamentou-se na qualidade psicométrica do estudo original, sendo o mesmo confiável e válido, apresentando uma linguagem simples e fácil aplicação (Ritsher et al., 2003).

Autores argumentam que o processo de tradução e adaptação cultural de um instrumento é importante para a comparação entre estudos de diferentes países (Da Mota, Ciconelli, & Ferraz, 2003), possibilitando um melhor entendimento e uma melhor compreensão da dimensão dos fenômenos avaliados. A qualidade do instrumento não é garantida apenas pela tradução linguística dos itens, faz-se necessária a adaptação cultural para preservar o significado conceitual do instrumento (Beaton et al., 2000). A tradução e adaptação cultural de um instrumento requer uma metodologia específica, buscando manter a qualidade do mesmo, minimizando as chances de ocorrência de uma tradução tendenciosa e o distanciamento da versão original (Soares et al., 2015).

O presente estudo se baseou nas recomendações do guideline proposto por Beaton et al. (2002), fundamentado em cinco etapas: tradução, síntese das traduções, retrotradução, avaliação do comitê de peritos e realização do pré-teste. Todas as etapas e resultados encontrados foram detalhadamente descritos no presente estudo, de modo a transparecerem as adequações correspondentes ao objetivo da pesquisa, contribuindo significativamente para o entendimento do objetivo do instrumento e servindo de parâmetro metodológico para o desenvolvimento de futuros estudos na área.

Vale ressaltar que o contato com a principal autora da escala original (Ritsher et al., 2003) foi de suma importância, uma vez que as informações colhidas dessa fonte permitiram realizar mudanças baseadas em evidências, como a tradução de expressões que mais se aproximavam dos termos originais em inglês e adequações no sentido de alguns itens diante dos ajustes necessários.

Salienta-se, no presente estudo, o cuidado com que os critérios de equivalência semântica foram analisados, considerando-se especialmente a necessidade de não distorcer a assertiva, de mantê-la coerente com o contexto brasileiro e compreensível para os prováveis respondentes. Para garantir a validade do instrumento, foram levados em consideração a adaptação cultural, os hábitos e as atividades da população brasileira.

Cabe ressaltar que o processo de tradução e adaptação cultural não é suficiente para que um instrumento seja utilizado em um determinado contexto, fazendo-se necessária a verificação das propriedades psicométricas do mesmo (Dini, Quaresma, & Ferreira, 2004; Pasquali, 1998; Pasquali, 2003). A avaliação das propriedades psicométricas do presente instrumento está sendo apurada pelos autores deste estudo.

 

Conclusão

O estudo do estigma internalizado é pouco desenvolvido no Brasil, sobretudo no que se refere à construção/validação de instrumentos. Um estudo desenvolvido por Soares et al. (2011) relata a inexistência de estudos de validação/construção de instrumentos de mensuração de estigma internalizado no Brasil, apontando para a necessidade de desenvolvimento de pesquisas nesse campo de conhecimento.

A adoção de uma metodologia adequada para o processo de tradução e adaptação cultural é fundamental para a manutenção da qualidade de um instrumento, assim como o respeito às diferenças culturais, aos hábitos e às atividades de uma população. É importante que os pesquisadores relatem todo o processo de tradução, a fim de que a escolha e a utilização do instrumento em outros estudos sejam condizentes com os fenômenos a serem avaliados.

A versão final da Escala de Estigma Internalizado de Transtorno Mental – ISMI-BR mostrou-se satisfatória após a realização do pré-teste. O instrumento apresentou linguagem adequada ao contexto brasileiro, sendo de fácil aplicação, formato adequado para o uso, entendimento apropriado por parte dos avaliados e consistência em relação ao instrumento original. Sendo assim, o instrumento se encontra apropriado para o desenvolvimento de estudo da verificação das propriedades psicométricas do mesmo.

Avanços de conhecimento – estudos referentes à discriminação e ao transtorno mental – são impulsionados pelo enfrentamento de questões relacionadas a medidas do fenômeno, como uma definição clara do construto estudado (Mello et al., 2010). Destaca-se a necessidade de explorar aspectos relacionados ao fenômeno em questão de modo a ampliar a compreensão e o impacto na vida do paciente.

A adaptação transcultural de um instrumento pode representar uma fase inicial de pesquisas quantitativas na área, uma vez que pode fomentar teoricamente e estimular o desenvolvimento de estratégias de prevenção (Bastos & Faerstein, 2012). O instrumento, após a validação geral, servirá como ferramenta para os profissionais de saúde, para que a avaliação do estigma internalizado seja implementada como rotina dos serviços, contribuindo para uma melhor compreensão do fenômeno e adequação no tratamento, de modo a garantir uma maior qualidade aos pacientes. Tendo em vista a amplitude do conceito de estigma internalizado e a complexidade de medida desse fenômeno, espera-se que novos estudos sejam desenvolvidos a fim de contribuírem para o avanço nessa área de conhecimento.

 

Agradecimentos

Agradecemos às agências de fomento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento de projetos relacionados a este artigo. Agradecemos ainda a Jeniffer Boyd, da Universidade da Califórnia, San Francisco, Estados Unidos, pela colaboração no processo de adaptação e pela aprovação da tradução da escala.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 07/07/2016

Aceito em: 27/03/2017

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