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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.1 Belo Horizonte jun. 2017

 

Artigo

 

O preconceito racial como determinante social da saúde – a invisibilidade da anemia falciforme

Racial prejudice as determining social health – the invisibility of sickle cell anemia

 

Sônia Regina Corrêa Lages1, Ariane Macthelly da Silva2, Diego Patrick da Silva3, Júlia Martins Damas4, Mariana Augusto de Jesus5

 

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sonialages@ig.com.br

2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), arianemac18@yahoo.com.br

3 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diegopatrickdasilva@yahoo.com.br

4 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), damas.julia@gmail.com

5 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), marianaaugusto2009@hotmail.com

 

 


RESUMO

O trabalho se refere ao relato de uma pesquisa, no campo da Saúde da População Negra, que considera que a morbimortalidade no Brasil tem cor, que as formas de adoecer e morrer desse grupo social estão relacionadas às suas condições materiais e sociais. A partir disso, foi realizada uma pesquisa, em um centro de saúde pública, na cidade de Belo Horizonte, cujo objetivo era o de investigar a percepção dos funcionários da equipe de saúde, e dos usuários do referido centro, sobre o preconceito como determinante da saúde, e sobre o conhecimento da anemia falciforme, doença genética que afeta de forma mais específica as pessoas negras. Os resultados da pesquisa apontam evidências da existência do racismo institucional na saúde pública, do preconceito como gerador de depressão e do desconhecimento das equipes e dos usuários do sistema de saúde em relação à anemia falciforme.

Palavras-chave: Saúde da população negra, Racismo institucional, Preconceito, Anemia falciforme.

 


ABSTRACT

The work refers to a research report in the field of Health of Black Population which considers that the morbidity and mortality in Brazil has color, that the illness and death kinds of those groups are related to their material and social conditions. On this base, a study, whose objective was to investigate the perception of health staff employees and of the users of the center about prejudice as a determinant of health and about the knowledge of sickle cell anemia, a genetic disease that affects more specifically those groups, was carried out in a public health center in the city of Belo Horizonte. The research results evidence the existence of institutional racism in public health, of prejudice as depression generator, and show lack of knowledge about sickle cell anemia among health teams and users of health care.

Keywords: Black population health, Institutional racism, Prejudice, sickle cell anemia.

A saúde, apesar de ser reconhecida como um direito humano universal, revela sua iniquidade quando se considera fatores como: condições de vida, moradia, trabalho, emprego e renda; trajetórias familiares e individuais; desigualdades de raça, etnia, sexo, idade; acesso à informação e aos bens e serviços disponíveis. (Racismo como Determinante Social de Saúde, 2011). Essa situação se espelha nos dados estatísticos que são levantados, demonstrando que a morbimortalidade no Brasil, seja pelas enfermidades vinculadas às condições de vida de uma população, seja pela violência, tem cor, ela é negra.

O Censo 2010 apontou que 50,7% da população se declarou preta ou parda, e que prevalece nessa população uma série de desigualdades ao se comparar com a população branca, considerando as condições sociais e materiais de vida, como menor acesso à escolaridade, ao mercado de trabalho, aos serviços de saúde, aos direitos mínimos de cidadania e à participação no poder, além do aspecto étnico-racial que, mascarado pela ideologia da democracia racial, faz com que a população negra sofra com os preconceitos relativos à cor.

O racismo, no Brasil, tem se concretizado de forma sutil, estabelecendo uma situação de invisibilidade ao preconceito, cujo combate se ressente da falta explícita de anteparo legal e institucional. No cotidiano, esse racismo e a discriminação se traduziriam em uma convivência pacífica entre pessoas brancas e negras, tipo de convívio decorrente de um intenso processo de mestiçagem. Esse processo, na verdade, fazia parte de uma estratégia para a construção de uma identidade nacional, importante para o projeto desenvolvido nos primeiros anos do século passado pela nação, e que procurava se afirmar na produção de um país pacífico, acolhedor, sensual que, ancorado na ideia da mistura racial, absorvia o que de melhor havia dos povos brancos, indígenas e negros (Werneck, 2005).

O movimento social negro e da sociedade civil, as pesquisas acadêmicas e os intensos colóquios nacionais e internacionais, que se fortaleceram a partir dos meados do século XX, vêm desconstruindo essa ideologia e se colocando em prol do reconhecimento das profundas desigualdades que atravessam a sociedade brasileira. Cabe, ainda, apontar a importância da Reforma Sanitária (1980), que legitimou, no plano constitucional, a universalização do acesso à saúde, corporificado no Sistema Único de Saúde (SUS).

No campo da saúde, dados estatísticos e estudos demonstram essas desigualdades, o que levou à constituição de uma área específica de reflexão e intervenção que se denomina Saúde da População Negra. Nesse sentido, no de se reconhecer as desvantagens materiais e simbólicas sofridas pelos negros, é que:

[...] raça emerge não apenas como uma ferramenta analítica para tornar inteligíveis os mecanismos estruturais das desigualdades sociais, mas também como instrumento político para a superação das iniquidades históricas existentes no Brasil (Maio & Monteiro, 2005).

Políticas públicas com recorte racial no campo da saúde ganharam visibilidade no Brasil somente após a 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul (2001) (Maio e Monteiro, 2005). As especificidades da saúde desse grupo social puderam então ser ressaltadas, alcançando a saúde reprodutiva e a saúde da mulher negra.

Uma das demandas atendidas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso foi a da inclusão, em 1996, do quesito raça/cor nos formulários, nacionalmente padronizados, de Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração de Óbitos. E, ainda, a da proposta do Programa de Anemia Falciforme (PAF), que, até o momento, não se consolidou no país. A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, outras medidas foram tomadas, como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, nos níveis nacional, estadual e municipal. Porém, as ações são desenvolvidas de forma tímida e encontram obstáculos políticos, como na Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, em que, apesar de inúmeros e-mails e tentativas de agendamento por telefone, para reuniões com o tema da saúde da população negra no município, não fomos atendidos em nenhum momento. Também não existem dados de pesquisas, ações e avaliações de programas no site da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, apenas a listagem de uma série de documentos que são publicados pelo governo federal.

A despeito, então, da existência de políticas públicas que buscam diminuir as desigualdades na saúde, encontra-se uma série de obstáculos que impedem a sua concretização, e que dizem respeito à não neutralidade dessas mesmas políticas na área social. No caso da saúde, existe uma notória falta de investimento nessas políticas, seja econômico, seja de controle e fiscalização. Exemplo disso foi o desligamento, como forma de retaliação, do Comitê Técnico de Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde, em março de 2013, em razão do não cumprimento do acordo realizado sobre a monitoração e avaliação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que previu inserir, no Planejamento Estratégico do ministério, o desagregamento dos indicadores por raça/cor nos vinte indicadores do Índice de Desempenho do SUS.

As desigualdades expressas nos levantamentos estatísticos, os depoimentos de sujeitos que sofreram discriminações por parte de médicos e equipes de saúde, a falta de acesso aos serviços, o desvio de verbas que seriam destinadas ao campo da saúde da população negra, o desinteresse de gestores de saúde em capacitar e treinar a equipe sobre doenças que atingem de forma mais crucial população e sujeitos desse grupo, infelizmente são evidências do racismo institucional no sistema de saúde do país.

O preconceito racial é um fenômeno muito complexo, que, como coloca Munanga (2002), pode ser comparado a um iceberg, cuja parte visível corresponderia às manifestações do preconceito, tais como as práticas discriminatórias observadas por meio dos comportamentos sociais e individuais, e que podem ser explicadas pelas ferramentas metodológicas das ciências sociais e políticas. Por outro lado, existe uma parte submersa do iceberg que corresponde às consequências dos efeitos da discriminação na estrutura psíquica das pessoas.

As políticas de branqueamento (Bento, 2003) e as da meritocracia, que culpabilizam os sujeitos por sua situação social e legitimam relações de poder (Souza, 2009), vêm construindo, há séculos, estratégias para tentar desmerecer, desrespeitar e minar a capacidade de reação, mobilização e autoestima das pessoas negras.

A construção da identidade nacional foi transpassada pelas ideologias de mestiçagem e branqueamento. Quando a miscigenação, fenômeno biológico, adquiriu uma missão política, a de homogeneizar, biologicamente, a população brasileira, tornou-se ponto essencial para a construção da unificação da identidade nacional. A ideologia racial do branqueamento foi cunhada nesse contexto, pois se acreditava que assim seria formada uma nova raça brasileira, embranquecida fenotipicamente, apesar de mestiça genotipicamente. Em função disto, indígenas, negros e mestiços desapareceriam, o que seria vital para a construção do Brasil enquanto nação (Freyre, 1968; Leite, 1983; Schwartz, 1998). A imigração europeia, logo após a abolição da escravatura no país, deslocou a população negra para a periferia do mercado de trabalho. A retirada dos ex-escravizados das ruas e sua internação em asilos psiquiátricos ou seu encarceramento foram práticas que tentaram esconder e exterminar essa população (Bento, 2003). Outras estratégias consistiram na reprodução dessa ideologia por meio dos processos de socialização e de educação. O branqueamento, pois, forjado dos meados do século XIX ao início do século XX pela elite branca, era um ideal que toda a sociedade deveria querer e absorver, o de atribuir aos negros o desejo de se branquear a fim de adquirir os privilégios da branquitude (Bento, 2003).

É com Freyre (1950), a partir de Casa-grande & senzala, que uma virada acontece na questão da identidade nacional, momento em que a diversidade cultural e a mistura racial passam a ser positivadas, demonstrando a habilidade e a disposição da cultura brasileira “a articular e unir contrários”, instaurando-se, assim, o mito da democracia racial (Souza, 2009, p.37). O cruzamento inter-racial deve apagar os conflitos entre dominados e dominantes, e se o negro não consegue alcançar a posição e os privilégios dos brancos, é por sua própria incapacidade, pois o Brasil é um país de iguais. Essa ideologia meritocrática não considera os desiguais pontos de partida, o não proporcionar a todos as mesmas condições de competição, desde o nascimento (Ibid.). A ideologia do branqueamento e a da meritocracia, pois, andam juntas.

Para ser reconhecido, o negro tem de querer ser branco, negar sua negritude, pensar como o branco, possuir uma estética branca, que privilegia alguns padrões corporais em detrimento de outros. Sua invisibilidade alcança os espaços físicos e sociais, públicos e privados, uma vez que o negro fica constrangido de circular. Esses constrangimentos, muitas vezes, fazem surgir efeitos, observados nos silenciamentos diante das discriminações recebidas, no medo de reagir, nas falas muito comuns de se ouvir, em qualquer ambiente social, incluindo os grupos negros, de que “preto tem raiva de preto”. As constantes humilhações recebidas, seja nos territórios de acesso – ao trabalho, à educação, aos serviços de uma forma geral –, seja por terem de ouvir piadas racistas, por serem desprezados em lojas e shopping centers, e também por terem de confirmar que somos todos iguais, e, ainda, sentirem culpa e se responsabilizarem pelas agressões de que são alvos, podem retirar desses sujeitos a potência de ação, como afirma Sawaia (1999), para abrir frentes de luta.

A desigualdade social produz um intenso sofrimento psíquico, que aquela autora denomina de ético-político, e que afeta de forma desumana as subjetividades. Essa dor não tem a gênese nele, e sim em intersubjetividades construídas socialmente; ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta que impede a possibilidade da maioria apropriar-se das diferentes produções, seja material, simbólica e social. Essa negação é mediada por diferentes atravessamentos, seja de gênero, de etnia, de raça, de sexualidade, geracional, geográfica, de classe social, dentre outros.

Diante desse quadro temático é que uma pesquisa de iniciação científica foi realizada em um centro de saúde municipal localizado na cidade de Belo Horizonte, com o objetivo de levantar a percepção dos funcionários da equipe de saúde, e dos usuários do referido centro, sobre o preconceito como determinante da saúde, e sobre o conhecimento da anemia falciforme. Quanto aos profissionais de saúde, de forma mais específica, os objetivos foram: (a) conhecimento sobre a Lei nº 9.934, de 21 de junho de 2010, que trata da promoção da igualdade racial no município; (b) se é percebida a diferença no tratamento dado às pessoas negras no atendimento à saúde; (c) conhecimento sobre as doenças que mais atingem a população negra; (d) sobre de que forma o preconceito contra pessoas negras podem adoecê-las; (e) se a Secretaria Municipal de Saúde oferece capacitação e treinamento no campo da Saúde da População Negra; (f) conhecimento das Ações Afirmativas desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Saúde para alcançar a equidade em saúde e promover a igualdade racial no município.

No que concerne à investigação junto aos usuários do referido serviço de saúde, os objetivos foram: (a) o conhecimento sobre a anemia falciforme; (b) o entendimento dos usuários a respeito do preconceito, se ele pode ser nocivo e causar danos à saúde mental das pessoas que são alvos dele.

Informamos que o racismo, como determinante social da saúde, é reconhecido pelo governo federal por meio do documento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do governo federal, de 2011, que demonstra a persistência da raça ou do racismo como fator importante na produção de desigualdades no campo da saúde. No entanto, especificamente quanto aos seus impactos na saúde mental – estresse, depressão, ansiedade, ataques de pânico, angústia, distúrbios de conduta ou do pensamento –, não existem estudos aprofundados sobre o tema (Silva & Miranda, 2001; Silva, 2004).

Desse modo, quanto ao quesito “o preconceito como fator de adoecimento das pessoas”, que integrou os questionários aplicados aos funcionários e usuários do centro de saúde investigado, esclarecemos que se refere à percepção dos mesmos de como o preconceito pode afetar a saúde mental das pessoas que são vítimas dele, podendo lhes causar sofrimentos psíquicos e alterações no comportamento, no sentido de Silva (2004, p.170):

Ao internalizar atributos negativos, que lhe são imputados, instala-se o sentimento de inferioridade, causando constrangimentos na relação com seus pares, e favorecendo o aparecimento de comportamentos de isolamento, entendidos, frequentemente, como timidez ou agressividade. Essa pressão emocional pode ser percebida ou lida como perturbação do pensamento e do comportamento. Essas atitudes expressam a ambivalência do excluído em relação ao mundo hostil da elite dominante.

 

Retratos da desigualdade no campo da Saúde da População Negra

Serão apresentados a seguir alguns dados analisados por Paixão et tal (2009-2010), no Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (Paixão, et al, 2009-2010), relativos ao último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no período de 2009-2010 e que foram considerados de relevância para o presente trabalho, no sentido de desenhar o retrato das desigualdades em saúde no país.1 No presente artigo, denominaremos de população negra a soma de pessoas pretas e pardas, termos utilizados pelas pesquisas no IBGE.

É importante de início salientar que o SUS tem capital centralidade para a população negra, comparativamente aos brancos, em todo o Brasil, uma vez que utiliza esses serviços de forma majoritária. Chama atenção a região sudeste – do total dos atendimentos, 62,3% das pessoas que procuram pelos serviços do SUS são negras, e 41,6% são brancas. Essa relevância proporcional do SUS para pessoas pretas e pardas, no cenário nacional, assim também se expressa em 2008 – 55,2 % contra 44,1%, respectivamente, o que demonstra a dependência da população negra dos serviços públicos de saúde. Em todas as cinco grandes regiões do país, dentre os que foram atendidos e/ou internados pelo sistema de saúde em 2008, o percentual de pretos e pardos foi maior que o de brancos. Também foi assim no acesso ao tratamento odontológico; considerando faixa etária e sexo, o percentual de pessoas que nunca procurou este tipo de tratamento, em todas as regiões do Brasil, afeta de forma preponderante a população preta e parda.

O acesso aos planos de saúde particulares também espelham as desigualdades: no seu conjunto, da população brasileira que afirmou ter um convênio particular (25,9% da população), 34, 9% eram de pessoas brancas e 17,1%, de pessoas negras, proporcionalmente, menos da metade.

Quanto aos padrões de morbidade da população brasileira, além dos dados do PNAD, outra importante fonte de informação é o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), implantado a partir de 2003, pelo Ministério da Saúde por meio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). O Sinan coleta dados das doenças infectocontagiosas, e por esse caráter, de forma compulsória. Dos casos cadastrados em 2008, destacam-se duas enfermidades que acometem pessoas pobres, pretas e pardas: a tuberculose e a hanseníase, que além de serem carregadas de estigmas, levam à morte milhares de pessoas.

No caso da Aids, os indicadores sinalizam os diferentes graus de letalidade da doença considerando os grupos de cor, apontando que o número de óbitos é maior entre homens e mulheres pretas e pardas que entre homens e mulheres brancas. Existem também evidências de que as condições sociais mais agravadas e a baixa escolaridade são prevalentes nos grupos de pretos e pardos, diagnosticados com a doença.

No acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, os dados causam indignação. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) de 2006, dos partos realizados nos últimos cinco anos, segundo a cor ou raça da mãe, das gestantes brancas, 20,4% puderam ficar com acompanhante no quarto, contra 14,3% das gestantes pretas e pardas. Passaram por lavagem intestinal, 23,6% das gestantes brancas e 19,4% das gestantes pretas e pardas. Fizeram exame ginecológico até dois meses após o parto, 45% das puérperas brancas e 34,7% das pretas e pardas.

Outro dado bastante grave é o que se refere à mortalidade de bebês e crianças pretas e pardas. Em todo o Brasil, no ano de 2007, dos bebês que foram a óbito antes de um ano de idade, 43, 6% eram daquele grupo e 39,3% eram brancos. Dos que faleceram antes da primeira semana de vida, 45,3% eram pretos e pardos e 37,7% eram brancos. Considerando a causa da mortalidade entre as crianças com até cinco anos de idade, observa-se que as crianças pretas e pardas responderam por: 55,6 % das que vieram a falecer por diarreia aguda (27,2% das crianças brancas); 49% das que vieram a falecer por infecção respiratória aguda (37,5% das crianças brancas); 51,7% das que morreram por desnutrição (28,9% das crianças brancas); 54,4% das que vieram a falecer por causa desconhecida ou falta de assistência médica (24,7% das crianças brancas).

É surpreendente a situação do estado civil das mães: das mães de filhos de cor ou raça branca, 44,9% eram casadas ou viviam em regime de união consensual. Entre as parturientes de filhos pretos e pardos, esse percentual foi de 27,6%. As mães solteiras de filhos brancos representaram 50,9% do grupo de genitoras e as mães de filhos pretos e pardos, 70,1% – 19,2 pontos percentuais acima.

Em outros quesitos, como realização de exame pré-natal, escolaridade das mães, condições de gestação e realização dos partos e puerpério, mortalidade materna, realização de exames preventivos como o papanicolau e a mamografia, os indicadores do PNAD apresentam desvantagens em todos esses itens com relação aos grupos de pretos e pardos. Isto significa que uma série de doenças decorrentes da falta de diagnóstico precoce, como o câncer, também é muito mais expressiva na população negra.

Outras duas enfermidades, a hipertensão (HA) e a diabetes mellitus tipos 1 e 2, são identificadas como tendo uma significativa incidência naquela população, e que pode fugir às determinações das condições sociais e de vida dessa população. No entanto, não existem pesquisas suficientes que comprovem essas evidências. A primeira se refere ao aumento da pressão arterial e a segunda se dá pelo excesso de glicose nos vasos sanguíneos devido à deficiência crônica da insulina.

Os agravos na saúde da população negra são inumeráveis, e diante disto, na busca por um quadro sintético, pode-se, então, apresentar a seguinte nosologia das populações afro-brasileiras: 1. Doenças causadas por condições adquiridas, derivadas das condições socioeconômicas e educacionais desfavoráveis e de intensa pressão social: alcoolismo; toxicomania; desnutrição; mortalidade infantil; abortos sépticos; DST/Aids; transtornos mentais. 2. Doenças cuja evolução é agravada ou o tratamento é dificultado pelas condições ambientais indicadas: hipertensão arterial; câncer; insuficiência renal crônica; miomas. 3. Processos de enfermidade em razão das condições fisiológicas que sofrem interferências das condições ambientais de desigualdades: crescimento; gravidez; parto e envelhecimento (Saúde da População Negra, 2001, p. 91).

Por outro lado, uma outra enfermidade, muitas vezes diagnosticada erroneamente como diabetes, que tem sua prevalência no grupo de pretos e pardos, é a anemia falciforme, que receberá um enfoque específico.

 

A anemia falciforme

A anemia falciforme é uma doença genética que, possivelmente, surgiu no continente africano e foi trazida para o Brasil pelos povos que foram escravizados pelo sistema de colonização europeu. Ela é uma das doenças hereditárias, de caráter incurável, mais comuns no Brasil e se manifesta desde o nascimento da criança, configurando-se como uma relevante questão para a saúde pública no Brasil.

Ela se configura por uma série de desordens genéticas cuja característica principal é a herança do gene da hemoglobina S (gene beta S). Este gene determina a presença da hemoglobina variante S nas hemácias (HbS). Esta hemoglobina faz com que, em determinadas circunstâncias, as hemácias adquiram a forma de foice (daí o nome falciforme). Em certas condições – como baixa tensão de oxigênio e baixas temperaturas –, as hemácias falciformes tornam-se rígidas, e se aderem à parede dos vasos sanguíneos, obstruindo-os e dificultando a circulação do sangue. A forma mais comum e grave da doença é a homozigótica SS, que é denominada anemia falciforme ou depranocitose (Hb SS). Existem outras variações da doença que possuem manifestações clínicas semelhantes e a mesma gravidade. O Ministério da Saúde estima que mais de 2 milhões de pessoas são portadoras desse gene; mais de 8 mil pessoas mostram-se afetadas pelas outras variações do gene, e aponta de 700 a 1.000 os casos anuais de doença falciforme. (Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico – Nupad, 2013).

A eletroforese de hemoglobina é o exame laboratorial específico para o diagnóstico da anemia falciforme; mas a presença da hemoglobina S pode ser detectada precocemente por meio do Teste do Pezinho, no quinto dia de vida do recém-nascido, e quanto mais cedo a doença for diagnosticada, mais chance de sobrevivência tem a criança. São várias as manifestações clínicas: (a) crises álgicas (dores agudas) desencadeadas por frio, exercícios físicos, infecções, febres, desidratação); (b) síndrome de mão e pé (tem início por volta dos quatro meses de idade, com inchaços, vermelhidão e dor que afetam os pequenos ossos das mãos e dos pés; (c) dor visceral, manifestada pela síndrome torácica aguda, e dor abdominal (infarto intestinal); (d) infecções, que constituem a principal causa de óbitos, e febres – infecções como pneumonias e meningites, e infecções nos rins e ossos. Estas infecções acontecem até os 5 anos de idade; (e) crise de sequestração aguda: aumento do baço devido ao grande volume de sangue; (f) acidente vascular cerebral – as crianças são as mais afetadas, com incidência de 5% a 10% até os 15 anos de idade; (g) anemia; (h) priapismo; (i) ulcerações – infecções agudas na perna.

Em Minas Gerais, o Nupad, órgão complementar da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), situado em Belo Horizonte e cadastrado pelo Ministério da Saúde como Serviço de Referência em Triagem Neonatal do Estado de MG, realiza o diagnóstico e controle da doença em todo o estado. Desenvolve ainda pesquisas e programas de extensão e apoio à comunidade por meio do Centro de Educação e Apoio Social (Ceaps). O Ceaps desenvolve ações em interação com a Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia de Belo Horizonte e Região Metropolitana (Dreminas).

Segundo dados da Dreminas, é alarmante a expectativa de vida das pessoas que sofrem dessa doença, sendo hoje de 39 anos em média. Em Minas Gerais, das 6.200 pessoas associadas da Dreminas, 95% são negras e 98% são beneficiárias do Bolsa Família.

As mulheres que portam a doença falciforme possuem altíssimo risco de morte na gravidez, precisando de tratamentos especializados e constante acompanhamento em todo o período da gestação. Aquelas que moram fora da cidade de Belo Horizonte, precisam ser levadas para a capital onde o tratamento é especializado. No entanto, isso significa que ela deverá ter um local para morar e ter como se sustentar nesse período; e, ainda, que ficará longe da família.

O Nupad, por meio do Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias (Cehmob) e com o apoio do Ministério da Saúde, desenvolve o Projeto Aninha, que tem o objetivo de atender integralmente as gestantes com doença falciforme, acompanhando a evolução da gestação, da doença e oferecendo apoio social.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa quanti-qualitativa, que fez uso da entrevista semiestruturada. A referida abordagem é própria do campo das ciências humanas e sociais, uma vez que o seu objeto de estudo é muito complexo, pois envolve pessoas, suas subjetividades, e todo o contexto histórico, social, político e cultural no qual estão incluídas. (Minayo, 1993; Barros & Lehfeld, 2003; May, 2004). O objetivo na escolha desse método foi o de dar qualidade aos dados coletados, inserindo-os nos contextos em que estão mergulhados, chamando atenção para o fato de que eles corroboram os estudos que apontam o racismo no país, e suas estratégias a fim da manutenção do mesmo com grave prejuízo para a população negra.

O questionário contou com perguntas referentes aos objetivos da pesquisa, acima citados. Os dados levantados foram colocados em diálogo com os autores apresentados neste artigo e seus pontos de vista sobre as questões raciais no país.

A pesquisa foi realizada em um centro de saúde pública, no período de agosto de 2013 a dezembro de 2013, situado na cidade de Belo Horizonte, contando com aproximadamente setenta funcionários.

Quanto à entrevista com os funcionários do centro de saúde, foram distribuídos quarenta questionários, mas só foram devolvidos quinze. O número de questionários distribuídos foi menor que o número de funcionários, isto porque a entrega dos mesmos ficou a cargo da própria gestora do centro de saúde, que nos informou, posteriormente, que não foi possível distribuir todos, pois havia setores em que o interrompimento das atividades iria prejudicar o andamento dos serviços.

Os resultados da pesquisa, pois, não podem ser generalizados, uma vez que não alcançou todos os funcionários do centro da saúde; configurando-se como um estudo exploratório, exigindo pesquisas mais amplas.

Para os usuários dos serviços de saúde, foram distribuídos e recolhidos cem questionários. Ambos os questionários foram repartidos aleatoriamente, sem distinção de sexo, cor ou idade. Com referência aos usuários que não sabiam ler, estes foram auxiliados pelo entrevistador. Aconteceu de muitos sujeitos entrevistados se interessarem pelo tema da pesquisa e nesses momentos houve a oportunidade de essas pessoas conversarem mais livremente sobre o tema.

Os questionários consistiram em perguntas de múltipla escolha e com um espaço que o informante poderia utilizar para comentar suas respostas. Consistiram também em questões dissertativas acerca do conhecimento sobre a anemia falciforme e sobre de que forma o preconceito racial pode afetar a saúde da população negra, no caso dos usuários.

As primeiras perguntas eram de dados pessoais, como escolaridade, profissão, sexo e autodenominação da cor, tendo, este quesito, as opções: preto, pardo, branco e outros. A resposta para esta opção era essencial, pois havia uma pergunta exclusiva às pessoas que se denominassem pretas ou pardas, e que se referia à anemia falciforme.

Informamos que esta pesquisa faz parte de um quadro mais amplo de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas nesse campo temático, e que ela foi submetida ao Conselho de Ética da instituição educacional na qual ela está inserida, e aprovada, conforme Parecer ETIC 0587.0.203.000-10. Todas as entrevistas foram feitas mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Apresentação e Análise dos Resultados

A pesquisa com os empregados do centro de saúde revelou os seguintes dados: 43% se declararam da cor preta; 14%, da cor negra; 14%, da cor parda e 29%, da cor branca, com um total, portanto, de 71% de pessoas negras.

Com referência ao conhecimento sobre a Lei nº 9.934, de 21 de junho de 2010, que trata da promoção da igualdade racial no município, é possível verificar que a maioria dos entrevistados, 71%, não conhece a Lei 9.934, de 21 de junho de 2010, e dos 29% que afirmaram conhecê-la, 50% se declararam da cor preta e os 50% restantes se declararam da cor parda. Quanto à existência do racismo no país, a maior parte dos profissionais, 86%, afirmou existir racismo no Brasil, e os 14% restantes acreditam que não, sendo que 100% desses se declararam da cor branca.

Se é percebida a diferença no tratamento dado às pessoas negras no atendimento à saúde, assim como na questão anterior, a maioria dos profissionais, 86%, respondeu que há diferença no atendimento às pessoas negras, enquanto 14% acreditam que não há diferenciação. Esses dados reforçam a urgência da aplicação das leis que incluem o racismo e a saúde da população negra como temas para a capacitação nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde. Já no que se refere ao conhecimento sobre as doenças que mais atingem a população negra, 57% responderam que não saberiam informar, e 43% responderam conhecer; dos que responderam afirmativamente, 60% conhecem a anemia falciforme e 40%, a hipertensão arterial, como prevalentes na população negra. É ainda interessante analisar que dentre os profissionais que responderam não saber informar quais doenças atingem mais a população negra, 75% se declararam de cor preta, negra ou parda, e 25%, de cor branca, e ainda, 50% são profissionais agentes de saúde ou auxiliares de enfermagem.

Sobre de que forma o preconceito contra pessoas negras pode afetar a saúde mental das pessoas, 75% dos profissionais não responderam a essa questão; enquanto 12,5% citaram o estresse, e outros 12,5%, a depressão como forma de adoecimento.

Quanto à capacitação e ao treinamento no campo da Saúde da População Negra, 86% dos entrevistados disseram que não têm informação sobre esse tipo de treinamento, e no que concerne ao conhecimento sobre as Ações Afirmativas desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Saúde, para alcançar a equidade em saúde e promover a igualdade racial no município, 86% dos profissionais disseram desconhecer essas ações, e os 14% restantes afirmaram conhecer políticas como os debates no Conselho Municipal de Saúde (50%) e sobre o movimento de mulheres negras (50%).

Na questão sobre o conhecimento do quesito cor na produção de informações epidemiológicas para definição de prioridades e tomada de decisão quanto à saúde da população negra, 57% responderam não conhecer; 14% disseram ter esse conhecimento; e 29% não responderam. Os instrumentos de avaliação do Programa de Anemia Falciforme (PAF), na rede de serviços do município, são conhecidos por 12% dos profissionais, sendo que, destes profissionais, 100% são enfermeiros ou técnicos em enfermagem; 13% afirmaram não existir tais instrumentos de avaliação na rede e 25%, que não há divulgação dos mesmos; 50% dos profissionais não responderam.

Sobre que mudanças no país e na saúde o reconhecimento do racismo pode trazer, 29% dos profissionais afirmaram que deve haver tratamento específico para a população negra; 14% acreditam que as mudanças devem ocorrer por meio de maior divulgação e conscientização da população; outros 14% afirmaram que deve haver respeito da população como um todo e 43% não responderam.

Os dados levantados, apesar da tímida devolução dos questionários aplicados, apresentam uma situação que reafirma a condição de invisibilidade e descaso com a Saúde da População Negra, e que vem sendo apontada por estudiosos do tema (Oliveira, 2001; Werneck, 2005; Maio e Monteiro, 2005; Hasenbalg, 2005; Paixão, 2010, dentre outros) e por dados estatísticos.

O desconhecimento da Lei nº 9.934, de 21de junho de 2010, que trata da promoção da igualdade racial no município, o desconhecimento sobre as doenças que mais atingem a população negra e sobre o quesito cor na produção de informações epidemiológicas para definição de prioridades e tomada de decisão, a falta de interesse do município na capacitação dos funcionários de saúde, convocam o racismo institucional para interpretar essa realidade na saúde pública.

É inconcebível que, sendo a população negra a grande demandante dos serviços do SUS, exista essa realidade. Apesar de a maioria dos entrevistados acreditar que existe o racismo no país, que as pessoas, em razão da cor, recebem um tratamento desqualificado, há uma paralisia no sentido de propor mudanças.

Podemos observar, a partir desses resultados, a eficácia da articulação das ideologias da democracia racial e do branqueamento atuando no campo da saúde, desde dois eixos: por um lado, a política universal de acesso à saúde por intermédio do SUS, e por outro, a prática que vem se realizando por meio da desigualdade, da discriminação e do descaso para com a saúde da população negra. A ideologia do branqueamento impede que as pessoas considerem os aspectos raciais em termos étnicos e culturais, a tendência é justificar as desigualdades a partir das desvantagens socioeconômicas que atingem aquela população. Ela impede também, que as pessoas se vejam iguais nas diferenças, uma vez que a diferença não aparece, seja em razão do receio do conflito, como colocou Souza (2009), seja porque ela é justificada pela ideologia da meritocracia ou pelo legado da escravidão, a que os africanos foram submetidos (Carone & Silva, 2003).

Em uma conversa informal, com uma funcionária do Nupad, ela relatou que foi oferecido, para a Secretaria Municipal de Saúde e para todos os polos de atendimento no município de Belo Horizonte, o treinamento sobre a anemia falciforme, e que não chegaram a três, as demandas por esse treinamento. Cabe ainda acrescentar que, no centro de saúde onde se realizou esta pesquisa, foi proposto, em diferentes momentos, o treinamento sobre doença falciforme; no entanto, apesar de chegar a ser informado o quantitativo de pessoas que fariam o treinamento, este não foi efetivado, pois não marcaram as datas em que se poderia ministrá-lo.

Já no que se refere à pesquisa com os usuários do serviço de saúde, das cem pessoas que foram entrevistadas, a maioria se autodenominou parda, 42% das pessoas. Ao passo que: 30% se declararam brancas; 17%, pretas; e 11% marcaram “outro” (variações da cor preta e parda – moreno claro, moreno). Na soma, então, de pretos e pardos, e das variações dessas cores, 70% dos entrevistados eram negros. Esse dado aponta a presença significativa dessa camada social como usuária do referido centro de saúde.

Sobre a existência do preconceito racial no país, 81% das pessoas responderam “sim”, 12% responderam “não” e 7% das pessoas não responderam.

Das 81 pessoas que responderam “sim”, a maioria delas, 30,8 %, respondeu que o preconceito acontece por meio do tratamento diferenciado dado às pessoas negras em razão de sua cor. 19,5 % disseram que o preconceito acontece pela associação da cor com a classe social baixa. Outros 19,5% também disseram que há preconceito racial nas oportunidades de emprego. Já 8,4% dos entrevistados responderam que o preconceito acontece de maneira geral e 4,7%, que o preconceito racial é velado no Brasil. Outros 4,7% opinaram que ele se dá por via de xingamentos. 3,8% não responderam e 3,6%, disseram não saber. Outros 4%, que os próprios negros se discriminam e, por último, 1%, que as bolsas gratuitas nas universidades significam preconceito. Assim, do total de pessoas que afirmou que o preconceito existe no país, a grande maioria, 92,6%, localiza o preconceito como atuando em diferentes áreas do seu cotidiano, associando-o ou à cor da pele ou ao pertencimento a uma classe social desprivilegiada, ou às dificuldades no mercado de trabalho ou aos xingamentos e piadas racistas. É importante destacar que, apesar de poucas pessoas terem assinalado, a ideologia do branqueamento e a do mérito acabam por colocar as pessoas umas contra as outras, desmerecendo as identidades negras e julgando as ações afirmativas, como as cotas nas universidades, sem o valor positivo do acesso e da inclusão, como política pública de reparação de um dano provocado nesses grupos sociais. Por outro lado, foi bastante significativa a consciência da desigualdade por cor ou raça da grande maioria dos usuários do centro de saúde investigado.

A outra questão se referiu ao adoecimento das pessoas em razão do racismo. Novamente, das pessoas que responderam haver preconceito racial no país, em sua grande maioria, 37,4% afirmaram que o adoecimento vem por meio da depressão e de problemas psicológicos. 18,4% citaram a baixa autoestima que o racismo provoca, pelo lugar de inferioridade que são colocadas no tratamento social. 4,9% dos entrevistados acreditam que o racismo não adoece as pessoas e 7% não sabem ou não responderam. Alguns entrevistados comentaram a questão dizendo que o adoecimento psíquico é causado pela exclusão, pela intolerância e por xingamentos, ou pelo julgamento dos outros. E também responderam: “Na verdade, todos somos iguais, ninguém tem o direito de agir dessa forma” e “Acho que ninguém pediu pra nascer daquela cor, mas quando se mexe com a cor da pessoa, ela fica muito ofendida e acaba adoecendo”.

A questão direcionada ao preconceito recebido nos serviços de saúde pública, dos considerados negros (70 pessoas), 24,3% responderam “sim”, que já foram vítimas de discriminação nos centros de saúde pública. Poucos foram os que descreveram a situação vivenciada, mas alguns se colocaram: “Uma pessoa que trabalha no posto de saúde se sente na autoridade de tratar as pessoas como bem quer.” E, ainda: “Chegar malvestido no posto de saúde, é ser mal atendido”, “Na minha opinião, o Brasil em geral já vem com esse preconceito. Acho que ações educativas ajudaria, porque até os próprios negros têm preconceito.” E, por último, uma outra pessoa afirmou que o preconceito que percebe nos centros de saúde é consequência das questões econômicas. Outros comentários foram colocados na folha de resposta, por parte dos sujeitos que definiram sua cor como “outra”, alegando que o mau atendimento se deve “Porque algumas pessoas não têm condição de pagar” e “Porque eles acham por cima das pessoas ou eles pisam nas pessoas”.

A grande maioria, 64,2%, afirmou que não foi discriminada nos centros de saúde, e 11,41% não responderam ou nunca prestaram atenção nisso. Quanto as que se declararam pretas (17 pessoas), onze delas afirmaram que já foram mal atendidas em centros de saúde em razão da cor. O questionário não especificou qual centro de saúde, então não foi possível analisar a que espaço de saúde se referiam. Acredita-se que esse percentual positivo seja em relação ao centro de saúde pesquisado, uma vez que, pela observação de campo, apesar de pequena, a equipe de profissionais do referido centro é bastante atenciosa com todas as pessoas que lá buscam atendimento, e o tempo de espera para as consultas e os exames é curto.

Por outro lado, o sofrimento ético-político, as estratégias de branqueamento e de mérito fazem com que os sujeitos que experienciam a exclusão, as humilhações cotidianas, sintam vergonha de assumir a posição de subalternidade em que o sistema opressor racista os coloca e trazem, juntamente para si, a culpa por viver tal situação. Aponta Sawaia (1999) que as emoções são fenômenos históricos utilizados como estratégia de controle e coerção social, que ao fixar sentimentos particularistas, como a vergonha e culpa, ambas individuais, reproduzem a alienação dos sentimentos.

Em contrapartida, as entrevistas demonstraram que, em grande parte, as pessoas estão conscientes da existência do racismo, mas também a maioria a vincula à questão de classe social. Desconsiderar o preconceito de cor e raça como fenômeno cultural, dificulta o debate sobre o racismo no país, uma vez que considerá-lo apenas como sendo de classe social é aceitar sem crítica a ideologia do sucesso e da boa vida por méritos próprios, por meio do esforço e da disciplina. Essa ideologia, em um aspecto, como coloca Souza (2009), ignora os privilégios que são ofertados para as classes sociais mais favorecidas economicamente, e branca, descartando os inúmeros obstáculos e ideologias de assujeitamento que são colocados para as minorias sociais. Acrescenta-se, ainda, que a invisibilidade do racismo provoca esse tipo de comportamento, ou seja, faz com que as pessoas, independentemente da cor, não vejam com clareza como a questão racial afeta as relações sociais e o acesso aos serviços públicos.

Em outro aspecto, podemos afirmar que o acesso a patamares econômicos mais elevados não acaba com o racismo de cor. Uma pessoa negra bem-sucedida levantará suspeitas, e mais ainda se ela for mulher ou homossexual.

No que se refere ao conhecimento dos usuários sobre a anemia falciforme, do total de pessoas entrevistadas (100), 65% nunca ouviu falar da doença falciforme, 28% disse que já ouviu falar e 7% das pessoas não responderam.

O desconhecimento sobre uma doença que reduz a expectativa de vida para 45 anos e leva à morte crianças e adolescentes, evidencia que o centro de saúde, onde a pesquisa foi realizada, pode ser utilizado como amostra da realidade da saúde da população negra no país. É importante destacar que este centro de saúde se localiza na capital de um estado da região sudeste, próximo ao centro da cidade.

Durante as entrevistas, os pesquisadores relataram que um médico e vários funcionários da equipe de saúde pontuaram a necessidade do treinamento e da divulgação da doença falciforme entre os usuários do serviço. A pesquisa realizada com a equipe apontou a falta de informação sobre a doença, o que se coloca como sendo uma situação impensável para o atendimento a uma população que é dependente do SUS e que, em sua grande maioria, só tem esse serviço como acesso ao tratamento de sua saúde.

 

Considerações Finais

Pode-se afirmar que o Sistema Único de Saúde (SUS) propôs e conseguiu avanços em termos de políticas públicas para esta área no Brasil, destacando-se a vinculação dessas políticas com a seguridade social e a universalização da cobertura ao atendimento médico-hospitalar, e isto se traduziu de forma positiva para aquela população. Essa positividade se faz espelhar no aumento da procura do atendimento dessa população pelo SUS. No entanto, isto não significa igualdade de acesso nem qualidade de atendimento, como foi apresentado acima, nos diferentes quesitos dos retratos das desigualdades no campo da Saúde da População Negra.

Finalizando, foi nossa intenção dar visibilidade a uma questão muito grave e que vem sendo negligenciada, seja pelas instituições públicas de saúde e/ou em suas diferentes esferas – governos federal, estadual e municipal, seja pelos gestores nesses mesmos níveis, seja pelas pessoas que trabalham nos diferentes centros de saúde. O racismo no Brasil é invisível, assim como as doenças que afetam de forma mais preponderante a população negra. Essa invisibilidade acaba levando muitas pessoas à morte prematura e/ou a uma péssima qualidade de vida, incluindo aqui crianças recém-nascidas, jovens, adultos e pessoas idosas.

Foi também nossa intenção contribuir com as pesquisas em psicologia social nesse campo, uma vez que existe um vazio nessa área, pois não se conhece com profundidade as consequências do racismo nas subjetividades das pessoas, nem de que modo ele pode atuar como agente patológico na saúde. Acredita-se que essa disciplina tem muito a contribuir com a promoção da justiça e da igualdade social.

 

Referências

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Recebido em 17/08/2015

Aceito em: 13/09/2016

 

1 Esse relatório utiliza como banco de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e as Amostras Demográficas de 1980 a 2000, ambas organizadas pelo IBGE. E, ainda, dados do Ministério da Saúde/DATASUS/SINASC, do Inep/MEC, do Ministério de Combate à Fome /CadÚnico e de indicadores relacionados à base de informações oficiais, mas que não foram sistematizados.

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