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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.1 Belo Horizonte Jan./June 2019

http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120108 

ARTIGOS

 

Da avaliação à psicoterapia em um serviço-escola de psicologia: uma interlocução entre práticas

 

From assessment to psychotherapy in a psychology university clinic: an interlocution between practices

 

 

Maíra Bonafé SeiI; Ana Carolina ZuanazziII; Katya Luciane OliveiraIII; Patrícia Silva LúcioIV; Sílvia Nogueira CordeiroV

IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil. E-mail: mairabonafe@gmail.com
IIUniversidade São Francisco, Bragança Paulista, Brasil. E-mail: anacarolina.zf@gmail.com
IIIUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil. E-mail: katyauel@gmail.com
IVUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil. E-mail: pslucio@gmail.com
VUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil. E-mail: silvianc2000@gmail.com

 

 


RESUMO

Os serviços-escola de Psicologia são dispositivos que proporcionam campo para a prática de intervenções psicológicas, além de beneficiar a comunidade com tais atendimentos. Poucos são os trabalhos que integrem as variadas práticas desses serviços e, assim, objetivou-se relatar o percurso de uma família em um serviço-escola de Psicologia, da avaliação psicológica para a psicoterapia de família. Os resultados indicaram que o psicodiagnóstico foi determinante para que se buscasse trabalhar a dinâmica familiar, assim houve progressos na elaboração dos sintomas. Posto isto, a integração das práticas possibilitou a articulação de saberes, aspecto que favorece a formação do aluno e beneficia a comunidade.

Palavras-chave: Avaliação psicológica. Terapia familiar. Serviço-escola.


ABSTRACT

The psychology university clinics are devices that provide scope for the practice of psychological interventions, in addition to benefiting the community with such care. There are few studies that integrate the varied practices of these services and, therefore, the purpose was to report a family's journey in a psychology university clinic, from psychological evaluation to family psychotherapy. The results indicated that the psychodiagnosis was determinant for the family dynamics to be worked on, so there was progress in the elaboration of the symptoms. It was understood that the integration of the practices made possible the articulation of knowledge, aspect that favors the formation of the student and benefits the community.

Keywords: Psychological assessment. Family therapy. Psychology university clinic.


 

 

Historicamente, os serviços-escola de Psicologia têm sua trajetória entrelaçada com o início do curso de Psicologia e da regulamentação da profissão de psicólogo. A profissão foi instituída na década de 1960 (Brasil, 1962) e, concomitante a esta, surgiram as clínicas-escola com finalidade primordial de atender à necessidade de formação na graduação em Psicologia. Desde então, têm como objetivo oferecer espaço para a aplicação, na prática, das técnicas psicológicas aprendidas ao longo da formação (Peres, Santos & Coelho, 2003).

Tais serviços se encontram usualmente ligados às universidades e carregam consigo a tríplice função atrelada ao ensino, pesquisa e extensão, defendendo o fortalecimento da investigação científica pautada nesse tripé (Marturano, Silvares, & Oliveira, 2014). Configuram-se como um local próprio à construção de conhecimento, que permite uma revisão e aprimoramento constante das práticas realizadas, podendo-se testá-las antes de uma efetiva implementação, ensino ou difusão. Englobam por um lado a aprendizagem prática e, por outro, o atendimento psicológico à comunidade (Amaral et al., 2012). Nesse sentido, Cerioni e Herzberg (2016) argumentam, por meio de pesquisa de follow-up com pessoas triadas em um serviço-escola de Psicologia, ser necessário estar atento às expectativas que o indivíduo expressa a partir da busca pelo atendimento, contribuindo para maior vinculação à intervenção realizada, haja vista as altas taxas de evasão presentes nesses espaços.

Autores como Amaral et al. (2012) e Gomes e Dimenstein (2016) observaram que ainda são escassas as publicações acerca das atividades desenvolvidas nos serviços-escola de Psicologia. Paralelamente, perceberam uma diversidade nas formas de atendimento, características do público acolhido por esses serviços e abordagens teóricas que embasaram as práticas conduzidas. Com isso, pensa-se ser interessante o empreendimento de estudos com o intuito de mapear e discutir as intervenções, funcionamento e resultados obtidos nesses serviços.

Apesar de haver uma inserção de diferentes práticas, os serviços-escola de Psicologia ainda se mostram, frequentemente, isolados, sem evidenciar maior integração com a rede de saúde e assistência social. Atuam pautados prioritariamente a partir da perspectiva da Psicologia Clínica tradicional com poucas práticas interdisciplinares (Gomes & Dimenstein, 2016). Farias (2016) aponta que, embora os profissionais da Atenção Básica realizem, frequentemente, encaminhamentos para tais espaços, nem sempre há um contato ou interlocução entre os serviços.

Tendo em vista esse panorama, almeja-se discutir a interlocução entre a avaliação psicológica, entendendo-a como parte relevante do início do processo interventivo, e a psicoterapia (Carminatti, Bernardo & Krug, 2014), por meio da apresentação de um relato de experiência clínica realizada em um serviço-escola de uma universidade pública. Esse diálogo entre as duas práticas foi tecido a partir da avaliação psicológica de uma criança com dificuldades de socialização, cujo resultado apontou para a pertinência do encaminhamento para uma psicoterapia de família.

 

Método

Quanto ao relato, este será realizado em três partes. Em primeiro lugar, será realizada uma descrição do caso clínico, apresentando a história da família, os motivos do encaminhamento e algumas observações qualitativas realizadas durantes entrevistas que sinalizaram a necessidade de avaliação psicológica e, posteriormente, atendimento psicoterápico. Em seguida, realiza-se uma síntese dos resultados da avaliação com a criança. Finalmente, descrevem-se os principais apontamentos das sessões de psicoterapia. A discussão foca na relevância do presente caso para o entendimento da interação da avaliação psicológica com o processo diagnóstico e o papel da atividade de extensão na universidade na formação profissional do aluno e no atendimento à comunidade.

Trata-se de uma investigação de caráter descritivo que tem por finalidade apresentar um estudo de caso atendido durante os anos de 2015 e 2016. No total foram realizadas no processo psicodiagnóstico 10 sessões com a criança e duas com os pais e 28 sessões de psicoterapia de família. As sessões psicoterápicas tinham duração aproximada de 1h30min e ocorriam também com frequência semanal em horários e dias previamente acordados. O caso foi atendido por uma mesma dupla de alunos durante todo o processo, qual seja, avaliação psicológica e atendimento familiar. Os estudantes estavam no quarto ano do curso de psicologia e foram supervisionados por três professores, sendo dois da avaliação psicológica e um responsável pela intervenção clínica. Na sequência serão apresentadas uma descrição do serviço-escola, uma breve descrição do caso e uma síntese da avaliação psicológica.

 

Breve Descrição do Serviço-Escola

Quanto ao serviço-escola em que se baseia este relato, foi criado em 1976 para acolher as demandas do curso de Psicologia, agregando atividades curriculares obrigatórias, inicialmente apenas a psicoterapia individual, tendo posteriormente se ampliado a outras ações vinculadas a projetos de ensino, pesquisa e extensão (Carta de Serviço sobre Estágio e Serviço Escola - CFP, 2013). Atende indivíduos e grupos de todas as faixas etárias da região metropolitana do município no qual está localizado, beneficiários do Sistema Único de Saúde (SUS), hospital universitário e comunidade interna. Tendo em vista seu histórico, a psicoterapia individual se tornou a principal solicitação da população, disponibilizando atualmente também a avaliação psicológica, avaliação e intervenção psicopedagógica, psicoterapia de casal e família, plantão psicológico, grupos abertos à comunidade, orientação profissional, dentre outras práticas.

Quanto à psicoterapia individual, é realizada a partir dos estágios curriculares, enquanto as demais práticas ocorrem por meio de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Sendo assim, desde o ano de 2009, a fim de atender a uma demanda tanto por parte do serviço-escola quanto da comunidade de um modo geral, foi criado um projeto de extensão cujo objetivo principal é a avaliação psicológica em diferentes contextos. O projeto tem como objetivo realizar avaliações e fornecer laudos a partir de encaminhamentos diversos, tais como escolas públicas, hospital universitário (avaliação neuropsicológica, transtornos do desenvolvimento etc.), vara de família (casos de disputa de guarda), aconselhamento profissional, além da demanda geral do próprio serviço-escola. Ressalta-se, dessa forma, a importância de se garantir a aquisição de competências para o desenvolvimento da avaliação psicológica ao longo da formação, algo nem sempre garantido pelas grades curriculares (Borsa, 2016), considerando-se os projetos de extensão representando uma via de qualificação dos futuros psicólogos. Quando pertinente, os resultados gerados pela avaliação são utilizados para se realizar encaminhamentos para atendimento psicoterápico, como é o caso do presente relato, em que o encaminhamento foi realizado para a psicoterapia de família.

No que se refere à psicoterapia de família, foi disponibilizada no local a partir de 2012, por meio de um projeto de extensão, com inserção na psicoterapia por demanda espontânea ou encaminhamentos da avaliação psicológica, vara da infância e juventude, Centro de Referência da Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) e outros. Tal tipo de prática nem sempre integra a formação do psicólogo, observando-se que a possibilidade de atuar como psicoterapeuta e família pode contribuir para a formação clínica do futuro psicólogo (Almeida, Franco, Sei & Zanetti, 2016), fato que justifica o desenvolvimento de projetos de extensão na área. De forma geral, compreende-se que ambos os projetos de extensão em questão visam a uma interlocução entre as intervenções desenvolvidas no curso de Psicologia como também com os demais serviços do município, reconhecendo a importância de práticas interdisciplinares no cenário dos serviços-escola de psicologia (Gomes & Dimenstein, 2016).

 

Breve Descrição do Caso

O caso refere-se a uma família composta por pai, mãe e filho, na época com 10 anos. Trata-se de uma família reconstituída, cujo pai se encontrava no segundo casamento e tinha dois filhos desse outro relacionamento. O menino foi encaminhado para avaliação psicológica pela escola, pois o percebiam com dificuldade de socialização e comportamento exacerbadamente intelectualizado, aliado a isso, no momento da entrevista, os pais apontaram perceber uma tristeza sem motivo no garoto.

O relacionamento familiar foi percebido como bastante rigoroso, com diversas regras a serem seguidas pelo menino com o objetivo de potencializar seu desempenho acadêmico. O pai era o provedor financeiro da família, mas sentia-se extremamente sobrecarregado por essa função. Muitas vezes trabalhava aos sábados e domingos, receando deixar pendências não resolvidas no trabalho. Relatou não se sentir reconhecido em casa, dizendo que não havia comunicação entre os membros, dizia sentir-se isolado apesar de seus esforços para prover o melhor para a família.

A mãe trabalhou fora de casa até o terceiro ano de vida do filho. Após isso, decidiu dedicar-se ao cuidado da casa e da família. Em um momento posterior, já em processo psicoterápico, revelou que se sentia muito ansiosa e incapaz no trabalho e por isso desistiu do emprego. Na época da intervenção, fazia doces para vender como complemento à renda da família. Porém, era comum não cobrar por seu serviço ou colocar um preço inferir, quase não cobrindo seus gastos. Assim o fazia por julgar ser difícil estipular um preço para seu trabalho, considerando-o aquém dos demais.

Era notável que havia troca de afetos entre eles, que frequentemente estavam de mãos dadas ou abraçados, porém, ao mesmo tempo, todos cobravam de si e do outro o melhor desempenho. A cobrança por um desempenho inatingível era uma questão que permeava todos os familiares.

 

Síntese da Avaliação Psicológica

No que tange à análise qualitativa, o garoto mostrou-se atento e com boa capacidade de argumentação. Gostava de seguir metodicamente as regras, bem como apresentava tendência ao autocontrole e à organização. Seu pensamento mostrou-se coeso e articulado, falando o português corretamente. Dificilmente conversava sobre assuntos do cotidiano infantil, por exemplo, demonstrava conhecimento, ainda que superficial, sobre economia e política.

Como o encaminhamento foi realizado para avaliação do filho, optou-se por iniciar com o processo psicodiagnóstico do menino com a finalidade de conhecer melhor a queixa trazida por ele e a relação familiar. Utilizou-se o teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven para avaliação da inteligência geral (Angelini, Alves, Custódio, Duarte & Duarte, 1999), a Escala de Inteligência Wechsler para Crianças - WISC-III (Wechsler, 2002) para a avaliação da capacidade intelectual geral e dos índices fatoriais (raciocínios verbal e executivo, velocidade de processamento, resistência à distração e a organização perceptual). Já a Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC) foi usada para fazer um mapeamento dos traços de extroversão, neuroticismo, sociabilidade e psicoticismo (Sisto, 2004). A Escala de Autoconceito Infantojuvenil (EAC-IJ) foi usada para averiguar o autoconceito pessoal, escolar, familiar e social da criança (Sisto & Martinelli, 2004). Por fim, recorreu-se à Escala de Stress Infantil - ESI (Lipp & Lucarelli, 2005) para aferir sintomas de estresse relacionados às reações físicas, psicológicas e psicofisiológicas com componente depressivo. Cabe esclarecer que a escolha dos instrumentos por parte dos alunos se deu por meio de supervisão direta com os docentes responsáveis pelo processo psicodiagnóstico. Em cada avaliação, observa-se a especificidade do caso e da queixa, reverberando na escolha dos instrumentos indicados a cada situação.

Além dos testes psicológicos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a mãe, o pai e a criança. Jogos com objetivos específicos para a observação de aspectos como atenção, concentração e memória também foram usados. Outro recurso que compôs a avaliação foi a observação de atividades lúdicas livres, como o brincar.

 

Resultados da Avaliação Psicológica

No que se refere à avaliação da habilidade cognitiva, os resultados sugeriram uma habilidade acima da média na capacidade intelectual, tanto relacionada à capacidade verbal quanto à de execução. Além de desempenho acima da média para raciocinar com problemas novos, memorizar informações e manter atenção.

Em relação ao aspecto emocional, foi possível levantar que a criança apresentava indicadores de uma percepção negativa quanto às interações sociais e seu ambiente familiar, avaliando-se como triste, descontente e relapso com as tarefas em sua casa (como a tarefa de arrumar o quarto, tarefa de ajudar a mãe a organizar a mesa do jantar, dentre outras). Apesar de ter apresentado uma boa capacidade intelectual, tinha uma interpretação inadequada de si, se considerando insuficientemente inteligente. Apesentava uma tendência ao isolamento e tristeza, exibindo a crença de que suas ideias eram rejeitadas pelo grupo escolar, o que correspondia, por vezes, em dificuldade de socialização na escola. Sentimento de culpa, baixa autoestima e emotividade também foram observados.

Diante da queixa apresentada pela escola, pais e as observações realizadas, pôde-se levantar a hipótese de que a queixa da tristeza sem motivo poderia estar relacionada a questões de ordem emocional e também familiar, calcadas em um elevado sentimento de autoexigência aliado à autoestima e autoconfiança baixas (parte disso em razão do funcionamento familiar que denotava, conforme evidenciado na entrevista com os pais, em um funcionamento que exigia da criança muitas regras, bem como expressavam a grande expectativa que tinham em relação a ela). Observou-se um ciclo no qual a criança se impunha um alto padrão de funcionamento e exigia demais de seu desempenho escolar e nunca estava satisfeito com seu resultado, o que gerava mais ansiedade e, consequentemente, mais exigência, constituindo um círculo vicioso.

 

Resultados da Intervenção Psicoterapêutica

A partir da avaliação psicológica, levantou-se a hipótese de que as dificuldades emocionais e autocobranças poderiam estar relacionadas a uma dinâmica familiar favorecedora de tais aspectos, com o sofrimento do filho compreendido como um sintoma familiar. Diversos aspectos foram trabalhados com a família, muitos deles mediados por recursos artístico-expressivos que facilitavam tanto a expressão de conteúdos inconscientes como também uma aproximação da comunicação entre adultos e criança (Sei & Zanetti, 2017), com destaque para a linha da vida (Hanriot, Garcia, Lara & Sousa, 2013) e o genograma (Franco & Sei, 2015).

O genograma foi preenchido pelos pais em folhas separadas, cada um representando os ancestrais de suas famílias, numa outra sessão, transpuseram as informações em uma única folha. Observou-se com essa técnica a presença de familiares que foram classificados como "bem-sucedidos" e "malsucedidos". A partir disso, foi possível discutir a importância de se ter sucesso e seu significado para cada um. Ficou claro para a família o quanto o desempenho permeava a percepção deles sobre o que é bom ou ruim e a influência disso na qualidade de vida e relacionamentos deles.

A linha da vida foi feita individualmente e discutida posteriormente com o grupo. O pai produziu um desenho contendo letras e números soltos, os filhos do primeiro casamento e a atual família nuclear. Disse não saber o que os números e letras representavam. Sobre a família, relatou sentir que havia muito amor tanto pela família nuclear atual quanto pelos filhos do relacionamento prévio. A mãe fez vários riscos coloridos usando muita lantejoula e brilho. Disse que o desenho a representava, pois era uma pessoa sempre muito alegre e feliz. O filho, denunciador da dinâmica familiar, desenhou um círculo, com o apoio de um CD, ou seja, sem ser desenhado a mão livre, e trouxe apenas informações relativas ao contexto escolar, em detrimento de outras situações de sua vida.

Os pais observaram a dificuldade do menino em olhar para além de seu desempenho. Puderam, a partir de então, notar no próprio cotidiano, fora da terapia, em que momentos isso se repetia. Perceberam a necessidade de maior envolvimento com a família, pois, embora tivessem feito desenhos bastante otimistas, refletiram que nem sempre era assim na realidade.

Esses exemplos de atividades ilustram o movimento da família ao longo do processo psicoterápico em perceber a queixa do filho como algo mais amplo, que os envolviam como família. O principal ponto que permeou o trabalho terapêutico foi a questão da exigência que cada membro depositava em si e no outro e o quanto era angustiante a possibilidade de erro. Houve um entendimento por parte dos pais de que o filho denunciava um sofrimento de todos: a dificuldade em aceitar falhas em si e no outro. Tal compreensão foi importante para a família, em especial para o garoto, que, passado o período de dois anos, dizia-se com muitos amigos, inclusive participando de festas de aniversários e outros encontros, o que antes não acontecia. Apesar de ainda se sentir ansioso nas vésperas das provas, dizia não ter mais "brancos" e saber que havia feito o melhor que poderia. Os pais, por sua vez, também perceberam o quanto a autoexigência era prejudicial no contexto individual e familiar. Passaram a se relacionar de maneira um pouco mais flexível diante do erro.

Verificando-se essas melhoras no filho, somadas à percepção de que questões conjugais e parentais estavam surgindo (por exemplo, falta de comunicação entre o casal, pouco tempo para relacionamento íntimo de qualidade, entre outros), optou-se por um novo encaminhamento: a psicoterapia de casal. A família concordou com tal modificação, com o trabalho com questões relacionadas à dinâmica do casal, sem a presença do filho na sessão.

 

Discussão

Com as hipóteses diagnósticas levantadas no processo de avaliação psicológica que precedeu e apoiou a prática clínica interventiva, foi possível evidenciar que a criança demonstrava boa capacidade intelectual com adequada interpretação da realidade em que estava inserida. Todavia, na esfera emocional, demonstrou dificuldades em lidar com a realidade concreta/objetiva, na qual se apresentava com muitas exigências e expectativas por parte da família e por parte de si próprio. A dinâmica familiar foi aventada como relevante para a melhora do funcionamento dinâmico do sujeito. Esse diagnóstico permitiu o encaminhamento do caso à psicoterapia familiar e a vinculação da família à intervenção indicada (Cerioni & Herzberg, 2016).

O sintoma apresentado pela criança denunciava uma dinâmica familiar em que a exigência de si mesmo, e do outro, era central. Ao se trazer essa questão para o grupo familiar, a despeito do foco no indivíduo, possibilitou-se a circulação do sintoma e a ressignificação deste (Sei & Zanetti, 2017). A partir disso, todos os familiares relataram sentirem-se mais flexíveis em relação ao desempenho e capazes de experimentar momentos de lazer e descontração em família.

Diante do que foi apresentado, pode-se considerar que o processo psicodiagnóstico como uma etapa essencial da prática profissional do psicólogo, especialmente quando esta está pautada no fazer clínico no processo de formação. A avaliação se constitui como o ponto de partida no qual são tecidas as hipóteses diagnósticas que serão norteadoras do início do processo interventivo (Carminatti et al., 2014; Dian, 2007). Por isso, as reflexões advindas do psicodiagnóstico inicial apontam caminhos para o estabelecimento de critérios que irão ser trabalhados por meio da intervenção clínica terapêutica, podendo favorecer o trabalho interpretativo. Compreende-se, ademais, que tal tipo de intervenção contribui para balizar as expectativas apresentadas diante da demanda pelo atendimento psicológico e o que de fato será ofertado por meio da intervenção clínica, minimizando abandonos posteriores do processo terapêutico (Cerioni & Herzberg, 2016), como pôde ser visto com a vinculação da família ao atendimento exposto.

O processo terapêutico se demonstrou ajustado ao perfil dessa família, assim o desenvolvimento e a evolução da dinâmica familiar foram beneficiados por meio das atividades expressivas (Hanriot et al., 2013; Franco & Sei, 2015; Sei & Zanetti, 2017). Nesse sentido, entende-se que essas atividades foram importantes para um desfecho positivo em relação à queixa inicial.

Os resultados obtidos com esse trabalho levam à reflexão crítica acerca das possibilidades e limitações de atendimento no campo prático do serviço-escola. Ao nos remeter aos resultados aqui apresentados, há que mencionar que nem sempre os atendimentos no contexto do atendimento em serviço-escola são bem-sucedidos, haja vista que frequentemente a alta incidência de faltas e o abandono das sessões se constituem parte da realidade nesse tipo de serviço (Almeida et al., 2016). Além disso, a variedade de intervenções clínicas disponibilizadas em cada local está atrelada ao perfil da universidade na qual o serviço está alocado, considerando o projeto político-pedagógico do curso e a equipe de docentes.

Em consonância a esse panorama, compreende-se que a participação discente no atendimento clínico, como parte da sua formação, deve estar articulada ao currículo e a todos os procedimentos que regulam a vida acadêmica, a saber, ensino, pesquisa e extensão (Amaral et al., 2012). Sendo assim, entende-se que os serviços-escola têm o desafio de articular as demandas de formação acadêmica com as necessidades dos setores da sociedade que buscam atendimento, ou seja, entre a necessidade de produzir e reproduzir conhecimento por parte da universidade e a demanda de atendimento por parte da comunidade, que muitas vezes não ocorre em outros serviços públicos (Marturano et al., 2014).

Sob essa perspectiva, há que se mencionar que, de um modo geral, os cursos de formação em Psicologia ainda precisam avançar para instrumentalizar de forma satisfatória o profissional, seja na área de avaliação psicológica (Borsa, 2016), seja na área clínica psicoterapêutica (Almeida, Franco, Sei, & Zanetti, 2016). Com o atendimento do caso tanto do ponto de vista da realização da avaliação psicológica quanto da psicoterapia de família, espera-se que os estudantes tenham tido uma experiência com maior completude para sua formação profissional. A discussão sobre a articulação de diferentes práticas na Psicologia é algo relevante para o desenvolvimento do campo psicológico como um todo. Os serviços-escola podem apresentar, então, um espaço de inter-relação das práticas psicológicas, sendo possível oferecer aos graduandos de Psicologia uma formação mais ampla e menos territorialista em relação a suas práticas.

 

Considerações Finais

As pesquisas que visam apresentar de modo sistemático a interlocução entre a avaliação psicológica e o processo psicoterápico ainda são incipientes, de modo que estudos com essa temática deveriam ser desenvolvidos em âmbito nacional. Um ponto central que merece reflexão é o fato de que os serviços-escolas devem oferecer uma formação acadêmica pautada na experiência da prática psicológica. Assim, esses serviços precisam formar o aluno para a necessidade de se efetivar uma boa avaliação psicológica antes do início do processo interventivo.

Quanto ao caso aqui descrito, notou-se que por meio das hipóteses diagnósticas levantadas se pôde constatar que a dinâmica familiar seria um tema central do processo interventivo e que somente por meio da atenção e do cuidado com o núcleo familiar poderia haver progressos na elaboração dos sintomas. Apesar das limitações concernentes ao caráter de caso único discutido neste relato, acredita-se que este trabalho se apresente como um exemplo de uma atuação mais articulada, na qual prevalece o reconhecimento da contribuição de cada área envolvida no trabalho, quais sejam, a avaliação psicológica e a clínica. Posto isto, há que se ampliar as investigações que tenham esse propósito.

 

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Recebido em: 05/07/2017
Aprovado em: 29/6/2018

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