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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.2 Belo Horizonte Dec. 2017

 

ARTIGO

 

Contratransferencia: surgimento e evolução do conceito em tearicos das relaçoes objetais

 

Alberto L Rodrigues Timo1; Paulo de Carvalho Ribeiro2

1 Universidade Federal de Minas Gerais; albertolrtimo@gmail.com

2 Universidade Federal de Minas Gerais; icaro.bhz@terra.com.br

 

RESUMO

O conceito de contratransferencia é de fundamental importância para a teoria a prática clínica psicanalíticas, mas, apesar disso, é tema controverso no conjunto das teorias psicanalíticas. Este trabalho realiza uma revisao de literatura, a fim de demarcar o lugar da contratransferencia na histaria da psicanálise. Partindo das consideraçoes de Freud e Melanie Klein, chegamos as obras de Paula Heiman, Heinrich Racker, Donald Winnicott e Hanna Segal. Concluímos que o uso indiscriminado da contratransferencia como instrumento de compreensao da situação analítica determina riscos de natureza ética e técnica inadmissíveis. No entanto, é impossível negar a existencia dos afetos do analista como componentes do setting. Portanto, considerar a contratransferencia como inerente ao processo analítico minimiza o risco de negligenciar a interação entre paciente e analista como uma relação intersubjetiva em que ambos sao afetados, na qual uma escuta ancorada na técnica nao descaracteriza a existencia concomitante de uma postura acolhedora e empática.

Palavras-chave: Psicanálise; Contratransferencia; Transferencia.

 


ABSTRACT

Even being a fundamental concept to theory and clinical practice in psychoanalysis, countertransference is a controversial issue in most psychoanalytic theories. The present research conducts a literature review on countertransference in order to situate it within history of psychoanalysis. The development of this work consisted on examining the work of some authors whose productions make important contributions to the field of countertransference, such as Paula Heiman, Heinrich Racker, Donald Winnicott and Hanna Segal. The objective of this work is to elucidate the manner in which the feelings of the analyst may manifest in their clinical performance, sometimes working as hindrance to the technique, other times serving as tools of research on the patient's unconscious. We have also demonstrated the impossible existence of an analyst free from conceptions, affections, and desires, proposing that instead of being barriers to therapeutic process, they can work as important instruments.

Keywords: Psychoanalysis; Countertransference; Transference.

 

 

Introdução

É possível imaginar um analista que jamais tenha se sentido sexualmente interessado pelas pessoas que frequentam seu diva. Também é plausível que pensemos em um analista que nunca sinta sono ou tédio ao ouvir o relato enfadonho de um paciente. Do mesmo modo, é possível imaginar que um analista capaz de lidar adequadamente com suas emoçoes nao se deixe contaminar pelo sofrimento ao acompanhar um paciente que atravessa um período difícil de sua vida. Contudo, se podemos conceber a existencia de um analista assim, praximo do que seria a condição ideal de tal profissional, devemos admitir também e, certamente com mais razao, a existencia de circunstâncias em que o analista se afasta muito dessas condiçoes ideais. É preciso admitir, portanto, que o analista experimente desejo sexual dentro da situação do atendimento, que sinta sono, que se enraiveça, que se sinta ultrajado, que tenha sentimentos muito mais difusos e difíceis de descrever, tais como medo indefinido, mal-estar físico e que se veja inclusive emocionado a ponto de chorar, ou tomado de alegria a ponto de gargalhar. Mas, por que condiçoes como essas, que alguns analistas poderiam considerar desastrosas do ponto de vista da técnica e muito indesejáveis do ponto de vista da ética, podem acometer o analista e se manifestar a sua revelia? O que poderia explicar a presença de todas essas reaçoes num analista durante seus atendimentos?

Nao nos apressemos em qualificar como despreparado o psicanalista que se depara com essas vicissitudes da prática clínica e tentemos partir da resposta mais simples e abvia: essas reaçoes supostamente indesejáveis apenas mostram que ser analista nao assegura a ninguém a possibilidade de deixar de ser humano e, muitas vezes, demasiadamente humano.

Na situação de atendimento clínico, o paciente tende a recriar, em sua relação com o terapeuta, o mesmo tipo de relação na qual ele se constituiu. A essa tentativa que o paciente faz de reeditar as mesmas relaçoes experimentadas ao longo da vida na cena analítica, Freud (1912/2010) deu o nome de transferencia e assim definiu os motivos de sua aparição necessária no tratamento:

Tenhamos presente que todo ser humano, pela ação conjunta de sua disposição inata e de influencias experimentadas na infância, adquire um certo modo característico de conduzir sua vida amorosa, isto é, as condiçoes que estabelece para o amor, os instintos que satisfaz entao, os objetivos que se coloca. Isso resulta, por assim dizer, num cliche (ou vários), que no curso da vida é regularmente repetido, novamente impresso, na medida em que circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos acessíveis o permitem, e que sem devida nao é inteiramente imutável diante das impressoes recentes. (p. 134-135)

De imediato, notemos que, para Freud, a constituição psíquica é o que, necessariamente, produz a transferencia, essa repetição de um modo de amar. Assim, temos uma concepção da relação analítica que se baseia, por parte do paciente, na tentativa de reviver os modos pelos quais se constituiu. E por parte do analista, é preciso reconhecer que ele também é marcado pela presença dos restos de relação que o fundaram, seus praprios cliches amorosos que forçam a repetição ao longo de sua vida. É razoável imaginar que, na relação entre estas duas pessoas, ambas se influenciam mutuamente, e é esperado que o analista tome uma posição frente a própria subjetividade, reconhecendo que alguns de seus conflitos sao atualizados naquela relação. Mas já nao é razoável supor que o analista possa evitar, na situação de atendimento, o retorno de seus praprios conflitos, dos restos de relação que o habitam. A partir de agora, quando nos referirmos aquilo que surge no analista como resposta psíquica a relação com o paciente, usaremos o termo contratransferencia.

Apesar de ser um conceito relevante para a prática clínica em psicanálise, a contratransferencia é um assunto controverso no conjunto das teorias psicanalíticas. Suas definiçoes nao sao bem delimitadas e do ponto de vista da técnica, as orientaçoes quanto as possibilidades de ação do analista também estao longe de algum consenso (Roudinesco & Plon, 1998; Laplanche & Pontalis, 2001). Por isso, estudos sistemáticos sobre o tema se fazem necessários. Estudos que, como este, desenvolvam uma análise comparativa das definiçoes do conceito, como também um levantamento das dificuldades e possibilidades técnicas que o manejo da contratransferencia pode trazer para o analista.

A revisao bibliográfica conceitual nos permite verificar a pertinencia da formulação do conceito de contratransferencia, avaliando-o desde sua origem no pensamento freudiano e seus desdobramentos propostos por alguns dos principais autores que se debruçaram sobre o tema ao longo dos anos.

 

 

A contratransferencia na teoria psicanalítica

A realização de uma revisao bibliográfica do assunto neste trabalho tem dois objetivos principais. O primeiro é fomentar a busca de resposta as principais perguntas que surgem quando se aborda o conceito em questao e que estao relacionadas ao fenômeno clínico correspondente. O segundo objetivo é aprofundar a investigação do conceito em um grupo restrito de autores, a saber, Paula Heimann (1950; 1959), Heinrich Racker (1960), Donald Winnicott (1947; 1960) e Hanna Segal (1982), visando a evidenciar o fato de que esse nao é um conceito negligenciado no campo psicanalítico, mas, muito pelo contrário, significativamente trabalhado ao longo de décadas de discussao. Com isso, nossa expectativa é que o conceito de contratransferencia possa ser definido a partir de perguntas que nortearao nossa busca: O que é contratransferencia? De que formas ela aparece na clínica psicanalítica? Quais os fatores determinantes de sua aparição? E, talvez a pergunta mais importante: que destinos o analista pode lhe conferir?

Estamos cientes de que os autores consultados em sua problematização a respeito do tema respondem a concepçoes clínicas diferentes e a tipos diferentes de pacientes. Assim, cada autor formulará questoes que diferem, em maior ou menor grau, dessas que apresentamos, e suas respostas nem sempre caminharao na mesma direção. Entretanto, entendemos que essa disparidade na definição do conceito contribui para o enriquecimento da discussao, na medida em que diz respeito as sucessivas tentativas de tradução tearica de um fenômeno clínico de difícil manejo.

 

 

Freud e o início da discussao

Desde os Estudos sobre histeria (1893-1895/2006a), Freud teve a chance de perceber, juntamente com Breuer, que a relação estabelecida entre analista e paciente é diferente da relação médica. A proximidade entre o médico que realizava a catarse a partir da talking cure e da paciente que se livrava de seus sintomas, como também os afetos mobilizados por esse processo, eram mais intensos do que os normalmente encontrados em sua prática. Breuer recuou com certo espanto diante disso, nao sem antes experimentar uma relação demasiadamente intensa com uma de suas pacientes. Lembramos que, na condição de médico, Breuer dedicava a Anna O. uma atenção bastante incomum, chegando a visitá-la em sua casa duas vezes por dia, antes que ela pudesse acusá-lo de te-la engravidado.

Desde a fundação da psicanálise, localizamos os problemas gerados por essa relação distinta que surge quando analista e paciente se propoem revirar as profundezas da alma, na busca de aplacamento do sofrimento psíquico. No caso Dora, Freud (1905[1901]/2006b)3 confessa os motivos de seu fracasso no atendimento da paciente, mostrando que havia desconsiderado a sistematicidade e a força do fenômeno da transferencia, que se estabelece necessariamente dentro do atendimento psicanalítico. Com menos enfase, mas sem deixar de relatá-lo, o autor também considera o possível envolvimento prévio com o pai da paciente e o pouco interesse que tinha nela como tendo contribuído para o fracasso do caso.

Mas foi justamente a partir desse fracasso que a transferencia da paciente, tomada primeiramente como uma resistencia ao trabalho, passa a ser o ponto central sobre o qual o praprio trabalho clínico pode ocorrer e assume, em Freud, como vimos na introdução do trabalho, o sentido de uma repetição dos modos de amar.

Sérgio Telles (2012) aponta que há algo de taxico nessa relação, toxidade a qual Freud nao estava imune e que podemos perceber já nesses princípios.

A semelhança dos físicos Pierre e Marie Curie, pioneiros no estudo da radioatividade, que desconheciam o poder letal dos elementos que manejavam, os primeiros psicanalistas lidavam com afetos intensos e primitivos (os deles praprios e os de seus pacientes) sem terem ainda conhecimento das consequencias disso. (Telles, 2012)

É preciosa a metáfora do elemento radioativo para falar sobre os afetos que invadiam a sessao e produziam seus efeitos, tanto no paciente quanto no analista, sem que eles pudessem se dar conta disso, sem que pudessem deles se defender. No caso de Dora, Freud confessa que nao estava muito interessado na moça, que mantinha relaçoes cordiais com o pai da paciente e que a atendia a pedido dele. Posiciona-se ao lado do pai da paciente em um momento, em outro, deseja e argumenta que ela poderia livrar-se de sua doença se assumisse a paixao pelo Senhor K. Essas sao atitudes que, no mínimo, revelam muito sobre as expectativas do analista e deixam entrever a "radioatividade" daqueles elementos aos quais Telles fez referencia e os seus efeitos deletérios. Mas sao justamente esses efeitos que constituem o material com o qual trabalhamos na sessao analítica. Entretanto, foi preciso uma longa trajetaria tearica e clínica antes que Freud pudesse abordar, de forma clara e direta, o problema da contratransferencia.

Freud usou o termo contratransferencia somente tres vezes ao longo de sua obra (França, 2006), embora, em cartas aos seus discípulos, ele tenha comentado o assunto. A primeira vez que utilizou o termo foi em 1909, em carta endereçada a Jung4, na qual comenta a relação amorosa que o discípulo mantinha com uma paciente. Esse relacionamento de Jung com a paciente pressionou Freud a publicar o primeiro escrito técnico sobre o assunto (Dias, 2006). Em 1910, no artigo: "As perspectivas futuras da terapeutica analítica", Freud nos diz que a contratransferencia precisa ser superada pelo bem do tratamento psicanalítico, condenando assim o relacionamento amoroso entre paciente e analista, clara alusao ao caso de Jung.

Em outra carta, datada de 1913 e endereçada a Ludwig Binswanger (Roudinesco & Plon, 1997, p. 133), Freud novamente faz consideraçoes sobre a contratransferencia como um fator negativo ao andamento do tratamento. Roudinesco e Plon assim comentam a carta de Freud:

Em 1913, numa carta a Ludwig Binswanger, Freud sublinhou que o problema da contratransferencia "é um dos mais difíceis da técnica psicanalítica". O analista – e isso deve ser uma regra segundo Freud – nunca deve dar ao analisando nada que tenha saído de seu praprio inconsciente. Vez apas outra, ele deve "reconhecer e ultrapassar sua contratransferencia, para que possa estar livre". (Roudinesco & Plon, 1997, p. 133)

Como um dos mais difíceis problemas que envolvem a técnica psicanalítica, o estudo sistemático da contratransferencia seria, obviamente, necessário. A surpresa é que Freud somente usa o termo mais duas vezes em toda a sua obra, ambas em seu texto "Observaçoes sobre o amor transferencial", obra de 1915. Nesse texto, o autor examina o tipo de transferencia no qual a paciente se enamora da figura do analista. As recomendaçoes de Freud sao proibitivas, no sentido de o analista nao responder contratransferencialmente ao amor da paciente. É um texto que nos desperta um interesse particular por tratar mais do que nao deveria acontecer do que, propriamente, de recomendaçoes técnicas sobre o manejo da contratransferencia. É como se Freud dissesse: Nao façam isso, porque nao adianta ou porque é um erro técnico e moral. Fazer isso, acompanhando o texto freudiano, é unir-se legítima ou ilegitimamente com a paciente. Isso nao é suficiente. Se o analista nao deve corresponder ao amor que a paciente lhe dedica, o que ele pode fazer? No texto de Freud, a enica saída que encontramos é a interrupção do tratamento, posto que uma filha da natureza (entenda-se, mulher submetida as exigencias do desejo sexual) inviabiliza um tratamento psicanalítico.

Por hora, basta que retenhamos o seguinte sobre a posição de Freud sobre a contratransferencia: ele se viu obrigado a teorizar a respeito do tema pelo envolvimento eratico de alguns dos seus colegas com pacientes do sexo feminino. Algo que, além de prejudicar as pacientes e levar o tratamento a falencia, colocava em risco a credibilidade da psicanálise como uma ciencia e um método clínico, precisando, portanto, ser condenado. O conceito de contratransferencia em Freud está intimamente ligado as situaçoes que produziram seu surgimento. Elas demandavam uma resposta enérgica de Freud e, nesse sentido, é compreensível que ele tenha trabalhado a contratransferencia de maneira restrita, como algo que, surgindo no analista, deveria ser superado, sob pena do fracasso do tratamento.

A discussao a respeito da contratransferencia evolui, posteriormente, a partir da ampliação do conceito e de suas implicaçoes. E isso ocorre a partir de uma grande discussao que tem início com Melanie Klein.

 

 

Identificação projetiva e sua relação com a contratransferencia

O conceito de identificação projetiva, presente na obra de Melanie Klein (1946), está intimamente conectado com o desenvolvimento das discussoes sobre a contratransferencia em autores que foram influenciados, direta ou indiretamente, pela autora. Embora essa relação nao ocorra explicitamente na obra de Melanie Klein, alguns de seus discípulos se apoiaram no conceito de identificação projetiva para tratar da contratransferencia. Por isso, examinaremos, ainda que por breve momento, as possíveis inter-relaçoes entre identificação projetiva e contratransferencia, tema central das nossas discussoes.

Cintra e Figueiredo (2004) concebem o trabalho de Melanie Klein como estando centrado, principalmente, em fenômenos que dizem respeito a um tempo de fundação do psiquismo. Para abordarmos alguns aspectos do pensamento da autora, impoe-se a revisao de alguns dos seus fundamentos.

O primeiro deles é o conceito de pulsao de morte. Klein (1957)5 rastreia na obra freudiana aportes tearicos específicos, que oferecem sustentação para suas observaçoes clínicas. Lembremos que o conceito de pulsao de morte se insere em um momento da obra de Freud6 no qual ele tenta buscar explicação para as origens do psiquismo humano a partir de várias hipateses, sendo uma delas a de que a pulsao original, aquela que está presente desde o início, é a pulsao que encaminha o indivíduo biolagico para a inércia absoluta, para a morte.

Apostando num bebe que nasce com uma "cota" específica de pulsao de morte, Melanie Klein (1932 [1969]) fundamenta sua teoria justamente nos modos de operação que esse bebe encontra para lidar com essa cota de pulsao de morte que o ataca desde o nascimento. A partir disso, Klein confere importância fundamental aos processos de projeção e de identificação utilizados pelo bebe para externar alguns de seus conteedos e internalizar outros, sempre na tentativa de lidar com a violencia sádica que o ataca desde o nascimento e que permeará as relaçoes com seus objetos.

O tipo de conteedo projetado para fora é, a princípio, caracterizado pelo adio, raiva e agressao. Expulsando esse conteedo mortífero, o bebe identifica o mundo externo (ou a mae) a esse conteedo, numa tentativa de controle que, ao mesmo tempo, agride a mae, identificando-a ao mau, e a transforma em depositária de uma parte de si mesmo. Para Melanie Klein, identificação projetiva é isso: o bebe projeta no outro uma parte de si, tanto para se livrar de algo ruim, quanto para controlar o outro. A mae, caberia responder a violencia do bebe de maneira nao violenta. Estar presente como um objeto que nao frustra e, a partir disso, ser capaz de ajudar o bebe a introjetar essa parte de si mesmo da qual ele havia se apartado.

Precisamos reconhecer que nao existe em Klein nenhuma conexao entre o conceito de identificação projetiva e o conceito de contratransferencia. Essa nao foi a intenção da autora ao cunhar esse conceito. Aliás, para Melanie Klein, a palavra contratransferencia sempre trouxe problemas com os quais ela nao queria se envolver e, como Freud, usou o termo somente tres vezes ao longo de sua obra. França (2006) supoe que esse uso muito restrito do termo por Klein se deveu mais a um cuidado político do que a uma opiniao pessoal decisiva. Lembremos que a autora disputava espaço na construção de uma psicanálise para atendimento de crianças com nada menos que Anna Freud, que contava com o apoio irrestrito do pai, maior figura de autoridade da psicanálise. Klein sofria enormes pressoes em decorrencia dessa disputa, por isso, comentadores da obra da autora, como França (2006), tem razoes para suspeitar de que Klein tinha restriçoes com relação a tratar de assuntos que a fariam entrar em conflito direto com o praprio Freud, como é o caso da contratransferencia. A suspeita é de que Freud poderia utilizar sua influencia para criticar Klein, caso ela tomasse posiçoes contrárias as normativas propostas pelo pai da psicanálise, e faze-la perder espaço dentro da escola inglesa.

Mas se Melanie Klein usou o termo contratransferencia poucas vezes, a temática que envolve o conceito de identificação projetiva, pelo menos como vemos no trabalho de alguns dos seus discípulos, aproxima-se bastante daquilo que podemos considerar uma teoria kleiniana da contratransferencia. Apesar de presumirmos que Melanie Klein discordaria dessa afirmação, temos o conceito de identificação projetiva como um fenômeno clínico que conecta os sentimentos do paciente ao aparelho psíquico do analista. Em "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides" (1946), a autora apresenta o conceito de identificação projetiva como um processo essencial de comunicação de experiencias entre o bebe e sua mae, no qual o bebe comporta-se de tal modo que faz com que a mae acabe experimentando aqueles sentimentos que nao pôde conter dentro de si nem expressar de outra forma. A autora ainda afirma que isso acontece na situação clínica principalmente como um mecanismo de defesa presente na posição esquizo-paranoide, na qual o paciente leva o analista a experimentar aquelas sensaçoes que nao puderam ser integradas e simbolizadas pelo seu praprio psiquismo.

Pensar que o analisando possa transmitir sentimentos ao analista por uma via que nao é a palavra e que o analista experimente esses sentimentos do outro equivale a pensar em um fenômeno contratransferencial, mesmo que nao receba esse nome. Sobre isso, ressaltamos mais uma observação de França: "para o mecanismo ser considerado identificação projetiva, tem de causar efeitos no aparelho psíquico do receptor, de quem espera-se a capacidade de metabolização de tais conteedos" (França, 2006, p. 33). Os tais efeitos no aparelho psíquico do receptor (analista) sao, efetivamente, efeitos contratransferenciais, produtos do funcionamento do analista em contato com o paciente. Mas essas afirmaçoes que vimos França formalizar acima parecem extrapolar o conceito de identificação projetiva em Melanie Klein. E, de fato, extrapolam.

De acordo com Sandler (1989), a teorização da identificação projetiva evolui para um segundo estágio, depois da primeira observação do fenômeno por Melanie Klein. Neste segundo estágio, alguns tearicos da escola kleiniana passam a trabalhar com a questao da contratransferencia, relacionando-a a identificação projetiva, de modo que a reação contratransferencial seria fonte de informaçoes a respeito dos conteedos internos do paciente. Os analistas que iniciam essa associação entre os conceitos e assim ampliam a noção de contratransferencia sao Paula Heimann (1950) e Heinrich Racker (1960)7, cujas ideias serao abordadas no decorrer deste trabalho. Por hora, é importante destacar que os analistas da escola kleiniana e aqueles que com essa escola mantem boas relaçoes, sao os que mais contribuíram e contribuem para a discussao da contratransferencia na técnica psicanalítica. Isso se deve as discussoes que o conceito de identificação projetiva puderam proporcionar e a iniciativa de Paula Heimann e Heinrich Racker, que, a despeito da discordância da própria Melanie Klein, insistiram nas discussoes sobre o tema por considerá-lo de fundamental importância.

 

 

A contribuição de Paula Heimann

Depois de Freud, quem retoma a discussao sobre a contratransferencia ou, pelo menos, quem a faz ressurgir com vigor no cenário psicanalítico internacional é Paula Heimann. Heimann foi analisada por Melanie Klein e era membro da Sociedade Psicanalítica Britânica, na qual começou como uma defensora da teoria kleiniana, até que uma divergencia tearica sobre a contratransferencia afastasse as duas psicanalistas e fizesse Heimann aderir ao chamado "grupo independente" (Mello, 2012).

Em 1949, no 16Âş Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, em Zurique, Paula Heimann le pela primeira vez o artigo "On Countertransference"8, posteriormente publicado em 1950, no qual apresenta a reação contratransferencial nao mais como um obstáculo, mas como um importante instrumento de compreensao do inconsciente do analisando. Esse ponto de vista, apesar de duramente criticado por Melanie Klein (França, 2006), influenciou de maneira decisiva o desenvolvimento de teorias que abordavam o uso da contratransferencia como uma ferramenta da clínica psicanalítica. O artigo foi considerado um divisor de águas na histaria da técnica psicanalítica, pois Heimann iniciou o questionamento da postura defensiva dos analistas em formação. Melanie Klein temia "que essa ampliação do conceito [contratransferencia] sustentasse as alegaçoes dos analistas de que suas próprias deficiencias eram causadas pelos pacientes" (França, 2006, p. 36). Melanie Klein chegou a solicitar a Heimann que retirasse o artigo do congresso da IPA, mas a autora recusou-se a faze-lo.

Examinando o conteedo dessa comunicação de Heimann (1950), pode-se perceber que ela já se insere num contexto em que vários autores sentem a necessidade de debater o tema e publicam trabalhos quase que simultaneamente, incitando as discussoes. Heimann afirma em uma nota de rodapé: "O fato de que o problema da contratransferencia foi apresentado para discussao praticamente simultaneamente por diferentes pesquisadores indica que o momento é propício para uma pesquisa mais aprofundada sobre a natureza e a função da contratransferencia".9

Mesmo sem que a autora soubesse, pois nessa época ainda nao havia entrado em contato com Racker, a abrangencia de seu comentário ultrapassa as fronteiras da Sociedade Britânica de Psicanálise, já que na bacia do Prata, na América do Sul, a discussao sobre contratransferencia acontecia com vigor, liderada por Heinrich Racker, e trabalhos sobre o tema eram publicados praticamente na mesma época em que Heimann fazia sua comunicação.

O artigo de Heimann traz consideraçoes a partir de sua experiencia como supervisora e de um impasse que ela percebeu na formação de candidatos a analistas. A autora se diz impressionada com a crença dos candidatos de que a contratransferencia nao é mais do que uma fonte de problemas, que eles se sentiam com medo e culpados ao perceberem seus sentimentos com relação aos seus pacientes e empreendiam, em decorrencia disso, uma tentativa de se tornarem completamente insensíveis e imparciais, evitando qualquer resposta emocional. Intrigada com a repetição dessa postura nos analistas em formação, Heimann empreende uma busca, na literatura psicanalítica, no intuito de entender os fundamentos dessa prática em seus supervisionandos. Assim a autora descreve seus achados:

Eu achei que a nossa literatura, de fato, contém descriçoes do trabalho analítico que podem dar lugar a noção de que um bom analista nao sente nada além de uma uniforme e suave benevolencia para com seus pacientes, e que qualquer agitação produzida pelas ondulaçoes emocionais nesta superfície lisa representa uma perturbação a ser superada. (Heimann, 1950)

Na sequencia de sua apresentação, Paula Heimann define contratransferencia como "a totalidade dos sentimentos do analista com respeito a seu paciente", e apresenta sua tese:

Minha tese é que a resposta emocional do analista a seu paciente dentro da situação analítica representa uma das ferramentas mais importantes para o seu trabalho. Contratransferencia do analista é um instrumento de pesquisa sobre o inconsciente do paciente. (Heimann, 1950)

Aqui, Heimann responde a uma das principais perguntas de nossa investigação. A contratransferencia servia, para a autora, como um instrumento de pesquisa sobre o inconsciente do paciente. A autora salienta que a situação analítica é uma relação entre duas pessoas, e seu caráter singular nao se define pela presença de sentimentos em um e ausencia em outro, mas o que a distingue das outras relaçoes comuns entre duas pessoas é, acima de tudo, o grau de sentimentos vivenciados e a maneira como esses sentimentos podem ser utilizados pelo analista. A seguir, Heimann busca definir como esse instrumento seria usado e quais as implicaçoes de utilizá-lo:

O objetivo da própria análise do analista, a partir deste ponto de vista, nao é transformá-lo em um cérebro mecânico que pode produzir interpretaçoes sobre a base de um processo puramente intelectual, mas permitir que ele possa sustentar os sentimentos que agem nele, em oposição a descarregá-los (como o faz o paciente), a fim de subordiná-los a tarefa analítica em que ele funciona como um reflexo em espelho do paciente. (Heimann, 1950)

Assim, para Heimann, a natureza relacional da sessao analítica implica o aparecimento de sentimentos nas duas pessoas que compoem a sessao, e nao há nada que o analista possa fazer para evitar que lhe surjam esses sentimentos. A análise do analista é o que lhe possibilita reconhecer os sentimentos que lhe surgem a partir do contato com o paciente e utilizá-los como via de acesso privilegiada ao mundo interno de seu analisante, em vez de descarregá-los. É o destino dos sentimentos do analista que o diferencia na relação, que potencializa seu trabalho ao invés de embargá-lo.

Na esteira dessas consideraçoes, a autora afirma que quando as emoçoes do analista caminham na mesma direção de sua percepção consciente da situação analítica, nao há problemas. Mas, algumas vezes, as emoçoes contratransferenciais estariam mais praximas do necleo das questoes do analisando do que os processos de racionalização do analista. Ou seja, a percepção inconsciente do analista, sentida por meio de sua contratransferencia, seria mais aguçada e precederia a percepção consciente. Portanto, se o analista trabalhasse sem consultar seus sentimentos, ele produziria, segundo Heimann, interpretaçoes mais pobres.

Mas Heimann nao apresenta, como Melanie Klein a acusa de fazer, uma postura que desconsidera os riscos do uso desse instrumento privilegiado de escuta de seus pacientes. Para a autora, a contratransferencia nao pode funcionar como um anteparo para as deficiencias do analista, e isso seria garantido pela análise pessoal do analista. Nas palavras da autora:

Quando o analista em sua própria análise tem trabalhado através de seus conflitos infantis e ansiedades (paranoico e depressivas), de modo que ele pode facilmente estabelecer contato com seu praprio inconsciente, ele nao imputa ao seu paciente o que pertence a ele mesmo. (Heimann, 1950)

Assim, o analista poderia, a partir de sua análise, ter condiçoes de separar os conteedos que pertencem a ele, analista, daqueles que pertencem ao paciente. Portanto, a contratransferencia nao poderia ser utilizada para acusar os pacientes do fracasso do processo analítico, como vaticinou Klein. Apesar dos argumentos que apresenta, Heimann nao consegue evitar que algo da crítica de sua colega se concretize e que alguns analistas acabem por utilizar seu texto para justificar interpretaçoes que tinham mais relação com conflitos de natureza pessoal do que com aqueles de seus analisandos. Por isso, Heimann revisa sua colocação, dez anos depois, em 1959:

Aos poucos, posso mencionar que tive a oportunidade de comprovar que meu trabalho também tinha provocado alguns erros em alguns candidatos, que, apoiando-se nesse trabalho para se justificar, sem o suficiente sentido crítico, fundamentavam as suas interpretaçoes sobre seus sentimentos. Respondiam a qualquer pergunta "minha contratransferencia", e pareciam pouco propensos a comparar suas interpretaçoes com os dados reais da situação analítica. (Heimann, citada por Antonelli, 2011, p. 37).

Antonelli (2011) afirma que Heimann faz essa nova colocação "para situar o problema da contratransferencia dentro da tarefa analítica, objetivo este que vinha se perdendo" (p. 37). O problema que motiva Heimann a se reposicionar origina-se, ainda de acordo com Antonelli, no fato de que alguns analistas nao estavam cotejando suas interpretaçoes com os dados reais da situação analítica, mas justificando-se com uma leitura parcial da teoria de Heimann, escancaravam seus sentimentos e acusavam seus pacientes.

Para encerrar seu artigo inaugural sobre contratransferencia, Paula Heimann retoma o argumento freudiano de que o analista deveria reconhecer e dominar sua contratransferencia, e propoe que a contratransferencia nao seria somente um fator de disterbio, de modo que, para combate-la, o analista deveria se tornar insensível e distante. Mas pelo contrário, o analista pode utilizar sua resposta emocional como uma chave para o inconsciente do paciente:

As emoçoes despertadas no analista serao de valor ao seu paciente, se utilizadas como fonte de mais uma visao sobre os conflitos inconscientes e defesas do paciente, e quando estas sao interpretadas e trabalhadas, as consequentes alteraçoes de ego do paciente incluem o reforço do seu senso de realidade, de modo que ele ve seu analista como um ser humano, nao um deus ou demônio, e a relação "humana" segue na situação analítica, sem que o analista tenha de recorrer a meios extra-analíticos. (Heimann, 1950)

Assim, Paula Heimann propoe usar a contratransferencia como um índice de atenção, como uma seta que aponta para os elementos mais insistentes na temática da associação livre do paciente naquele momento e serve para o analista concentrar o foco das interpretaçoes naquela parte do material. Se o material é sempre sobredeterminado, é importante que se tenha um instrumento que indique qual parte dele é mais evidente em dado momento específico. Torna-se, a partir da comunicação de Heimann, cada vez mais imprescindível atentar para a contratransferencia na situação de análise.

Transferencia e Contratransferencia e sua centralidade no processo analítico: a visao de Heinrich Racker

Heinrich Racker, polones radicado na Argentina, onde produziu a maior parte de sua obra, apresenta um estudo sistemático dos fenômenos contratransferenciais, considerando-os instrumentos para a compreensao do inconsciente do analisando. Teve uma vida curta, mas muito produtiva enquanto tearico da psicanálise, morrendo relativamente cedo, aos 50 anos de idade, em 1961 (Zimmermann, 1982).

No prefácio de seu livro Estudos sobre técnica psicanalítica (1960), que reene seus principais trabalhos produzidos entre os anos de 1948 a 1960, o autor afirma que sempre lhe impressionou e preocupou a distância existente entre a amplidao e profundidade do conhecimento psicanalítico e as limitaçoes no aproveitamento desse conhecimento para a transformação psicolagica dos pacientes. Segundo Racker, a psicanálise evidenciou, desde o começo, a tarefa central do trabalho como sendo a elaboração da transferencia, mas sua outra parte, seu complemento, a contratransferencia, era ainda um tema inexplorado. O autor estava convencido de que, pelo estudo da contratransferencia, poder-se-ia diminuir essa distância entre o conhecimento psicanalítico e a transformação psicolagica dos pacientes. Assim, explica alguns dos motivos de seu interesse pelo tema:

Era (...) claro que o silencio científico que reinava em tao alto grau em relação aos fenômenos e problemas da contratransferencia constituía um sério impedimento para a percepção e compreensao da transferencia. Pois a contratransferencia é a resposta vivencial a transferencia, e, se aquela for silenciada, esta nao poderá se desenvolver com plenitude de vida e de conhecimento. (Racker, 1960, p. 13)

Nos Estudos sobre técnica psicanalítica, Racker dedica-se, em alguns momentos, a analisar a questao da contratransferencia no âmbito da técnica e da prática da psicanálise. Em um dos capítulos, o autor analisa o que chama de "A Neurose de Contratransferencia", que diz respeito aos processos psicopatolagicos que, com maior ou menor intensidade, costumam ocorrer no analista, em sua relação com o paciente. O autor insiste na tomada de consciencia desses processos por parte do analista, pois é isso que poderia, a seu ver, levá-lo a evitar que essas patologias atuassem negativamente em seu trabalho.

Racker enfatiza que o significado que se dá a contratransferencia e a importância dos problemas correspondentes dependem do significado que se dá a função do analista dentro do processo psicanalítico de transformação interna. O autor retoma Freud para afirmar que tal significado deriva diretamente das batalhas decisivas que se travarao no plano da transferencia, no qual o paciente, repetindo sua infância, reencontra-se com um objeto, o analista, para quem dirige suas moçoes pulsionais. O analista é essa reedição de um objeto que pode, sem tédio nem angestia, enfrentar essas moçoes junto ao paciente e, deste modo, permite ao paciente introjetar no superego um objeto que é mais tolerante e compreensivo que os objetos arcaicos.

No paciente vibram, a partir da relação com o analista, sua personalidade total, suas partes sa e neuratica, o presente e o passado, a realidade e a fantasia. Assim, segundo Racker, também vibra o analista, embora em diferentes quantidades e qualidades, em sua relação com o paciente. As diferenças entre essas duas relaçoes residiriam em diferenças nas situaçoes internas e externas de cada um, associadas, principalmente, ao fato de que o analista já tenha sido analisado. Entretanto, o autor enfatiza que o analista também nao está livre da neurose, havendo sempre uma parte de sua libido disposta a ser transferida. Há também a pressao inerente a situaçoes internas centrais que sao transferidas sobre sua profissao e a situação socioeconômica a ela vinculada. Ainda precisamos considerar o fato, acrescenta o autor, de que a escolha da profissao de analista, como todas as escolhas que fazemos, baseia-se nas relaçoes de objeto da infância, prestando-se, por isso e por excelencia, a transferencia. Para definir a neurose de contratransferencia, Racker afirma:

E assim, como o conjunto de imagens, sentimentos e impulsos do paciente para com o analista, enquanto determinados pelo passado, é chamado transferencia, e sua expressao patolagica denominada neurose de transferencia, assim também o conjunto de imagens, sentimentos e impulsos do analista para com o paciente, enquanto determinados pelo passado, é chamado contratransferencia, e sua expressao patolagica poderia ser denominada neurose de contratransferencia. (Racker, 1960, p. 101)

O autor assevera que todo analista sabe que nao está livre de dependencias infantis, de representaçoes neuraticas, de mecanismos patolagicos de defesa. Mas, mesmo sabendo disso, o tema da contratransferencia é pouco abordado em muitos círculos psicanalíticos. O autor provoca o campo psicanalítico comparando o tema da contratransferencia como um filho de quem os pais se envergonham. Vergonha, aliás, que estaria associada ao "auto-apreço" do analista, por ter de admitir que continua sendo neuratico. Atrás da denegação da contratransferencia estariam todos os temores e todas as defesas inerentes a neurose do analista. O autor adverte que nao podemos nos esquecer que a situação profissional sa reveste, com novos termos, antigos impulsos, imagens e angestias da pessoa que se propoe a ajudar (Racker, 1960).

Assim, Racker aponta o narcisismo do analista como parte de sua dificuldade de admitir a contratransferencia, admitir que ainda padece de suas doenças. Para diminuir as possíveis consequencias das açoes de sua parte neuratica, que precisa ser elaborada, o analista, segundo o autor, precisaria adotar uma "dupla posição", que caracteriza como:

Este oscilar entre o esquecer-se de si e o recordar-se de si, entre sua entrega ao paciente e o controle de si praprio, por um lado, o oscilar entre cada uma destas duas posiçoes, entre a posição de recepção intuitiva, e de discriminação intelectual, por outro lado, este oscilar entre ser instrumento passivo-sensível (sobre o que tocam paciente e analista) e ser duplamente ouvinte crítico-racional, tudo isso pertence as funçoes técnicas básicas do analista, e sua observação e seu desenvolvimento sao de importância correspondentemente básica. (Racker, 1960, p. 103)

Essa posição do analista, que considera sua contratransferencia, escutando-a de modo pendular entre permitir que ela ocorra num plano passivo-sensível e elaborá-la, ao mesmo tempo, num plano crítico racional, parece ser para Racker aquilo que tem o potencial de proteger analista e paciente da neurose de contratransferencia.

Se no capítulo sobre "A Neurose de Contratransferencia" Racker dá especial atenção a contratransferencia como perigo para a função do analista, neste outro estudo, denominado "Significados e Usos da Contratransferencia", o interesse predominante do autor dirige-se a contratransferencia como instrumento técnico, ou seja, como meio essencial para a compreensao dos processos psicolagicos e transferenciais do paciente. Racker também aborda nesse estudo o papel da contratransferencia no processo de transformação interna do paciente, ou seja, a influencia da contratransferencia sobre os destinos da transferencia e sobre as possibilidades de o paciente elaborá-la e de vencer o círculo vicioso de sua neurose. Neste estudo, Heinrich Racker leva as eltimas consequencias a possibilidade do uso dessas informaçoes internas do paciente, conseguidas a partir de sentimentos e afetos contratransferenciais: "transferencia e contratransferencia representam dois componentes de uma unidade, dando-se vida mutuamente e criando a relação interpessoal da situação analítica" (p. 68).

O material que poderia ser acessado a partir da contratransferencia pode dizer respeito ao paciente e a interpretação da transferencia está intimamente conectada ao material que foi acessado contratransferencialmente. O autor continua seu raciocínio dizendo que a transferencia se oferece como uma realidade constante no contato com o paciente, que apresenta, diante do analista, sentimentos, angestias, defesas e desejos reais. A reposta do analista é a própria realidade constante da contratransferencia, com sentimentos, angestias, defesas e desejos igualmente reais, embora possam aparecer com menor intensidade que os do analisando.

O que vemos na concepção de Racker é que o analisando, no processo transferencial, projeta conteedos no analista que chegam até ele como sentimentos, que algumas vezes nao passaram pela via do discurso do analisando, nesse processo comum de identificação projetiva. E acontece algo internamente no analista, a partir desse contato com o analisando. Sentimentos de angestia, de raiva ou quaisquer outros, que deveriam ser falados pelo analisando, acabam sendo sentidos pelo analista, que, com seus praprios sentimentos, tem acesso ao mundo interno do analisando. A concepção de análise de Racker passa por uma inter-relação radical entre as duas pessoas, o que implica que o analista "rackeriano" seria aquele totalmente sujeito a invasoes e a irrupçoes de conteedos do outro. Acometido de uma série de fenômenos identificatarios que ocorreriam a revelia dele mesmo, o analista teria a função de detectar e de lidar com esses fenômenos, transformando-os em material para a compreensao do mundo interno do analisando.

O autor afirma que a contratransferencia seria a expressao da "constelação" interna do analista, estimulada pelo paciente, com isso abre espaço para que possamos pensar que os afetos que o analista experimenta no contato com seu paciente nao partem exclusivamente do paciente, mas de dentro do praprio analista. E que o melhor direcionamento para essa amálgama de afetos, que partem do paciente e de dentro do analista, seria uma espécie de tempo silencioso, no qual o analista tenta dominar o impacto desses afetos em si, para depois poder utilizar a percepção dos afetos para a análise dos processos do paciente.

Tao logo pensemos isso, podemos também pensar que esta seja a tarefa mais difícil da análise dos processos contratransferenciais. O analista precisa tentar dominar o impacto dos afetos que vem de fora e, ao mesmo tempo, os que vem de dentro e que nao podem ser percebidos internamente, senao enquanto amálgama real de sentimentos. Seria possível realizar essa tarefa proposta por Racker? A tarefa de perder a razao, momentaneamente, imerso em afetos contratransferenciais, para logo depois poder recobrá-la a partir de uma análise interna?

Antes de encerrarmos a análise da posição do autor, revisemos alguns aspectos sobre a maneira como Racker entende a relação analítica. O analista, segundo Racker, está sujeito a toda sorte de invasoes de afetos que vem do analisando. É inevitável que esses afetos o invadam e provoquem nele reaçoes afetivas parecidas com as que o invadiram. A neurose de transferencia, Racker opoe a neurose de contratransferencia. A angestia no paciente, Racker associa a angestia no analista. De modo que o analista, no contato com seu paciente, acaba se vendo tomado pelos conteedos que vem de fora, correndo o risco de ser invadido e assujeitado. Tendo absorvido tudo como uma esponja, o analista se encontra diante da tarefa difícil de tentar assimilar e metabolizar esses conteedos para poder utilizá-los na compreensao do paciente.

Dessa forma, nao poderíamos pensar que o analista, na concepção de Racker, é esse que, de alguma forma, está ciente dessa invasao que o contato com o outro opera no humano desde sempre? Ciente da força da alteridade que nao cessa de afetar o mundo interno sempre que há contato praximo entre as pessoas? Seria possível pensarmos, entao, que os processos defensivos que criamos para nos separarmos da alteridade radical que nos fundou serao sempre precários?

Existe uma diferença qualitativa entre a empatia, que seria poder compreender o que o outro sente, e estar a merce dos processos internos do outro. O analista concebido por Racker vivencia os dois processos. A projeção dos conteedos do outro o identifica com o outro nesse processo cujo vetor vem de fora: identificação projetiva.

Na mesma época em que Paula Heimann e Heinrich Racker publicaram seus estudos, Donald Winnicott apresentou sua visao sobre o tema. Winnicott é mais conservador do que os outros dois autores e prefere utilizar o conceito de contratransferencia de maneira mais restrita, como veremos a seguir.

 

 

A posição winnicottiana

Winnicott dedica dois artigos a temática da contratransferencia: "Ódio na contratransferencia", de 1947, e "Contratransferencia", de 1960. Em ambos Winnicott defende uma postura ética do analista que possa proteger o paciente de possíveis atuaçoes contratransferenciais. Em 1947, o autor argumenta sobre a necessidade de o analista atentar para os fenômenos de adio contratransferenciais que aparecem, de maneira inevitável, no atendimento de alguns pacientes e, em 1960, aponta para a necessidade de uma atitude profissional que garanta uma distância segura, capaz de proteger o paciente de possíveis atuaçoes contratransferenciais do analista.

No primeiro artigo, o autor afirma que o manejo do paciente psicatico é irritante e gerador de adio, tanto para o psicanalista quanto para todos os profissionais que se envolvem nos cuidados desse tipo de paciente. Por isso, o analista depende muito da sua análise pessoal para que o seu adio pelo paciente psicatico possa ser "discernível e consciente" e para que essa "pesada carga emocional" nao inviabilize o seu trabalho. Winnicott considera que os profissionais que lidam com esses pacientes precisam compreender essa dimensao da contratransferencia, já que:

Por mais que estes amem os seus pacientes, nao poderiam evitar odiá-los e teme-los, e quanto melhor eles o souberem, mais difícil será para o medo e o adio tornarem-se os motivos determinantes para o modo como eles tratam esses pacientes. (Winnicott, 1947/2000, p. 278)

Nao é difícil perceber, pela clareza da proposta do autor, a definição de contratransferencia intrínseca as suas colocaçoes. Contratransferencia é, nesse momento, para Winnicott, algo como um sentimento hostil e inevitável que surge no terapeuta (analista, psiquiatra) a partir do contato com o paciente, e que precisa ser discernido, reconhecido e tornado consciente, justamente para que a conduta do profissional nao seja pautada por uma reação a esse conteedo. O autor ainda examina as raízes do adio que os pacientes psicaticos despertam no analista. O modo como os pacientes psicaticos se portam em análise remete a fracassos constitutivos, sendo capazes de se relacionar somente a partir de um fenômeno brutal de "amor e adio coincidentes" e incitam, constantemente, o analista a se relacionar com eles da mesma forma. Dessa maneira, o autor considera que o adio que surge no analista é legítimo e precisa ser claramente percebido e mantido em um lugar a parte para ser usado em futuras interpretaçoes.

No ano de 1960, Winnicott publica "Contratransferencia" para contrapor-se a palestra de Michael Fordham, discípulo de Jung, que afirmou ser inetil que o analista se defenda do contato com o paciente considerando-o um relacionamento profissional (Fordham apud Winnicott, 1960/1983). Winnicott acredita que esse ponto de vista pode acarretar inemeros equívocos na formação e atuação dos analistas e, por isso, advoga a favor da delimitação de uma posição ética para o profissional, que circunscreva o uso da contratransferencia a determinadas situaçoes. Kahtuni, estudiosa da obra do autor, resume o ponto de vista de Winnicott neste artigo-resposta de 1960:

Ao discutir a contratransferencia Winnicott disse que entre o paciente e o terapeuta existe a atitude profissional do terapeuta, sua técnica e o trabalho que ele realiza com sua mente. Existe um esforço de sua parte, um trabalho mental que precisa ser consciente. O terapeuta é empático em relação a seu paciente, tem sentimentos, pensamentos e fantasias em relação a ele, mas tudo isso passa por uma malha fina e requer elaboração antes de voltar para o paciente em forma de comunicação, intervenção ou manejo. Esse trabalho de elaboração é função e responsabilidade do terapeuta. Requer nao apenas conhecimento tearico e técnico, mas treinamento prévio, e é facilitado ou dificultado por suas experiencias e vivencias pessoais, sua análise pessoal e auto-análise, suas supervisoes e características pessoais. (Kahtuni, 2005)

Manter a postura profissional nao significa, para o autor, manter uma série de defesas egoicas, inibiçoes e obsessao pela ordem, já que é necessário que o analista permaneça vulnerável para nao diminuir sua capacidade de enfrentar as situaçoes novas que o paciente lhe traz. No entanto, além de permanecer vulnerável, ele precisa manter sua postura profissional. Isto quer dizer que o analista precisa preservar uma distância entre si e o paciente, afastando-se o máximo de ser "a pessoa nao confiável que costuma ser na vida privada" (1960/1983, p. 147).

É relevante notar que a proposta de Winnicott (1947/2000; 1960/1983) sobre a contratransferencia deriva de uma importante inversao que o autor realiza na concepção de transferencia10. Em vez de abordar o tema a partir do amor de transferencia, nos dois artigos o autor privilegia o adio como um dos reguladores dessa relação. O analista terá que se haver com o adio que o paciente lhe causa e com os modos pelos quais essa sensação determinará uma reconfiguração na forma como interpreta e escuta.

Kahtuni (2005) afirma que a posição de Winnicott sobre a contratransferencia vai além do que é exposto nesses artigos, uma vez que Winnicott nao cessa de apontar, ao longo de sua obra, como o analista precisa estar atento as identificaçoes que estabelece com seu paciente e estar sensível as suas necessidades, ou seja,

Cabe ao terapeuta o cuidado de manter um pé na realidade externa e outro na identificação que faz com seu paciente. Também é sua responsabilidade equilibrar, no manejo da transferencia e da contratransferencia, sua autenticidade e capacidade criativa com os afetos genuínos que sente pelo paciente (sim, o terapeuta sente afetos por seus pacientes, e precisa gostar verdadeiramente deles para exercer as funçoes maternas no processo analítico quando for necessário, pois o trabalho com esses pacientes exige muita dedicação). (Kahtuni, 2005)

Kahtuni (2005) explica que esse tipo de relação acontece prioritariamente com pacientes que se apresentam em estágios mais primitivos do desenvolvimento psíquico. Estes apresentam processos evolutivos congelados num passado no qual nao dispuseram de um contato afetivo facilitador de seu desenvolvimento e, por isso mesmo, necessitam do terapeuta como uma figura identificataria que participa de um rearranjo de processos constitutivos que foram interrompidos. Tais pacientes revivem estágios precoces de desenvolvimento na situação transferencial e por isso precisam de um analista empático e que faça uso dos movimentos contratransferenciais como instrumentos de trabalho e de comunicação. Um profissional capacitado a ofertar um holding consistente, associado a um bom manejo do setting, atento a sua própria sensibilidade e aos movimentos psíquicos que se desenvolvem como resposta a imaturidade psíquica e ao tipo de dependencia do paciente. A autora faz alusao a influencia de Melanie Klein e seu conceito de identificação projetiva sobre a escola winnicottiana.

Assim, a posição winnicottiana sobre a contratransferencia também engloba o uso de movimentos contratransferenciais como instrumentos de trabalho e comunicação, pois, de acordo com Kahtuni (2005), a direção do tratamento exige, além de um salido conhecimento técnico, tearico e experiencial, habilidade empática do terapeuta e emprego de seus sentimentos contratransferenciais, valiosos guias no processo terapeutico.

 

 

O melhor dos empregados e o pior dos patroes, a contribuição de Hanna Segal

Hanna Segal é analista da escola kleiniana, tendo se formado na Sociedade Britânica de Psicanálise, da qual chegou a ser presidente. Realizou sua análise com Melanie Klein e alcançou a categoria de analista didata, aos 32 anos de idade. Em 1982 publicou o artigo "Contratransferencia", no qual oferece contribuiçoes importantes para a discussao do tema.

Nessa publicação, Segal analisa os pontos de vista alternantes com relação a contratransferencia dentro do cenário psicanalítico e atribui essa alternância no entendimento do fenômeno a uma evolução na compreensao da própria transferencia na psicanálise. Se em um primeiro momento ela foi considerada como resistencia ao trabalho, posteriormente "passa a ser vista como o fulcro no qual reside a situação analítica"11 (Segal, 1982). Em decorrencia dessa mudança, há uma evolução no reconhecimento da contratransferencia como "fonte de importância primordial, de informaçoes sobre o paciente" (Segal, 1982), o que a autora defende na esteira das consideraçoes de Heimann (1950), que considera ser a responsável pela mudança no eixo dessa discussao.

Trabalhando com o conceito de identificação projetiva, Hanna Segal propoe a transferencia como enraizada na experiencia infantil primitiva do paciente, que nao sa percebe e reage ao analista de modo distorcido, mas também "faz coisas com a mente do analista":

Todos estamos familiarizados com os conceitos de atuação ("acting in") que podem ocorrer de modo bastante grosseiro; contudo, aqui nao estou me referindo a uma atuação grosseira mas a algo constantemente presente – uma interação nao verbal constante em que o paciente atua sobre a mente do analista. (Segal, 1982)

Essa "interação nao verbal constante", a partir da qual o paciente atua sobre a mente do analista, Segal entende como sendo a identificação projetiva. As raízes da identificação projetiva, segundo Segal, encontram-se na situação clínica das seguintes maneiras: como uma comunicação subjacente e integrada a outras formas de comunicação que lhes dao profundidade e ressonância afetiva; como formas de comunicação predominante, provindo de experiencias pré-verbais que sa poderiam ser comunicadas dessa forma; ou até mesmo sob o formato de um ataque a comunicação. A autora completa seu raciocínio afirmando que essas formas de atuação do paciente se fazem cada vez mais presentes a medida que os casos se aproximam de processos psicaticos. Trabalhando o conceito de transferencia a partir dos processos de identificação projetiva, a autora completa:

Se olharmos desta maneira para a transferencia, entao se torna bastante claro que o que Freud descreve como atenção livremente flutuante se refere nao apenas a abertura intelectual da mente, mas também a uma abertura especial dos sentimentos – permitir que nossos sentimentos, nossa mente sejam afetados pelo paciente em um grau muito mais elevado que nas nos permitimos sermos afetados nas relaçoes sociais normais. (Segal, 1982)

Tributária da exposição de Heimann (1950), Segal rele a proposta freudiana de uma escuta livremente flutuante, acrescentando a definição do mestre uma espécie de "abertura especial dos sentidos", na qual o analista pode permitir que os seus sentimentos sejam afetados por aquilo que o paciente lhe traz como projeçoes transmitidas por formas de comunicação nao verbal que atravessam a sessao, cabendo ao analista a tarefa de escutá-las e integrá-las ao processo do tratamento. Mas a autora nao faz essas afirmaçoes sem tentar remete-las a técnica, justamente para diferenciar o movimento de transferencia que parte do paciente da contratransferencia, sua contrapartida no analista:

Ao falar destes sentimentos livremente flutuantes no analista, estarei dizendo que nao há diferença entre transferencia e contratransferencia? Espero nao estar dizendo nada disto, porque, ao mesmo tempo em que o analista está abrindo sua mente livremente a suas impressoes, ele tem que manter distância de seus praprios sentimentos e reaçoes ao paciente. Ele deve observar suas próprias reaçoes, concluir a partir delas para usar o seu praprio estado mental para a compreensao do seu paciente sem, em momento algum, ser dirigido pelas suas próprias emoçoes. (Segal, 1982)

Nao é para reagir instintivamente que o analista usa a contratransferencia. Se ele a usa, sa pode faze-lo mantendo uma distância de seus sentimentos, para garantir que a investigação de seus praprios processos afetivos no interior da sessao de análise sirva para a compreensao do seu paciente. Para explicar a maneira como o analista pode realizar isso, Segal utiliza a metáfora da relação da mae com seu bebe, segundo a qual a capacidade do analista de conter os sentimentos nele mobilizados pelo paciente pode ser vista como um equivalente da função de uma mae que contém as projeçoes do bebe, com a ressalva de que enquanto os pais o fazem instintivamente, o analista deve sujeitar seu estado mental a um exame, uma reflexao pré-consciente de seus estados internos.

Na análise da dinâmica transferencia/contratransferencia, a autora ainda faz uma ressalva: somos obrigados a admitir que nem todas as percepçoes que os pacientes tem de seus analistas sao, de fato, projeçoes. Segal observa que os pacientes reagem a aspectos da personalidade, a alteraçoes de estados de ânimo do analista, sejam esses aspectos uma resposta direta ao material abordado na sessao ou provindos de outras fontes. E existe um tipo especial de pacientes que detectam até as menores mudanças na atitude do analista, pacientes sensíveis e extremamente dependentes. Essa sensibilidade inusitada pode suscitar incômodo no analista, mas nem por isso se desenvolve alheia a condição do paciente. O paciente paranoide pode, por exemplo, detectar facilmente qualquer disposição negativa do analista. O paciente depressivo detecta mais facilmente sinais de fraqueza ou doença no analista. Segal defende que os analistas estejam conscientes tanto da capacidade de seus pacientes de detectar tais afetos, quanto de sua responsabilidade sobre o aparecimento dos mesmos, nao exatamente para que o analista "confesse" a sua contratransferencia, mas para que tenha consciencia da natureza de sua relação com seu paciente e possa reconhece-la na sua interpretação. Essa é, para Segal, a tarefa mais difícil. A maior parte da transferencia é inconsciente, assim como da contratransferencia, e delas sa podemos acessar os derivativos conscientes. Por isso mesmo, a autora propoe uma espécie de modelo de um bom estado funcional da contratransferencia no analista. Tal modelo pendular, por assim dizer, abarca dois movimentos que se alternam: uma relação receptiva com os conteedos advindos do paciente, que contém e compreende a comunicação do paciente, e outra mais ativa, que funciona produzindo ou dando compreensao, conhecimento ou estrutura ao paciente na interpretação.

Para falar sobre a condição ideal do uso da contratransferencia pelo analista, a autora utiliza o modelo do seio que contém o alimento, enquanto o mamilo o entrega aos poucos. A tarefa do analista, ao trabalhar com a contratransferencia, seria a de conter as identificaçoes projetivas do paciente, compreendendo-as como comunicaçoes e devolvendo-as aos poucos, nas interpretaçoes, como formas mais compreensíveis daquele conteedo, formas mais estruturadas, mais suportáveis. Segal denomina empatia e intuição esse processo de bom funcionamento da contratransferencia como ferramenta disponível ao analista para o entendimento do paciente. Acompanhando a autora:

Quando a nossa contratransferencia trabalha deste modo, dá origem a um fenômeno chamado empatia ou intuição psicanalítica ou sentir-se em contato. É um guia para a compreensao. Quando ocorrem rupturas nesta atitude, tornamo-nos conscientes de perturbaçoes no nosso funcionamento analítico, e devemos tentar compreender a natureza da perturbação e a informação que ela nos dá a respeito de nossa interação com o paciente. (Segal, 1982)

Ao mesmo tempo em que pode ser um "bom empregado", a contratransferencia pode se transformar no "pior dos patroes", se o analista se identifica com os afetos que o paciente lhe desperta e reage a esse conteedo alijado de sua função crítica. Isso, segundo Segal, aconteceu diversas vezes na histaria da contratransferencia, quando analistas construíram racionalizaçoes para agir sob pressao da contratransferencia e nao a utilizaram como um guia para a compreensao. É com essa advertencia que a autora encerra seu texto:

Muitas vezes vejo-me dizendo aos meus supervisionados que a contratransferencia nao é desculpa; dizer que o paciente "projetou-o em mim", ou "ele me irritou" ou "ele me colocou sob tal pressao sedutora" devem ser claramente reconhecidos como afirmaçoes de fracasso para compreender e usar a contratransferencia construtivamente. Nao argumento aqui que devemos, ou até, que possamos ser perfeitos, digo apenas que nao iremos aprender com nossos fracassos a nao ser que os reconheçamos claramente como tais. (Segal, 1982)

A contratransferencia nao é uma desculpa, defende a autora. Deixar-se atuar a partir dela nao representaria senao o fracasso de usá-la como um importante instrumento clínico para a compreensao dos processos internos do analisando. Hanna Segal faz questao de nao colocar o analista num lugar livre de erros, mas aponta para o necessário reconhecimento desses erros para que se possa aprender com eles.

Com a contribuição de Hanna Segal, encerramos o desenvolvimento deste trabalho, no qual apresentamos algumas definiçoes de contratransferencia, algumas propostas de destino para ela e algumas críticas a seu uso indiscriminado ou reativo na clínica.

 

 

Consideraçoes finais

Nossas primeiras perguntas sao relativas a definição do conceito de contratransferencia, as maneiras como ela se manifesta clinicamente, a que se deve sua aparição e que destino o analista deveria lhe conferir.

Quanto a definição do conceito, ao longo do trabalho podemos apreender, a partir das teorias apresentadas, que, embora haja divergencias quanto a definição precisa do conceito, a contratransferencia pode ser compreendida como um produto, um efeito do funcionamento psíquico do analista em contato com o paciente. A contratransferencia tem sempre dupla raiz: um ramo parte do paciente, dos seus complexos, da maneira como se posiciona na sessao e, consequentemente, os efeitos que provoca no analista a partir desse posicionamento específico; o outro ramo do qual surge a contratransferencia sao os processos internos do analista, seus desejos infantis e complexos atuais que estao em ação no momento da sessao analítica e que podem ali ser ativados.

Como vimos em Heimann (1950), a contratransferencia é uma resultante da maneira como o analisando se posiciona, de sua transferencia, por isso ela pode ser um importante instrumento de apreensao do inconsciente do analisando, uma ferramenta clínica de acesso privilegiado aos processos internos do paciente. Isso nao livra o analista da responsabilidade de buscar, a partir da sua análise pessoal e de uma postura atenta, separar os conteedos que tem origem no paciente daqueles conteedos que se originam dele mesmo, analista, os quais mantem relação com seus complexos internos e nao com os do paciente.

Heinrich Racker (1960) também considera a dupla raiz dos processos contratransferenciais. O autor argumenta que a transferencia se oferece como uma realidade constante no contato com o paciente, o qual apresenta, diante do analista, sentimentos, angestias, defesas e desejos reais. A resposta do analista é a própria realidade constante da contratransferencia, com sentimentos, angestias, defesas e desejos igualmente reais. Por isso, o autor propoe que o analista desenvolva em seu trabalho uma atenção pendular, que oscila entre permitir que a contratransferencia ocorra em um plano passivo-sensível, e exigir sua elaboração, em um plano crítico racional. Tal processo de elaboração tem o potencial de proteger analista e paciente da neurose de contratransferencia, que surge como algum tipo de manifestação dos complexos infantis, neuraticos do analista, os quais sempre o acompanham.

A proposta de Winnicott (1947/2000; 1960/1983) deriva de uma importante inversao que o autor realiza na concepção de transferencia. Em vez de falar de amor de transferencia, como a convenção estabelecia, Winnicott privilegia o adio como um dos reguladores dessa relação. O analista terá de se haver com o adio que o paciente lhe causa e com os modos como essa sensação determinará uma reconfiguração na forma como interpreta e escuta.

Segal (1982) amplia a noção freudiana de uma escuta livremente flutuante, propondo que a escuta analítica também seja portadora de uma abertura especial dos sentidos. Por meio dessa abertura, o analista permite que seus sentimentos sejam afetados por projeçoes de complexos internos do paciente, transmitidas por formas de comunicação nao verbal que atravessam a sessao. A tarefa do analista é perceber a transmissao desses conteedos e integrá-los ao processo do tratamento. Dito de outra forma, ao trabalhar com a contratransferencia, o analista recebe as identificaçoes projetivas do paciente, compreendendo-as como comunicaçoes, e as devolve, aos poucos, em interpretaçoes, como formas mais compreensíveis daquele conteedo, formas mais estruturadas, mais suportáveis.

O aporte tearico concedido por esses autores oferece algumas respostas para nossos questionamentos, como também advertencias nao sa pertinentes como necessárias. O uso indiscriminado da contratransferencia como instrumento isolado de compreensao da situação analítica determina riscos de natureza ética e técnica inadmissíveis. No entanto, negar a existencia dos afetos do analista como componentes do setting, refutar de maneira peremptaria a hipatese de que esses afetos possam dialogar com questoes do analisando, implica correr um risco tao grande quanto o primeiro, a saber, negar o fato de que o analista nao é imune ao contato com seu paciente. Ademais, considerar a contratransferencia como inerente ao processo analítico minimiza o risco de negligenciar o reconhecimento de preciosos aspectos da interação entre paciente e analista como uma relação fundamentalmente intersubjetiva em que ambos sao afetados, na qual o oferecimento de uma escuta ancorada na técnica nao descaracteriza a existencia sempre concomitante de uma escuta acolhedora e empática.

 

 

Referencias

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Recebido: 16/10/2016

Aceito em: 13/02/2017

 

1 Em "Fragmentos da análise de um caso de histeria" (1905[1901]/2006b), mais conhecido como O caso Dora, Freud se propoe reapresentar a posição da psicanálise no tratamento da histeria, mas o faz a partir de um fracasso clínico.

4 Carta endereçada a Jung, de 7 de junho de 1909 (McGuire, 1976, citado por Dias, 2006), na qual comenta com Jung a relação amorosa que o discípulo mantém com uma paciente.

5 Embora a autora trabalhe o conceito de pulsao de morte em toda a sua obra, é em "Inveja e gratidao" (1957) que Klein aprofunda as relaçoes entra a pulsao de morte e a inveja, e suas consequencias para a constituição psíquica do sujeito e para o manejo clínico do paciente.

6 É notável que a leitura de Freud que Melanie Klein privilegia é a do Freud mais praximo possível do Além do Princípio do Prazer, 1920 e de O Eu e o Id, 1923.

7 O livro Estudios sobre técnica psicoanalítica, de 1960, reene os principais textos de Racker sobre o tema da contratransferencia, que começam a ser publicados na segunda metade da década de 40 do século passado e continuaram sendo produzidos até a década de 1960.

8 Este artigo encontra-se sem paginação no original. Portanto, todas as referencias subsequentes nao apresentarao a especificação da página.

9 Essa, como as outras citaçoes retiradas do artigo "On Countertransference", de Heimann, presentes neste trabalho, sao de tradução nossa.

10 Agradecemos a Fábio Belo por esse e outros apontamentos com relação a posição de Winnicott sobre a contratransferencia. (Belo, 2012, comunicação pessoal).

11 Artigo sem paginação no original

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