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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.11 no.2 Belo Horizonte jul./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019110212 

ARTIGOS

 

O cuidado aos usuários de drogas: entre normatização e negação da autonomia1

 

Drug users' health care: between normalization and denial of autonomy

 

 

Maria Paula Naves VasconcelosI; Fernando Santana de PaivaII; Marcelo Dalla VecchiaIII

IUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil. E-mail: mpnavesv@gmail.com
IIUniversidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. E-mail: fernandosantana.paiva@yahoo.com.br
IIIUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil. E-mail: mdvecchia@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

As concepções que definem o uso de drogas e seus usuários, elaboradas entre profissionais que atuam na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), podem ter impactos no modo com que são realizados cuidados à saúde de pessoas com problemas devidos ao uso de drogas. Buscou-se compreender as concepções de profissionais que atuam na Raps acerca do cuidado. Foram realizadas duas entrevistas grupais: (i) com profissionais de um Caps Ad e (ii) com trabalhadores e voluntários de uma comunidade terapêutica, ambos situados em um município de pequeno porte do estado de Minas Gerais, Brasil. Os resultados apontaram para duas categorias centrais de análise: (i) instituição como espaço de normatização do cuidado e (ii) individualização do cuidado como negação da autonomia do sujeito. Observa-se uma priorização das estratégias terapêuticas baseadas na internação e na abstinência, sendo necessário aprofundar estudos sobre os sentidos do cuidado e do processo de trabalho para profissionais de saúde.

Palavras-chave: Drogas (abuso). Cuidados à saúde. Políticas de saúde.


ABSTRACT

The conceptions that define the use of drugs and their users, elaborated among health workers of the Brazilian Psychosocial Care Network (Raps), can have an impact on the delivery of health care to people with problems with drugs. We sought to understand the conceptions about care of professionals who work in Raps. Two group interviews were conducted: (i) with health workers from a Psychosocial Care Center - Drugs (Caps Ad) and (ii) with workers and volunteers from a therapeutic community, both located in a small municipality in the state of Minas Gerais, Brazil. The results pointed two central categories of analysis: (i) Institution as a space for standardization of care; and (ii) Individualization of care as a denial of the autonomy of the subject. A prioritization of therapeutic strategies based on hospitalization and abstinence is observed, and it is necessary to deepen studies on the meanings of care and work process.

Keywords: Drugs (abuse). Healthcare. Health policies.


 

 

Introdução

O consumo de substâncias psicoativas tem sido identificado como parte da experiência humana, havendo registros do uso de drogas com vistas a cumprir diferentes finalidades no âmbito social. Práticas curativas, rituais e manifestações religiosas ou simplesmente a busca por prazer são alguns exemplos registrados. Trata-se, portanto, de uma prática corrente, observada entre diferentes agrupamentos humanos ao longo da história, mas que na atualidade ainda sofre de inúmeros estigmas e preconceitos, incorrendo em políticas e práticas de cuidado contraditórias (Silveira, 2008).

Segundo dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) em 2012, 50% da população adulta brasileira consumia álcool, 16,9% tabaco, 6,8% (8 milhões de pessoas) já consumiu maconha ao menos uma vez na vida, 3,8% (5,1 milhões) já fez uso de cocaína aspirada e 1,4% (1,8 milhões) era usuária de crack. Entre essa população, estima-se que uma em cada 200 pessoas seja dependente ou faça uso abusivo de tais substâncias, demandando tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

A constituição da Raps visou avançar na consolidação de uma rede horizontal de serviços, como princípio organizativo do SUS, ao sistematizar as linhas de cuidado às pessoas com sofrimento mental e usuárias de drogas no âmbito do SUS em vários níveis de atenção e complexidade, coexistindo em seu interior diferentes práticas e concepções acerca do cuidado que é ofertado aos usuários de álcool e outras drogas. Em relação ao modelo de atenção atualmente adotado, cumpre ressaltar que o tema das drogas passou a ser abarcado pelo Estado, a partir de uma perspectiva de saúde pública e dos movimentos da Reforma Psiquiátrica e Sanitária, que impulsionaram propostas de mudança na rede de assistência à saúde mental, por meio da criação de serviços substitutivos aos manicômios, numa tentativa de romper com a presente lógica de exclusão, marcada pelo encarceramento asilar imposto àqueles sujeitos tidos como desviantes (Alves, 2009). Esse movimento representou a quebra de hegemonia do hospital psiquiátrico como espaço privilegiado de tratamento, o que significou ainda o desmantelamento das articulações espúrias entre a ditadura empresarial-militar no Brasil e os donos de hospitais psiquiátricos, que detinham em torno de 90% do orçamento da previdência social brasileira, o que era destinado à manutenção dessas instituições em que se concentrava o atendimento a pessoas com sofrimento mental e usuários de álcool e outras drogas (Amarante, 1995).

Os movimentos sociais organizados em torno das lutas pelos direitos dessas pessoas motivaram intensas críticas ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico e, a partir disso, diferentes rumos foram tomados no que diz respeito às práticas em saúde voltadas para esse público. Resultado disso é que o Sistema Único de Saúde (SUS), desde sua promulgação, passou a tomar frente na assistência aos usuários de drogas, tendo como um dos marcos importantes a proposta e posterior aprovação da Lei nº 10.216/2001 (Lei Paulo Delgado).

Ademais, a Portaria nº 336 do Ministério da Saúde (2002) estabelece diretrizes para o funcionamento de serviços atuantes no campo da saúde mental, ganhando destaque a atuação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Trata-se de serviços que apresentam como objetivo, dentre outros, ofertar atendimento diário a seus usuários dentro de uma área de abrangência definida, dispondo de atividades preventivas e terapêuticas e buscando trabalhar a diminuição do estigma que recai sobre a população atendida. Esse modelo é o também adotado no caso dos sujeitos usuários de drogas que são atendidos pelos Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Outras Drogas - Caps Ad (Alarcon, Belmonte & Jorge, 2012).

Entretanto, para além do Caps Ad, as comunidades terapêuticas (CTs) também foram previstas como parte da Raps e seu papel considerado na oferta de cuidados como braço da rede de atenção, a partir de uma pretensa proposta de trabalho intersetorial no acolhimento de usuários de drogas instituída pela Portaria nº 3.088 de 2011. Cumpre assinalar que os Caps Ad são considerados serviços de atenção psicossocial, devendo, portanto, basear suas práticas de cuidado na Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (2003), funcionando a partir dos conceitos de rede e território, bem como da lógica ampliada da redução de danos. Esse processo impõe contradições de difícil solução no cotidiano dos trabalhadores da Raps.

Tais dispositivos deveriam adotar o modelo de atenção psicossocial, que contribui para uma ampliação no repertório de atuação de profissionais dedicados ao trabalho nesse campo a partir da perspectiva da redução de danos. Esse paradigma não desconsidera a possibilidade de uma total abstinência, mas concebe objetivos intermediários no caso de pessoas que não conseguem parar o uso ou simplesmente não desejam estar abstinentes. Essa ideia vai ao encontro da noção de que o homem é capaz de fazer escolhas, a partir de sua realidade e que construam o sentido de sua existência. Trata-se, portanto, de criar possibilidades de escolhas de forma mais autônoma e livre, de modo a minimizar situações de vulnerabilidade (Petuco, 2015; Sodelli, 2010, 2011).

A elaboração de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) faz parte desse modo de atenção, levando em conta as liberdades individuais, o direito de escolha, o protagonismo dos sujeitos e a propriedade de cada um sobre seu corpo e sua saúde. Concebe-se, aí, que há diferentes indivíduos, diferentes drogas, diferentes maneiras de consumi-las, diferentes motivações para o consumo e diferentes desfechos, sendo, portanto, necessário também que sejam desenvolvidas estratégias diferenciadas, a depender das situações e contextos de uso (Bokany, 2015; Sodelli, 2011).

No tocante à presença das CTs nessa rede de cuidados, é importante sinalizar que durante a década de 1970 o alcoolismo era a terceira causa de internações nos manicômios. A partir da ampla utilização de medicação para o alcance da abstinência, vista como um recurso fundamental no tratamento, consolida-se nesse período no Brasil o campo dos cuidados a pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Além de único objetivo a ser atingido, a abstinência era também condição e meio para o tratamento, contribuindo tanto para assegurar os lucros das instituições psiquiátricas privadas e conveniadas quanto para a repressão de singularidades (Alves, 2009).

O surgimento dos grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) nesse período é também um marco significativo do histórico da consolidação desse campo de cuidados. Atualmente os AA, que são grupos de autoajuda de prática leiga, encontram-se espalhados por todo o mundo e contribuem para a disseminação da ideia do alcoolismo como doença, que deve ser admitida pelo usuário e "curada" por meio da abstinência. Os 12 passos propostos pelo grupo inspiraram tratamentos em instituições e irmandades (Petuco, 2015).

O trabalho em torno dos 12 passos dos AA é presente em grande parte das instituições que ofertam tratamento a usuários de drogas em regime fechado. A maioria das chamadas CTs baseia o cuidado em práticas de cunho religioso e na adoção da abstinência como meta e regra absoluta. Nesse modelo de cuidado, os indivíduos devem adequar-se às normas e regras de convivência estabelecidas, com ênfase na modificação de seu estilo de vida e seus valores, acarretando em culpabilização devido à individualização do uso problemático. Ressalta-se que tais instituições foram historicamente se configurando como espaço de tratamento em razão da seletividade do Estado em oferecer ações de cuidado aos que mantinham vínculo formal de trabalho, enquanto indigentes e pessoas sem registro em carteira de trabalho tinham que procurar CTs ou entidades assemelhadas para serem assistidas (Alarcon, Belmonte & Jorge, 2012; Schneider, 2008; Paim, 2009).

A maneira de compreender e abordar o problema do uso prejudicial de álcool e outras drogas recebe influência direta de diversas questões individuais, institucionais e sociopolíticas que atravessam as concepções construídas acerca do cuidado ao usuário. Tais concepções acompanham e são acompanhadas por outras, como sobre o que se entende por drogas, lícitas e ilícitas, e as maneiras de usá-las, tudo isso impactando no que é posto em prática. Por conseguinte, isso influencia a vida dos usuários e de seus familiares, podendo produzir estigmas e exclusão do direito ao cuidado ou amenizar tais circunstâncias (Ronzani, Noto & Silveira, 2014).

Nessa direção, levando-se em conta o histórico de construção do campo do cuidado a usuários de álcool e outras drogas no Brasil e as contradições referentes à forma como tais cuidados acontecem na prática, nota-se a relevância de estudos sobre a temática. Com base no exposto, o presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa que visou compreender as concepções de cuidado adotadas por profissionais que atuam em um Caps Ad e uma CT, inseridos na Raps de um município do estado de Minas Gerais.

 

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa exploratória, baseada no enfoque qualitativo, fundamentando-se no ciclo de pesquisa proposto por Minayo (2009), que se sustenta nos momentos de fase exploratória, trabalho de campo e análise e tratamento do material.

Foram realizadas entrevistas grupais com profissionais do Caps Ad (profissionais médico clínico geral e farmacêutico) e integrantes de uma CT (dois orientadores de CT, um voluntário e uma psicóloga) de um município de pequeno porte de Minas Gerais. As entrevistas foram realizadas em uma sala que viabilizou a privacidade, com duração de aproximadamente 90 minutos cada. Além da presença da pesquisadora, contou-se com a colaboração de um observador, que contribuiu com as discussões e análises do material posteriormente. A utilização de entrevistas grupais se ajusta à pesquisa, visto que se trata de uma questão pública, não promovendo constrangimentos ou afetando a intimidade dos participantes (Fraser & Gondim, 2004).

Em relação ao Caps Ad, cumpre assinalar que se trata de um serviço novo no contexto municipal e que conta com equipe reduzida e diversas dificuldades estruturais. A CT em questão funciona com base no Modelo Minnesota, que recorre aos 12 passos dos AA, sendo considerada referência no tratamento de usuários de drogas no município e região. Trata-se de dois espaços diferentes, mas que fazem parte da Raps, conforme supracitado, e, cada um à sua maneira, acolhe demandas de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas.

É importante sinalizar a dificuldade encontrada em campo para assegurar a adesão dos profissionais do Caps Ad, que apresentaram muitos impasses no agendamento das entrevistas. O contexto político e certa desconfiança com relação à natureza da investigação podem ter dificultado o contato, o que impossibilitou o acesso a um maior número de profissionais desse serviço.

O material construído foi devidamente transcrito e submetido a uma análise de conteúdo de tipo temática, visando à sistematização e à construção de categorias que expressassem o conteúdo registrado. Foi realizada uma leitura geral dos conteúdos manifestos, que já se encontravam transcritos, visando destacar as impressões gerais e ordenar as falas dos participantes, estabelecendo uma primeira aproximação às unidades de registro e evidenciando trechos significativos. A seguir, foram realizadas releituras exaustivas do material a fim de confirmar as unidades de registro identificadas (categorias analíticas), estabelecendo-se uma ordenação final do material, por meio da consolidação dos procedimentos da pré-análise.

As categorias identificadas foram exploradas, de forma a buscar responder à questão inicial da pesquisa acerca das concepções de cuidado. O presente artigo concentrou-se nas unidades de registro descritas a seguir, sendo que as categorias "Militância × Tecnicismo" e "Rede de Atenção", também delimitadas durante a pesquisa, não foram apresentadas nesta oportunidade, sem prejuízo da discussão ora apresentada. Posteriormente, o material foi submetido a uma análise com base no referencial teórico delimitado, realizando-se um diálogo entre a literatura existente e as temáticas emergentes no processo de análise qualitativa (Gomes, 2008).

 

Resultados e Discussão

A partir do processo anteriormente sinalizado, foram identificados dois eixos centrais de análise, expressos nas seguintes categorias: (i) instituição como espaço de normatização do cuidado e (ii) individualização do cuidado como negação da autonomia do sujeito. Cumpre ressaltar que tais categorias são parte dos resultados encontrados na investigação, que apresentou maior número de categorias analíticas. Entretanto, em razão do espaço e possibilidade de aprofundamento da discussão, optou-se por focalizar a apresentação nessas duas categorias, que explicitam contradições inerentes ao cuidado ofertado aos sujeitos que têm necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

 

Instituição como Espaço de Normatização do Cuidado

Apesar das divergências aparentes entre os discursos dos profissionais do Caps Ad e representantes da CT, pontos em comum se salientam, dentre eles o fato de partirem de princípios que fomentam a institucionalização e a normatização. Em seus discursos, percebe-se que operam de forma a reproduzir a forma de tratamento instituída no dia a dia dos espaços institucionais, expressando dificuldade para refletir criticamente sobre esse processo. É importante que esses espaços se comprometam a acompanhar a transformação da vida social, de modo a romper com a resistência à mudança representada pelo que está instituído nesse campo, e promover uma abertura à reinvenção de suas práticas (Baremblitt, 1992).

Ainda que habitualmente se confundam organizações com instituições, as instituições consistem em lógicas e formas de pensar que, instituídas, sustentam certos modos de funcionamento, materializados nas organizações (Baremblitt, 1992). Mesmo que neste texto se utilize o termo instituição com o sentido de organização, é importante sinalizar que as instituições são marcadas por determinações do contexto econômico, político e ideológico.

Com relação ao trabalho no âmbito do cuidado a usuários de álcool e outras drogas, há que se dar destaque ao papel desempenhado por instituições asilares e/ou grupos de ajuda mútua, que defendem uma racionalidade reducionista, moralista e acrítica sobre o consumo de drogas. O modo asilar de tratamento se liga à ideia de instituição total, desenvolvida por Ervin Goffman (1990), já que sujeitos assim tratados levam uma vida formalmente administrada e isolada.

A compreensão do cuidado como a necessidade de adequar comportamentos, torná-los funcionais e normatizar as pessoas em tratamento aparece de forma mais velada no discurso dos profissionais do Caps Ad, vindo à tona mais claramente no relato dos profissionais da CT, como explicitado nos trechos a seguir.

Tem que pensar realmente na reinserção social, assim, ajudar essas pessoas a voltar a funcionar, a funcionar com a vida delas. (Entrevistado 2, Caps Ad)

Então hoje é um trabalho mais de reformulação, assim que eu vejo o que a gente faz. Tem psicólogo lá, então vai no psicólogo, né? Tem as meninas lá e tal. E a gente trabalha no ato assim, de reformulação de comportamentos, de orientação. (Entrevistado 3, CT)

Porque a tendência nossa ali é conscientizar do problema que ela tem, se conhecer melhor, ver como é que é o uso de droga pra ela, tentar se encontrar dessa forma, tomar consciência e cortar isso. A tendência nossa é essa, conscientizar as pessoas pra elas continuarem em recuperação. (Entrevistado 4, CT)

No último trecho a noção de conscientização aparece como uma estratégia utilizada. Ressalta-se que se trata de um conceito complexo e com o qual parecem trabalhar sem nenhuma referência aprofundada, desprezando o papel central do contexto sociocultural e ideológico que perpassa o processo de tomada de consciência sobre si e sobre o mundo (Cabral, Ribeiro, Silva & Bonfim, 2015, Freire, 2001).

Não obstante, a ideia de "cortar isso", ou seja, cessar com o uso de drogas, mostra-se um objetivo presente na metodologia utilizada no espaço institucional. A partir do viés proibicionista, a abstinência é tomada como única finalidade admissível no que tange à maneira de oferecer cuidado aos usuários de drogas, apostando-se em ações repressivas e criminalizadoras (Alves, 2009; Rybka, Nascimento & Guzzo, 2018). Há alternativas, como o trabalho em torno da redução de danos, que, segundo Pollo-Araujo e Moreira (2008) e Lopes e Gonçalves (2018), aceitam objetivos parciais quando não se vê possível e/ou desejado o alcance da abstinência.

Identificam-se, portanto, diversas maneiras de se trabalhar o cuidado ao usuário, que refletem concepções dos agentes envolvidos no processo. Tais concepções predominantes encontradas no âmbito das políticas públicas, assim como entre atores da sociedade civil acerca da temática aqui problematizada, podem ser compreendidas a partir de um resgate acerca de como o tema vem sendo socialmente constituído.

Porém, o que dizem sobre o cuidado se parece mais com tentativas de normatização, do papel da instituição como lugar de controle, alcançado a partir de intervenções protocoladas e verticalizadas por parte de profissionais postos como únicos detentores do conhecimento (Contatore, Malfitano & Barros, 2017), ainda que os participantes do estudo apresentem discursos aparentemente diferentes. Percebe-se então, com base nos discursos apresentados nas entrevistas, que o que dizem não se concretiza na realidade, estando ambos caminhando pela mesma via: a da normatização de formas de agir. Aqui se faz necessário chamar atenção para o cuidado a ser tomado pelas instituições envolvidas no tratamento de usuários de drogas, visto que representam importante papel no desenvolvimento da autonomia (ou não) dos sujeitos.

Diversas instituições influenciam discussões a respeito do fenômeno do uso de drogas e contribuem para que usuários de substâncias permaneçam estigmatizados e marginalizados. Grande parte das concepções e explicações que emergem nesse meio, provenientes da mídia, da religião e da ciência, mostra-se individualizantes e moralizantes. No discurso dos profissionais do Caps Ad, por vezes há referência ao tratamento dos veículos de comunicação de massa sobre o tema, enquanto na fala dos profissionais da CT a religião tem lugar central. Tudo contribui para que a droga seja posta como o problema central, o que também justifica a necessidade de normatização de comportamentos (Paiva & Costa, 2016).

Pra mim, atenção é ajudar sempre, estar a serviço de alguma coisa assim nesse sentido. Então, assim, hoje eu acho que eu tenho muito amor pra dar. Os internos têm que amar a Deus em primeiro lugar, se amar, cuidar dos outros. Eu tenho muito amor pra dar pras pessoas, então Deus coloca eles nessa vida aí pra fazer isso. (Entrevistado 4, CT)

Na chamada [refere-se a um programa televisivo], tem uma mulher que fala assim: "eu sou muito forte, eu não posso perder pra uma pedrinha desse tamanho". A compulsão dela no caso é o crack, que a gente sabe como transforma o cara. (Entrevistado 1, Caps Ad)

Sendo então a droga objeto que supostamente transforma os sujeitos que dela fazem uso, os espaços institucionais destinados ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas são reforçados como lócus de controle e normatização: "tem paciente que a gente dá alta que eu queria saber se ainda tá abstinente. Tem muita gente conseguindo abstinência lá, eu fico desconfiado. Dá pra desconfiar. Mas quando sai de lá a gente perde o controle" (Entrevistado 2, Caps Ad). Além disso, o relato de um profissional da CT é ilustrativo:

Então é um trabalho que tem que ficar bem atento, devido ao comportamento do dependente químico ser de manipulação, ser de umas coisas assim. Às vezes agressivo, às vezes impulsivo. Então a gente tinha que ficar bem atento, assim, no turno da noite que a gente trabalhava. Pra ninguém fugir também. Então ficava atento. (Entrevistado 3, CT)

O uso de substâncias psicoativas como algo a ser banido foi afirmado majoritariamente pela óptica de valores moralizantes presentes na sociedade. Religião, família e trabalho fazem parte de muitos discursos formados a respeito dos usuários, sendo os conflitos em tais esferas tomados como causadores ou consequências de ações tidas como desviantes, como o uso de drogas. Além disso, os usuários de drogas atendidos pelas políticas públicas são em grande maioria sujeitos inseridos em contextos de pobreza, marcados por criminalidade e violência, o que reforça a associação que se faz, desde o século XX, do uso de drogas a bandos criminosos e suas práticas delituosas (Petuco, 2015).

Cabe enfatizar que alguns dos participantes do estudo são ex-internos da instituição (CT) e por diversas vezes falam de si para exemplificar o que entendem por cuidado.

Em recuperação aí continuo me exigindo ter humildade. De algumas coisas eu abri mão, está tudo certo. Abri mão de autossuficiência, abri mão de prepotência, arrogância, de um monte de coisas. Porque eu, como dependente químico, se eu continuar sendo autossuficiente, achar que eu faço as coisas do meu jeito que vai dar certo, paro de ir à reunião... Por mais que eu queira a recuperação, você precisa de terapia, você precisa de grupo. (Entrevistado 6, CT)

Participantes da CT parecem dar extrema importância aos grupos, como Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), no processo de cuidado, e assumem a existência de características definidoras do "dependente químico", bem como valores a serem adotados, muitos derivados da lógica do controle oriunda, nesse caso, de certas tradições religiosas que comparecem nesses espaços. Grande parte das CTs atuais no Brasil foi constituída e ainda opera tendo como ênfase abordagens religiosas, eventualmente sob o manto da idéia de "espiritualidade" (Fossi & Guareschi, 2015).

Observa-se também que os atores envolvidos com o cuidado mantêm-se operando pela via da guerra às drogas e do paradigma proibicionista, enquanto ignora-se a população que necessita de cuidados na condição de historicamente negligenciados e mantidos à margem da ordem social vigente. A suposta necessidade de institucionalização se conforma a essa ideia, já que a proibição do uso de drogas também funciona como meio de normatização e a institucionalização é compreendida nesse caso como maneira de corrigir o desvio.

Sendo assim, contribui-se para que prossigam a conviver regularmente com violações de direitos humanos, criminalização e descaso.

Não é dando comida, não é dando estudo, dando coisa não, porque têm muitas e muitas pessoas que têm o estudo, têm a comida, têm isso, têm aquilo, têm outras coisa e usam droga e dão trabalho ... Enquanto a gente não for considerar a droga uma droga não vai resolver o problema. Porque "ah, dá comida pra ele". Não, pera aí. A droga é que tá fazendo o problema, vamos combater a droga. (Entrevistado 4, CT)

A oferta de serviços como os Caps Ad deveria ser priorizada no âmbito do cuidado, no entanto, dentre os motivos pelos quais isso não ocorre, estão o orçamento público reduzido, o descrédito do cuidado em liberdade pelas próprias famílias e comunidade, os interesses privados de setores considerados filantrópicos, além do clientelismo que fortalece espaços que não têm o interesse público como norte. Assim, nota-se que, atualmente, no cenário brasileiro, as CTs continuam sendo privilegiadas no tratamento dos usuários de drogas.

Não obstante, observa-se, tendo por base os discursos dos entrevistados, que os Caps Ad também podem operar como espaços de normatização, ainda que envoltos por um discurso aparentemente embasado nos princípios da Reforma Psiquiátrica e por uma concepção de cuidado mais abrangente, e utilizando-se de conceitos técnico-científicos: "a questão da dependência é química, a dependência é uma situação química. E a abstinência é a agudização da falta da substância" (Entrevistado 2, Caps Ad); "a gente vai conter pra restabelecer a crítica dessa pessoa pra vocês psicólogos poderem sentar, ouvir, observar o que tá acontecendo" (Entrevistado 1, Caps Ad).

Os profissionais enunciam a droga como objeto que impede a reflexão por parte dos sujeitos que a usam, como algo que gera "falta de crítica", sendo necessária a medicalização para sanar o problema. É importante enfatizar que ao aplicar tal forma de contenção pode-se anular outros aspectos da subjetividade, como processos criativos. Muda, portanto, a forma de contenção, que nesse caso não é física, mas medicamentosa ("camisa de força química"), sendo a contenção uma prática comum nas duas instituições, proveniente da lógica manicomial (Bezerra, Morais, Paula, Silva & Jorge, 2016).

Em relação ao papel desempenhado pelo Caps Ad, o trecho a seguir reflete um aspecto importante: "Eu acho que a gente está funcionando como uma base de apoio pra tirar eles de dentro do ambiente onde eles fazem uso, o botequim e as bocas de fumo, locais onde eles vão usar. Ali é um refúgio, eu vejo como um refúgio. Alguns pacientes aderiram, outros vêm menos" (Entrevistado 2, Caps Ad).

Sobre o serviço ser visto como um refúgio, ou seja, um lugar onde podem se esconder do que provoca o mal, percebe-se um descompasso, já que a proposta de um serviço aberto é que ele não retire os sujeitos de sua comunidade e de perto de suas redes sociais. Ao atuarem como refúgio, tais serviços podem continuar a manter o sujeito apartado da realidade social, culminando em um isolamento problemático para um cuidado de cunho emancipatório. Assim, serviços como os Caps Ad podem acabar ocupando espaços de pouca capilaridade para pensar questões acerca da política sobre drogas e o seu papel na rede de atenção psicossocial, enquanto o cuidado permanece focalizado no uso e no usuário de drogas (Alarcon, Belmonte & Jorge, 2012).

Compreende-se a complexidade da questão do uso de drogas e o fato de que esta, assim como algumas concepções e práticas nesse campo, ainda esteja em pleno processo de construção. Nessa direção, percebe-se ainda a preferência por uma prática punitiva no âmbito do cuidado, ou seja, que coloca os indivíduos como culpados pelo lugar que ocupam e, portanto, fracassados se não conseguem sair dele. Tal prática pode reproduzir um modelo asilar/hospitalocêntrico, não apontando para a busca de autonomia dos sujeitos, uma vez que eles são tomados como "dependentes" e, assim, incapazes.

Tendo-se por base a ideia de incapacidade, permanece atual a noção de que usuários de serviços de saúde mental requeiram tutela. Porém, experiências anteriores dão visibilidade a problemáticas geradas pelo caráter tutelar de práticas de cuidado, o que não favorece processos criativos e de subjetivação (Amorim & Lavrador, 2017). Essa discussão nos leva ao eixo seguinte.

 

Individualização do Cuidado como Negação do Sujeito Autônomo

Como fruto da histórica desigualdade socioeconômica brasileira, faz-se visível a dificuldade de grande parte da população em viver com um mínimo de dignidade, desfrutando de direitos historicamente conquistados, construindo seus projetos de vida com autonomia, mesmo que dentro dos limites da ordem vigente. Tal relação se reproduz em várias esferas, inclusive no que concerne ao cuidado a usuários de álcool e outras drogas, em que os sujeitos são mantidos passivos, de forma a serem inseridos em um processo de normatização, que reproduz mecanismos de opressão hegemônicos em nossa realidade social (Paiva & Costa, 2016).

A partir das formas de cuidado ofertadas no contexto atual, dá-se grande importância à institucionalização de pessoas que usam drogas e a práticas que visam ao restabelecimento da norma a partir da manutenção/supressão de comportamentos tidos como disfuncionais, o que não favorece a emersão de sujeitos reflexivos e críticos, ou seja, autônomos (Onocko-Campos & Campos, 2006).

Compreende-se o processo de constituição da subjetividade com inspiração na obra de Lev. S. Vygotski (1896-1934), que considera o sujeito como uma unidade que se constitui na relação com o outro, pela linguagem, rompendo-se com a dicotomia entre indivíduo-sociedade. Além de tal mediação, nessa perspectiva o sujeito é visto como ativo e criativo, compreendendo-se que o fortalecimento dessa noção esteja diretamente ligada a certa autonomia de ser desse sujeito. Significados construídos dependem dos lugares ocupados na sociedade, marcada por antagonismos de classe social, além de marcadores de desigualdades como raça, gênero, território e idade. Assim, significados e sentidos possibilitam a produção de subjetividades (Molon, 2011).

As falas descritas neste tópico retratam um discurso em torno da lógica da individualização da questão do cuidado, o que gera questionamentos sobre o lugar do sujeito nesse processo. Percebe-se certo desconhecimento acerca daquele a quem se destina o cuidado ou, no mínimo, uma negação dessa pessoa como sendo um sujeito autônomo. Ressalta-se que individualização é compreendida aqui não como prática de um cuidado personalizado, mas como a dificuldade em conceber o caráter histórico do campo do cuidado a usuário de álcool e outras drogas, o que pode recair em culpabilização unicamente do indivíduo que se submete ao tratamento, sendo relegado o caráter sociocultural desses comportamentos.

Com relação às formas de cuidado disponíveis aos sujeitos usuários de drogas, percebe-se em muitas a predominância de uma lógica contrária ao modo de atenção psicossocial (Costa-Rosa, 2000), utilizando-se de internações asilares e medicação para alcance do único objetivo possível, que é a abstinência total do uso de drogas (Petuco, 2015). Percebe-se ainda a ideia de a autonomia ser deixada de lado no processo de cuidado, evidenciando-se o descompasso existente nesse campo. As concepções construídas acerca de tal processo, baseadas na formação dos profissionais, em experiências pessoais e na própria construção histórica do tema, têm relação com tal descompasso e contribuem para a naturalização do fenômeno, para a estigmatização e culpabilização dos sujeitos (Melo, Assunção & Dalla Vecchia, 2016). Isso pode ser observado inclusive no interior dos serviços que ofertam tratamento, "porque tem gente que não vai dar problema, mas esses dependentes químicos, eles têm que considerar a droga um veneno" (Entrevistado 6, CT).

Vale ressaltar que, atualmente, o uso de determinadas drogas é ilegal em diversos países, sendo compreendidas como perigosas para a saúde pública, causa da pobreza e miséria vivida por muitas pessoas. Assim sendo, o paradigma proibicionista, que tem sido adotado como discurso ideológico e prática política de controle do consumo e combate às drogas, tem se mostrado, por um lado, ineficaz para erradicar a venda e o consumo prejudicial das substâncias consideradas ilícitas e, por outro lado, eficaz em agudizar as desigualdades com relação ao acesso ao cuidado (Fiore, 2012). Além disso, tal paradigma contribui para que haja uma seletividade jurídica, a depender de recortes de renda, gênero, raça/etnia e local de moradia, na definição de usuários e traficantes. Essa maneira de analisar e intervir na questão das drogas tende a demonizar tais substâncias, a partir de um discurso moral, que criminaliza o usuário, contribuindo para sua estigmatização por profissionais das políticas públicas, influenciados por discursos midiáticos e religiosos (Alarcon, 2012).

Eles têm que ver que não pode: "olha, eu num posso com a droga, eu num posso mesmo com a droga, eu tenho que sair da droga, eu tenho que descobrir outra coisa. Tomar suco, tomar qualquer outra coisa, tomar água, tomar qualquer outra coisa. A droga eu não posso". Eu só acho que ele melhora assim, porque se não ele vai ficar recaindo, voltando e aquela coisa horrorosa. E a droga cada vez mais põe ele mais doidão, né? O palavreado aí, mas põe ele mais doido e vai dando mais problema. (Entrevistado 4, CT)

Grande parte dos profissionais inseridos no âmbito das políticas públicas ainda não concebe os problemas relacionados ao uso de drogas como da ordem da saúde pública, haja vista o discurso hegemônico que tende à estigmatização dos usuários e a crescente individualização dos problemas e mazelas sociais como desvios que não atendem à lógica normativa da ordem societária (Ramôa, Felício, Ferraz & Lessa 2012): "A parte, por exemplo, financeira, da posição social, aquilo reduz a zero. Mesmo porque tem todo tipo de pessoa, todos sofrem com a dependência química, passam do mesmo jeito, a coisa é igual, o assunto é igual, né? (Entrevistado 4, CT).

Nessa perspectiva, o "problema" das drogas é tratado a partir de um paradigma individualizante, no qual os sujeitos são responsabilizados, recaindo-se em um subjetivismo exacerbado, enquanto não se politiza a questão e mantêm-se as circunstâncias socioculturais de lado. Há de se considerar a relação dialética estabelecida entre sujeito e realidade social e o fato de que as condições objetivas de vida e a subjetividade mantêm uma relação de interdependência, ficando também em segundo plano o debate e o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas que estão diretamente relacionadas às drogas (Ramôa, Felício, Ferraz & Lessa 2012).

Identifica-se na presente pesquisa uma tendência a privilegiar uma perspectiva de cuidado que se assenta em uma ideia de individualização. Isso significa que, em geral, a questão do uso de drogas não é concebida e tratada de maneira integral. Fala-se de um cuidado restrito ao indivíduo, este concebido a partir de um viés biomédico, liberal, uma mônada circunscrita a si própria, ignorando-se que esse processo deve ser compreendido de maneira mais abrangente, sendo de ordem coletiva, política, econômica e cultural (Paiva & Costa, 2016).

Os relatos a seguir ilustram essa questão: "a dependência é uma doença de fato, não é uma questão só de boa vontade" (Entrevistado 2, Caps Ad); "a gente faz um trabalho lá pra tentar ajudar ele a tomar consciência da doença, que é a dependência química, a forma que ela age" (Entrevistado 3, CT); "a questão é química mesmo, né? É uma situação em que, para você não fazer uma sedação física, você faz uma contenção química só pra ele restabelecer o mínimo de crítica pra poder fazer tratamento ambulatorial" (Entrevistado 1, Caps Ad).

Estudos empíricos recentes evidenciam a dificuldade em possibilitar processos de subjetivação e criação de formas alternativas de vida e cuidado, enquanto as práticas profissionais permanecem enrijecidas e centralizadas no processo de adoecimento ou em seu diagnóstico. A exemplo do tratamento da "loucura", no cuidado a usuário de álcool e outras drogas é interessante buscar compreender os sintomas visíveis também como produtores de autoconhecimento e sentido, o que vai muito além da ideia de cura como "supressão de sintomas" (Amorim & Lavrador, 2017; Contatore, Malfitano & Barros, 2017).

Os profissionais do Caps Ad, participantes do estudo, dizem trabalhar com redução de danos dentro do serviço, como perspectiva orientadora do cuidado, mas mostram compreender a questão de forma reducionista ao dizer da prática. O foco permanece então no uso de drogas e no efeito destas no organismo, e todas as ações são pensadas em princípio por essa via, embasadas por concepções morais e medicamentosas: "A gente substitui uma droga ilícita por uma lícita. O álcool é um baita de um exemplo disso. O mesmo princípio do álcool é o do diazepan, clonazepan. E aí tira o álcool e dá o diazepan, que tem o efeito um pouco parecido, só que não tão deletério" (Entrevistado 2, Caps Ad).

A redução de danos, nesse caso, se restringe a técnicas e procedimentos, tal como a substituição da bebida alcoólica por psicofármacos, e não como uma racionalidade e forma de compreensão ampliada sobre o fenômeno. Ao operar o cuidado dessa maneira, favorece-se a negação do sujeito como ser autônomo e deixa-se de trabalhar outros aspectos de suas vidas, como as redes de apoio e cuidado e os demais laços que o constituem como seres políticos. Assim, o cuidado vai sendo pensado e praticado a partir de um esquadrinhamento do sujeito, colocado como isolado da realidade social e culpabilizado pela situação em que se encontra:

Ah, ele tem que se responsabilizar pela vida dele, por aquilo que ele está fazendo, né? Ele tem que ter consciência das escolhas que ele está fazendo para a vida dele. Não pode jogar a culpa na família, a culpa no tratamento que é oferecido na CT. Não! A responsabilidade é dele. (Entrevistada 5, CT)

Neste trecho evidencia-se a noção de individualização do problema, que mantém o sujeito como unicamente responsável por seu fracasso perante as drogas. É inequívoca a importância de que os sujeitos sejam responsáveis e possam ter a capacidade de dirigir suas vidas. Entretanto, a partir desse discurso de caráter liberal e meritocrático, a questão parece estar ligada a um problema de ordem meramente individual. A instituição, de certo modo, fica protegida, enquanto se desloca dela a responsabilidade pelo cuidado, podendo haver pouco espaço para uma análise da própria práxis. Ignoram-se elementos político-econômicos e histórico-sociais que se relacionam ao uso e retira-se a responsabilização da instituição pelo cuidado dos mais vulneráveis. Se os sujeitos não se adaptam ao tratamento e não concebem o fenômeno da mesma forma, a disfunção parece estar neles, não na instituição: "ah, na internação dificulta muito quando a pessoa está rebelde, quando a pessoa está muito orgulhosa, quando a pessoa é muito arrogante, autossuficiente" (Entrevistado 3, CT).

Outro aspecto que foi percebido se refere ao modo como se concebe o PTS no tratamento, o que pode contribuir para a perpetuação da noção de individualismo nesse âmbito. A partir de uma lógica de cuidado que reduz o singular ao individual se esconde uma leitura minimalista e reduzida sobre a questão do uso de drogas, muito ocupada em não explicitar as desigualdades e mazelas sociais: "a gente procura tentar, da melhor forma possível, trabalhar focando nele, na demanda dele, mostrando pra ele a importância quanto a usar algum medicamento" (Entrevistado 2, Caps Ad).

Como um efeito provocado pela droga no indivíduo, ressalta-se a "perda de crítica", que parece ser explicitada a partir de comportamentos disfuncionais que necessitam ser contidos. A necessidade de restabelecer a crítica também contribui para a negação da autonomia dos sujeitos submetidos ao cuidado nos espaços institucionais, reforçando as ideias de individualização e normatização: "a pessoa pode perder a crítica naquele momento e... Enfim, não existe bate papo, não existe conversa pra pessoa que não está com crítica, né?" (Entrevistado 2, Caps Ad).

Os dados construídos reforçam a ideia de que as práticas dentro dos serviços se mostram afastadas de certo ideal de cuidado preconizado pelas políticas públicas de saúde, pautadas na promoção de autonomia, no trabalho com a comunidade e na redução de danos como princípio orientador. Se não sustentam esse ideal baseando-se na noção de autonomia dos sujeitos, fica explícito outro projeto, este sendo de ordem individualista e de normatização dos comportamentos. Trabalhadores de qualquer instituição envolvida com o cuidado a usuários de álcool e outras drogas deveriam refletir sobre suas práticas e como estas afetam o sujeito nos âmbitos individual e coletivo.

 

Considerações Finais

Vale salientar, a partir de todo o processo de investigação desenvolvido, que foi possível perceber que os grupos estudados não estão em dissonância com relação ao contexto nacional, no qual são priorizadas estratégias terapêuticas baseadas na internação e na abstinência, com as CTs e suas federações buscando legitimar-se e conquistar financiamento e espaço público, enquanto serviços como os Caps Ad acabam sendo relegados a segundo plano, mesmo que recebendo respaldo legal (Sodelli, 2015). Ainda que as CTs venham sendo cada vez mais estudadas e exploradas em pesquisas científicas (Perrone, 2014; Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015; Ribeiro & Minayo, 2015), uma melhor aproximação com esse setor e outros serviços das políticas públicas é necessária, de modo a ampliar a discussão em torno do cuidado aos sujeitos usuários de drogas.

A dificuldade em alcançar profissionais dispostos a contribuir com o estudo reforça a fragilidade do campo e o contexto de disputa. Porém, confrontando-se os resultados encontrados com estudos sobre a mesma temática, permanece a ideia de que o contexto estudado não se encontra apartado do contexto nacional. Ao pesquisar concepções de profissionais da Raps sobre o cuidado a usuários de drogas, percebeu-se que, ainda que tenham ocorrido avanços na política brasileira e na legislação, o acesso aos atores envolvidos com o cuidado continua sendo algo delicado. A pesquisa suscitou questionamentos e reflexões, podendo abrir margem para novos estudos com profissionais e usuários dos serviços. O papel desses últimos como importantes atores do cuidado pode ser mais explorado, bem como se pode pensar nas possíveis lacunas na formação dos profissionais.

A atual organização da Raps, que insere dois dispositivos com orientações e perspectivas de cuidado distintas no tocante às drogas, suscita um tensionamento que precisa ser enfrentado. Os espaços institucionais são entendidos como responsáveis pela concretização de projetos políticos e horizontes éticos em disputa no campo social. Refletem interesses de grupos sociais que almejam implementar práticas que podem contribuir para a emancipação ou a manutenção das relações de exploração, opressão e dominação social. Os serviços realizados pelo Caps Ad e por CTs não respondem igualmente aos desafios impostos pela questão das drogas na atualidade, apostando em diferentes caminhos para a intervenção clínica e política com os sujeitos usuários e suas famílias, bem como em relação à própria sociedade.

Os interesses políticos e institucionais de setores que se beneficiam da internação e asilamento dos usuários em CTs, reproduzindo concepções e práticas ideológicas em torno do consumo de drogas, elidem as dimensões sociais, econômicas e culturais que permeiam o que se considera a "questão das drogas". O subfinanciamento dos Caps Ad em detrimento ao aumento de recursos destinados às CTs podem confirmar que se privilegiem a higienização, a moralização e o controle para determinados segmentos da população eminentemente pobre e inserida de maneira precária na sociedade capitalista neoliberal, nos moldes e limites de nosso país.

Nesse sentido, os "restos humanos" que não são funcionais ao sistema, em razão não exclusivamente do consumo tido como problemático das drogas, mas por pertencerem a parcelas já excluídas, ao mesmo tempo em que funcionais à barbárie imposta pelo capital, receberão um cuidado que termina por negar a possibilidade de uma possível autonomia e liberdade, mesmo nos limites da ordem vigente.

 

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Recebido em: 27/05/2017
Aprovado em: 16/04/2018

 

 

1 Apoio: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD).

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