SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número1"Como se produz um homossexual?: : a origem da homossexualidade na percepção de indivíduos que alegaram ter mudado de identidade sexualDa avaliação à psicoterapia em um serviço-escola de psicologia: uma interlocução entre práticas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.1 Belo Horizonte jan./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120107 

ARTIGOS

 

Componentes psíquicos das ideologias no mundo administrado

 

Psychic components of ideologies in the managed world

 

 

José Leon CrochíkI; Pedro Fernando da SilvaII; Arlindo da Silva LourençoIII; Cíntia Copit FrellerIV; Fátima FrançaV

IInstituto de Psicologia - USP, São Paulo, Brasil. E-mail: jlchna@usp.br
IIInstituto de Psicologia - USP, São Paulo, Brasil. E-mail: pedrofernando.silva@usp.br
IIIDepartamento de Saúde III - UNINOVE, São Paulo, Brasil. E-mail: arlindolourenco@uol.com.br
IVInstituto de Psicologia - USP, São Paulo, Brasil. E-mail: cintia@freller.net
VDepartamento de Saúde III - UNINOVE, São Paulo, Brasil. E-mail: fatimafranca@uol.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é estudar a relação entre ideologia da racionalidade tecnológica e características narcísicas e/ou sadomasoquistas de personalidade, de acordo com o referencial da Escola de Frankfurt. Foram apresentados resultados de pesquisas realizadas, em nosso meio, com universitários, aos quais foram aplicadas três escalas: uma para detectar traços de personalidade sadomasoquista; outra, para avaliar traços de personalidade narcisista e a Escala da Ideologia da Racionalidade Tecnológica. Pode-se constatar que a ideologia da racionalidade tecnológica apresenta relação maior com a personalidade autoritária do que com a personalidade narcisista, embora também aqui haja associação significativa. Conclui-se também que há mais de um tipo de ideologia e configurações psíquicas na atualidade, e que essas variáveis são relacionadas, indicando que há motivação psíquica subjacente à adesão às ideologias, tal como já indicou o estudo sobre a personalidade autoritária.

Palavras-chave: Personalidade sadomasoquista. Personalidade narcisista. Ideologia da racionalidade tecnológica. Teoria Crítica.


ABSTRACT

The objective of this text is to study the relationship between the ideology of technological rationality and narcissistic and / or sadomasochistic characteristics of personality, according to the Frankfurt School. We presented results of researches conducted in our country with university students, to which three Likert-type scales were applied: one to detect traits of a sadomasochistic personality; another, to evaluate narcissistic personality traits; and finally, the Technological Rationality Ideology Scale. It can be observed that the ideology of technological rationality has a greater relation with the authoritarian personality than with the narcissistic personality, although there is also a significant association here. It is also concluded that there is more than one type of ideology and psychic configurations, and that these variables are related, indicating that there is psychic motivation underlying adherence to ideologies, as already the study on authoritarian personality indicated.

Keywords: Sadomasochistic personality. Narcissistic personality. Technological Rationality Ideology. Critical Theory.


 

 

Introdução

Diante da necessidade de aprimorar o entendimento sobre fenômenos sociais vigentes e mundiais, que indicam regressão a um estado de violência "primitiva" - assente na civilização contraditória, mas alheia à mediação civilizada, e não menos mediada socialmente, para não se recair na completa exploração e aniquilação dos indivíduos -, é preciso estudar os aspectos sociais e psíquicos, não olvidando que tal separação não deve ser entendida como independência plena de uns em relação aos outros, considerando que os últimos são mediados pelos primeiros. Continua urgente a verificação das razões pelas quais as pessoas aderem a posições políticas francamente irracionais e, portanto, a ideologias que, em consonância com as análises elaboradas por Horkheimer e Adorno (1956/1978) a respeito do fascismo, dispensam a argumentação racional e se realizam como mentira manifesta, não chegando a ser ideologia no sentido preciso desse conceito; ou que, conforme as críticas de Marcuse (1964/1967) à racionalidade tecnológica, sustentam-se na redução da ciência à técnica, na generalização da racionalidade instrumental para todos os âmbitos da existência, e no subsequente sacrifício do pensamento crítico.

O estudo a respeito do conceito de ideologia e da dimensão psíquica que a sustenta pode contribuir para o desenvolvimento de uma análise crítica de tal regressão, que não é exclusiva do momento atual. Isto é o que se pretende neste artigo: averiguar a relação entre determinadas características de personalidade e o conteúdo ideológico ao qual aderem; sobretudo, a que ocorre entre a ideologia da racionalidade tecnológica e as disposições de personalidade narcisista e/ou da personalidade sadomasoquista.1 Para tanto, recorrer-se-á aos estudos desenvolvidos por pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt, principalmente às constatações feitas por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1950), a respeito de configurações psíquicas que representam a base sobre a qual se assentam os discursos e justificações pseudorracionais e, em muitos casos, francamente irracionais, que substituem a função ideológica de uma falsa consciência necessária e própria ao tempo do Liberalismo. A esse respeito, Horkheimer e Adorno argumentaram, em um estudo teórico sobre o conceito de ideologia (1956/1978), que a ideologia totalitária, típica do fascismo, comumente prescinde da lógica discursiva em que se apoiava a ideologia tradicional quando recorria a conteúdos que não eram inteiramente falsos, como os que propagam a ideologia totalitária desde Hitler e Mussolini, mas eram dotados de algum nível de verdade em si mesmos, "como são as idéias de liberdade, humanidade e justiça" (p. 199).

 

Relações entre Ideologia e Personalidade

Por meio de um aprofundado estudo que compreendeu métodos qualitativos e quantitativos, a investigação acerca da continuidade da tendência fascista em sociedades democráticas modernas (Adorno et al., 1950) desmente a ideia de que o fascismo realizado pelos regimes políticos totalitários, que demonstraram seu potencial destrutivo na Europa, tendo como suporte as contradições presentes no movimento do Esclarecimento, durante a primeira metade do século XX, havia sido plenamente derrotado com o fim da Segunda Guerra Mundial (Silva, 2015). A análise da continuidade dessa tendência social sob a guarida da democracia formal é uma importante decorrência dos estudos de Adorno et al. (1950), cujo objetivo principal foi investigar "o indivíduo potencialmente fascista, cuja estrutura é tal que o torna particularmente suscetível à propaganda antidemocrática" (p. 01, tradução nossa); essa potencialidade fascista, expressada como suscetibilidade à propaganda antidemocrática, subsistiu à derrocada dos totalitarismos. Como pontuou Silva (2015, p. 39), a personalidade autoritária expressaria a "interiorização dos determinantes sociais na dinâmica psíquica individual, formando um sedimento 'natural'": dessa maneira, o psíquico se configura e se conforma à dominação social. Adorno et al. (1950) consideraram que, apesar de sua sustentação na dimensão psíquica, a violência própria aos regimes políticos totalitários se assentava nas condições objetivas da sociedade, justamente aquelas que permitiram as regressões perpetradas sob tais movimentos de massa e, não obstante a queda do nazismo, tais condições não foram superadas; mantêm-se, e consigo mantém, também, a produção e a continuidade dessa forma de violência e de indivíduos constituídos de forma a sustentá-las.

No desenvolvimento de nossa civilização, predominam formas contraditórias de determinação política e econômica, de modo que a sociedade industrial tardia permanece claramente capitalista em sua forma de organização das relações de produção (Adorno, 1968/1986). Essas condições são caracterizadas pela impossibilidade de as pessoas adentrarem um estágio verdadeiramente humano, condizente com os avanços obtidos nas esferas técnica e econômica, ainda que, formalmente, ao menos, tenham avançado em relação aos direitos humanos. Com o progresso, sobretudo técnico, da sociedade, os indivíduos tendem a regredir em sua autonomia; deparam-se com as exigências de ajustamento a relações sociais reificadas e dispostas de acordo com uma ordem hierárquica e competitiva. Para Horkheimer e Adorno (1944/1985), a dominação presente nas formas de exploração do trabalho não se esgota nessa forma histórica, mas remonta à relação arcaica do homem com a natureza, às primeiras formas de associação entre o entendimento humano e a necessidade de exercer algum poder sobre a natureza que se lhe apresentava de forma ameaçadora, e que, por essa razão, fora tomada como objeto do esclarecimento. É o princípio da dominação, forjado nessa dialética histórica, que caracteriza a própria "natureza humana", que permaneceu e se reproduziu nas sociedades civilizadas e avançadas, mantendo-se presente até nas particularidades da sociedade capitalista tardia.

Na sociedade atual, o princípio da dominação mantém-se fortemente arraigado, converteu-se em disposição natural (Adorno, 1932/1991) para as pessoas que, diariamente, têm de se ajustar a condições de existência determinadas pela luta brutal e irrefletida pela sobrevivência. A vida hostil levou ao desenvolvimento de disposições internas que lhes permitam "funcionar bem" psíquica e socialmente na sociedade administrada; são cotidianamente forçadas a demonstrarem-se plenamente adaptadas às duras condições que lhe são impostas. De modo que a existência cada vez mais administrada exige características de personalidade condizentes com o desempenho esperado: pessoas frias e centradas no cumprimento de tarefas nas quais investem a energia libidinal2 que seria necessária para estabelecer vínculos com outras pessoas; o crescente quadro que se observa, corrobora a preocupação de Adorno et al. (1950) de que as características manipulativas, como as que identificaram dentre os tipos de personalidade predispostas ao fascismo, se tornassem mais frequentes em uma sociedade integralmente caracterizada pela preponderância dos aspectos técnicos e da organização industrial. A constatação de Adorno et al., em relação à ascendente classe tecnológica e administrativa, de que "Há uma quase completa falta de catexia de objeto e de laços emocionais" (1950, p. 797, tradução nossa), tornou-se um traço da atual configuração antropológica. Em face da exigência de adaptação, contraditoriamente, o bom desempenho requer um eu debilitado e potencialmente incapaz de se opor a tais tendências amplas de adesão irrefletida à massa, aos líderes e ideários que a conduzem (Adorno, 1951/2015b), e à ideologia que permeia os ideais que a unificam. Esse eu debilitado também está imbricado nos critérios subjacentes à escolha de alvos para a manifestação do sadismo, pessoas e/ou grupos considerados inimigos e, em muitos casos, indiferentes, os quais passam a ser objetos de preconceito, em muitos casos, discriminados, e, assim, perseguidos.

Partindo do entendimento, fundamentado na Psicanálise freudiana, de que a "personalidade é uma organização de forças mais ou menos duradoura dentro do indivíduo" (1950, p. 05, tradução nossa), Adorno et al. consideraram que haveria características de personalidades que poderiam ser induzidas pela propaganda antidemocrática. Tais características seriam "Principalmente necessidades (impulsos, desejos, impulsos emocionais) que variam de um indivíduo para outro em sua qualidade, sua intensidade, seu modo de gratificação e os objetos de seu apego e que interagem com outras necessidades em padrões harmoniosos ou conflitantes" (Adorno et al., 1950, p. 05, tradução nossa)

Adorno et al. (1950) já haviam demonstrado que determinadas configurações psíquicas, como aquelas dos tipos "autoritário" e "manipulador", apresentavam traços de personalidade diretamente relacionados às inclinações implícitas ao fascismo. No caso do tipo "autoritário", foi identificada a adaptação a um tipo de ordenamento social hierarquizado, de modo que o ajustamento irracional a condições de vida contrárias à preservação racional é compensado pela gratificação de impulsos destrutivos: "O sujeito alcança seu próprio ajuste social apenas sentindo prazer na obediência e na subordinação. Isto põe em jogo a estrutura de impulsos sadomasoquistas tanto como condição como resultado do ajuste social" (p. 759, tradução nossa). Por ser, em conjunto com o tipo "convencional", uma das configurações mais frequentes na amostra analisada por Adorno et al., a configuração autoritária representa um importante aspecto das justificações para o fascismo. Todavia, não menos importante, apesar de representar uma incidência à época bem menor, o tipo "manipulador" também apresenta características psicodinâmicas que o aproximam do tipo "autoritário", mas, mais especificamente, também um "narcisismo extremo e certo vazio e superficialidade" (p. 768) plenamente alinhados às suas características principais: cisão afetiva, consciência coisificada, cinismo, apego aos aspectos técnicos etc. Considerado por Adorno et al. (1950) como o tipo potencialmente mais perigoso dentre os que puderam identificar, o "manipulador", que tem uma organização psicodinâmica sadomasoquista, entretanto, representa o crescimento do narcisismo como ponto de sustentação do eu em razão da degradação de sua consciência (Adorno, 1955/2015a). Representa uma importante síntese das contradições que animam a sociedade industrial caracterizada pela predominância do pensamento operacional e da centralidade da técnica.

O individualismo exacerbado, típico da sociedade capitalista e expressão da negação do indivíduo diferenciado (Horkheimer & Adorno, 1956/1978), que tem como um de seus correlatos psicodinâmicos o narcisismo - o direcionamento da energia libidinal do indivíduo debilitado para o seu próprio ego; crescendo, assim como seus derivados coletivos, em proporção inversa à destruição do próprio eu (Adorno, 1955/2015a) - corresponde a uma realidade social na qual os indivíduos têm sua existência incessantemente ameaçada por uma sociedade que tipifica e homogeneíza a vida e as pessoas. A esse respeito, destaca-se também a análise de Lasch (19791983), que, ciente das especificidades psicológicas do narcisismo, não redutível ao egoísmo genérico, asseverou que ele é um sucedâneo do individualismo correspondente ao capitalismo concorrencial; emerge de um modo de vida que está moribundo, "a cultura do individualismo competitivo, o qual, em sua decadência, levou a lógica do individualismo ao extremo de uma guerra de tudo contra tudo, à busca da felicidade em um beco sem saída de uma preocupação narcisista com o eu" (p. 14).

Lasch (1979/1983) constatou o recrudescimento da personalidade narcisista, manifestada como uma estrutura de caráter claramente adaptada às relações sociais engendradas pela organização social capitalista. Sublinhou que as pessoas narcisistas não somente demonstravam propensão à busca desenfreada pelo sucesso e por um modo de integração social que lhes assegurasse a gratificação de intensas necessidades associadas à debilidade do eu, mas representavam também as características de maior prevalência dentre as que compunham as demandas clínicas. Em outras palavras, o que Lasch propôs foi que, em termos psíquicos, o narcisismo apresentava-se como característica de personalidade tendencialmente mais propensa a se destacar socialmente:

Apesar de seu sofrimento íntimo, o narcisista possui muitos traços que permitem o sucesso em instituições burocráticas, as quais valorizam a manipulação de relações interpessoais, desencorajam a formação de ligações pessoais profundas e, ao mesmo tempo, dão ao narcisista a aprovação que ele precisa para validar sua autoestima. (Lasch, 1979/1983, p. 69)

No que diz respeito ao psiquismo individual, a pessoa narcisista tende a voltar-se a si e a cessar de investir libidinalmente no outro; por essa razão, o diagnóstico de que o narcisismo teria adquirido maior relevância como tipo de caráter proeminente, indica, efetivamente, uma forma notória de regressão, pois apresenta regressão psíquica mais acentuada do que os autoritários, cuja psicodinâmica contém um maior volume de traços sadomasoquistas, que admitiam a alteridade como elemento estruturante de sua economia psíquica, ainda que esse "outro" fosse necessário para a descarga de sua agressão. A hipótese formulada por Lasch (1979/1983) condiz com a análise de Adorno et al. (1950) acerca da proliferação do tipo "manipulador", pois remete à articulação entre a ampliação da racionalidade tecnológica e, consequentemente, da ideologia que se alimenta de sua generalização para todas as esferas do pensamento e da organização social, e a intensificação da cisão afetiva que permite às pessoas investirem sua energia libidinal mais frequentemente em objetos e processos técnicos do que em outras pessoas.

Não obstante a importância do narcisismo, também apontado por Adorno (1951/2015b) como base psicológica da suscetibilidade à propaganda fascista, parte das necessidades psíquicas comumente mobilizadas em apoio aos regimes antidemocráticos envolvia elementos psíquicos relacionados ao sadomasoquismo; relacionados à propensão individual a submeter-se cegamente a uma autoridade violenta e de, simultaneamente, exercer a função daquele que agride ou que, minimamente, gostaria de ocupar tal lugar posteriormente. Horkheimer e Adorno (1956/1978) referiram-se a uma expressão popular alemã - Radfahrernatur - para circunscrever o que compreenderam como uma espécie de "caráter de ciclista" para explicitar a atitude daqueles que sentem prazer em submeter os que estão "embaixo" e, simultaneamente, em se curvar de forma humilhante para os que estão "em cima". Conforme os autores, tais "pessoas têm necessidade de se identificar com a ordem estabelecida e essa identificação faz-se com tanto mais agrado quanto mais inflexível e poderosa for essa ordem. Subjacente nessa atitude há uma fraqueza do ego, que se sente incapaz de satisfazer as exigências de autodeterminação, diante das forças e instituições onipotentes da sociedade" (Horkheimer & Adorno, 1956/1978, p. 179) - importante destacar que esses autores também assinalaram, em relação aos autoritários, um falso apoio à conservação dessa ordem: de forma não consciente, têm desejos de destruí-la. Os tipos autoritários se caracterizam, de maneira geral, por essa dupla relação com a autoridade. Em sociedades autoritárias como a analisada pelos frankfurtianos nos anos do terror nazifascista, o indivíduo foi forçado a se submeter às exigências sociais, a concordar com a ordem social e a anular qualquer possibilidade de contestação, de modo que "a vigilância não deve mais se dirigir ao exercício do poder social, mas aos desejos individuais que não se coadunam àquele" (Crochík, 1990, p. 142).

A relação entre esses dois aspectos foi constatada por Crochík (2000); ele observou que quanto maior a abrangência da ideologia da racionalidade tecnológica "maior o número de características narcisistas de personalidade e vice-versa" (p. 541). Contudo, essa não é a única relação possível, de modo que, no mesmo estudo, verificou que além da correlação com o narcisismo, a ideologia da racionalidade tecnológica também se relacionava com as tendências implícitas ao fascismo: "não só os aspectos narcisistas de personalidade estariam associados à ideologia da racionalidade tecnológica, mas também os do sadomasoquismo" (p. 540).

A existência, quer do tipo "manipulador", quer do "autoritário", indica que o processo de tipificação dos homens é pré-condição para a eficácia da técnica dos agitadores fascistas (Horkheimer & Adorno, 1956/1978), e vem se consumando com eficiência funesta. Diante desse avanço, o potencial de violência que tanto um quanto outro têm também progride e o fascismo se fortalece e adquire novo e renovado fôlego, incrementando sua ação na realidade social. É certo que o potencial de atração da ideologia fascista é muito peculiar, pois, por se realizar como mentira manifesta, essa ideologia desprezou a pretensão de convencer por meio da argumentação internamente consistente, dirigindo-se a necessidades psicológicas; ainda assim, deve-se ressaltar, essas mentiras devem ser denunciadas. Horkheimer e Adorno (1956/1978) enfatizaram a necessidade de que a crítica ideológica acompanhasse tal especificidade quando se voltasse ao desvelamento da ideologia totalitária:

A crítica da ideologia totalitária não se reduz a refutar teses que não pretendem, absolutamente, ou que só pretendem como ficções do pensamento, possuir uma autonomia e uma consistência internas. Será preferível analisar a que configurações psicológicas querem se referir, para servirem-se delas; que disposições desejam incutir nos homens com suas especulações, que são uma coisa inteiramente distinta do que se apresenta nas declamações oficiais. Existe depois a questão de apurar por que e como a sociedade produz homens capazes de reagir a esses estímulos dos quais, inclusive, sentem necessidade, e cujos intérpretes são, depois, os líderes e demagogos da massa. (p. 192)

É precisamente nesse sentido que o estudo sobre a personalidade autoritária revela-se fundamental aos propósitos deste artigo: se há elementos de personalidade que possam favorecer os processos sociais de dominação, cabe investigar quais são e em que medida são estimulados pela cultura; quer seja a canalização da energia libidinal para o próprio eu, típica do narcisismo, quer seja o ajustamento emocional às disposições institucionais e relações pessoais altamente hierarquizadas, que requer traços de personalidade sadomasoquistas, ambas as formas parecem associar a personalidade às formas de dominação vigentes, portanto, à ideologia que, quer como mentira manifesta, quer como racionalidade tecnológica, já não abriga mais nenhum conteúdo propício à experiência: a primeira, porque o conteúdo é "meio", a segunda, porque o conteúdo é a forma; diferentemente da ideologia liberal que continha alguma racionalidade que poderia ou não ser contestada pela experiência, essas últimas negam a própria experiência e portanto a formação de um eu. Há indícios de que ambas as dimensões - psicológica e ideológica - são associadas e cumprem funções de manutenção desta sociedade, com tendência à intensificação do sadomasoquismo, como observado por Crochík (2000) em alguns estudos por meio dos quais averiguou que a ideologia da racionalidade tecnológica, forma predominante da ideologia no mundo administrado, apresenta maior correlação com o fascismo em potencial do que com o narcisismo. Como tais estudos foram desenvolvidos há mais de uma década e meia, torna-se relevante averiguar se essa tendência também está presente em nossos dias. Conforme se pode depreender da análise que Adorno et al. (1950) fizeram do tipo manipulador, simultaneamente dotado de traços sadomasoquistas e narcisistas, é possível supor que, também na era atual, a tendência de associação da ideologia da racionalidade tecnológica ao sadomasoquismo não significa que tais desenvolvimentos psíquicos, o narcisismo e o sadomasoquismo, se oponham um ao outro, vinculando-se exclusivamente à ideologia fascista ou à que se fundamenta na racionalidade tecnológica e confere justificação ao mundo administrado, mas, sim, distintamente, complementam-se como parte de um mesmo conjunto de conteúdos psíquicos que assegura a sustentação psíquica das formas de ideologia vigentes, dentre as quais se destaca a ideologia da racionalidade tecnológica. Sendo possível observar que essa ideologia é permeada por elementos de continuidade do fascismo, não se pode negligenciar, contudo, que a tendência tecnológica foi um dos fatores culturais que concederam sustentação ao fascismo. O fetichismo da técnica foi exaltado pelo fascismo, intensificando ao extremo a coisificação da consciência; atualmente, ambos são componentes da ideologia da racionalidade tecnológica imbricada na justificação pseudorracional do mundo administrado.

Além das mudanças observadas na dimensão psicológica, as quais compreendem alterações e acomodações das tendências predominantes nas sociedades que trazem o confronto entre a democracia e o totalitarismo, e entre a liberdade e a administração, as mudanças na forma da ideologia também se mostram relevantes para o entendimento do modo como a sociedade medeia a consciência individual e as formas de adesão a tendências destrutivas e autodestrutivas. Na medida em que não existe de forma isolada, mas como expressão da confluência de fatores sociais, institucionais e psíquicos, a violência presente na sociedade sob a forma de preconceitos ou de agressão motivada por interesse político representa um importante desafio à pesquisa psicossocial, precisamente porque também se apoia na associação de fatores de personalidade e fatores sociais. De modo que identificar os aspectos ideológicos que a favorecem poderá contribuir em muito para desmistificar sua aparente origem monadológica, em geral, atribuída a motivações psíquicas abstraídas da totalidade social.

O conceito de ideologia foi adotado tanto por Adorno et al. (1950), que o tomaram em seu sentido genérico - "O termo ideologia é usado neste livro, da maneira que é comum na literatura atual, para representar uma organização de opiniões, atitudes e valores - um modo de pensar sobre o homem e a sociedade". (p. 02, tradução nossa) -, quanto por Horkheimer e Adorno (1956/1978), que o definiram teoricamente como justificação, falsa consciência necessária destinada a justificar determinados modos de dominação social, mas também atentaram para as mudanças históricas pelas quais passou, inclusive, para a sua conversão em mentira manifesta:

Esta, como consciência objetivamente necessária e, ao mesmo tempo, falsa, como interligação, inseparável de verdade e inverdade, que se distingue, portanto, da verdade total tanto quanto da pura mentira, pertence, se não unicamente à nossa sociedade, pelo menos a uma sociedade em que uma economia urbana de mercado já foi desenvolvida. Com efeito, a "ideologia é justificação". (Horkheimer & Adorno, 1956/1978, p. 191)

Maia (1998) também sublinhou a função da ideologia como justificação, destacando que o "cerne da justificação consiste na tentativa de afirmar o existente como o que é, como uma forma definitiva e não histórica, expurgando por decreto as contradições" (p. 24). Com isso, destaca um aspecto central da ideologia, mas que está diferentemente disposto na ideologia liberal e nas formas contemporâneas da ideologia, inclusive, da totalitária.

Conforme Horkheimer e Adorno (1956/1978), a ideologia predominante na sociedade capitalista concorrencial, constituída como uma argumentação consistente em favor da dominação social era composta por uma dimensão contraditória, realizando-se também como falsa consciência necessária capaz de justificar a ordem social existente. Apesar de as principais formas contemporâneas de ideologia pouco conservarem esse caráter contraditório e tenderem à mentira manifesta, ainda assim mantêm sua função de justificação da ordem social, neste caso, reduzindo a realidade presente à única forma possível, de modo a que a própria realidade seja tomada como ideologia de si mesma.

De todo o modo, em ambas as conceituações de ideologia, elaboradas quer por Adorno et al. (1950), quer por Horkheimer e Adorno (1956/1978), os autores mantiveram proximidade com o sentido atribuído por Marx e Engels (1845/2007) de que as ideias produzidas pela classe dominante com o intuito de justificar e manter sua condição privilegiada no campo da dominação social, ao serem aceitas como ideias dominantes, dificultam a superação e a emancipação sociais. O modo como ocorre essa aceitação é distinto na ideologia liberal clássica, na ideologia da racionalidade tecnológica e na ideologia fascista. Segundo Marcuse (1964/1967), a propósito de sua transformação histórica, a ideologia da racionalidade tecnológica, diferentemente da fascista que é mentira manifesta, ainda é contraditória, tal como a liberal. A esse respeito, a diferenciação efetuada por Crochík (2000) a respeito da ideologia que, nos dias que correm, tenta ajustar as contradições sociais, ao passo, que, outrora tentava encobri-las, realça um dos pontos de grande importância e complexidade na ideologia atual e na sua interface com a personalidade: ao sustentar-se no cientificismo, no caso da ideologia da racionalidade tecnológica, ou converter-se em mentira manifesta, no caso do fascismo, a ideologia contemporânea aparta-se da racionalidade que ainda assegurava o vislumbre do que seria possível se as ideias que apregoava fossem realizadas, reduzindo-se, eminentemente, a uma justificação irracional. Disso, decorre que as formas de regressão que irão sustentá-la, inclusive para dar suporte ao cinismo e à negação dos sentimentos que levam à frieza e ao prazer de satisfazer impulsos destrutivos por meio do controle possibilitado pela técnica, requerem outras disposições psíquicas. Crochík (1999) identificou três articulações possíveis entre a ideologia da racionalidade tecnológica e conteúdos de personalidade: um tipo narcisista regredido à fase oral; um tipo narcisista voltado à fase anal, tal como o "manipulador" descrito por Adorno et al. (1950), e o tipo sadomasoquista, que apresentaria menos características narcisistas (p. 267).

Cabe destacar que o conceito de ideologia da racionalidade tecnológica tem como uma de suas principais bases as análises elaboradas por Marcuse, sobretudo em a "Ideologia da sociedade industrial" (1964/1967), acerca da capacidade da sociedade capitalista avançada de absorver as formas de oposição por meio da tecnologia que "serve para instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão social" (p. 18). Tais análises contribuíram para a compreensão do modo como a ideologia da racionalidade tecnológica cumpre uma função também autoritária, apesar de sua aparência liberal, estruturando-se em torno da confiança na racionalidade científica; trata-se de uma racionalidade constituída em sintonia com a exigência de adaptação à sociedade administrada. Marcuse observou que as conquistas da sociedade industrial levaram à absorção da ideologia pela realidade, mas argumentou que isso "não significa, contudo, o 'fim da ideologia' [...], atualmente, a ideologia está no próprio processo de produção" (pp. 31-32). Ao atentar para a racionalidade desenvolvida com fins de incremento do processo produtivo e extrapolada para todas as demais esferas da vida, inclusive, para o âmbito do pensamento científico, ele revelou que quanto mais eficiente se torna a ideologia, melhor se instala nos processos de pensamento e compreensão da realidade esquematicamente reduzida a categorias explicativas operacionalmente formuladas. Em sua crítica da sociedade unidimensional, identificou importantes mudanças nos modos de controle exercidos sobre os indivíduos. Segundo ele, trata-se de um avanço nunca antes visto das técnicas produtivas, concomitante a não superação da dependência econômica básica de grande parte da população mundial. Se por um lado o desenvolvimento técnico já possibilitaria a diminuição do trabalho alienado, passível de ser executado pelas máquinas, e a efetivação de uma vida livre do uso irracional da capacidade de trabalho em tarefas repetitivas e pouco diferenciadas, nas condições prescritas pelo modo de produção capitalista, esse progresso não só não se opõe como se alia à continuidade e acirramento das relações de servidão, dominação e exploração.

Tal modo de controle da sociedade administrada sobre as existências individuais, antevisto por Marcuse, se estende - como o conceito sugere - à própria forma histórica da racionalidade. Esta, fragilizada, "assume a forma de construção metodológica; organização e manuseio da matéria como mero material de controle, como instrumento que se presta a todos os propósitos e fins - instrumento per se, em-si" (Crochík, 2000, p. 152). A racionalidade tecnológica reduzida às atitudes pragmáticas e formalistas pouco pode ir além do que é dado como aparente imediatez na vida social, quer por não reconhecer suas contradições e historicidade, quer pela precária imaginação administrada, que não transcende as fantasias e imagens produzidas em série. Nesse sentido, a racionalidade tecnológica configura-se como ideologia, cuja adesão - em prol da autoconservação individual - também favorece a reprodução das irracionalidades sociais. Essa ideologia existe como um dos elementos aos quais se relacionam as tendências antidemocráticas indicadas por Adorno et al. (1950), isto é, uma das regressões do pensamento e das relações adaptadas às exigências objetivas de sobrevivência na sociedade contemporânea.

Crochík (2000) indicou que a racionalidade tecnológica toma o progresso como um fim em si mesmo, pois, nela, a técnica é abstraída de sua relação com as finalidades humanas, do compromisso com a produção de vidas dignas, favorecendo tanto a aceitação passiva da realidade dada quanto a confiança no progresso tecnológico. Se, como vimos, a propaganda fascista angariou apoiadores mesmo com um projeto francamente irracional, associado a medidas que colocou em marcha a destruição da civilização, semelhante irracionalidade está presente na adesão ao primado da racionalidade engendrada pela técnica, que, inclusive, destaca que "o racional e não o irracional se torna o veículo mais eficaz de mistificação" (Marcuse, 1964/1967, p. 179).

Ao se apoiar na descoberta freudiana de que o poder do hipnotizador sustentava-se no do pai primitivo em relação à horda, Adorno (1951/2015b) descobriu, concomitantemente, o segredo da manipulação fascista, que sob a forma de impostura mobiliza o narcisismo dos súditos em função da prepotência dos lideres: "A categoria falsidade (phonyness) aplica-se tanto aos líderes quanto ao ato de identificação por parte das massas e seus supostos frenesi e histeria" (p. 188). Se nas massas iludidas pela ideologia fascista é o narcisismo que cumpre a função de sustentação psíquica da impostura, nas massas contemporâneas, que mesclam elementos fascistas e explicações pseudorracionais, fundamentadas na racionalidade tecnológica e na indústria cultural, elementos do caráter sadomasoquista também parecem ser acionados (Crochík, 1999). Desvelar essa relação talvez ajude a compreender a associação entre os modernos meios técnicos de comunicação e a expressão direta de conteúdos preconceituosos e antidemocráticos. Para auxiliar a pensar sobre essa questão, na próxima parte, serão apresentados resultados de pesquisas que a estudaram.

 

Alguns Dados Empíricos que Revelam Mudanças na Articulação entre Ideologia e Personalidade

A pesquisa, cujos resultados serão descritos a seguir, foi realizada em 2016, com 135 estudantes de universidades públicas do Estado de São Paulo; 42,5% (57) do sexo feminino; 57,5% (77) da área de biológicas, 38,5% (52) da área de exatas e 40% (61) da área de humanas. A idade média foi 22,5 anos (DP=3,1); o nível socioeconômico médio foi o que corresponde à classe B1 conforme o instrumento da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep) utilizado. Em relação à religião, 54,1% (73) indicaram não ter nenhuma, 21,5% (29) são católicos, 24,4% (33) são protestantes ou seguem outras religiões; 64% dos participantes declararam ser brancos, 31% indicaram ser negros e os demais apontaram alternativas. O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da USP, em 08/09/2015, sob o número 1.218.644.

A esses participantes foi aplicado um questionário de características pessoais, para obter as características anteriormente apresentadas, e três escalas do tipo Likert, cujos escores variaram de um a seis pontos: quanto maior o escore, maior a presença das variáveis em questão; uma dessas escalas, utilizada para detectar traços de personalidade sadomasoquista, avaliados pela Escala do Fascismo (Escala F), que mede também a adesão dos sujeitos a essa ideologia, foi traduzida por Crochík (2000), com 28 itens, e obteve neste estudo um Alfa de Cronbach de 0,83; os participantes apresentaram uma média e um desvio padrão baixos nessa escala (M=2,65; DP=0,64), indicando poucos traços sadomasoquistas e pouca variabilidade entre si. Outras duas escalas foram construídas por Crochík (2000): uma delas, que avalia os traços de personalidade narcisista, constava de 18 itens; apresentou Alfa de Cronbach igual a 0,85, média e desvio Padrão (M=2,90; DP=0,77) maiores do que os obtidos com a Escala F; outra delas, a Escala da Ideologia da Racionalidade Tecnológica (Escala I), com 21 itens, obteve o Alfa de Cronbach igual a 0,84 e a média e o desvio padrão também não foram elevados (M=2,67; DP=0,78). A aplicação da Prova de Friedman revelou que a diferença entre os escores dessas variáveis [ƛ2(2)=17,74; p<0,00] é significante, e, assim, podemos inferir que os traços de personalidade narcisista são maiores dos que os de sadomasoquismo: há uma maior tendência de os indivíduos tomarem seu próprio eu como objeto de prazer do que esse prazer ser obtido por meio de agressão a um alvo ou a si mesmo.

Os alunos foram significantemente mais narcisistas [t(133) = 2,03; p=0,03] e mais adeptos da ideologia da racionalidade tecnológica do que as alunas [t(133) = 2,12; p=0,04]; não diferiram quanto aos escores da Escala F [t(133) =0,10; p = 0,34]. Os que seguem alguma religião têm significantemente mais traços sadomasoquistas do que os que não seguem nenhuma religião [t(133) = 4,37; p =0,00]; o ter ou não religião não diferiu os alunos quanto aos traços narcisistas de personalidade [t(133) = 1,61; p = 0,11] e quanto à adesão à ideologia da racionalidade tecnológica [t(133) = 1,86; p = 0,07]. Os alunos dos cursos das Ciências Exatas tiveram escores mais altos na Escala F do que seus colegas das áreas de Humanas [F(2 e 132) = 6,24; p = 0,00]; não houve diferenças significantes entre os alunos das diversas áreas quanto aos escores obtidos na Escala N [F(2 e 132) = 0,64; p = 0,53] e na Escala I [F(2 e 132) = 0,77; p = 0,47]. Não houve diferenças entre alunos considerados brancos e negros quanto aos escores da Escala do Fascismo [t(120) = 0,62, p = 0,54] e quanto à adesão à ideologia da racionalidade tecnológica [t(120) = 0,80, p = 0,43], mas houve em relação aos escores da Escala sobre o Narcisismo [t(120) = 2,41, p = 0,02], indicando que os que se consideram de cor branca são mais narcisistas do que os que apontaram ter cor negra. Não houve nenhuma correlação entre a idade dos participantes e os escores da Escala F [r(133) = -0,12; p = 0,19], com os escores da Escala N [r(133) = 0,08; p=0,40] e com os escores da Escala I [r(133) = -0,09; p = 0,32]. Quanto maior o nível socioeconômico dos estudantes, maior foi o escore da Escala N [r(133) = 0,20; p = 0,02] e os escores da escala I [r(133) = 0,20; p=0,02], mas não houve correlação significante dessa variável com os escores da escala F [r(133) = 0,02; p = 0,86].

Considerando as diferenças encontradas entre os participantes quanto ao gênero, ter ou não religião, raça/cor, área e nível socioeconômico, calculamos correlações parciais entre os escores das Escalas F, N e I com controle para essas variáveis. Houve correlações significantes entre as três variáveis com p=0,00. Quanto maior o número de traços sadomasoquistas, avaliados pela Escala F, maior o número de traços narcisistas, estabelecidos pela Escala N [r(127) = 0,53; p =0,00], e maior a adesão à ideologia da racionalidade tecnológica avaliada pela Escala I [r(127) = 0,69; p = 0,00]; e quanto maior o número de traços narcisistas de personalidade, maior a adesão à ideologia estudada [r(127) = 0,49; p = 0,00]. Utilizando a fórmula de Hotelling (Guilford & Fruchter, 1973, p. 167) para a comparação de correlações, verificamos que a diferença entre as correlações encontradas entre os escores da Escala N e Escala I (r=0,49), de um lado, e a correlação entre a Escala F e a Escala I (r=0,69), de outro lado, é significante [t= 3,34; p=0,00); isto é, a adesão à ideologia da racionalidade tecnológica está mais relacionada com traços sadomasoquistas de personalidade do que com traços narcisistas de personalidade.

 

Considerações Finais

Diante dos resultados indicados, pode-se afirmar que se a ideologia da racionalidade tecnológica tem substituído a ideologia política, uma vez que na sociedade administrada essa última se expressa pela competência técnico-administrativa, sua correspondente ao nível psicológico é mais marcada pelas tendências da nomeada personalidade autoritária do que sua referida sucessora: a personalidade narcisista, que também se associa com a adesão àquela ideologia de forma significante.

Assim como nos resultados obtidos no estudo sobre a personalidade autoritária (Adorno et al., 1950), a hipótese não foi plenamente confirmada, significando que a personalidade autoritária não se relacionava somente com o ideário conservador, mas também com o liberal e que os politicamente conservadores não necessariamente eram autoritários. À luz de nossos resultados, podemos pensar que há mais de um tipo de ideologia e configurações psíquicas existentes na atualidade e não cabe, conforme Adorno (1955/2015a), defender a existência de uma personalidade neurótica de cada época, e, sim, que a cada momento a sociedade encaminha os homens às regressões psíquicas que necessita para sua reprodução; hoje, são necessários para essa reprodução os sadomasoquistas e os narcisistas, e outras estruturas de personalidade não estudadas por nós, ainda que essas tenham um peso considerável (a adesão à ideologia da racionalidade tecnológica, segundo nossos dados, é explicada em 48% pelos traços sadomasoquistas e 24% pelos traços narcísicos). O mesmo pode ser pensado acerca da existência de mais de uma ideologia, e não somente a da racionalidade tecnológica; há a ideologia fascista, que, conforme Horkheimer e Adorno (1956/1978), corresponde à mentira manifesta; há também a ideologia neoliberal, e, nesse caso, talvez seus adeptos acreditem mesmo que a atuação do Estado sobre a sociedade deva ser reduzida a um mínimo.

Não se depreenda da suposição exposta no parágrafo anterior que há um tipo de personalidade para cada tipo de ideologia, mas que, ainda que superficiais, pouco desenvolvidas, há algumas possibilidades de constituição de personalidade e algumas configurações ideológicas; o que é comum quer às estruturas de personalidade, quer às ideologias é a dita superficialidade. As estruturas de personalidade se desenvolvem sem que as pessoas adquiram uma suficiente delimitação de si mesmas e dos outros, mesmo no caso do sadomasoquismo, configuração que precisa da projeção dos medos e desejos sobre outrem; as ideologias ou são claramente irracionais ou perderam a dimensão histórica.

Essa análise não supõe que a sociedade seja complexa (Horkheimer & Adorno, 1956/1978), ao possibilitar diversas particularidades quer de indivíduos ou de ideologias; ao contrário, é sua configuração das pessoas em tipos não ideais, mas reais, e a ideologia reduzida a clichês que expressa a simples estrutura social existente. Deve-se, no entanto, precaver-se que a análise não seja também simples, isto é, não perca a perspectiva do movimento histórico que transforma os indivíduos em caricaturas administráveis e que pode, como afirmam Adorno e Simpson (1941/1994), convertê-los novamente em indivíduos, se é que algum dia o foram plenamente.

Se as ideologias atuais e as estruturas das personalidades, ainda que variadas, são pouco desenvolvidas, não é de se estranhar a violência atual entre os grupos e pessoas que expressam diversos interesses sociais, tal como enunciamos no início deste texto, pois a mediação necessária para constituição de uma diferenciação entre os indivíduos e as tendências culturais e a racionalidade necessária à defesa de ideias emancipatórias transformou-se em mediação da adesão ao aparentemente imediato: o fortalecimento da mediação social é obstáculo para que o indivíduo e a razão sejam mediadores.

Por fim, cabe destacar que os dados da presente pesquisa indicam as mesmas tendências encontradas por Crochík (1999) em pesquisa efetuada no fim do século passado, o que é, ao mesmo tempo, um dado a mais para se verificar a precisão das tendências observadas, quando impele ao receio de que tendências regressivas têm permanecido nas últimas décadas, sem que haja vislumbre claro de mudanças na atual configuração social e, consequentemente, na formação dos indivíduos.

 

Referências

Adorno, T. W. (1991). La idea de historia natural. In T. W. Adorno, Actualidad de la filosofía (J. L. A. Tamayo, Trad., pp. 103-134). Barcelona, España: Paidós. (Trabalho original publicado em 1932).         [ Links ]

Adorno, T. W. (2000). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno, Educação e emancipação (W. L Maar, Trad., pp. 119-138). São Paulo: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

Adorno, T. W. (2015a). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, Trad., pp. 71-135). São Paulo: Ed. da Unesp. (Trabalho original publicado em 1955, com pós-escrito de 1966).         [ Links ]

Adorno, T. W. (2015b). A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, Trad., pp. 153-189). São Paulo: Ed. da Unesp. (Trabalho original publicado em 1951).         [ Links ]

Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (Eds.). (1950). The authoritarian personality: studies on prejudice. New York: Harper & Brothers.         [ Links ]

Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento (G. Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicada em 1944 e reeditado em 1969).         [ Links ]

Adorno, T. W., & Simpson, G. (1994). Sobre música popular. In G. Cohn (Org.). Theodor W. Adorno - Sociologia (pp. 115-146). São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1941).         [ Links ]

Crochík, J. L. (1990). A personalidade narcisista segundo a Escola de Frankfurt e a ideologia da racionalidade tecnológica. Psicologia USP, 1(2), 141-154.         [ Links ]

Crochík, J. L. (1999). A ideologia da racionalidade tecnológica e a personalidade narcisista. Tese de Livre-Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Crochík, J. L. (2000). Tecnologia e individualismo: um estudo de uma das relações contemporâneas entre ideologia e personalidade. Análise Psicológica, 4(17), 529-543.         [ Links ]

Guilford, J. P., & Fruchter, B. (1973). Fundamental statistics in psychology and education (3a ed.). New York: McGraw-Hill.         [ Links ]

Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1978). Temas básicos da sociologia (A. Cabral, Trad., 2a ed., pp. 172-183). São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956).         [ Links ]

Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio (E. P. Moura, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1979).         [ Links ]

Maia, A. F. (1998). Notas sobre ideologia e educação. Interface - comunicação, saúde, educação, 2(3), 23-34.         [ Links ]

Marcuse, H. (1967). A ideologia da sociedade industrial (G. Rebuá, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).         [ Links ]

Marx, K., & Engels, F. (2007). A ideologia alemã (R. Enderle, N. Schneier & L. C. Martorano, Trad.). São Paulo: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1845-1846).         [ Links ]

Silva, P. F. (2015). Psicologia social de Adorno: resistência à violência do mundo administrado. Psicologia & Sociedade, 27(1), 35-46.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/06/2017
Aprovado em: 24/06/2018

 

 

1 Os constructos subjacentes à mensuração de traços narcisistas e sadomasoquistas de personalidade (Crochík, 1999) decorrem da pesquisa de Adorno et al. (1950) a respeito da personalidade autoritária, que compreende elementos sadomasoquistas, e de estudos de Adorno nos quais analisou o narcisismo como componente dos processos identificatórios acionados pela psicodinâmica das massas (Adorno, 1951/2015b) e relacionado à regressão dos indivíduos na sociedade administrada (Adorno, 1955/2015a).
2 Em Educação após Auschwitz, Adorno (1967/2000) observou que pessoas com caráter manipulador tendem a ser incapazes de amar, pois investem sua energia psíquica, originada da pulsão sexual, em atividades, equipamentos e instrumentos, mais do que em outras pessoas: "Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais" (p. 133).

Creative Commons License