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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.2 Belo Horizonte jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120203 

ARTIGOS

 

A inserção do Conselho Tutelar na prática da intersetorialidade

 

The inclusion of the Tutelary Council in the practice of intersectoriality

 

 

Roberta Carvalho RomagnoliI; Bruna Coutinho SilvaII

IPontifícia Universalidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: robertaroma1@gmail.com
IIPontifícia Universalidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: bcoutinho.psi@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto analisa a relação do Conselho Tutelar na intersetorialidade, que pressupõe mudanças institucionais articulando saberes e práticas para a garantia dos direitos sociais. Utilizando a metodologia da pesquisa intervenção e as ideias de Deleuze, Guattari e Foucault, analisamos o cotidiano da prática intersetorial por meio das linhas da individualização e do poder. Concluímos que a inserção do Conselho Tutelar nessas ações pode ser guiada pela judicialização que impede a produção do coletivo.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Intersetorialidade. Pesquisa-intervenção. Conselho Tutelar. Judicialização.


ABSTRACT

This text examines the inclusion of the Tutelary Council in the practice of intersectoriality that presupposes institutional changes combining knowledge and practices for the guarantee of social rights. Through the methodology of the intervention research and the ideas of Deleuze, Guattari and Foucault, we analyze the daily intersectorial practice through the lines of individualization and power. We conclude that the inclusion of the Tutelary Council in these actions could be guided by the judicialization that prevents the production of the collective.

Keywords: Public Policies. Intersectoriality. Intervention Research. Tutelary council. Judicialization.


 

 

Acerca da intersetorialidade e do Conselho Tutelar

Depois de 1988, por meio de intensa mobilização social, implementa-se uma nova Constituição em nosso país, sustentando o direito às estruturas democráticas e à proteção social de forma igualitária e universalista (Brasil, 1988). Baseadas no texto da Constituição, as políticas públicas passam a se responsabilizar pela proposição e fortalecimento de ações (planos, programas e projetos) que têm como objetivo possibilitar melhorias nas condições de vida das populações. Ações essas que indicam a necessidade de articulação entre essas políticas e que nos conduzem à intersetorialidade. Essa demanda é cada vez mais emergente, pois a definição setorial das políticas, a gestão segmentada e setorializada demonstram ineficiência oriunda da ausência de ações integradas e já não respondem de forma adequada aos desafios atuais, dentre eles, o aumento da vulnerabilidade e da exclusão social.

Ao analisar as trajetórias das políticas de saúde e assistência social, tendo como foco a intersetorialidade, Monnerat e Souza (2011) destacam seus limites estruturais, principalmente no que se refere ao atendimento da população, evidenciando a necessidade de um enfrentamento intersetorial, com a conformação de uma rede de proteção social com a construção de interfaces entre setores e instituições governamentais (e não governamentais). Essa busca de produções conjuntas em rede objetiva combater os complexos problemas sociais, que ultrapassam a alçada de um só setor ou área de política pública, tornando quase uma imposição a integração entre as políticas. As ações intersetoriais visam que a população, de acordo com Góes e Machado (2013, p. 629): "[...] a) seja assistida em todos os seus aspectos sociais, econômicos, culturais e outros; b) melhore a qualidade de vida e bem-estar e; c) seja estimulada a buscar novos saberes e alternativas para solucionar seus próprios problemas". Isso na tentativa de garantir os direitos sociais da Constituição e a participação social.

Nascimento (2010) também enfatiza a importância da intersetorialidade, que não prescinde das ações setoriais para produzir outros modos de gestão do trabalho coletivo, na perspectiva da interface e conexão, a partir de um lugar-comum (território, público, objetivos), de ações acordadas, de metodologias participativas, em que há não apenas troca, mas produção de saberes. A intersetorialidade pode ser definida "[...] como a articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinérgicos em situações complexas" (Inojosa, 2001, p. 105). Essa articulação pressupõe muito mais que agregação de setores, convocando uma série de inovações no âmbito da gestão pública, demandando novas respostas organizativas, a superação das estruturas hierarquizadas e verticais e a criação de novos arranjos institucionais com dinâmicas horizontalizadas de trabalho (Bronzo, 2010). Além dessas mudanças institucionais, a intersetorialidade se concretiza no dia a dia dos serviços como um

[...] dispositivo para propiciar encontros, escuta e alteridade, além de ajudar a explicitar interesses divergentes, tensões e buscar (ou reafirmar a impossibilidade) de convergências possíveis. E que também possa evitar duplicidade de ações e buscar integrações orçamentárias para projetos prioritários, articular recursos, ideias e talentos. (Akerman et al., 2014, p. 4293)

Dessa maneira, a ampliação dos pactos e das conexões entre as políticas setoriais condiz com uma nova perspectiva de realidade social, em que a complexidade emerge como ponto de partida. Para tanto, as agendas políticas passaram a incluir a intersetorialidade e a interdisciplinaridade como práticas fundamentais, em diversas políticas sociais, a exemplo da assistência social, da educação e da saúde (Rezende, Baptista, Amâncio Filho, 2015).

Atenta a essas questões, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PMBH) instituiu os Núcleos Intersetoriais Regionais, vinculados às Secretarias de Administração Regional Municipal, objetivando promover a intersetorialidade e a descentralização das ações de inclusão social (Belo Horizonte, 2009). Na regional pesquisada, em 2013, foi instituído o Núcleo Intersetorial Regional (NIR Técnico), com o intuito de criar um espaço intersetorial para discussão dos casos graves de violação de direitos afins às políticas setoriais regionais e assim denominados pelas equipes, de modo a agilizar e qualificar a entrega de serviços públicos à população demandante. Há uma equipe fixa, composta por profissionais representantes de cada uma das políticas: educação, saúde e assistência social, indicados pelas gerências de cada política, e uma equipe volante, composta por profissionais das mesmas políticas que demandam a discussão de casos complexos (que demandam intervenções constantes de todas as políticas públicas) nesse núcleo, por estarem relacionados ao caso, direta (intervenções específicas com aquela família, na política setorial na qual atuam) ou indiretamente (profissionais que se envolvem nos encaminhamentos que serão acordados na reunião).

São muitos desafios na prática da intersetorialidade. O NIR Técnico encontra alguns impasses em seu cotidiano, colocados pelos profissionais, que dificultam a sustentação efetiva das suas ações. São eles: dificuldade com a inserção da ação intersetorial nos planejamentos institucionais; atravessamento de uma mentalidade ainda setorizada e personificada que circula nos equipamentos; desconhecimento dos técnicos da ação intersetorial, que muitas vezes, ao contrário do que esta propõe, é vista como uma sobrecarga de trabalho; ineficiência nos encaminhamentos e acolhimentos; dentre outros. Um dos grandes desafios do NIR Técnico no território é a relação entre as políticas públicas e o Conselho Tutelar (CT).

Na tentativa de fundamentar as políticas ligadas à infância e à adolescência, ocorre em 1990 a regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelecendo uma nova concepção de direitos e deveres pautados na doutrina de proteção integral (Brasil, 2002). O CT é regulamentado pelo art. 131 do ECA como um "[...] órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente" (Brasil, 2002). Do ponto de vista administrativo, sua atuação está vinculada aos municípios, articulada aos programas e projetos municipais que cabem às crianças e adolescentes. Esse órgão é acompanhado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), pelas entidades civis que trabalham com esse público e pelos órgãos de defesa, como o Ministério Público e as varas e coordenadorias da infância e da juventude (Brasil, 2007).

O Conselho Tutelar é composto por cinco cidadãos da sociedade civil, residentes no município em questão, eleitos por voto popular, que se tornam conselheiros e passam a compor um colegiado. A autonomia de suas ações lhes permite incutir medidas protetivas sem interferências, além de lhes permitir denunciar falhas no atendimento municipal às crianças e adolescentes. Outro pressuposto importante do CT é o fato de não integrar ao poder judiciário, nem tão pouco suas ações, apreciações e julgamentos se exercerem como o papel do judiciário (Brasil, 2007). A proposta de atuação do Conselho não se restringe somente à atenção aos direitos violados, também se centra na prevenção dessa violação. Nesse sentido, não atua como um dispositivo jurídico ou ligado ao poder Executivo, mas sim como um intermediário entre os dispositivos de Estado e as demandas provocadas pela violação de direitos, sendo mobilizador da rede de serviços, zelando pelo cumprimento dos direitos definidos pelo ECA. Assim, fica clara a importância do CT nas ações intersetoriais.

Sendo assim, este texto apresenta os resultados parciais da pesquisa "Intersetorialidade, famílias e processos de subjetivação", financiada pelo CNPq e pela PUC Minas. Trata-se de uma pesquisa-intervenção cujo objetivo é analisar a intersetorialidade a partir das relações estabelecidas no NIR Técnico, de uma das regionais da PMBH, enfatizando o modo de gestão do trabalho social entre as políticas setoriais, nas equipes e com as famílias, com o intuito favorecer a invenção de novas formas de expressão nesses grupos. Em nosso estudo, percebemos que um dos grandes desafios para a efetivação da intersetorialidade no núcleo estudado são as questões concernentes ao CT da região, as quais, por sua vez, nos convocaram a refletir acerca dessas relações.

 

Sobre os dispositivos de produção de conhecimento/intervenção

Este estudo se insere na linha de pesquisa-intervenção, que propõe romper com as dicotomias teoria-prática, sujeito-objeto, articulando pesquisador e campo de pesquisa. Sobre a pesquisa-intervenção, Kastrup (2008) enfatiza que seu campo de investigação também constitui o espaço concreto de intervenção, em uma produção coletiva de conhecimento na qual não há um conjunto de regras prontas, mas sim a exigência de uma construção que necessita da habitação do campo de pesquisa e da implicação do pesquisador. Nessa direção, "[...] a intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto" (Passos, Barros, 2012, p. 17), colocando no mesmo plano teoria e prática. Assim, caracteriza-se por um estudo que é realizado em conjunto com a população pesquisada, visando à geração de conhecimento e ação, para uma atuação transformadora da realidade. Essa modalidade de pesquisa utiliza uma metodologia participativa, cuja transformação é processual e se dá por intervenções de ordem micropolítica nas situações cotidianas, que são em si complexas, em uma dimensão em que o estudo se transforma de acordo com os acontecimentos do campo, na interface entre o saber e o fazer.

A pesquisa-intervenção altera o modo de conceber a produção de conhecimento e o encontro do pesquisador com seu campo, produzindo interferências mediante as quais o conhecimento se produz, a partir do plano de forças que compõe a realidade estudada com suas linhas de reprodução e de invenção, de forma processual e singular. Conhecer/intervir é rastrear os processos cotidianos, desarticular as práticas e os discursos instituídos e as relações que dificultam a criação, para que surjam outras formas de lidar com as tensões presentes na prática intersetorial. A partir dos encontros, das observações, dos afetamentos, da análise da implicação, dentre outros, busca-se micropoliticamente colocar em análise os efeitos das práticas no cotidiano institucional, desconstruindo territórios cristalizados e facilitando a criação de novas práticas, como aponta Paulon (2005). A implicação rompe com a ideia de neutralidade da ciência moderna, revelando que aquilo que a instituição provoca no pesquisador é sempre efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que circulam na relação com o campo de pesquisa. Segundo Romagnoli (2014), estar atento a esses efeitos e sustentá-los nos possibilita acessar a instituição por meio da análise da implicação.

Usando a metodologia da pesquisa-intervenção, a pesquisa apresenta dois eixos concomitantes de ação a serem desenvolvidos em três anos, em conjunto com a população pesquisada, compreendendo a formulação de um campo de análise e um campo de intervenção. Os resultados aqui discutidos referem-se ao primeiro ano. O campo de análise se constitui de levantamento e discussões permanentes da literatura sobre as ideias de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault, que sustentam a proposta de pesquisa-intervenção desse estudo, e autores nacionais que trabalham nessa vertente. Efetuamos, ainda, um estudo sistemático de pesquisas e publicações objetivando analisar as questões que vêm sendo levantadas no que tange à intersetorialidade, focando na inclusão social, na violação de direitos e nas famílias em vulnerabilidade social. As experiências e as indagações do que estudamos servem para a leitura e discussão com o NIR Técnico. O campo de intervenção é formado por meio de um projeto de trabalho coletivo com a equipe dos profissionais que integram o NIR Técnico, acolhendo as demandas e dificuldades locais e envolvendo discussões acerca da dimensão político-institucional (organização do trabalho, relações entre os setores e equipes, relação com as famílias, poder frente aos procedimentos) e da dimensão socioassistencial. Para a produção dos dados, utilizamos contatos informais, grupos de discussão, entrevistas semiestruturadas individuais, restituições do material para análise conjunta. Tais procedimentos visam conhecer as questões colocadas pelos profissionais, seu cotidiano de trabalho nas ações intersetoriais e sua relação com as famílias. Esses dois campos se interpenetram a todo instante no processo da pesquisa.

A demanda da pesquisa foi produzida por um estudo anterior, que analisou um equipamento da proteção social básica nessa regional. Na ocasião, um dos analisadores que surgiu no processo de produção dos dados em conjunto com a população pesquisada foi a intersetorialidade. No término da pesquisa, a gestora da política de assistência social da regional fez um convite para estudar a intersetorialidade a partir do dispositivo do NIR Técnico. Diante dessa proposta, foram realizadas assembleias com os gestores e equipe para levantar o problema de pesquisa.

A análise dos dados produzidos nesse estudo, e apresentada em parte neste texto, foi feita em conjunto com a equipe do NIR Técnico por meio da restituição, ferramenta essencial nessa modalidade de pesquisa. Monceau (2012) atesta que a restituição nos possibilita fazer uma revisão das interpretações que fazemos como pesquisadores, além de manter ativo o pacto do trabalho conjunto com o campo. Esse procedimento permite aos participantes expressarem suas percepções, e que estas sejam usadas como suporte para a reflexão coletiva e possível transformação. Questionar pressupostos acadêmicos e intervenções por intermédio do coletivo coloca em análise as instituições e as ações que constroem seu cotidiano; nesse caso, o cotidiano da intersetorialidade em sua relação com o CT.

Acreditamos, ainda, que essa metodologia nos permite pensar as relações, mais do que os sujeitos/objetos, voltando-se para a dimensão das forças que as perpassam, para o que ocorre entre as famílias, os profissionais, os encaminhamentos e as políticas setoriais, atentos às multideterminações da realidade. Assim, pensar, trabalhar e intervir, tendo como foco a intersetorialidade e o grupo familiar, envolve uma complexidade constante, funcionamentos diferentes da realidade, que ocorrem ao mesmo tempo, mas produzem efeitos distintos.

A produção de dados até o momento foi feita a partir de cinco observações das reuniões do NIR Técnico, três restituições, quatro entrevistas com a equipe fixa e seis com a equipe volante. Já na primeira devolução da análise inicial, sem esperar essa colocação, ouvimos da equipe fixa do NIR Técnico que havia dificuldades com o CT referentes ao distanciamento do órgão das políticas públicas. Quando esse órgão é acionado para demandas de defesa de direitos de crianças e adolescentes, esses profissionais percebem, em alguns casos, silêncios ou mesmo a devolução do caso, dizendo que não é de sua competência. Outra questão discutida é a sensação de que o CT vem estabelecendo uma relação de desconfiança a cada convocação para participação no NIR Técnico, como se os técnicos quisessem fiscalizar seu trabalho. Com isso, a participação do CT nas reuniões vem sendo escassa, o que dificulta diretamente as discussões e os encaminhamentos, uma vez que muitos casos envolvem sua participação direta, para avaliação e intervenção. A partir dessa constatação, começamos as entrevistas com a equipe volante e incluímos membros do CT. Apresentamos as análises a seguir. Esta pesquisa foi ainda aprovada pelo Comitê de Ética Em Pesquisa (CEP) sob registro número CAAE 44396415.9.0000.5137.

 

(Entre)linhas: a relação técnicos e conselheiros e seus efeitos na prática intersetorial

Conhecer a intersetorialidade a partir das relações estabelecidas no cotidiano do NIR Técnico é insistir na complexidade e na coexistência da macropolítica e da micropolítica. Deleuze e Guattari (1996, p. 90) afirmam que "Tudo é política, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica", dimensões que coexistem e são indissociáveis e processuais. A diferença entre elas se dá pelo modo de funcionamento, uma vez que a macropolítica atua por classificação e exclusão, estratificando e segmentando o movimento da vida, e a micropolítica funciona por deslocamentos, insiste no que escapa desses segmentos para inventar. Os segmentos produzidos pela macropolítica para administrar a vida são visíveis e instituídos. Já a micropolítica é da ordem do invisível e pode atuar tanto para oprimir, nos microfascismos, na molecularizacão dos segmentos, como veremos a seguir, quanto para sustentar agenciamentos com forças inéditas.

Acerca dessa diferença, Rolnik (2016) nos fala de duas micropolíticas: a ativa e a reativa. Quando as forças que movimentam o mundo se encontram com o corpo, se produzem afetos que escapam à sua estabilidade, gerando um estranhamento. Se essa experiência não se encontra reduzida à sua capacidade destrutiva, abrem-se portas para que o desejo entre em curso de transformação, produzindo novos modos de existir, de pensar, de agir, de criar. "O efeito desta política de ação do desejo é a transformação da subjetividade e de seu campo relacional" (Rolnik, 2016), ação da micropolítica ativa, que é em si inventiva e conectiva. Por outro lado, quando o desejo toma o caminho vigente, que aponta para a manutenção do status quo, a potência da desestabilização pelas forças do "fora" se transforma em medo, em insegurança, e o resultado é a conexão com o já existente, as formas prévias forjadas pelas instituições. O desejo, desse modo, se torna reativo, conservador, agindo na preservação das ideias e ações. Os microfascismos sustentam a micropolítica reativa.

Esses funcionamentos políticos estão presentes na intersetorialidade de forma imanente, pois a estratégia documentada e instituída acerca da intersetorialidade também tem ações micropolíticas e o dia a dia do serviço também é atravessado por questões macropolíticas. Essas dimensões são simultâneas e não se submetem uma à outra, se entrelaçando em tensionamentos, interpenetrando-se a todo o momento na prática intersetorial. Fazem parte do plano da macropolítica os documentos que designam a ação de cada setor, as ações intersetoriais, a gestão pública, as normas institucionais que regem o NIR, os protocolos, cadastros e encaminhamentos. Por outro lado, o plano micropolítico se constitui pelas relações únicas e singulares que se estabelecem em cada serviço com cada caso, e entre as equipes das distintas políticas públicas que são convidadas a interagir. Em nossa experiência com o campo de pesquisa, percebemos que as ações micropolíticas na intersetorialidade se evidenciam pela produção coletiva de estratégias de intervenção, com a conexão efetiva entre saberes, práticas e experiências distintas, fazendo frente às demandas complexas, tais como violência doméstica, abuso de álcool e drogas, negligência com idosos, ameaças de morte pelo tráfico, dentre outras; enquanto as questões macropolíticas que atravessam as práticas intersetoriais concernem à sua institucionalização. Nessa perspectiva, temos de forma indissociável dificuldades de ordem macropolítica, como a não inserção de ações intersetoriais nos planejamentos institucionais das políticas, e micropolítica, em forma de microfascismos: mentalidade setorializada, saberes disciplinares que não se articulam, superioridade de alguns setores, dificuldade de participação, dentre outras.

Na coexistência da micropolítica e da macropolítica, a intersetorialidade convoca a sustentação da transversalidade na sua prática cotidiana, que entendemos como um rizoma. Os movimentos entre a equipe e os setores produzem diferenças que colocam em associação elementos heterogêneos, exercendo-se na tensão entre o estabelecido e a emergência do novo, entre macropolítica e micropolítica, operando rizomaticamente. O conceito de rizoma foi retirado por Deleuze e Guattari (1995) da botânica, sendo uma espécie de raiz, de rede móvel de caules, de limites internos e externos difusos, sem um ponto fixo de entrada e de saída. Esse modo de funcionamento é horizontal e o que o caracteriza é a exterioridade, ou seja, a conexão com as forças de fora, que vão se configurando em modos distintos de invenção da vida. O rizoma é composto por linhas duras, de segmentaridade, e linhas de fuga. As linhas duras funcionam compondo segmentos que homogeneízam, excluem, impedindo conexões. As linhas de fuga, ao contrário, buscam a invenção. Diferentemente do funcionamento macropolítico, segmentário, organizado, o rizoma também produz linhas de fuga, que escapam ao organizado, promovendo expansão, multiplicidade e rupturas.

Em consideração ao exposto, buscamos compreender a relação entre o NIR Técnico e o CT a partir desse plano de forças imanente, que ora se formatam e preservam, ora se desestabilizam e escapam para se reinventar, no âmbito da prática intersetorial. Realizamos entrevistas com técnicos de diferentes equipamentos da assistência social, da saúde e da educação, indicados pela equipe fixa do NIR Técnico e/ou que demonstravam interesse em participar da pesquisa, para compreender sua trajetória profissional, sua percepção sobre o dispositivo NIR Técnico, sua avaliação acerca das intervenções propostas coletivamente neste para as famílias, dentre outras questões. No decorrer do processo de realização das entrevistas com os diversos técnicos que participam do NIR Técnico, e com o CT, encontramos queixas de ambos os lados: dos profissionais não satisfeitos com a atuação do CT, e dos conselheiros tutelares, queixosos da intersetorialidade, muitas vezes compreendida não como sua função. Os técnicos se queixam da ausência dos conselheiros nas discussões dos casos, embora estes sejam sempre convocados, não há retorno, e entendem que eles não veem esse espaço como uma discussão produtiva, importante para o usuário. Os técnicos que necessitam da participação de ações do CT para construir saídas para os casos discutidos no NIR Técnico, sempre de extrema vulnerabilidade e com uma gama de problemas que tangem a todas as políticas públicas ali reunidas, destacam que o Conselho Tutelar não tem uma visão de todo, desconsiderando a complexidade dos casos. Os técnicos entrevistados apontam outras questões, como muita troca de profissionais; muita demanda para poucos profissionais; conselheiros com qualificação insuficiente; espaço de trabalho precarizado. Por outro lado, o CT do território analisado, à época das entrevistas, passava por dificuldades de organização decorrentes de uma mudança de espaço, que justificava sua ausência. Adiante, vamos explorar tanto a visão dos técnicos quanto dos conselheiros sobre a atuação intersetorial e seus dilemas com o Conselho Tutelar, por meio das seguintes linhas duras que perpassam umas nas outras: a linha da individualização e a linha do poder.

Na linha da individualização, percebemos tensionamentos entre as dimensões que compõem a realidade. No aspecto macropolítico, é esperado pela equipe fixa e pela equipe volante que o Conselho Tutelar esteja presente em todas as reuniões do NIR Técnico para relatar sua visão do caso apresentado, as ações efetuadas e participar do encaminhamento final após a discussão. Todavia, encontramos atravessamentos nessa adesão, de ordem micropolítica, sobretudo de uma micropolítica reativa, como pudemos perceber no encontro com o campo (Rolnik, 2016). Nesse contexto, os microfascismos buscam igualar, comparar, excluir e se desvencilhar da diferença, mantendo o que está instituído, ou seja, a atuação setorizada e uma visão personalista e individualizada, pois como nos lembram Deleuze; Guattari (1996, p. 93): "É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas".

Ao estudar o processo grupal que pode levar ao coletivo e aos agenciamentos inventivos, Barros (2009) sustenta que um dos impedimentos para que a micropolítica ativa se exerça seria o modo-indivíduo de subjetivação, forjado no século XVIII, que ainda emerge como subjetividade dominante em nossa sociedade. No modo-indivíduo está presente a noção de que no interior do sujeito se encontra a sua verdade, valorizando-se a sua dimensão privada. Nessa perspectiva, são destacadas as virtudes e habilidades pessoais pelas quais o indivíduo alcança méritos de acordo com seu esforço pessoal e isolado, e também recebe críticas e desqualificações oriundas de seu fracasso, como se estivesse separado do meio. Encontramos essa composição em nosso estudo por intermédio de microfascismos que circulam entre os técnicos e conselheiros insistindo na lógica individual. Alguns técnicos atribuem as atuais dificuldades de articulação com o CT aos próprios conselheiros, dizendo que atuam de forma muito diferente; uns têm abertura, outros não, para conversa e encaminhamento de casos; além de pontuarem que alguns profissionais do conselho não querem trabalhar. Essa perspectiva acaba por individualizar e personificar problemas institucionais, que não estão ligados às pessoas e sim às relações que se estabelecem a partir de uma instituição e a seus efeitos. Marcar essa distinção é importante para não culpabilizarmos os técnicos e tampouco os conselheiros, e buscar saídas por meio de outros modos de relação, favorecendo uma micropolítica ativa e não reativa, linhas de fuga.

Essa mesma lógica individual e privada é apresentada pelos conselheiros entrevistados, que pensam que não deveriam estar presentes em reuniões como as do NIR Técnico e se inserir no fluxo no âmbito das políticas públicas, apesar de sempre serem convocados; acreditam que precisam ter completa autonomia e se tornar parceiros apenas quando é cabível, ou seja, quando precisam emitir alguma notificação às famílias, conforme suas atribuições e deveres como conselheiros. Microfascismos também ganham força quando julgam que deveriam ser tratados com superioridade e entram em questões e rixas pessoais, não só com os profissionais dos serviços, mas também entre si. Atualmente, percebemos, com as entrevistas e o acompanhamento das reuniões, que há uma cisão entre os conselheiros em razão de pertencimento partidário, de modo que os "de direita" e os "de esquerda" não conseguem mais dialogar. Essa micropolítica reativa é também mantida pela judicialização da vida, que trataremos adiante, uma vez que em um rizoma as forças se encontram imbricadas, de forma imanente, se interpenetrando a todo instante.

Um dos efeitos da lógica individualista, cuja sustentação são as práticas cotidianas isoladas dos demais atores sociais, é a precariedade da atuação política, como também observado por Nascimento e Scheinvar (2007). O CT carece de atuação política para cobrar do município e do Estado a efetivação de políticas que cumpram com a garantia de direitos das crianças e adolescentes. Tal atuação política diz respeito a sua articulação cotidiana, como órgão público, com os demais agentes sociais componentes do poder público, nesse caso, as políticas sociais, para a promoção dos direitos da população atendida, crianças e adolescentes. As autoras atestam que os CTs apresentam ainda uma dificuldade com atuações coletivas, colegiadas, mantendo uma lógica de individualização das práticas.

A maioria dos conselhos tutelares no Brasil tem adotado uma estrutura hierárquica sustentada na escolha que eles próprios fazem de um conselheiro-presidente, afastando-se, assim, da proposta de gestão colegiada. Isto faz parte de uma lógica de individualização das práticas, segundo a qual se o conselheiro tem um mandato que objetiva o ressarcimento dos direitos violados, cabe a ele, individualmente, resolver as denúncias de violação de direitos. (Nascimento, Scheinvar, 2007, p. 158)

Conjugam-se, assim, ações assistencialistas, moralistas e punitivas, a exemplo de encaminhar requisições diretamente para a gerência de equipamentos de políticas públicas, como uma Unidade Básica de Saúde (UBS) ou um equipamento da assistência social, sem antes notificar as famílias, marcando esse espaço com práticas individualistas e culpabilizantes. Elementos que circulam não somente no NIR Técnico, mas também com os usuários. Nesse contexto, na tentativa de escapar à lógica individual e privada, propomos uma lógica relacional, que se sustenta entre serviços, profissionais, famílias e o social, e que acolhe desestabilizações e movimentos. Hardt e Negri (2014) propõem a construção da experiência política do comum como uma forma de resistência aos modos dominantes capitalistas que denominam Império e que se sustentam nos modos hegemônicos do individualismo contemporâneo, centrados no consumo e na padronização, entendendo o comum não como uma propriedade, mas como um modo de produção. O comum aparece na produção biopolítica e no fazer coletivo da multidão e refere-se a um princípio político baseado na colaboração e nas práticas de autogestão. Insistindo na potência da prática coletiva, denunciam o refinamento dos mecanismos capitalistas, que operam pela produção e reprodução de modos de existência, por imanência, camuflado pela possibilidade imensurável de escolhas. Assim, em um processo fluido de engendramento e corrupção da subjetividade, o poder, denominado de biopolítica, encontra-se calcado em fazer viver, em multiplicar as formas de existência, em controlar as condições de vida. A biopolítica pode significar gerência, mas também pode significar o avesso disso, a resistência ativa da vida da multidão que remete a forças, a um plano de heterogeneidades que assumem um território comum, que acolhe as singularidades, mas abre para o coletivo. Para Hardt e Negri, quando o comum estiver subtraído à acumulação/valorização capitalista, ele se apresenta aberto ao uso da multidão, engendrando processos democráticos e participativos.

Nesse sentido, o trabalho exercido nas políticas públicas e também no NIR Técnico tem uma dimensão biopolítica ao ser inerente a uma dimensão coletiva, social e intelectual, macro e micropolítica, podendo atuar como mecanismo de controle sutil, no caso, a insistência em modos individuais, em leituras pessoais, e também com a ilusão de posturas políticas, mas também pode operar para a construção do comum. No escape da lógica relacional, os conselheiros tendem a se manter na culpabilização e nos conflitos entre eles, se distanciando da produção do comum. Produzir intercessões coletivas não necessariamente é buscar o consenso ou a harmonia das diferenças pessoais, pois não é preciso homogeneizar, mas sustentar as diferenças que têm potência para produzir um novo caminho. Isso porque o comum não é bem privado, não pertence a ninguém, podendo ser habitado por todos.

Esse sentido de coletividade pode ser considerado uma construção permanente, cuja trajetória é sempre móvel, reengendrada pelos próprios efeitos dos caminhos que toma, mas que busca a participação ativa e plural dos envolvidos. Tal modo de produção da vida acontece em meio a embates, desvelado pela linha do poder. A análise foucaultiana dessas relações é uma leitura de um poder móvel, que acontece nas situações e se exerce desde o nível micropolítico até o macropolítico. Para Foucault (1996), o que move o poder é a gerência da vida mediante a fundação de modos de existência. Dessa maneira, são estabelecidas batalhas sutis nas relações entre técnicos, conselheiros e usuários, calcadas no poder, travadas na e pela vida, buscando gerir e manter determinadas formas de viver. Esse poder atua se sustentado tanto na lei, que paira acima dos sujeitos, vetor universal de obediência, e a partir da qual se dispara a judicialização da vida, como no saber.

Ao se tratar das relações entre o NIR Técnico e o CT, consideramos um forte atravessamento do poder judiciário, em nível macropolítico, por meio da lei e de seu uso micropolítico. A lei entendida como a verdade atua como parâmetro universal de modelização da vida, pela determinação de que modos de agir, pensar, sentir, que são certos ou errados, passíveis ou não de punição e julgamento (Foucault, 2003). Para a execução da lei, cria-se o Poder Judiciário, cujo desenvolvimento, ao largo do século XX, veio atrelado à crença do poder da justiça como asseguradora de tranquilidade e liberdade dos cidadãos, diante de diversas situações em que se busca legitimar o sujeito de direito. Nessa construção, mecanismos, regras e pessoas se associam e o poder circula e se exerce, formatando condutas, operando para a judicialização da vida, por intermédio de práticas que se ligam a instituições disciplinares, dentre elas o CT, que, nesse contexto, se distancia de sua função oficial. Em nosso estudo, percebemos que a lei, micropoliticamente, atua nas relações dos conselheiros com as políticas públicas e com os usuários, sustentando atuações judicializadas e acríticas.

A força da lei está na verdade, incontestável para quem a exerce, para quem ela é imposta e até mesmo para quem está por perto. Nesse contexto, em nossa pesquisa, os técnicos falam que quando chega um encaminhamento do CT, todos se mobilizam para atender, sem a possibilidade de diálogo, uma vez que é vivida como uma intimação.

Aqui a conversa é meio truncada, é no faça-se e cumpra-se. Quando chega alguma coisa do Conselho Tutelar, é como se fosse da polícia. [...] a sensação que se tem é que o povo está com um mandato policial, o mandato de um juiz. Eles não aguardam reunião nenhuma quando vem um encaminhamento, [...] e geralmente os encaminhamentos vêm em caráter de urgência. (Técnica)

Esse pronto atendimento também é esperado pelos conselheiros, que, empoderados pela proximidade que imaginam ter com a lei e o Poder Judiciário, sustentam condutas que intervêm inclusive na ação profissional das equipes e deles mesmos. Os conselheiros dizem que em hipótese alguma suas requisições devem ser questionadas, pois são constituídas sob um parâmetro legal de cumprimento das funções do órgão. No entanto, nas assembleias do NIR Técnico que acompanhamos, observamos que as requisições do Conselho não estão sendo imediatamente atendidas, e sim sendo questionadas em termos de pertinência. Esses questionamentos versam sobre a existência ou não de violação de diretos nos casos, uma vez que se deve ver a singularidade e modo de cuidado de cada família. Os técnicos entendem que, distante do modelo ideal de família, a saber a família nuclear, ocorrem arranjos alternativos visando a uma organização própria, que não deve ser desqualificada, mas acolhida. O tom geralmente moralista dos conselheiros parece desconsiderar essa organização. Os técnicos iniciam uma micropolítica ativa, a construção de uma linha de fuga, entretanto, a identificação do CT com o Poder Judiciário denuncia microfascismos: no julgamento das famílias, no controle sobre como deveriam ser, na dificuldade de lidar com a diferença.

Vale retomar a perspectiva legal que sustenta o surgimento do CT, que se trata da constituição de um órgão público, mas autônomo, para a garantia e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, e embora este tenha como pressuposto de sua atuação ações não judiciais, constantemente os conselheiros recorrem ao poder judiciário como lógica e procedimento de intervenção. Scheinvar (2012) destaca esse paradoxo, evidenciando que, na prática, o CT sustenta ações que julgam e sentenciam condutas. A autora ressalta que a identificação com o discurso e as práticas do judiciário faz imperar a resolução de conflitos no âmbito individual, com a criminalização das ações "desviantes", da qual decorre a ameaça de se levar as famílias para os CTs.

Ou seja, o que se vê, baseado no ECA, é a judicialização das práticas concernentes à violação de direitos das crianças e adolescentes, por meio do CT, que na maioria das vezes se fundamenta na punição de condutas desviantes e na gestão de riscos a partir de classificações normativas e moralistas, como "família desestruturada" e criança/adolescente "marginal", "perigoso". Pensado como um equipamento que daria apoio, assistência e reivindicação política de direitos sociais às famílias, crianças e adolescentes, a expectativa era que o CT prosseguisse com esses propósitos com práticas já ensejadas pelos movimentos sociais que o criaram, tornando-se um instrumento autônomo, financiado pelo Estado e amparado pela sociedade civil. Todavia, Scheinvar (2012) aponta que um dos efeitos de sua institucionalização foi o distanciamento dos movimentos sociais. Embora uma das aspirações dos conselheiros entrevistados seja ter possibilidade de parceria com as políticas públicas, desejando abrir espaço para as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, não foram acompanhadas discussões a esse respeito. Assim, corre-se o risco constante de que os conselheiros encarnem a lei, colocando-se acima das políticas públicas, e, por a lei ser a verdade, não acharem necessário discutirem com outros profissionais, sobretudo, as requisições e os encaminhamentos, boicotando a prática intersetorial.

Além da lei, o saber exercido por meio das práticas discursivas da ciência também atua sobre a intersetorialidade. Para Foucault (1996) o indivíduo moderno é não só resultado das relações de poder, mas também é constituído como sujeito de saber, moldado pelas disciplinas que produzem realidades calcadas nos discursos científicos. Dessa maneira, formas de subjetivação são produzidas amparadas no poder disciplinar, em que mecanismos de dominação interiorizados moldam um modo de existência passivo, alienado. Devido ao poder hoje cada vez mais se exercer por redes, somos vigiados não só pelas leis, mas sobretudo pelo saber dos especialistas, pelas normas, pelas ideias construídas pelas disciplinas, às quais se concede o status de verdade. Esse processo estimula as pessoas a moldar e a fabricar suas vidas, sendo "controladas" por modelos científicos, monitoradas por poderes cotidianos que se exercem anonimamente nas relações, e o grau adquirido pela formação é essencial nesse processo. O fato de uma parte dos conselheiros não ter formação superior é um grande atravessamento para as relações com os profissionais das políticas públicas, ou seja, estes, por "saberem mais", supostamente, desconfiam daqueles. Os conselheiros sentem que os técnicos se esquecem de que eles conhecem bem o território no qual atuam, além de terem sido eleitos para os cargos por votação popular. Dessa forma, por não ter um curso superior, e se sentirem com um saber menor, não avalizado pela academia, os conselheiros se "agarram" mais à lei para fazer valer suas ações.

 

Considerações finais

Embora pilar de sustentação das políticas públicas, a prática intersetorial ainda é um grande desafio para as equipes de um território. Não só na relação entre os setores, mas também, como vimos em nosso estudo, na relação desses setores com o Conselho Tutelar, por meio de tensionamentos macropolíticos e micropolíticos. As linhas duras da individualização e do poder muitas vezes inviabilizam o acesso à dimensão intensiva da vida e à potência para a invenção, impedindo que a intersetorialidade se efetue na intercessão, no encontro entre segmentos e forças.

Acreditamos que as reflexões apresentadas possam contribuir para a emergência de novas práticas no campo em questão, sustentadas pela crença na potência instituinte e na sua busca, na aposta da intersetorialidade como um dispositivo a favor da vida, já que participamos ativamente da construção dos serviços e das políticas públicas, com nossas inserções e atuações, seja na academia, seja nos serviços. Arriscar a traçar linhas de fuga exige crítica, mas aposta no que pode vir a ser, permitindo a efetivação da intersetorialidade de forma coletiva e potente.

 

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Recebido em: 03/06/2017
Aprovado em: 22/08/2017

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