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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.1 Belo Horizonte jun. 2017

 

Artigo

 

Novos arranjos: lançando um olhar sobre os relacionamentos interpessoais de pessoas em situação de rua

New arrangements: examining the interpersonal relationships of homeless people

 

Juliana Gomes da Cunha2, Agnaldo Garcia3, Thays Hage da Silva4, Renata Coelho de Pinho5

 

2 Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), juliana88gomes@gmail.com

3 Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), agnaldo.garcia@uol.com.br

4 Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), thayshage@hotmail.com

5 Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), renatacoelhop@hotmail.com

 

 


RESUMO

Não raramente, a situação de rua é relacionada pela literatura à fragilização, ao rompimento ou à ausência de vínculos outrora configurados. Nesse sentido, o presente artigo teve por objetivo analisar relacionamentos interpessoais de pessoas em situação de rua, sejam atuais ou rompidos. Para tanto, contou-se com a participação de doze indivíduos em situação de rua da região metropolitana da Grande Vitória, no Espírito Santo, os quais responderam a entrevistas na modalidade episódica, que tem como princípio fundamental a solicitação ao participante de que rememore situações específicas e as relate. Dada a recorrência dos conteúdos comparecidos nas entrevistas, o material foi dividido entre relacionamento amoroso, amizade e relacionamento familiar. Em suma, acordando com a literatura, relatos de enfraquecimento ou rompimento vincular após a ida às ruas se fizeram presentes aqui, apesar de também terem sido abundantes relatos que deram conta de novas configurações relacionais, pertinentes ao processo de rearranjo de vida dos participantes.

Palavras-chave: relações interpessoais; laço social; moradores de rua.

 


ABSTRACT

Homelessness is frequently related to the fragility, disruption or absence of bonds once configured. This article aimed to analyze the interpersonal relationships, current or broken, of homeless people. Episodic interviews were conducted with twelve homeless individuals of the metropolitan region of Vitoria, Espírito Santo, requesting the participants to recall and report specific situations. In the analysis, given the recurrence of content, data was divided into love relationships, friendship and family relationships. Participants reported weakened or broken bonds after going to the streets, and there were also abundant reports about new relationship configurations, relevant to their life rearrangement process.

Keywords: interpersonal relationships; social ties; homeless.

 

Introdução

A situação de rua é geralmente relatada como advinda de processos sociais, políticos e econômicos excludentes (Martins, 1994), “encerrando em si o trinômio exprimido pelo termo exclusão: expulsão, desenraizamento e privação” (Brasil, 2008, p. 3). Não raramente, é também relacionada à fragilização ou ao rompimento de vínculos outrora configurados (Escorel, 1999; Hungaro & Soares, 2009; Kunz, 2012; Lemos, 2000; Nogueira & Oliveira, 2005; Prates, Prates, & Machado, 2011), o que evidencia os processos de resistência, enfrentamento e ressignificação vividos por esses indivíduos.

É comum o encontro com o termo vínculo quando em menção ao vínculo de apego, ressaltado por autores como Ainsworth (citada por Flores, Ibáñez, & Félix, 2005) e John Bowlby (1990) em suas teorias, que comportam categorias diversas como: seguro, ansioso-ambivalente, inseguro-evitativo e ansioso-desorganizado, sempre considerando o par mãe-bebê. Para este último, o apego é um mecanismo básico do ser humano que corresponde a uma necessidade de proteçao e segurança. Esse vínculo se estabelece nas primeiras relaçoes durante a infância, que iniciam o que depois se generalizará nas expectativas sobre si mesmo, os outros e o mundo em geral, com implicações importantes na personalidade em desenvolvimento (Bowlby, 1990). Não obstante, no presente trabalho, utiliza-se o termo vínculo como indicativo da existência de algum tipo de relacionamento ou, conforme Garcia (2013), como um dos termos comumente utilizados para dar conta das relações entre as pessoas.

Tendo como foco a população em situação de rua, em geral o interesse paira prioritariamente sobre vínculos próprios dos relacionamentos familiares, tendo em vista a recorrência de seu esfacelamento entre essas pessoas (Frangella, 2004; Hungaro & Soares, 2009; Lima & Moreira, 2009; Kunz, 2012). Com isso, é justificada a seguinte caracterização dessa população, contida no Art. 1º, Parágrafo Único do Decreto nº 7.053 (2009): “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular (...)”.

Entretanto, pouco parece já ter sido estudado sobre as circunstâncias e/ou razões desses rompimentos e em que proporção eles ocorrem como causa ou consequência dos modos de vida adotados ou incorporados por quem agora se encontra na rua. Fala-se em consequência, por exemplo, quando a saída de casa se dá por motivos que não envolvam diretamente a família, tais como a busca por objetivos diversos, o consumo de drogas ou doenças mentais, e acaba por acarretar um afastamento progressivo entre os membros. Pela outra via, Marchi, Carreira e Salci (2013) apontam que, mesmo que o fator causador da condição tenha sido a morte de familiares, a separação familiar ou drogas – aspectos por eles estudados –, o que contribui em definitivo para o ato de ir ou se manter nas ruas é o fato de haver uma perda de vínculos familiares e, com isto, de sua moradia.

Ainda no que concerne ao enfraquecimento ou rompimento da relação familiar como causador da situação de rua, o I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (MDS, 2009) revelou que 29,1% dos mais de 30.000 participantes apontaram desavenças com pai, mãe ou irmão como motivadores. Consonantemente, Hungaro e Soares (2009), ao entrevistarem 50 indivíduos em situação de rua de São Paulo – município não participante da pesquisa nacional –, verificaram que 40% deles relacionaram diretamente sua ida às ruas a problemas com a família.

Lima e Moreira (2009) mencionam, como desdobramento do enfraquecimento dos vínculos familiares, um sentido de não pertencimento e desamparo comum entre as pessoas em situação de rua, expresso como um “não ter lugar no mundo”. Rew (2000) acrescenta a isso o risco de desenvolvimento de problemas físicos e de abalos na saúde mental diante do isolamento social e emocional, associado ao estilo de vida assumido por jovens em situação de rua. O autor fala ainda em um recorrente sentimento de solidão, o qual Frangella (2004) considera ser reforçado pela dinâmica dilacerante do viver nas ruas. Nela, o indivíduo acaba por se desvincular gradativamente da família e das solidariedades primárias, à medida que o tempo de permanência na rua se torna maior.

Christensen (2009) menciona, então, a ocorrência de uma desconexão que envolve não só as redes de relações que definem uma comunidade social, como também uma comunidade de afetos. Apesar disso, Kunz (2012) pondera que estar em situação de rua não envolve necessariamente um rompimento definitivo dos vínculos com a família. Em alguns casos, menciona-se o sofrimento de familiares diante da ausência física e das condições de vida de quem está nessa situação, além de abertura para recebê-lo de volta. No mesmo sentido, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação/MDS, 2009) reafirma a questão ao revelar que 95% dos entrevistados têm parentes na cidade em que vivem ou em outra cidade e que 40,9% do total de participantes ainda mantêm contato com essas pessoas.

Para além do que permeia os relacionamentos familiares, o rompimento de outros vínculos também comparece na literatura pertinente à população em situação de rua, ainda que timidamente. Nogueira e Oliveira (2005) dedicaram-se ao estudo de relatos de adolescentes em situação de rua acerca de amizades na escola, a qual deixaram de frequentar devido às circunstâncias precarizantes, ainda que, em alguns casos, os estudos não tenham sido interrompidos. Como desdobramentos do afastamento da instituição, as autoras verificaram fortes expressões de saudosismo, alegria e outras manifestações de consideração positiva do vivido. Sobretudo, elas perceberam que as lembranças de vivência escolar se relacionavam à presença dos amigos, às interações sociais que a escola possibilitava, haja vista que:

Os vínculos estabelecidos com os pares são experiências motivacionais de todo adolescente, porém, a valência dessas relações é potencializada naqueles que vivem ou já viveram uma situação de permanecerem nas ruas, pois as amizades construídas na escola podem ser as relações mais estáveis e de maior continuidade. (p. 202)

Conforme Hinde (1997), um relacionamento envolve uma sequência de interações, ou seja, intercâmbios entre dois indivíduos limitados no tempo. Pela carga de fatores subjetivos como expectativas, emoções e atitudes que o permeiam, é possível afirmar ainda que um relacionamento pode continuar mesmo que as interações já não se deem. Quanto a isso, observa-se que grande parte das pessoas em situação de rua parece não assumir o isolamento como algo próprio do manejo de suas vidas. Kunz (2012, p. 35) pondera que “o viver na rua não se garante com práticas de isolamento e sem trocas, faz-se necessário tecer redes de solidariedade. Quem cai na rua não tem como viver sozinho. Para ser aceito ‘não pode ser um parasita’ (...)”.

Por outro lado, Frangella (2004) põe em xeque a estabilidade desses novos vínculos ao afirmar que a formação de grupos de indivíduos em situação de rua é norteada pela espacialidade e pela temporalidade, que se pautam na mobilidade contínua e na inconstância. Dessa forma, as relações teriam por característica a efemeridade, que acaba por trazer consigo desconfiança e reserva entre os pares. Assumindo a perspectiva adotada por Frangella (2004), seria possível dizer que, muitas vezes, as relações se resumem a interações, ou seja, relações limitadas no tempo (Hinde, 1997).

Silva (2006), porém, caracteriza a construção de novos vínculos como não menos expressivos do que os rompidos ou enfraquecidos na e/ou pela situação de rua. Segundo ele:

A carência material não compreende ausência de vínculos, mas reporta para a invenção de novas conexões de interação no meio público; e para a construção de sistemas de significados que definem papéis, vinculam e constituem agenciamentos coletivos que exploram a rua como um espaço social possível. (p. 146)

Casado (2012), por sua vez, afirma não ser possível falar em relacionamentos de uma forma geral sem considerar uma constante evolução. Assim, ao longo do tempo, são originadas novas configurações, mediante o surgimento de novos vínculos e a deterioração de outros. Nesse sentido, apesar de formas de ressocialização serem propostas com frequência na literatura (Christensen, 2009; Nogueira & Oliveira, 2005; Rew, 2000), parece pouco provável que indivíduos em situação de rua venham a estabelecer relacionamentos com configurações idênticas aos de quando eram domiciliados.

Quanto ao supracitado, Kunz (2012) menciona que, proporcionalmente aos que permanecem com o vínculo interrompido ou enfraquecido, são poucos os que rompem com o viver nas ruas para fazer o caminho inverso: o de retorno à moradia anterior. No mesmo sentido, Hungaro e Soares (2009) relatam que 72% dos entrevistados em sua pesquisa haviam excluído relações familiares de suas projeções ao serem indagados sobre como se imaginavam dali a cinco anos. Enquanto isso, apenas 26% incluíram a família em suas perspectivas futuras.

Mesmo quando o contato com a família e/ou outros entes familiares de fato se restabelece, pode-se inferir que os relacionamentos já não se dão da mesma forma, haja vista a natureza dinâmica e dialética dos comportamentos sociais proposta por Hinde (1997) em suas produções acerca do relacionamento interpessoal. Conforme essa ciência, os relacionamentos estão a todo tempo suscetíveis a influenciar e ser influenciados pelas interações, que, por sua vez, estão propensas a influências de processos psicológicos, valores, crenças, instituições, características grupais e sociais, entre outros contextos em que cada um dos participantes está envolvido. Assim, pode-se considerar que, durante um processo que envolve ser/estar em situação de rua, diversos desses aspectos são alterados nos pares, o que traz à tona a noção de mudança do relacionamento como um todo.

O panorama supracitado dispõe sobre as peculiaridades dos relacionamentos interpessoais vivenciados por pessoas em situação de rua do ponto de vista da fragilização dos vínculos, dando visibilidade, ao mesmo tempo, aos processos de afirmação da vida, muitas vezes negligenciados em pesquisas em Psicologia. Com isso, o presente artigo teve por objetivo compreender a perspectiva de pessoas em situação de rua a respeito de seus vínculos e relacionamentos, sejam eles atuais ou rompidos.

 

Métodos

O estudo, realizado mediante aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal do Espírito Santo, contou com a participação de doze indivíduos com idade acima de 18 anos e em situação de rua da região metropolitana da Grande Vitória, no Espírito Santo. A seleção dos participantes foi apoiada nas definições de Vieira, Bezerra e Rosa (2004), que diferenciam a população em questão entre ficar na rua (circunstancialmente), estar na rua (recentemente) e ser da rua (permanentemente). Segundo as autoras, “o que unifica essas situações e permite designar os que a vivenciam como população de rua é o fato de que, tendo condições de vida extremamente precárias, circunstancial ou permanentemente, utilizam a rua como abrigo e moradia” (p. 93).

Dessa forma, participaram do estudo tanto usuários permanentes ou eventuais de serviços de assistência à população de rua quanto indivíduos que estabelecem suas rotinas exclusivamente em vias públicas. Além disso, dada a definição das autoras, não foram excluídos da amostra aqueles que afirmaram pernoitar geralmente em barracos, haja vista os próprios relatos e as visíveis condições precárias e precarizantes às quais estavam submetidos.

A tabela 1 dá conta da caracterização socioeconômica dos participantes.

 

 

Para a coleta de dados, algumas precauções foram tomadas em respeito à rotina e à preservação da integridade dos participantes em potencial, tais como: não acordar o indivíduo em momentos de descanso e não realizar entrevistas em possíveis horários de busca por alimentação ou quando se encontrassem altamente alcoolizados. Feito isso, foram realizados contatos, nos quais se davam breves apresentações da pesquisadora e dos objetivos do estudo. Mediante concordância com a participação, o participante era instruído acerca do conteúdo e da assinatura ou impressão digital em um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para então responder à entrevista individual, guiada por roteiro semiestruturado.

Optou-se pela modalidade entrevista episódica, que tem como princípio fundamental a solicitação ao participante de que rememore situação específica e a relate (Flick, 2008). O propósito da escolha pela utilização dessas entrevistas foi, então, integrar aspectos narrativos e conceituais. Flick (2009, p. 176) ressalta que “as entrevistas episódicas buscam aproveitar as vantagens oferecidas tanto pela entrevista narrativa quanto pela entrevista semiestruturada. Essas entrevistas utilizam a competência do entrevistado para apresentar as experiências dentro do curso e do contexto destas enquanto narrativas”.

Em adição, foram utilizados dados provenientes de conversa informal e voluntária entre a pesquisadora e três assistentes sociais, funcionárias do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas) do município de Vitória. Ademais, todas as entrevistas e as conversas informais foram gravadas – após autorização dos participantes – em mídias eletrônicas, o que, segundo Jovchelovitch e Bauer (2008), é importante para a realização adequada da análise dos dados.

Tendo em mãos todo o material transcrito, foi realizada a análise temática das informações. Conforme sugerido por Jovchelovitch e Bauer (2008), realizou-se uma redução gradual do material qualitativo, em que “as unidades do texto [foram] progressivamente reduzidas em duas ou três rodadas de séries de paráfrases. Primeiro, passagens inteiras ou parágrafos [foram] parafraseados em sentenças sintéticas. Estas sentenças [foram] posteriormente parafraseadas em algumas palavras-chave” (p. 107).

Como passos posteriores, foram realizadas a codificação e a criação de categorias a partir das informações recolhidas em cada entrevista individualmente. Na sequência, os dados obtidos em todas as entrevistas foram agrupados e, então, organizados, discutidos e comparados à literatura pertinente.

 

Resultados e Discussão

Dada a recorrência dos conteúdos comparecidos nas entrevistas, o material foi categorizado em relacionamento amoroso, amizade e relacionamento familiar, conforme segue:

 

Relacionamento amoroso

Em meio às entrevistas, emergiram relatos envolvendo especificamente aspectos de relacionamentos amorosos de quatro participantes. Dentre estes, dois (Luis e Abigail) vivem as relações atualmente, enquanto as relações de Miguel e Davi com as respectivas companheiras mencionadas já se encontram destituídas. Esta última realidade, segundo Frangella (2004), é bastante recorrente entre casais formados por quem vive nas ruas, geralmente unidos por motivações como carência afetiva e sexual, atração mútua ou necessidade de proteção. Fato é que, tendo sido formados os casais, independentemente do grau de estabilidade do vínculo, é possível salientar que:

Se as imagens ressaltadas sobre e pela população de rua são as figuras solitárias e encalacradas em si mesmas, as maneiras como um casal traz a intimidade e o afeto – aparentemente anestesiados –, para o espaço aberto abrem uma perspectiva para compreender melhor o mundo das relações interpessoais. (Frangella, 2004, p. 208)

Nesse contexto, entre os participantes que convivem com os parceiros, surgiram expressões de afetividade, intimidade e comprometimento, comuns em se tratando de relacionamentos amorosos (Andrade, Garcia, & Cano, 2009). No entanto, mesclaram-se a essas expressões fatores tidos como propriamente característicos de relacionamentos estabelecidos e/ou mantidos nas ruas, tais como ressaltados no relato de Luis:

A Flávia eu conheci na rua mermo. A Flávia morava com o Paulista. O Paulista, que mora no Romão. Eles tinham um filho. Paulista deixou ela barriguda ainda no albergue, entendeu? Aí, pô, eles têm um filho. Um menino, entendeu? Foi nessa época aí que Flávia tava com o menino que eu fiquei com ela. Aí, minha história com Flávia é... tem um passado. Se for contar tudo nóis vamo ficar o dia todo aqui. Eu falando sobre o acontecido com eu e Flávia. Ela tá no hospital internada. Tá no Hospital Ferroviário.

Observou-se que Luis deu início ao seu relacionamento com Flávia quando ela estava em companhia de seu filho com outro homem, o que parece não ter sido empecilho para tal. Então, apesar de não explicitados os detalhes desse fato, nem do que ocorreu posteriormente com a criança, levanta-se a hipótese da existência de ligação entre a história inicial desse casal e a informação de Kunz (2012), segundo a qual, devido a um número reduzido de mulheres nas ruas, há uma regra implícita de que as mesmas podem se unir a vários homens, devendo apenas ter encerrado um relacionamento para dar início a outro. Assim, diante do desejo de companhia amorosa apresentado, as mulheres parecem não permanecer muito tempo sós após as recorrentes separações, passando a ser disputadas (Kunz,2012) e possivelmente acolhidas.

Apesar da frequente mudança de pares amorosos entre a população em situação de rua, o relato de Luis nos dá pistas de estabilidade no seu relacionamento, tanto por meio da menção de que sua história com Flávia “tem um passado” quanto mediante a apresentação de perspectivas futuras que incluem a companheira:

[...] Aí nossa vida vai começar a mudar, que nóis vão na igreja. Nóis vão começar a ir na igreja. (Luis)

Soma-se a isso o fato de não ter sido mencionada a ocorrência, ao menos recentemente, de situações com potencial de provocar conflitos determinantes para a continuidade ou não da relação, uma vez que, segundo Frangella (2004), qualquer problema tende a adquirir grandes proporções entre casais em situação de rua, dada a fragilidade inerente aos modos de vida assumidos ali. Apesar disso, a autora assinala que:

Ao contrário do que se poderia supor, as questões e fragilidades que envolvem um casal não impedem as manifestações de carinho e afeto de ambas as partes: os olhares, os abraços, a acolhida junto à coberta na hora de dormir, o cuidar. (p. 211)

Esse “cuidar” é especialmente apontado por Luis em alguns momentos da entrevista, ainda que, por vezes, perpassados por uma notória afirmação de domínio sobre Flávia. Em um dos momentos, o participante rememora o episódio em que esteve em um albergue na ausência da esposa:

É, as meninas (do serviço de abordagem) já me ajudaram várias vezes. Até me levaram no albergue lá, no Tancredao, mas só que nao gostei lá do lugar e saí na mesma noite. [...] Aí eu fui e deixei minha mulé, nao foi? Deixei minha mulé, abandonei minha mulé e fui com eles. Mas só que eu nao gosto de deixar minha mulé sozinha, aí voltei na mesma noite. (Luis)

Nessa altura, dois pontos que permeiam o viver nas ruas vêm à tona: primeiramente, a violência à qual as pessoas encontradas ali estão sujeitas, advinda tanto dos próprios moradores de rua entre si quanto de indivíduos domiciliados (Moura Jr., Ximenes, & Sarriera, 2013). Essa questão emergiu quando uma funcionária do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas) de Vitória mencionou, em momento posterior à entrevista, que Luis recorreu ao albergue para se refugiar, pois vinha sendo ameaçado de morte. Em segundo lugar, manifesta-se certa preocupação a respeito dos perigos aos quais a mulher que é/está sozinha nas ruas é, muitas vezes, submetida, o que pode ser ilustrado na fala de Luis. Muito embora a fala de Luis denote algum conservadorismo, segundo Quiroga e Novo (2009), as mulheres, por serem mais frágeis diante das hostilidades do meio não domiciliar, acabam por se tornar “vítimas fáceis” (p. 157), expondo-se a violências diversas, sobretudo sexuais.

Em outro momento, Luis traz à tona o fato de ter incentivado a esposa a acompanhar a equipe de abordagem social para ser tratada no hospital:

Flávia é minha companheira. Amiga e companheira, entendeu? Amiga e companheira. Não foi à toa que eu falei bem assim, que eu vi. Senão eu não tinha deixado vocês [equipe da abordagem social] levar ela. Tinha deixado ela aí, ó. Cês ia bater, ó, o martelo e nunca ia entrar na tábua. Se eu falasse assim “não, vai levar não, ela vai ficar aí”, tava aí até hoje. Mas eu, que que eu fiz? Não abri meu coração? Não abri meu coração e falei: “Não, vai Flávia!”? (Luis)

Ainda em relação ao estado de saúde de Flávia, provavelmente desencadeado ou agravado pelas condições desfavoráveis de vida nas ruas (Lovisi, 2000), Luis demonstra preocupação ao estabelecer o seguinte diálogo (conversa informal) com a funcionária do Seas, em momento posterior à entrevista individual:

Luis: A minha esposa, é... a doutora, não tem? Ela vai lá visitar ela [Flávia] com urgência. Ela já comprou tudo prá ela: sabonete,comprou tudo, e tudo que ela precisa lá [no hospital] a doutora comprou. E vai visitar ela lá hoje.

Funcionária do Seas: A gente também levou roupa pra ela também. A gente visitou ela também.

Luis: A doutora vai levar mais roupa. A doutora vai trazer a resposta prá mim hoje. Aí, então, conversou com a assistente social de lá, a doutora. Tem contato com a assistente social de lá.

Funcionária do Seas: A gente também. Todo dia tá ligando prá lá também. Não é só a doutora não, Luis. A gente também! E não basta só falar da doutora não. A gente também, enquanto prefeitura, também tá lá, perguntando por ela, levando roupa. Tá sendo cuidada.

Luis: Vocês também? Ah, tá bom então! Obrigado então! Muito obrigado então vocês também, tá? Obrigado, mas também dá a resposta prá mim também, hein! Como é que tá, hein! [...] É porque eu fico preocupado. Você sabia que eu tava quase indo pra lá? Tinha ido visitar prá ela. Eu tava quase indo com carrinho com tudo, com as coisa tudo.

A despeito do tom de soberba observado na fala da funcionária do Seas para com Luis, são notórios o trabalho e a intervenção realizados pelo Serviço no caso, contrariando o que o participante a princípio ressaltava: que o recebimento de auxílio viria apenas de uma pessoa domiciliada, referida todo o tempo por ele como “doutora”. Ademais, essa sequência de fatos envolvendo Luis e Flávia corrobora a concepção de Frangella (2004), que, após descrever uma cena de cuidado de uma mulher em relação ao companheiro vivente na rua, menciona:

Tais cenas são os expoentes do cuidado amoroso e do afeto nas condições materiais e subjetivas da situação de rua, que pode ser reconhecida entre as outras categorias da população de rua com outros formatos. Há uma dedicação notória ao parceiro ou à parceira. (Frangella, 2004, p. 212)

Todavia, a autora acrescenta a isso o fato de que, apesar de os carinhos serem intensos, os episódios de tensão geralmente também o são. Nesse contexto, qualquer intriga parece ter aumento exponencial, podendo promover efêmeras posturas desafiantes, falas raivosas e xingamentos. Cabe aqui citar o relacionamento amoroso de Abigail e seu marido, de quem está grávida. Entre eles, a dita afetividade se faz notória durante a entrevista na medida em que ela se reporta ao companheiro como “amor”. Apesar disso, ao contrário do exposto em relação a Luis, os conflitos vividos por esse casal foram relatados de forma bastante direta, justificados pelo ciúme:

É, só rola uma discussao entre eu e meu marido porque eu sou muito ciumenta. [...] Eu nao deixo ninguém dormir. (Abigail)

Especificamente sobre isso, Frangella (2004) acredita que as brigas causadas por ciúme demasiado se dão em meio à tensão sexual acarretada por uma intensa repressão das manifestações de desejo em ambos os sexos. Porém, resistindo à violência e às desavenças geradas por esse contexto, Abigail e o marido têm se mantido juntos por meio do manejo entre carinho e agressão (Frangella, 2004). Em contrapartida, essa dita resistência não se processa em muitos casos, a exemplo dos de Miguel e Davi, inseridos cada qual em circunstâncias e motivações próprias, conforme relatos a seguir:

Eu larguei minha mulher, que era doida, que andava tirando a roupa no meio da rua. Ela andava comigo, mas ela fazia coisa errada. (Davi)

Já no relato de Miguel, destaca-se uma correlação entre o rompimento do relacionamento amoroso e a saída de casa, ainda que esta pareça não ter sido a única de sua história, tendo em vista que, na íntegra de seu relato, foi observada uma oscilação entre períodos na rua e períodos domiciliados. Em suas palavras, então:

Eu morei com uns pessoal aí, só que não demo certo porque o pessoal mexia com coisa errada. Então, graças a Deus, [...] ela tá presa, aí pegou e falou: “Não dá mais”. Então... já faz bastante tempo que a gente não se encontra. No Natal passado, eu falei com ela: “Ó, é a última vez que eu vou vim aqui”. Na véspera do Natal, Natal passado. Aí, tudo bem. Ela mandou recado pra mim, eu falei: “Não, não vou não, porque você já tá com outro rapaz, com outra pessoa, eu vou fazer o quê? Se você escolheu essa vida, vou fazer o quê?”. Eu tirei ela da rua. Falei com ela: “Ó, você tá mexendo com essa droga, essa droga é assim, assim”. Toda sexta-feira, eu chegava em casa, nóis brigava. Aí peguei: “Você não quer isso?”. Primeira vez eu saí de casa, deixei tudo pra ela. Aí ela pegou e vendeu os trem pra comprar cocaína, usar porcaria dela. Aí eu peguei e voltei pra rua de novo. (Miguel)

Para além disso, em ambos os casos, os rompimentos foram creditados a desvios comportamentais das mulheres, o que retrata um julgamento de valor que parece ter embasamento em certo conservadorismo. É o que se observa no caso de Davi, por exemplo, que relaciona a suposta loucura das mulheres ao ato de despir-se no meio da rua.

 

Amizade

Considerando inexistente um conceito definitivo de amizade, Silva (2005) apresenta uma das muitas definições possíveis para tal relacionamento: “uma categoria que designa a capacidade de os indivíduos estabelecerem laços de circulação de informações entre si, que exprimem seus interesses, seus gostos, suas opiniões, seus segredos e paixões, formando, com isso, uma rede de sociabilidade” (p. 41).

Cabe aqui dizer que, no que concerne a amizades, grande parte dos relatos dos participantes revelou que suas histórias foram atravessadas por algum grau de resistência e/ou negação, o que, segundo Frangella (2004), é bastante comum, tendo em vista que relacionamentos entre pessoas em situação de rua são marcados geralmente por efemeridade, desconfiança e reserva, frutos da precariedade vivida. Assim, Bernardo, Célia e Davi, por exemplo, limitaram-se a dizer que não têm amigos. Já Heitor, Ismael e Luis deixaram transparecer certa superficialidade em suas relações interpessoais dessa natureza ao relatarem não ter amigos, mas sim colegas ou camaradas:

[Tenho] colegas. Tem ele, Manoel, saiu daqui agora. Uma que tá com cachorro é Edite. É... Tem vários. Tem vários, tem vários. Vários mesmo. (Ismael)

Não tenho amigos nem colegas, tenho camaradas. (Heitor)

Tudo indica que, nesses casos, são configuradas apenas interações (Hinde,1997) limitadas ao tempo ou a comportamentos e práticas pontuais, como evidenciado especialmente no relato de Luis:

Amigo? Eu tenho um amigo... Jesus. Colega? Colega só aqueles de copo que vêm beber nas minhas custa aqui, que sabe que eu não fico sem cachaça.

Mais do que isso, mostra-se possível discutir, através do supracitado, dois outros pontos além do coleguismo que permeia os relacionamentos do participante: primeiramente, a menção a uma figura divina como seu único amigo propriamente dito e, a seguir, o consumo de álcool e/ou drogas como facilitador de vínculos, mesmo que precários. Em relação ao primeiro ponto, o posicionamento de Gabriel se soma ao de Luis, uma vez que afirma ter Jesus como único amigo, pois deixou de confiar em humanos devido às situações já vividas.

É possível pensar, em concordância com Guimaraes e Moreira (2011), que a religiosidade7, também referida em outros momentos por Célia e Davi, entra em cena como alicerce para uma busca de sentido de vida e sustentação psicológica, além de se mostrar como um recurso para o enfrentamento das condições hostis impostas pelo viver nas ruas. Assim, dentre tantos outros fatores, as rupturas de vínculos humanos como as amizades aparecem como importantes componentes dessa suposta hostilidade (Frangella, 2004; Nogueira & Oliveira, 2005).

No que se refere ao consumo de álcool e/ou drogas, comum entre os participantes, destaca-se o seu caráter socializador. Cabe aqui mencionar o apontamento de Kunz (2012), de que o compartilhamento de substâncias psicoativas, principalmente de cachaça, aparece frequentemente nas rodas de conversas compostas por moradores de rua. Para além disso, no caso de Luis, o contato com os colegas parece restringir-se aos momentos de bebedeira, deixando transparecer certa instrumentalidade das relações, já que as mesmas são limitadas ao comportamento específico de beber: único ou mais evidente interesse comum entre eles.

Contudo, na medida em que o consumo de substâncias psicoativas se apresenta como único laço de união entre pares, uma alteração comportamental de um dos indivíduos nesse âmbito pode ocasionar um fim definitivo ou uma redução na intensidade do vínculo, a exemplo do relatado por Miguel:

Porque, amigo, vou falar uma coisa, amigo quando eu tinha só era amigo de droga ou porcaria. Acabou esse negócio, não tenho amigo mais não. Mas agora meus amigos tudo, os amigo que eu tinha, né, de fumar droga, me abandonaram. Ah! De vez em quando, eles me chamam. Eu: “Ah! Eu parei, não quero mais”. Mas ontem eu peguei 50 reais, fui lá na hora do jogo do Flamengo, tomei uns golinho, aí eu peguei: “Não! Deixa eu ir lá. Vou mexer com porcaria mais não”. Igual eu falei procê, eu comecei a trabalhar, hoje graças a Deus que vocês me acharam aqui. Meu negócio é só trabalhar. De vez em quando, assim, que final de semana eu gosto de tomar uma cervejinha, mas só assim, final de semana.

De toda forma, em contraposição às supracitadas dissensões, Miguel faz menção a uma pessoa com quem mantém uma aparente relação amistosa:

Bom, tenho amigos. Tenho assim, né? O Juarez, o cara que me apoiou quando eu cheguei pra cá. Me deu muito conselho, nóis conversa, ou então, assim, tem vez assim, que eu quero sair prá algum lugar e ele: “Presta atenção no que você vai fazer, Miguel!”. Aí ele me dá muito conselho, né? [...] Igual ontem, ontem eu fui trabalhar, aí eu cheguei e ele: “Ó, o rango tá aqui!”. Aí ele vai e separa o meu, ou eu o dele.

No relato de Miguel, é possível notar a ausência e a presença de dois pontos dentre vários tidos por Hinde (1997) como determinantes para a persistência ou a fragilidade das amizades de um modo geral. São eles: a exigência de que os participantes trabalhem para a sustentação de interesses em comum, a fim de que a relação persista – o que verificavelmente deixou de ocorrer no caso de Miguel –, e as expectativas por ações específicas – como no caso dele, o consumo de substâncias psicoativas –, que podem, no entanto, ser frustradas e frustrantes para quem as espera. Outros dos pontos mencionados por Hinde (1997) podem ser acrescidos a esses, ainda que não tenham comparecido explicitamente nos relatos apresentados neste artigo. Tratam-se de: ameaças externas, como a proximidade com um amigo militando contra a proximidade com outra pessoa; pressões contraditórias por autonomia e intimidade; o fato de que, diferentemente de outros, esse tipo de relacionamento carece de forças externas para a manutenção de sua qualidade; e a inexistência de mecanismo social que encoraje a reconciliação entre seus participantes.

Retomando os casos específicos dos participantes deste estudo, alguns deles titubearam ao dar conta da presença de amigos em suas vidas, contrariando aqueles que se disseram convictos ou tendentes a acreditar não tê-los. Abigail e Fagner, por exemplo, apontam com veemência a expressividade das relações estabelecidas com alguns amigos, a quem chegam a considerar como membros de suas famílias ou, mais especificamente, irmãos:

É uma família. Somos tudo unido. O que deu prá um, dá pro outro. E, se estiver morrendo, joga nas costa e corre pro hospital. (Abigail)

Tenho [amigos]. Esse aqui [aponta] é meu camarada. Esse aqui é como um irmão meu. Tem outros aí.” (Fagner)

Jorge, por sua vez, resume da seguinte forma seus relacionamentos de amizade:

Um [amigo] é o Rafael, e o outro é o Eduardo, e o outro é o “Fumo”, que eles falam. Eles me ajudam, eu ajudo eles, né? E a gente vai levando a vida.

Sendo assim, é perceptível que, tanto nesse relato quanto nos de Miguel e Abigail, os relacionamentos amistosos se baseiam, em maior ou menor grau, no zelo, no apoio e no reconhecimento mútuo.

Ao que tudo indica, existe certa reciprocidade – elemento comum em definições de amizade como as de Auhagen, Davis e Todd (citados por Hinde, 1997) – nos atos e afetos entre os pares em questão. De outro modo, percebe-se a natureza particularmente voluntária, dotada de alto grau de liberdade – seja para a escolha de pares ou para continuidade do envolvimento (Garcia, 2005) – e da pressuposta necessidade de empenho para manutenção da relação, a partir dos discursos dos participantes, tendo em vista que não foram mencionadas amizades atuais que tenham sido configuradas anteriormente à situação de rua. Isso porque, mesmo desconsiderando outras modificações na vida do indivíduo, é inegável que o viver ali traz consigo interesses novos muito mais relacionados diretamente à sobrevivência do que quando a pessoa estava domiciliada. Com isso, finalmente entra em cena a concepção de Casado (2012) de que os relacionamentos, nos quais se incluem as amizades, estão em constante processo de evolução, com o esfacelamento de antigos vínculos e o surgimento de novos.

 

Relacionamento familiar

O rompimento ou o enfraquecimento de vínculos familiares tende a receber destaque na literatura pertinente à população em situação de rua, provavelmente por sua recorrência e seus consequentes efeitos nas vidas dessas pessoas (Kunz, 2012). Mediante análise dos dados coletados nesta pesquisa, infere-se a confirmação dessa recorrência, já que a maioria dos participantes (nove) relatou fragilidades em relacionamentos familiares ligadas a causas e contextos diversos. Mesmo assim, um elemento se faz presente em todos esses relatos: a escolha primordialmente proveniente ora dos próprios participantes, ora de seus parentes/familiares.

Nesse sentido, Bernardo e Heitor, por exemplo, relatam não estabelecer contato algum com familiares por opção, o que o primeiro justifica:

 

Não gosto de família.

Em adição, Ismael – que mencionou ter quatro filhos e mãe viva – e Abigail – que disse ter dois filhos, pai falecido e mãe viva – relatam convívios familiares bastante escassos, caracterizados por longos intervalos entre um contato e outro, visivelmente procedidos em momentos aleatórios e/ou de rompante:

Quando em quando. Quando dá a louca nós mete o pé prá lá [para casa da mãe dela], fica lá um final de semana e depois volta de novo. [...] Quando bate a saudade, o coração aperta, a gente mete o pé. (Abigail)

Uns dois... De dois, dois anos e meio eu vou lá em casa. Em casa não, na casa da minha mãe. Da minha mãe também não, na casa da minha ex-sogra, que minha mãe mora com ela. [...] Minha mãe teve resguardo quebrado, aí aposentei ela e larguei ela com minha ex-sogra e vim prá rua viver. (Ismael)

Diante desses relatos, revela-se, em maior ou menor grau, a busca por uma possível liberdade antes não encontrada no ambiente doméstico, por vezes considerado opressor e perigoso (Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação/MDS, 2009). Em contextos diferentes, Célia – que antes convivia com irmãos e filho – e Fagner – outrora casado – relatam ter escolhido não ter contato com suas famílias por não quererem ser vistos em meio à degradação gerada pela situação de rua, acarretadora de notório sentimento de vergonha. Este, por sua vez, acaba por produzir desejos de fuga e evitação, derivados de autoavaliações repletas de inferioridades (Moura Jr. et al., 2013). Seguindo esse raciocínio, expõe-se a fala de Fagner:

Me afastei. No momento, a situação que eu tô vivendo não me convém deixar, fazer minha família sofrer. Então, eu tô mais sozinho mesmo.

Miguel, por sua vez, retrata posturas de evitação e negação advindas de sua família diante de suas tentativas de contato, revelando um quadro de desamparo e abandono mútuo:

Bom, até hoje, ninguém preocupou comigo não. Eu morei todo tempo em Minas. Eu sou de Minas também. Contato nenhum! Porque, assim, a única parte que eu tinha lá em Minas, falar a verdade, era minha mãe, que sempre preocupava comigo. E minha vó. Mas, hoje em dia, já não quer preocupar comigo. Já liguei prá lá algumas vez e ninguém atende telefone. Então, larguei prá lá.

Entretanto, a despeito dos que ressaltam a desvinculação, Elton, Jorge e Gabriel dão conta da preservação – ao menos parcial – de seus relacionamentos familiares. Assim, Gabriel, por exemplo, menciona se relacionar com filha, concebida antes da ida às ruas:

Só a distância (se relaciona com parentes e familiares), muito bom. A não ser a minha filha, sempre vejo ela. Ela sempre vem aqui. Ela mora em Vila Batista, perto de Paul. Ela e o irmão dela. Sempre! Nunca me abandona.

Sendo assim, observa-se que nossos dados endossam os achados do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação/MDS, 2009), assim como os de Kunz (2012). Conforme o primeiro, 40,9% dos participantes do I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua ainda mantêm contato com seus familiares. Já Kunz (2012) aponta para os níveis de sofrimento de familiares diante das condições de vida e da ausência física de seus entes, o que, por vezes, deixa transparecer abertura para o retorno ao lar daqueles que se encontram em situação de rua.

Cabe ressaltar que, enquanto alguns vínculos familiares originais deterioram-se, outros relacionamentos dessa natureza emergem nas vidas das pessoas após adentrarem a situação de rua, em um movimento evolutivo constante (Casado, 2012). Nesse sentido, Kunz (2012) e Frangella (2004) falam sobre a existência de famílias nas ruas, algumas chegadas por lá já constituídas, outras formadas a partir de casais que se conhecem e se unem nos próprios logradouros públicos, tais como Luis e Flávia e Abigail e seu esposo.

Além destes, Gabriel convive com uma companheira, a qual, na ocasião da entrevista, encontrava-se hospitalizada após ter dado à luz o filho do casal. Com esse fato, ainda que não tenha sido mencionado pelo participante, retoma-se um dado importante no que diz respeito à constituição familiar dos que habitam as ruas: a recorrente imposição da separação entre pais e filhos. Em relação a Vitória, Kunz (2012) menciona não existirem serviços de albergamento que acomodem famílias em um mesmo espaço, o que pode contribuir para sua fácil desvinculação.

Seguindo esse raciocínio, Kunz (2012) fala do caso daqueles que têm filhos menores de idade gerados na situação de rua ou trazidos a ela, a exemplo de Gabriel e Abigail. A autora então explica:

Uma vez estabelecido o processo de abrigamento para a criança e o adolescente, inicia-se a contagem de um prazo previsto por lei para que os mesmos não sejam institucionalizados. O sistema de garantias de direitos (Conselhos Tutelares e Juizado da Infância e da Juventude), respaldados no Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê uma família substituta para as crianças que estejam abrigadas por até dois anos. O tempo da lei não corre no mesmo ritmo e percurso para quem está em situação de rua. Contudo, a adoção no Brasil, uma vez efetivada, torna-se de caráter irreversível (Kunz, 2012, pp.112-113).

Sendo assim, em contextos em que dois anos são insuficientes para a reversão de quadros que incluem desemprego, consumo de drogas e falta de moradia, muitas cisões têm sido impostas. E, para além disso, muitas mulheres têm perdido a guarda dos filhos logo após o parto, ainda na maternidade, sob a alegação corrente de proteção integral da criança e do adolescente (Kunz, 2012).

Por fim, nos relatos de Abigail e Fagner, que acreditam constituir com outras pessoas de mesma situação suas “famílias de rua” – “Minha família é eles aí [outros habitantes da praça]” (Fagner); “É uma família. Somos tudo unido. O que der prá um, dá pro outro... E, se um tiver morrendo, joga nas costas e corre pro hospital” (Abigail) –, podem ser observados os movimentos para estabelecimento de papéis a partir de uma perspectiva hierárquica. Isso também foi observado por Santos, Macedo, Mendes e Neves (2013), que mencionaram o comum surgimento de configuraçoes similares as familiares dentre membros de um mesmo agrupamento de moradores de rua, nas quais, nao raramente, sao assumidos papéis de pais, filhos e irmaos, com base em critérios como a ordem de chegada ao local.

 

Considerações Finais

De modo geral, confirma-se com este estudo a ideia de vínculos rompidos ou enfraquecidos após a instalação da situação de rua presente na literatura (Escorel, 1999; Hungaro & Soares, 2009; Kunz, 2012; Lemos, 2000; Nogueira & Oliveira, 2005; Prates et al., 2011). Apesar disso, destacamos também os relatos que deram conta de novas configurações relacionais, pertinentes ao processo de rearranjo de vida dos participantes.

As novas configurações relacionais, por sua vez, surgem e são pautadas em razões e emoções singulares, característica que rege os relacionamentos interpessoais em geral. Isso porque, de acordo com Hinde (1997), as interações que compõem um relacionamento influenciam e são influenciadas por características individuais, tais como: processos psicológicos, estrutura sociocultural de valores e crenças. Essa noção conecta-se a outras questões para justificar o fato de que, apesar de ser possível apontar características e tendências próprias dos relacionamentos interpessoais de pessoas em situação de rua, qualquer generalização ampla tende a apresentar falhas.

Finalmente, espera-se que o modo como o conteúdo foi exposto ao longo deste artigo tenha se configurado como um instrumento para elucidação da temática e promovido a facilitação da leitura e o despertar de interesse do leitor, a fim de que novos passos sejam dados rumo à construção de um campo de conhecimento mais amplo acerca dos relacionamentos interpessoais da população em situação de rua. Entendemos que as limitações deste estudo são relativas ao método qualitativo e ao uso de entrevistas; sendo assim, sugere-se que futuros trabalhos utilizem outros métodos de coleta de dados, a fim de endossar o estudo desse fenômeno e apontar possíveis incongruências.

 

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Recebido em 14/06/2016

Aceito em: 15/02/2017

 

1 Este artigo é parte da dissertação de mestrado da primeira autora, sob orientação do segundo, e as demais autoras auxiliaram no processo de coleta de dados. A pesquisa foi fomentada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

7 Guimarães e Moreira (2011) distinguem religiosidade de espiritualidade da seguinte forma: “Por religiosidade pode-se entender então um caminho; uma via de acesso, dentre outras possíveis, para se chegar à espiritualidade e ao sentido da existência. Talvez caiba ressaltar que a religiosidade tem-se constituído, ao longo do tempo, como a forma mais aceita e mais praticada de se fomentar a espiritualidade, contudo, espiritualidade se refere a algo mais complexo e mais abrangente que a religiosidade” (p. 29).

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