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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.11 no.1 Belo Horizonte Jan./Jun. 2018

http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019110106 

ARTIGOS

 

Dialogia, self e lócus de identidade externos em pastores protestantes

 

Dialogy, self and external locus of identity in protestant pastors

 

 

Laís de Almeida AmbrósioI; Adriano Pereira JardimII; Mariane Lima de SouzaIII

IAFECC Hospital Santa Rita de Cássia, Vitória/ES, Brasil. E-mail: lais.ambrosio@gmail.com
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. E-mail: adrianopj@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. E-mail: limadesouza@gmail.com

 

 


RESUMO

Entre os desdobramentos diversos da teoria do self dialógico, a noção de posições identitárias aparece como um interessante modelo explicativo da relação entre identidade dialógica e reflexividade consciente. Ainda assim, a relação entre self e identidade é um fenômeno complexo que requer investigação mais detalhada, preferencialmente em uma variedade de contextos. O objetivo desse estudo foi, portanto, descrever as posições identitárias de pastores protestantes com foco na relação self/identidade. Para tanto, foi realizado estudo qualitativo, seguindo os critérios da fenomenologia-semiótica. Participaram do estudo oito pastores protestantes, que responderam a uma versão adaptada da Tarefa de Articulação Dialógica. Os resultados sugerem um funcionamento peculiar da reflexividade nesses indivíduos, em que o diálogo interno gera um lócus de identidade externo. Discute-se como a identidade pessoal é vista sob o prisma de uma percepção hipergeneralizada, expressando um senso de unidade pessoal difuso, similar ao espaço imaginado povoado por diferentes posições do eu.

Palavras-chave: Identidade. Dialogia. Religião.


ABSTRACT

Among the many consequences of the dialogical self-theory, the notion of identity positions appears as an interesting explanatory model of the relationship between dialogic identity and conscious reflexivity. Nevertheless, the relationship between self and identity is a complex phenomenon that requires further investigation, preferably in a range of contexts. The aim of this study was therefore to describe the identity positions of Protestant pastors, focusing on the self/identity relationship. Therefore, we conducted a qualitative study, following the criteria of semiotic phenomenology. Eight Protestant pastors answered an adapted version of the Tarefa de Articulação Dialógica. The results suggest a peculiar operation of reflectivity in these individuals, wherein the internal dialogue generates an external identity locus. We discuss how personal identity is seen through the prism of a hyper-generalized perception, expressing a sense of pervasive personal unit similar to the imagined space populated by different positions of the self.

Keywords: Identity. Dialogism. Religion.


 

 

Introdução

As noções de senso de si e identidade são objeto de estudo e interesse na psicologia desde seus primórdios como disciplina independente. Calkins (1908a; 1908b) chegou inclusive a definir a psicologia como a ciência do self (no original em inglês), mas foi William James quem ofereceu uma síntese pioneira a respeito do conceito. A teoria jamesiana focalizou o funcionamento do self, propondo uma distinção entre o "Eu", que seria o self-como-conhecedor, e o "Mim" que seria o self-como-conhecido ou self empírico (James, 1890/1990; Hermans, 1996). Já o conceito de identidade desenvolveu-se como um tópico especial do campo de estudos mais amplo do self (Leary & Tangney, 2003), levando, por vezes, a um entendimento de ambos os conceitos como sinônimos. É importante notar, contudo, que as identidades não são similares ao self, mas suas partes constituintes (Rosemberg & Turner, 1981). Isto é, a identidade abrange os aspectos modificáveis do self, que podem tanto se multiplicar como desaparecer no indivíduo (Souza & Gomes, 2005).

A relação mais ou menos similar entre self e identidade aparece com destaque no modelo teórico de Hermans, Kempen e van Loon (1992), que toma por base William James e o conceito de romance polifônico de Bakhtin (1929/2010). Nesse modelo, os autores apresentam um self descrito com base na metáfora do diálogo e de natureza plural, povoado por múltiplas vozes. Isto é, o self passa a ser definido como um todo constituído por diversas facetas do Eu, caracterizando-o como um "self em termos de multiplicidade dinâmica relativamente autônoma de posições do eu (I-positions) em um espaço imaginário"(p. 28). Graças a essa multiplicidade de posições é possível estabelecer relações dialógicas que ocorrem também entre o próprio self e o mundo social, garantindo, dessa forma, o surgimento de novas posições.

A natureza de tais relações dialógicas tem sido amplamente investigada e, de forma geral, as descrições do fenômeno ecoam a proposição vigotskiana de que o que acontece na consciência, ou no pensamento, é um reflexo da esfera social que nos cerca (Vigotski, 1934/2009). Na perspectiva de Vigotski, a relação dialógica pode ser entendida como uma conversação interna que se torna o meio pelo qual a ação reflexiva é realizada, e o self definido, por sua vez, como processo reflexivo da consciência (DeSouza, 2005; DeSouza & Gomes, 2009). Tal processo tem como base a característica peculiar da consciência humana de voltar-se sobre si mesma, isto é, de tomar a si própria como objeto (Wiley, 1994). Nesse sentido, tomam-se aqui como sinônimas as noções de self, processo reflexivo da consciência e reflexividade. Segundo Archer (2003; 2007), é possível inclusive distinguir os indivíduos conforme os perfis de reflexividade expressos em sua conversação interna em quatro tipos: o reflexivo-comunicativo, o reflexivo autônomo, o metarreflexivo e o reflexivo fraturado. Pessoas com o perfil reflexivo-comunicativo apresentam uma conversa interna iniciada de forma privada, mas concluída externamente. Por não terem confiança na conversa internalizada, comparam suas deliberações com outras pessoas, principalmente familiares e amigos, criando um padrão de "pensar-falar". Os reflexivos autônomos já apresentam uma conversa interna não partilhada; enquanto os metarreflexivos refletem sobre a própria reflexividade, com questionamentos sobre o porquê de certos assuntos serem pensados, dotando-os de uma característica semelhante ao perfil ruminativo de pensamento. Por fim, o perfil reflexivo fraturado se caracteriza por uma suspensão momentânea da capacidade reflexiva. Nesses indivíduos, a conversa interna se caracteriza por um processo constante de interrupção do pensamento.

Embora Archer (2007) parta de uma teoria sociológica, sua definição de reflexividade como uma forma de alguém considerar a si mesmo em relação ao meio social no qual está inserido implica uma percepção de unidade pessoal. Em outros termos, um senso de permanência parece indispensável ao self para que um indivíduo possa se reconhecer em meio à multiplicidade de posições. Por meio dele, o self é capaz de criar uma sensação de sermos o mesmo em constante mudança, isto é, uma sensação de identidade pessoal (Bell & Das, 2011; Salgado & Hermans, 2005; O'Sullivan-Lago & Abreu, 2010). Contudo, por tratar-se de uma sensação, a identidade não é definida como una, imutável, mas como uma organização também em constante mudança. Além disso, a identidade é entendida como dialógica, ou seja, "algo que se constrói a partir do jogo dialógico entre diferentes vozes ou posicionamentos identitários" (Cunha, 2007a, p. 28).

É possível supor, portanto, que as relações dialógicas dentro do self são realizadas por posições de identidade, em vez de posições do Eu. Essa mudança de nomenclatura enfatiza uma definição de posições como estruturas dotadas de certas características próprias, ou microidentidades, funcionando em um sistema identitário mais abrangente. Nesse sistema são criadas as relações dialógicas que expressam uma narrativa identitária (d'Alte, Petracchi, Ferreira, Cunha & Salgado, 2007; Cunha, 2007b). Tais relações estão sujeitas a mecanismos de autorregulação do self capazes de criar a ilusão de uma única posição identitária e garantem, portanto, a manutenção desse sistema.

Conforme Rosa (2009), no processo de construção da identidade é possível identificar três diferentes possibilidades de estratégias de gestão da multivocalidade do self. A primeira estratégia, denominada "sistema hierárquico", define uma relação de assimetria/simetria entre as posições na qual uma posição detém uma superioridade em relação às demais na construção de uma narrativa. O segundo sistema, denominado "sistema de prioridades", pode ser explicado utilizando a metáfora do teatro de Hermans (2006): as posições do self alternam-se entre palco e personagens, como nas formas em que a percepção se alterna entre figura e fundo. Isto é, ora as posições assumem o papel de ator, ora o papel de palco. Essa alternância garante que posições mais relevantes para o instante estejam em um núcleo mais dinâmico, enquanto as demais permanecem em um "plano de fundo". O terceiro sistema, denominado "sistema de ambivalência" é caracterizado por um nível de tensão que garante a troca intersubjetiva entre as posições. Esse sistema cria uma relação dialógica entre posições que possibilita a dinâmica de relacionamento tanto ativo (de confrontação), quanto criativo (ao recrutar um número maior de posicionamentos visando soluções inovadoras e criativas).

Mesmo tratando-se de gestões de equilíbrio, tais capacidades de organização podem vir a falhar, gerando um sistema mal adaptado de gestão. No sistema hierárquico, por exemplo, se a gestão não for flexível e dinâmica, as posições podem se enrijecer e então estabelecer uma hierarquia cristalizada que compele a uma identidade de caráter mais monológico. No caso do sistema de prioridades, existe também risco de uma ruptura da dialogicidade do self. Entretanto, posições alocadas no plano de fundo podem fixar-se permanentemente até se tornarem inacessíveis ou deixarem de participar do sistema. Por fim, a ambivalência pode exercer um nível de tensão elevado que, em vez de caminhar para um diálogo dinâmico e criativo, provoca um fechamento defensivo da relação dialógica. Embora tenham sido apresentadas separadamente, é importante ressaltar que tais estratégias podem conviver concomitantemente para garantir a organização de um sistema identitário (Rosa, 2009).

 

Identidade e Religião

O pertencimento religioso, especialmente nos casos do Protestantismo, do Catolicismo, do Judaísmo e do Islamismo está associado fortemente à experiência da conversão religiosa. A conversão, também chamada de um "novo nascimento" (Fernandes, 1998), caracteriza-se por uma declaração pública que o sujeito realiza de profissão de fé a sua divindade e pressupõe uma mudança de atitudes e comportamentos. Do ponto de vista psicológico, é um processo que gera transformações no self (Freitas & Holanda, 2014; Ullman, 1989), e do ponto de vista neurobiológico implica uma formulação de novos esquemas cognitivos que organizam a forma como alguém percebe o mundo (McIntosh, 1995).

Nesse sentido, a relação entre o objeto sagrado e a construção da identidade do sujeito religioso parece indissociável. Conforme Hermans e Dimaggio (2007), o momento de tendência mundial cada vez mais inclinada à globalização, a qual força um intercâmbio e uma negociação de posições do self constante, cria a necessidade cada vez maior de nichos estáveis para a construção da identidade. E a religião, tanto no caso dos indivíduos religiosos quanto no caso de audiências não religiosas, poderia justamente oferecer esse nicho.

Do ponto de vista psicológico, portanto, o estudo do tema religioso pode contribuir para uma compreensão mais abrangente da relação entre self e identidade. O presente estudo parte da pressuposição de que um posicionamento identitário religioso organiza o diálogo interno e exemplifica um caso de funcionamento especial da reflexividade dialógica, indicando uma monologização do self. O objetivo central deste artigo é oferecer uma descrição compreensiva das relações que existem entre a reflexividade dialógica e as posições identitárias em pastores evangélicos.

 

Método

Trata-se de estudo qualitativo conforme os critérios da fenomenologia-semiótica (Gomes, 1998; Lanigan, 1997), cujo ponto de partida é um esforço reflexivo de suspensão dos conceitos prévios relacionados ao fenômeno sob investigação (epochè fenomenológica), realizado em três etapas. Na prática de pesquisa, tal esforço traduz-se em uma descrição (primeira etapa) dos resultados, apresentados e organizados por unidades de sentido, sem análise teórica interpretativa, mas pautada na análise hermenêutica das entrevistas. Em seguida, na redução fenomenológica (segunda etapa), os dados apresentados são elaborados em uma síntese contendo o foco problemático central que reúne as partes previamente separadas na descrição, em uma redução radical. Por fim, na interpretação fenomenológica (terceira etapa), uma nova descrição é realizada à luz da literatura já publicada a respeito da temática tratada.

Participantes

Participaram voluntariamente desta pesquisa nove pastores evangélicos, sendo um deles voluntário para o estudo piloto. Os pastores pertencem às denominações Presbiteriana, Quadrangular e a uma comunidade evangélica sem filiação a nenhuma denominação. Todos são casados e com filhos. A idade média dos participantes é de 42 anos e a amostra foi formada por conveniência (ver Quadro 1).

Instrumento

O instrumento utilizado foi uma versão adaptada e traduzida para o português brasileiro da Tarefa de Articulação Dialógica - TAD (Rosa, 2009). A versão compreende um roteiro de entrevista, dividido em duas etapas. A primeira etapa é dividida em três fases denominadas 1. "Instrução para a identificação das posições de identidade". 2. "História de vida de cada uma das posições".E 3. "Diálogo entre as posições de identidade". A segunda etapa é dividida em duas fases, denominadas (i) "redefinição do repertório de posições de identidade" e (ii) "investigação de conteúdos levantados na primeira etapa de entrevista".

Procedimentos de Coleta de Dados

O primeiro contato com os participantes foi realizado por telefone ou correio eletrônico, informando os objetivos principais da pesquisa. O participante foi informado de que as duas etapas da entrevista seriam realizadas em locais de sua preferência, a saber, residência, gabinete pastoral ou o Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Espírito Santo. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas integralmente.

Procedimentos de Análise de Dados

Os dados fornecidos pela TAD foram analisados qualitativamente seguindo os critérios do método fenomenológico-semiótico. O procedimento seguiu três etapas: na primeira, foram feitas a nomeação e a descrição das facetas identificadas dos participantes; na segunda, uma categorização temática com base nos sentidos emergentes das falas dos participantes; e na terceira, uma nova descrição a partir do exercício imaginativo das facetas como personagens. Essas três etapas são apresentadas como descrição e a redução fenomenológica e compõem a seção "resultados", enquanto a interpretação fenomenológica, que apresenta uma nova descrição da problemática apontada na redução, é apresentada em forma de discussão teórica.

 

Resultados

Descrição Fenomenológica

A fim de facilitar a compreensão dos dados, a descrição está organizada em três partes denominadas Facetas de si, Posições de identidade e Autoconsciência, que correspondem, respectivamente, à primeira, segunda e terceira etapas da Tarefa de Articulação Dialógica. As facetas de si estabeleceram um contexto a partir do qual os pastores protestantes caracterizaram as próprias posições de identidade a fim de estabelecer (novas) relações de sentido entre as partes e, por consequência, tomar consciência do complexo sistema de si (autoconsciência). As três etapas estão descritas separadamente a seguir no intuito de apresentar o percurso reflexivo dos participantes, que resultou em uma autoconsciência caracterizada por três diferentes modos: estranhamento, reconhecimento dialógico e monologização.

Facetas de si

Os participantes identificaram ao todo 31 facetas diferentes. Os nomes foram atribuídos pelos próprios participantes. Facetas nomeadas de formas diferentes, mas com características semelhantes, foram agrupadas, como no caso da faceta "Emotivo/lado emocional/o emocional". O Quadro 2 apresenta todas as facetas, conforme nomeadas pelos participantes.

As facetas de si tem como foco o mundo interno e abrangem predominantemente características da personalidade. Entretanto, algumas facetas focalizam também o mundo externo e abrangem relacionamentos interpessoais, objetivos, motivações e profissão.

Posições de Identidade

A análise qualitativa dos relatos produzidos pelos pastores com o objetivo de caracterizar posições de identidade a partir das facetas fez emergir oito diferentes temas: "Ser representante de Deus na Terra", "A preocupação com o outro", "Jesus como exemplo a ser seguido e modelo a ser alcançado", "A solidão do ministério", "O chamado", "Ser uma criatura espiritual", "O encontro com Deus", "A Bíblia como acesso a Deus". Tais temas são descritos a seguir e exemplificados com breves excertos das falas dos participantes.

Ser Representante de Deus na Terra

A percepção de ser um representante de Deus na Terra aparece relacionada à responsabilidade pela função exercida e à importância de ser exemplo. O pastorado aparece relacionado com a preocupação de que o ministério se torne um trabalho que não sobrecarregue o pastor e com a percepção da dificuldade de ser uma figura de referência para sua família, Igreja e comunidade. O medo de adoecer, a fragilidade, a reafirmação constante da possibilidade de cometer falhas e a ansiedade são sentimentos percebidos como ameaças ao sucesso pessoal e profissional. A dificuldade de entender quais espaços sociais sua identidade pastoral ocupa gera dois posicionamentos: reforçar a figura pastoral sempre e pensar no pastorado como uma profissão como qualquer outra. O pastorado também foi relacionado a sentimentos positivos de crescimento pessoal e profissional. As dificuldades percebidas são encaradas como propulsoras de melhora.

A Preocupação com o Outro

A preocupação com o outro mostra uma reflexividade caracterizada pelo tema do cuidado com o outro, principalmente com a congregação religiosa sob seus cuidados e com seus parentes diretos, como a esposa e filhos. O cuidado com a família implica o cuidado consigo mesmo, no sentido de que ela se torna um ambiente no qual é possível ser algo diferente de pastor. A família também é encarada como um refúgio. Quanto à igreja local, o cuidado tem uma característica altruísta de doação extrema, mesmo que isso signifique abrir mão de si mesmo, comportamento não necessariamente associado a sofrimento. Ao contrário, ajudar o outro se torna fonte de satisfação e prazer, mesmo que cause algum prejuízo pessoal. Percebe-se prejuízo quando surge a preocupação focar a atenção na comunidade em detrimento da família. O cuidar também é percebido como uma das atividades que devem ser realizadas no exercício do pastorado, uma vez que os pastores entendem que a figura pastoral só pode existir tendo como correspondente direto a igreja. Logo, a igreja é encarada como um grupo de pessoas dependentes da figura pastoral.

Jesus como Exemplo a Ser Seguido e Modelo a Ser Alcançado

A figura de Jesus é percebida pelos pastores como alguém a ser imitado ou um ideal a ser alcançado. Adotar Jesus como padrão a ser seguido também alivia a responsabilidade de ser exemplo para os demais fiéis, ao se transferir a obrigação de ser exemplo para a figura de Jesus. Dessa forma, Jesus torna-se um significativo padrão de comportamento e um guia para atitudes cotidianas. Esse padrão vai além do relacionamento direto com atividades eclesiásticas e organiza comportamentos e pensamentos na vida secular, como nos ambientes de trabalho e família.

A Solidão do Ministério

O tema da solidão é o único a tratar somente de sentimentos de caráter negativo. Apesar de a atividade religiosa manter um contato direto com o público, a profissão foi reconhecida como solitária. Esse tema está também associado a uma dificuldade de expor os próprios problemas para terceiros porque tal característica impede de compartilhar com as pessoas as dificuldades experienciadas pelos pastores.

O Chamado

O chamado é uma experiência subjetiva, particular, pela qual Deus se manifesta de alguma forma convocando a assumir o trabalho de pastor. Essa convocação marca um momento-chave de decisão, mas pode denotar também o fim de um longo processo. O chamado é percebido como resposta a uma demanda que Deus tem de ter pessoas que façam o trabalho eclesiástico. Acontecimentos como ouvir a leitura de um texto bíblico e súbita resolução de situações angustiantes corroboram a decisão de se submeter a tal chamado, cumprindo o desejo de Deus na vida.

Ser uma Criatura Espiritual

Esse tema enfatiza a importância da espiritualidade. A reflexividade dos pastores expressa um entendimento de ser humano como um organismo composto de uma parte carnal, materializada em corpo; e uma parte espiritual, que está à procura de outro ser espiritual que lhe dê a sensação de um ser completo e garanta um sentido à vida. Essa parte espiritual é compreendida como algo que precisa de atenção, pois é o que garante o relacionamento com Deus. Para tanto, contudo, é necessária uma experiência de fé. É importante demarcar a distinção feita entre ser pastor e ser espiritual. A primeira diz respeito a atividades religiosas, enquanto a segunda diz respeito à fé que passa a organizar uma forma religiosa de agir no e de pensar o mundo.

O Encontro com Deus

O início do relacionamento com Deus é assinalado pelo que os pastores nomeiam como um encontro com "Ele" e tem características semelhantes ao do chamado: uma experiência subjetiva e essencialmente afetiva. Ela pode acontecer tanto no fenômeno da conversão religiosa, quando uma pessoa passa a professar uma crença diferente da anterior, quanto a partir de algum acontecimento específico na vida que provoque um interesse maior na religião. Diferente do chamado, o encontro com Deus também é conhecido por "novo nascimento" e tem a particularidade de ser seguido por mudanças de comportamentos. Esse encontro também pode dar-se em experiências de alívio após momentos de grande angústia. Uma sensação após o encontro com Deus é a de que a vida passa a ser uma responsabilidade não só sua, mas os acontecimentos a partir de então são vontade e permissão de Deus.

A Bíblia como Acesso a Deus

A Bíblia é percebida como uma ferramenta fundamental para conhecer e manter um relacionamento com Deus. A Bíblia é compreendida como o conjunto de livros que revela a essência divina, o que a faz instrumento físico de aproximação a Deus.

Autoconsciência

A relação entre as diversas facetas dotadas de sentido como posições de identidade pelos pastores caracterizou-se por três diferentes modos reflexivos: o estranhamento, o reconhecimento dialógico e a monologização. O modo "estranhamento" caracterizou uma dificuldade em perceber o conjunto diverso e por vezes contraditório das facetas nomeadas, como aspectos de si mesmo. De forma geral, a relação entre as facetas opostas foi percebida como um ponto de conflito. Contudo, o conflito foi percebido também como uma forma de motivação em prol de um objetivo comum. Ainda assim, as posições identitárias não foram consideradas facetas de si, mas sim relacionadas a aspectos externos da vida do participante.

O modo "reconhecimento dialógico" caracteriza-se pelo sucesso em perceber uma relação dialógica entre as próprias facetas, utilizando a metáfora dos personagens em um palco. A relação percebida entre as diferentes facetas foi de boa convivência, guiada pela busca de equilíbrio. Esse modo reflexivo é acompanhado de exemplos de diálogos imaginados, verbalizados pelos participantes. As facetas parecem obedecer a uma organização hierárquica, seguindo um sistema de prioridades particular, no qual cada faceta está sujeita a outra por uma gradação de importância. Há também uma organização de importância de cada faceta de acordo com espaços sociais específicos que selecionarão que voz sobressairá. As facetas podem, ainda, relacionar-se de uma forma na qual se estabelece uma tensão que viabiliza a troca intersubjetiva entre as posições Pastor versus Pai/Marido. Essa troca é provocada pelo ambiente social e físico no qual o participante transita.

O modo reflexivo "monologização" caracterizou-se pela percepção de pouca ou nenhuma oposição entre as facetas identificadas. Isto é, as facetas foram percebidas como partes de um sistema unívoco, em vez de autônomas ou independentes entre si.

Redução Fenomenológica

A redução fenomenológica apontou um foco problemático que inter-relaciona todos os temas explicitados na descrição: a centralidade da posição externa "Deus". A reflexividade dos pastores parece apontar para uma percepção de si que se subdivide em uma identidade pessoal e uma identidade divina. A identidade divina, em específico, está associada à responsabilidade de ser um representante de Deus para um determinado grupo, gerando mudanças de comportamento e no relacionamento consigo mesmo e com familiares. Além disso, a posição externa Deus aparece relacionada ao bem-estar pessoal por meio do sentimento positivo associado ao "encontro com Deus". A centralidade dessa posição identitária externa é comum aos três modos reflexivos identificados, a saber, o estranhamento, o reconhecimento dialógico e a monologização, sugerindo que ela tem um papel fundamental no processo de construção da identidade dos pastores.

 

Discussão

Interpretação Fenomenológica

Os modos reflexivos caracterizados como "estranhamento" e "reconhecimento dialógico" do grupo de pastores protestantes deste estudo ilustram especialmente duas estratégias de gestão da multivocalidade do self (Rosa, 2009). O estranhamento parece vincular-se à estratégia do "sistema de prioridades", no qual há uma percepção parcial da autonomia entre as diferentes posições de identidade, que se alternam no tempo quanto à sua relevância para o sistema. O "reconhecimento dialógico" pode ser explicado como uma estratégia de gestão do tipo "sistema hierárquico", no qual a assimetria/simetria entre as posições instaura a relação dialógica, com uma posição prevalecendo sobre as demais. Mas também como a estratégia "sistema de ambivalência", em que a dinâmica ativa e criativa de relação garante uma intensa troca subjetiva entre as posições. A "monologização", por sua vez, poderia ser entendida como um caso extremo da estratégia do "sistema hierárquico", ou mesmo do "sistema de prioridades", no qual a tensão e a alternância deixaram de ocorrer devido à dominância de uma posição.

Os diferentes modos reflexivos têm em comum, entretanto, uma ênfase na posição identitária externa relacionada a um ente divino. Tal ênfase parece fenomenologicamente congruente com o mundo vivido dos participantes do estudo. A profissão de pastor encontra-se em uma interseção entre a esfera de vida afetiva e a profissional. Assemelha-se a uma dualidade entre vida pública e vida privada, na qual privadamente existe um homem que pratica sua fé, e publicamente um homem que se torna um líder, uma referência para as demais pessoas de mesma fé ou não. A relutância em aceitar ou reconhecer os próprios defeitos e a preocupação em corrigi-los expressados pelos pastores deste estudo revela uma severa autoavaliação. Tal característica pode ser explicada nesse grupo específico pelo mandamento religioso, seguido pelo pastor, de ser o mais parecido possível com Jesus Cristo. No protestantismo, Jesus é reconhecido como um líder supremo da Igreja. Dessa forma, não existem figuras de outros profetas e santos dignos de culto nem pessoas que representem toda uma crença, como o Papa, no catolicismo. Esse ponto se caracteriza como a principal distinção entre duas linhas de pensamentos que levou à Reforma Protestante no século XVI, quando o Protestantismo se separa da Igreja Católica Apostólica Romana por, dentre outros pontos, acreditar que cada fiel é responsável por sua busca pelo sagrado, sem mediações de terceiros como padres ou santos, por posse da Bíblia (Mauricio Junior, 2011). Curiosamente, esse apelo por autonomia pode levar a uma ancoragem dos modos reflexivos em posições coletivas, gerando, ao contrário, uma reflexividade com características predominantemente heterônomas.

Um dos atributos do líder é a capacidade de tomar decisões, ser proativo e ter um comportamento empreendedor, características que têm sido investigadas, de uma perspectiva psicológica, nos estudos sobre lócus de controle (Maciel & Camargo, 2010). A noção de lócus de controle, proposta por Rotter (1966), diz respeito a como a pessoa percebe que os eventos ocorridos são de seu controle ou não. Para Rotter, uma pessoa pode apresentar tanto um lócus de controle interno, quando considera a si como o principal responsável pelos eventos e seus subsequentes resultados, quanto um lócus de controle externo, quando atribui a responsabilidade a terceiros. É importante ressaltar que não se trata do real controle das situações, mas a forma como uma pessoa interpreta esses acontecimentos passados para então ter uma expectativa generalizada dos eventos que ainda acontecerão. A internalidade e externalidade desse controle seria excludente, criando um padrão nessa percepção particular dos episódios cotidianos. Para Levenson (1974), que propôs um refinamento da teoria a partir de uma perspectiva multidimensional, são três os tipos de orientação: internos autênticos, externos defensivos e externos autênticos. A base lógica da subdivisão da externalidade é que pessoas que acreditam em um mundo desordenado (acaso), aqui denominados externos autênticos, pensariam e agiriam de uma forma diferente daqueles que acreditam em um ser divino no controle. Esses últimos seriam os externos defensivos, perfil que se ajusta à análise qualitativa da percepção dos pastores protestantes neste estudo. Contudo, embora os estudos reportem que líderes que se percebem como de maior sucesso são aqueles que têm um lócus de controle interno (Howell & Avolio, 1993), esse parece não ser o caso dos pastores, pois, apesar das dificuldades do trabalho exercido, relatam êxito nos projetos desenvolvidos.

Por outro lado, pessoas com perfil de externalidade apresentam características como desinteresse, apatia, falta de motivação e pessimismo (Rodrigues, 2007), o que não é expresso na reflexividade dos pastores. Ao contrário, embora os pastores concebam que o destino de suas vidas é guiado de certa forma por Deus, isso não exclui a participação ativa no curso de suas próprias vidas. Isso poderia sugerir que, talvez, o perfil de externalidade envolva em algum grau um certo controle do sujeito.

Na percepção dos pastores, o ministério foi dado por Deus como uma missão que deve ser realizada por eles e mais ninguém. Caso dê resultados positivos, Deus é o responsável. Se o oposto, a responsabilidade é sua, uma vez que Deus não erra. Essa característica tampouco é explicada pelo perfil de externalidade, uma vez que pessoas com lócus de controle externo tendem a ser mais tolerantes consigo mesmo, uma vez que se responsabilizam menos por seus atos. No caso, pela impossibilidade de atribuir falha a Deus, o que significaria toda uma reestruturação de dogmas que organizam sua fé, todos os erros passam a ser responsabilidades dos pastores.

O tema "A preocupação com o outro", expresso como posição identitária, parece denotar um foco de atenção também externo e localizado no outro. De forma semelhante, embora recordar e narrar uma história de vida a respeito de cada uma das facetas escolhidas parece não ter exigido grande esforço cognitivo, imaginar um diálogo entre elas revelou-se uma tarefa contraintuitiva. Uma explicação possível é que perceber cada faceta individualmente provoca um afastamento no qual é possível enxergar a si próprio também como algo externo, como se estivesse falando de outra pessoa. O foco do indivíduo é voltado novamente para fora de si. Já no caso de imaginar um diálogo entre as facetas, o foco do indivíduo é voltado para si: fala de si a partir de si, e precisa transitar de uma posição a outra. O diálogo entre posições internas aparece, portanto, como mais desafiador do que o diálogo entre posições internas e posições externas.

Resultados de um estudo qualitativo sobre a percepção da função do diálogo interno e da oração em adultos jovens mostram que a personificação do interlocutor interfere no funcionamento da reflexividade (Ambrósio & DeSouza, 2012). Para esse grupo de religiosos, a oração e o diálogo interno têm as mesmas funções e estruturas; contudo, eles se percebem mais como sujeitos que oram em lugar de sujeitos que conversam consigo mesmo. Dessa forma, a oração é definida como o meio principal utilizado para pensar sobre si e o mundo. No caso da presente pesquisa, os pastores relatam uma intensa externalização de conteúdos privados, direcionados à esposa, à igreja e a Deus em busca principalmente de confirmação de decisões tomadas. No caso do relacionamento com Deus, a necessidade de aprovação é mais desejada e o comportamento padrão parece ser uma resignação, principalmente no que diz respeito à vontade e/ou plano de Deus. Esse comportamento entra em conformidade com o comportamento dos adultos jovens, para os quais a oração fornece uma sensação subjetiva de infalibilidade.

É evidente que os pastores fazem uma diferenciação entre eles e o mundo, mas Hermans (2003) afirma que para obtenção de uma identidade individual é preciso estabelecer relações dialógicas entre posições do Eu. Não é possível afirmar que os participantes deste estudo não estabeleçam relações dialógicas, mas apenas que a articulação dialógica entre as facetas não foi percebida ou não pode ser expressa por eles por meio do instrumento utilizado. O que pode indicar uma fraqueza da Tarefa de Articulação Dialógica, que parece ter favorecido a narrativa de uma breve história de vida sobre as facetas, e não a partir delas.

Seguindo uma linha de análise ontogenética, podemos propor que antes, no desenvolvimento cognitivo, consolida-se um perfil reflexivo que interfere na percepção de uma unidade pessoal. Tal afirmação é suportada tomando os clássicos estudos de Piaget (1990) e Vigotski (1934/2009) sobre o aparecimento da fala egocêntrica e a internalização da linguagem ainda em fases iniciais do desenvolvimento humano. Kugiumutzakis (2012), mais recentemente, sugeriu também o início precoce de um desenvolvimento do self. A forma como a unidade pessoal é percebida possivelmente seja determinada por meio de uma ação reflexiva. Contudo, a percepção de uma unidade pessoal nos pastores evangélicos se assemelha tanto com a ideia de uma identidade dialógica (Rosa, 2009) quanto ao constructo de individualidade e singularidade proposto por Harré (1998).

Na percepção dos pastores, o relacionamento entre as facetas de si é descrito como não conflituoso e permeado por uma busca do bem comum para o próprio desenvolvimento e amadurecimento do sujeito. O intercâmbio entre as posições ocorreu com uma associação de similitude entre um papel e o ambiente social correspondente. Um caso exemplar é o de Abraão, quando separa suas facetas por localização espacial, criando díades como pastor-igreja, professor-ambiente acadêmico e pai de família-lar, organizando essa multiplicidade em um sistema de prioridades (Rosa, 2009; Valsiner, 2002). Em todos os casos, um senso de identidade religioso parece funcionar como um plano de fundo.

Esses dados podem ser explicados pelo fato de que o senso de uma unidade pessoal se assemelha mais a uma compreensão de uma narrativa que vai se construindo a partir de um senso de localização de si como pessoa em relação ao espaço e tempo e em relação a outros (Harré, 1998). Tal localização garante tanto o senso de continuidade ("eu continuo o mesmo") quanto a sensação de individualidade ("Não há outro ocupando a mesma trajetória que eu ocupo"). Já a diferenciação em relação a outros garante a sensação de singularidade ("eu tenho características, atributos pessoais, relações que me tornam único").

Especificamente no caso da identidade religiosa como plano de fundo, a concepção de identidade se assemelha mais a uma identidade social compartilhada por uma comunidade cristã ou a um senso de identidade hipergeneralizado. Märtsin (2010) apresenta uma alternativa para visualizar a identidade como "um processo de ser que resulta na construção de um campo difuso de um sentindo pessoal hiper-generalizado" (p. 439). Dessa forma, a identidade é ela própria o plano de fundo que se sente e permanece o mesmo, não obstante as contínuas novas experiências e relações. Isso não exclui a dialogicidade do self, pois essa perspectiva assume que a identidade é uma autointerpretação que o self constantemente realiza via processos de internalização e externalização com a finalidade de construir sentindo para si e para o campo social (Valsiner & Lawrence, 2003), mas é provável que essa interpretação se dê de forma a se adaptar a esquemas cognitivos já formados no indivíduo (McIntosh, 1995). Isso porque, a partir das experiências vividas, é preciso criar uma narrativa que seja aceitável e plausível, ou o resultado é um senso de identidade altamente fragmentado ou absolutamente nenhum senso de identidade.

O que parece acontecer nesse grupo de pastores é que para construir esse senso de identidade ocorre um fenômeno denominado spiritual bypass, isto é, uma interpretação dessas experiências somente em termos religiosos (Jankowski, 2011). Isso pode esclarecer categorias temáticas com conteúdo religioso mesmo que as facetas iniciais, a princípio, não tenham nenhuma ligação óbvia ou direta com o espiritual.

Jankowski (2011) define spiritual bypass como um "silenciamento de vozes não-religiosas" (p. 46). Esse fenômeno de silenciamento é narrado quando os pastores relatam que facetas que tinham ou têm precisam desaparecer. Tais facetas são consideradas defeitos que os impedem de serem bons líderes ou os afastam da trajetória de ser o mais parecido possível com Jesus, denotando que a conversão religiosa é responsável por mudanças no self.

O spiritual bypass também apresenta uma clara relação com lócus de controle externo e é geralmente atribuído a um mau uso da vida espiritual, pois cumpre uma função de evitar experiências psicológicas difíceis ou dolorosas (Cashwell, Glosoff & Hammond, 2010). Entretanto, essa evitação pode ser entendida como um recurso importante do indivíduo para o enfrentamento de situações estressantes que, neste caso, produz benefícios à saúde e bem-estar psicológico (Sandage & Jankowski, 2010). Quanto a esse mecanismo, cabe ressaltar que no caso específico dos pastores protestantes estudos de psicologia social e de sociologia apontam que as religiões protestantes privilegiam a emergência de um conceito de individualidade muito particular, uma vez que focam no contato direto do indivíduo com Deus, excluindo mediações simbólicas de cunho cultural, e definindo a reflexividade como o campo próprio para a verificação da ação dialógica do self (de Araújo Gomes, 2006; Gomes, 2011; Mancebo, 2002; Paula, 2012; Riesebrodt, 2012).

O bem-estar psicológico é definido como a integração de seis componentes que pudemos observar no grupo de pastores, que são autoaceitação, relacionamento positivo com outras pessoas, propósito de vida, crescimento pessoal, autonomia e domínio do ambiente (Siqueira & Padovam, 2008). Todos esses componentes parecem presentes, garantindo o bem-estar psicológico, mesmo os componentes que exigiriam um lócus de controle interno como a autonomia e domínio do ambiente.

Ter um lócus de controle externo e ao mesmo tempo perceber autonomia e domínio do ambiente parece contraditório, mas um ponto fundamental do cristianismo é que ao converter-se o fiel passa a receber o Espírito Santo, que é uma das formas de Deus. Teologicamente, isso significa que o corpo do fiel passa a ter uma parte de Deus em si de forma constante. Psicologicamente, existe a encarnação de uma identidade própria e uma identidade de um ser divino habitando no mesmo corpo. Logo, a ação que o Espírito Santo efetua por meio de mim também é ação efetuada por mim. Essa configuração, que poderia criar rupturas na narrativa de uma identidade pessoal, é percebida como normal e é o que gera a sensação de liberdade e satisfação consigo mesmo. É a ideia de que Deus está no controle de todas as coisas existentes no mundo, inclusive a sua própria vida, retirando a responsabilidade e ansiedade com as coisas que podem acontecer, reforçando que entregar-se a Deus garante uma melhor qualidade de vida (Belloti, 2012).

Essa encarnação de múltiplos selves constituindo um único indivíduo pode ser percebida como natural, uma vez que o entendimento de Deus como uma trindade é um dos pontos fundamentais da fé cristã (Jankowski, 2011). Dessa forma, quanto mais distante se tornar do que era e mais próximo se tornar daquilo que Jesus Cristo é, mais satisfação é experienciada.

 

Considerações Finais

A investigação da dialogicidade dos pastores protestantes neste estudo pôs em relevo, mais uma vez, a tendência do processo reflexivo da consciência à manutenção de uma unidade pessoal. Mesmo em indivíduos com uma intensa experiência consciente da ideia da multiplicidade de posições, a dialogicidade parece contraintuitiva. Para os participantes deste estudo, a divindade é expressa pela Trindade composta por três pessoas (o Pai, o Filho Jesus e o Espírito Santo) e a vivência da conversão religiosa protestante é um evento em que o Espírito Santo, o próprio Deus, passa a conviver no mesmo corpo que o convertido. Consequentemente, de uma perspectiva psicológica, pode-se sugerir uma consciência da experiência vivida dos pastores que implica a coexistência de uma identidade particular do indivíduo e de uma identidade divina.

Contudo, os pastores expressaram a mesma dificuldade de percepção das relações dialógicas entre as posições do eu apontadas por DeSouza, Oliveira, DaSilveira e Gomes (2013) em um estudo com adolescentes, utilizando o Repertório de Posições Pessoais - um instrumento criado por Hermans (2001) para avaliação do self dialógico. Uma explicação possível é que, além de contraintuitiva, a Tarefa de Articulação Dialógica, adaptada para este estudo, esbarrou em um mecanismo de defesa do senso de unidade pessoal que cada pessoa tem, percebe e expressa a respeito de si próprio. Tal hipótese, entretanto, necessitaria ser investigada em estudo futuro com outros grupos, no qual fosse possível, por exemplo, comparar indivíduos com experiências reflexivas diversas, atores e autores literários.

Além disso, em estudo futuro com foco na relação self/identidades, seria relevante verificar se existe convergência entre os três modos reflexivos dos pastores protestantes e as características de sua conversação interna, de acordo com os perfis sugeridos por Archer (2007). Nesse caso, o desenho de pesquisa deveria incluir um protocolo de eliciamento de conversação interna, em situação mais ou menos livre (conferir, por exemplo, DeSouza, DaSilveira & Gomes, 2008) ou uma entrevista com tópicos voltados para a avaliação da conversação interna. Teoricamente, pode-se especular que o modo reflexivo "monologização", talvez tanto quanto o modo "estranhamento", estará associado ao perfil de conversa interna "reflexivo fraturado", e o modo reflexivo "reconhecimento dialógico" ao perfil "reflexivo autônomo".

 

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Recebido em 12/08/2016
Aprovado em 02/10/2017

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