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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.13 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.36298/gerais202013e14744 

ARTIGOS

 

Surdez e Preconceito: uma Análise a partir da Percepção dos Pais de Surdos

 

Deafness and Prejudice: an Analysis from the Perception of Parents of the Deaf people

 

 

Andressa Araújo de AraújoI; Joilson Pereira da SilvaII

IUniversidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Brasil. E-mail: dekaaraujo@hotmail.com (orcid.org/0000-0001-5671-6225)
IIUniversidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Brasil. E-mail: joilsonp@hotmail.com (orcid.org/0000-0001-9149-3020)

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetivou analisar a percepção dos pais de surdos sobre o preconceito sofrido pelos seus filhos. Foram pesquisados oito pais de surdos por meio de uma entrevista semiestruturada que foi analisada com o auxílio do Software Iramuteq por meio da Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Os resultados geraram um dendograma com cinco classes que representam, na visão dos pais, os preconceitos que os filhos surdos, que utilizam a Libras como forma de comunicação, enfrentam. É percebido que o surdo é ainda tratado como deficiente e "doente". Dessa forma, diversos tipos de preconceitos estão presentes no cotidiano dos surdos, os quais têm como autores principais os próprios familiares, a escola e os profissionais da área de saúde.

Palavras-chave: Família. Preconceito. Surdo.


ABSTRACT

The current study aimed to analyze the perception of parents about prejudice suffered by their deaf children. Eight parents of the deaf children were surveyed through a semi-structured interview which was analyzed using the Iramuteq Software through the Descending Hierarchical Classification (CHD). The results generated a dendrogram with five classes that represent, in the parents' view, the prejudices that deaf children, who use the Libras as a form of communication, face. It is perceived that the deaf people are still treated as deficient and "sick." Thus, several types of prejudices are present in the daily life of the deaf person; and whose main authors are their own family members, the school and the health professionals.

Keywords: Family. Prejudice. Deafness.


 

 

Introdução

Os pais são, via de regra, as pessoas que acompanham os filhos, sentem e percebem as dificuldades e adaptações às quais eles são submetidos, especialmente, quando o assunto é um filho com alguma diferença, como o caso da surdez. Então vivem e, muitas vezes, compartilham as principais dificuldades e preconceitos vivenciados por eles nos diversos âmbitos da vida: social, no mercado de trabalho, na assistência à saúde e no processo de escolarização.

Enfatiza-se assim a longa história de preconceito e segregação dos quais eles foram vítimas por causa das diferenças, especialmente linguística. Sobre isso, é importante, ao considerar o surdo, perceber a grande heterogeneidade linguística e cultural existente: surdos que oralizam, surdos que utilizam língua de sinais, surdos que misturam as duas línguas; surdos que fazem a leitura labial, que têm implantes cocleares; surdos que chegam à escola sem utilizar nenhuma dessas modalidades linguísticas; entre outros. Neste artigo, os filhos surdos dos participantes utilizam a Libras como forma de comunicação.

Os preconceitos contra o surdo existem em diversas situações, como exemplos podem-se citar: a terminologia que algumas pessoas usam, ao se referirem ao surdo: "mudo", "macaco", "mudinho", "surdo-mudo"; além dos risos e olhares estranhos ao perceberem os surdos se comunicando por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras); a rejeição na matrícula dos filhos surdos, em alguma escola da escolha dos pais; a dificuldade em conquistar uma vaga no mercado de trabalho; problemas de comunicação com o médico, ao procurar um posto de saúde ou hospital, para atendimento do surdo, entre outras.

De certa forma, o preconceito contra os surdos pode acontecer também na própria família. Afinal, a maioria dos pais, ao descobrirem o diagnóstico da surdez de seus filhos, passa por uma fase crítica, pois esse fato exige adaptações e novas prioridades na família. Petean (1995) esclarece que os pais, no momento do diagnóstico da surdez, lidam com o sentimento de perda, da "morte" do bebê perfeito, da criança sonhada.

As reações emocionais pós-diagnóstico, geralmente, não perduram. Orsoni (2007) elucida que, aos poucos, essa realidade vai gerando sentido para as famílias. Os sentimentos negativos como revolta, culpa, tristeza e solidão, apresentados pelos pais, podem ser modificados de acordo com a forma como eles interpretam a condição do seu filho e ganham proximidade com eles (Santos Filho & Oliveira, 2010).

Buscaglia (1997) afirma que muitas famílias que têm filhos com deficiência sentem-se pertencentes a um status inferior, com poucos ou restritos direitos. Esses sentimentos são baseados na realidade, defrontada com atitudes depreciativas da sociedade, como proteção exagerada de parentes e amigos, ações esquivas de estranhos e implícitas nas atitudes e tratamentos de diversas pessoas e profissionais de saúde.

Os pais, diante das atitudes de preconceito, podem se empenhar para dar o seu melhor, protegendo ou superprotegendo o seu filho, além de utilizar meios de combater, de alguma forma, o preconceito, ou ainda, conforme esclarece Buscaglia (1997), insistir que as coisas continuem como eram antes de o filho com deficiência nascer e, por fim, negar a deficiência (Buscaglia, 1997).

Como exemplo desse último caso, é comum que os pais, por vergonha da condição do seu filho, criem resistência à utilização da Libras. Além disso, a família pode se recusar a buscar informações sobre a identidade surda e a cultura, afastando o surdo do convívio social e impossibilitando que o sujeito desenvolva suas potencialidades sociais e educacionais.

Deve-se lembrar de que o preconceito não apresenta aceitação ou autorização para existir, de acordo com as leis. Pelo contrário: estas estabelecem o igualitarismo como ideal. Porém, mesmo com as políticas existentes, no intuito de diminuir as situações de exclusão, ainda hoje se percebem resquícios do pensamento excludente.

Nessa perspectiva, este trabalho teve como objetivo analisar a percepção dos pais de surdos sobre o preconceito sofrido pelos seus filhos. Ressalta-se que muitos estudos existem com a finalidade de compreender a reação familiar pós-diagnóstico da surdez, mas não se encontrou estudos que tratem do objetivo do presente trabalho, que apresenta relevância pela importância do tema e pelo pioneirismo.

 

Método

Participantes

Participaram oito pais de surdos, sendo cinco mães e três pais. A indicação e o primeiro contato com os participantes ocorreram por meio da amostragem do tipo não probabilística (intencional) bola de neve, cuja seleção é baseada no conhecimento sobre a população e o propósito do estudo, segundo critérios estabelecidos, para a garantia da representatividade da amostra. Vale ressaltar que os participantes utilizam a Libras como forma de comunicação com seus filhos surdos.

Instrumentos e procedimentos

Buscando compreender e desvendar a problemática e o objetivo presente neste trabalho, como instrumento para coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada, com base em um roteiro previamente estabelecido que evidenciou os aspectos relevantes para abarcar o conteúdo desejado.

Inicialmente, foi realizado um primeiro contato com uma mãe de surdo e explicitado o objetivo da pesquisa. Mediante autorização para entrevista, foi realizada uma entrevista-piloto para verificar a adequação de suas questões. Depois do término, foram solicitadas indicações de pais/mães que pudessem participar das entrevistas.

Foram marcados dia e horário para a realização das entrevistas com os pais das crianças surdas. A coleta de dados ocorreu no local indicado pelos próprios participantes: quatro entrevistas foram realizadas em suas residências, três em seus locais de trabalho e uma na escola onde seu filho estuda (mediante autorização desta). O estudo foi realizado na cidade de Aracaju, no estado de Sergipe.

Todos os participantes declararam concordância com os termos da pesquisa assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram gravadas com a autorização dos participantes e, posteriormente, transcritas em sua totalidade pela pesquisadora para posterior análise. Além disso, este estudo teve aprovação do Comitê de Ética do Hospital Universitário de Aracaju da Universidade Federal de Sergipe (HU-UFS), tendo sido aprovado no dia 5 de junho de2017, de acordo com o Parecer n. 2.099.243 (CAAE n. 68385817.2.0000.5546).

Para a análise de dados, foi utilizado o Programa Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq), método informatizado para análise de textos que busca apreender a estrutura e a organização do discurso, informando as relações entre os mundos lexicais mais frequentemente enunciados pelo sujeito (Almico & Faro, 2014). Entre os diferentes tipos possíveis de análise, utilizou-se para este estudo a Classificação Hierárquica Descendente (CDH), que possibilita organizar em dendograma as classes geradoras de sentido, a partir de sua semelhança e frequência (Camargo & Justo, 2005).

 

Resultados e discussão

Inicialmente, será apresentada uma descrição dos dados para, posteriormente, apresentar a discussão dos resultados, tomando-se por base a literatura sobre o tema. Na descrição dos dados, expõe-se o perfil dos participantes (nome fictício, idade, sexo, escolaridade e renda familiar), para depois mostrar a composição familiar, a causa da surdez do filho e se ele faz uso de aparelho coclear.

A fim de garantir o completo anonimato dos sujeitos, como forma de lhes proporcionar uma maior segurança e tranquilidade ao participar da pesquisa, a referência a cada participante será feita por meio de nomes fictícios.

Além disso, esclarece-se que ao utilizar a palavra surdo, ao longo dos resultados e da discussão, considerar-se-á os surdos que utilizam a Libras como primeira língua, visto que todos os filhos surdos dos participantes entrevistados têm conhecimento e utilizam a Libras como forma de comunicação. Segue tabela com mais informações a respeito do perfil dos participantes.

 

Tabela 1

 

Sobre a idade, seis dos participantes têm idade de até 48 anos, enquanto dois, acima de 48 anos. Cinco participantes são pertencentes ao sexo feminino (mãe dos surdos), enquanto três, masculino (pais dos surdos).

A respeito da escolaridade, um participante tem Ensino Médio Completo; dois, Ensino Superior Incompleto; dois, Ensino Superior Completo; dois, Pós-Graduação Latu Sensu e um, Pós-Graduação Stricto Sensu.

Além disso, faz-se importante detalhar informações como: composição familiar, causa da surdez e se o filho surdo faz uso de aparelho coclear, pois a forma que o sujeito e o filho surdo são/estão modifica a forma que ele vai se relacionar com o mundo. A Tabela 2 traz essas informações:

A seguir, consideram-se os resultados obtidos, referentes à percepção dos pais sobre os preconceitos sentidos pelos filhos surdos.

 

Percepção dos pais sobre os preconceitos sentidos pelos filhos surdos

O corpus analisado teve 8 UCI (entrevistas) e foi repartido em 222 segmentos de texto e 7.624 palavras, com a frequência média de 1,4 palavras por resposta. O dendograma gerado, de acordo com a semelhança dos segmentos de texto (Figura 1), apresentou cinco classes de segmentos de texto. Além desse dendograma, a interface de resultados possibilita que se identifique o conteúdo lexical de cada uma das classes, a partir da aba Perfis (Camargo & Justo, 2005).

As palavras mais frequentes em cada classe estão listadas no dendograma constante na Figura 1. Foram selecionadas para apresentação as 10 primeiras palavras exibidas. Os segmentos de textos (falas dos participantes), mostradas ao longo dos Resultados e da Discussão, foram gerados na aba "Perfis", sendo possível verificar os segmentos de textos que contêm a palavra, expressa em determinada classe do dendograma, de forma que possa se recuperar o seu contexto (Camargo & Justo, 2005).

Em uma primeira etapa, o corpus foi dividido (1ª partição) em dois subcorpora. De um lado, a classe 5, e do outro, as classes 4, 3, 2 e 1. Em uma segunda etapa, o segundo subcorpus foi dividido em dois (2ª partição), opondo a classe 4 e 2 de um lado e, de outro, as classes 3 e 1. Num terceiro momento (3ª partição), a classe 2 se opôs à classe 4. Em uma última divisão (4ª partição), as classes 3 e 1 se opuseram entre si.

Iniciar-se-ão os resultados e a discussão pela Classe 5, intitulada "Percepções dos pais acerca dos preconceitos", pelo seu grau de importância, considerando o objetivo do trabalho. Essa classe se opôs às demais por apresentar uma visão ampla do preconceito, objeto do estudo. Posteriormente, considerar-se-á a classe 4, intitulada "Manifestações de preconceito contra o surdo no ambiente escolar"; depois, a classe 2, "Experiência e expectativas com relação à surdez", a classe 3, "Relações familiares e preconceito" e a 1, "Principais dificuldades e aprendizados", por ordem de revelação do dendograma gerado pelo programa Iramuteq, conforme explicado anteriormente.

A classe "Percepções dos pais acerca dos preconceitos" foi a terceira maior classe e abarcou 20,4% dos fragmentos da categoria. Com base nas palavras e principais segmentos, notou-se que essa classe aborda o conceito dos pais sobre o preconceito e os principais preconceitos sentidos pelos filhos.

O conteúdo referente à conceituação do preconceito pode ser visto nos extratos a seguir.

[...] é um preconceito, preconcebido, em função de suas experiências anteriores e do grau de conhecimento, de informação. É a falta de informação, insensibilidade, reação ao diferente [...]. (Maria)

[...] o preconceito, ele vem da falta de conhecimento, eu acho, a pessoa não tem conhecimento das coisas, é uma pessoa primitiva, que não tem conhecimento do mundo [...]. (Aline)

[...] o preconceito é uma falta de informação, insensibilidade, reação ao diferente, intolerância, egoísmo... é uma falta de respeito não aceitar a pessoa, a pessoa não é como ela quer [...]. (Rafael)

Foram comuns, nessa classe, respostas de participantes que salientaram o preconceito ser um conceito prévio, uma falta de conhecimento, de informação ou até de insensibilidade ao diferente, que acaba por discriminar as pessoas.

De acordo com Pinheiro (2011), preconceitos são valores diversos, a partir de juízos preconceituosos que o sujeito tem sobre a realidade, levando em conta não somente o individual, mas, sobretudo, a cultura. Corroborando essa ideia, Crochík (2006) esclarece que as condutas preconceituosas se baseiam em estereótipos culturais. Os estereótipos, por sua vez, são passados de geração para geração, reproduzidos pelas culturas e veiculados em diversos meios sociais, como internet e televisão, fortalecendo as ideias preconceituosas.

Arendt (2012), por sua vez, explica que o preconceito está ancorado a um juízo passado, apresentado como verdade absoluta, que impede que se visualize a experiência atual e as novidades e novos conhecimentos. Dessa forma, repetem-se no presente os conhecimentos surgidos anteriormente, sem considerar novos dados.

O preconceito é então baseado na ideia de classificação, fundamentado em ensinamentos e expectativas e, a partir disso, é formada uma opinião em relação aos indivíduos que apresentam características diferentes e particulares, baseando-se em um conceito formulado de maneira parcial. Os indivíduos que fogem do padrão de normalidade, imposto pela maioria, passam a ser excluídos ou estigmatizados.

O participante Felipe salienta, ao abordar o tema preconceito, referindo-se a sua filha surda, que "[...] o preconceito sempre esteve muito presente, sempre procuramos tirar isso por menos e dar a ela uma vida normal, mostrar que ela é importante pra gente, que a gente ama ela [...]".

O preconceito é comum no dia a dia do surdo. Witkoski (2009) esclarece que falar sobre preconceito é narrar uma das interfaces de ser surdo. Ainda sob o olhar dessa autora, a surdez foi construída, historicamente, como o diferente, igualado a deficiente, em um enfoque patologizante.

Além das manifestações de preconceito expresso, da discriminação, a partir do tratamento negativo dado aos surdos e da exclusão, deve-se advertir que a acessibilidade também é deficitária, como exemplo, em alguns locais de atendimento, existem senha mas não há monitor, sendo chamada a senha por áudio ou outros locais; para resolver algum problema, exigem que só pode ser a pessoa, por telefone, ou percebem-se ainda como há restrições dos locais de lazer, como cinema e teatro, pois não existem intérpretes ou legendas e, ainda, podem-se citar as escolas regulares, que ainda não apresentam preparação para a verdadeira inclusão.

Felipe, justamente por ter essa consciência, procura dar uma vida "regular" à filha surda, demonstrando sua importância e seu sentido, já que, longe do ambiente familiar, ela sofre a influência do preconceito. A respeito disso, é interessante que todos os membros da família estejam envolvidos e apresentem relações concretas, um clima social propício e acompanhamento do desenvolvimento do surdo.

Sobre os principais preconceitos visualizados pelos pais, que seus filhos encaram, têm-se os seguintes, conforme ilustra os recortes textuais.

[...] vários episódios, principalmente em ônibus [...]. (Cristina)

[...] tive alguns problemas no prédio onde eu morava, os pais chamavam ele de mudinho, tive alguns atritos, os pais começaram a proibir os filhos de andar com ele [...]. (Aline)

[...] preconceito de forma impensada, de chamar de mudinho, mas por falta de conhecimento, não por preconceito. Ele nunca sofreu preconceito por ninguém, pelo menos eu nunca vi [...]. (Pérola)

[...] principalmente conhecidos que não convivem no dia a dia, não chegava a ser reação de preconceito e sim de pena, que não deixa de ser mais sutil, não tão direto [...]. (Maria)

Além disso, vale ressaltar que, no caso dos surdos, um dos exemplos de preconceito é a denominação "mudo", conforme visto nos relatos de Pérola e Aline, nos quais fica claro que as pessoas acreditavam que os surdos não podiam falar, o que se configurava um estereótipo e, a partir dessa ideia, cria-se um preconceito, pois a tendência que as pessoas têm é a de marginalizar esses indivíduos e até discriminá-los.

Atualmente, sabe-se que essa denominação é errônea, pois, conforme esclarece Lima e Vieira (2006), a criança surda não é necessariamente muda, uma vez que apresentam órgãos fonadores, mas, geralmente, não aprendem a falar, pois não ouvem.

Outrossim, o peso e a influência que a cultura traz para os estereótipos, preconceitos e discriminações pode ser percebido numa das falas de Aline, ao explicar que os filhos dos colegas do prédio foram proibidos de andar com o seu filho surdo. Esse impedimento configura o grau de preconceito sentido pelo pai do colega, talvez por ignorância, pensando, provavelmente, que seu filho poderia contrair a surdez, ou algum deficit de desenvolvimento por não estar atuando com "normalidade" em seu pensamento, ou ainda por vergonha de seu filho estar convivendo com um surdo.

A respeito das principais suposições que explicariam o preconceito, Peregrino (2013) reflete e interroga se o preconceito tem força por ser um juízo passado, permanente e não revisto que vê o surdo como um defeito a ser corrigido, como anormal, doente, incapaz e inferior, conforme visto, ou se é reflexo da própria condição surda, da dificuldade do ouvinte se comunicar com o surdo, por este ter uma língua própria, que não é a língua vista como natural, pela grande maioria, o português, oral-auditivo. Os participantes apostam na falta de conhecimento como motivo principal de manifestações preconceituosas por parte das pessoas.

Na classe 4, intitulada "Manifestações de preconceito contra o surdo no ambiente escolar", a maior do corpus, com 23,6% dos segmentos da categoria, revela, pela fala dos pais, a condição de sofrimento emocional, vergonha, bullying e rejeição sofridos pelos surdos, especialmente nas escolas, como indicado no segmento de texto ilustrativo.

[...] Olham de outra forma para ele, dão risada, a partir disso, ele já fica com o sofrimento, ele passou por tudo isso. Nas escolas regulares que ele estudou, existiu preconceito. As escolas não deram certo justamente por isso. [...] (Aline)

[...] A principal dificuldade foi a questão da Libras. Ele foi uma vez para uma escola, tipo assim, uma sala de inclusão, mas os meninos ficavam mexendo com ele [...]. (Rafael)

O riso, postulado no seguimento anterior é, segundo Peregrino (2015), uma atitude preconceituosa, originada pelo estigma da surdez. O olhar diferente para o surdo e essa forma de discriminação, as risadas, acontecem, provavelmente, pela forma de comunicação diferente, uma vez que, geralmente, utilizam a modalidade visuoespacial e, além disso, há o desconhecimento desta pelos ouvintes. Pode-se considerar que a Libras, apesar da Lei n. 10.436/02, que promoveu o conhecimento e visibilidade como língua natural dos surdos, ainda não é respeitada e valorizada pela sociedade, de forma geral.

Corroborando essa ideia, Espote, Serralha e Scorsolini-Comin (2013) esclarecem que a forma específica de comunicação dos surdos, representada pela ausência da fala e carregada por gestos e ruídos, causa, às vezes, estranhamento, que pode ser o início da discriminação, visto que a pessoa pode demonstrar a sua não familiaridade e conhecimento por meio de atos discriminatórios, ou mesmo ignorar os surdos, por não saber como se comunicar com eles. Assim, os intérpretes são uma ponte para os surdos entenderem e se fazerem entender.

Além disso, grande parte dos preconceitos acontece no ambiente escolar, em escola regular, com a falsa inclusão: "[...] Onze anos ficamos à procura de uma escola, mas não tinha Libras, os professores não interagiam, eles são excelentes copistas [...]" (Felipe).

É latente a dificuldade de se conseguir uma escola que inclua os surdos, em termos de estrutura adequada, preparo dos educadores e do sistema de ensino, com a presença do intérprete de Libras, e são ainda raras as compreensões dos principais atores sociais envolvidos na Educação, dos aspectos e especificidades do surdo, assim como da Libras, da cultura e da identidade surda.

É aí que se postula e se interroga se a verdadeira inclusão existe, ou se o que existe é apenas a integração, que aceita o indivíduo diferente, mas não inclui ou promove a falsa inclusão ou, ainda, a inclusão perversa. Borges e Costa (2010, p. 582), advertem que "Muitas vezes, as políticas de integração acabam trazendo efeito contrário: maior isolamento e menores possibilidades educativas para os alunos 'incluídos'".

A respeito da fala de Felipe, da falta de interação dos professores e da característica de "excelentes copistas", pode-se esclarecer, como preconiza Witkoski (2009), que os professores consideram a palavra falada e contam, muitas vezes, com a possibilidade de leitura orofacial do surdo, o que, na realidade, não acontece com tamanha facilidade, gerando, então, grande dificuldade de compreensão dos conteúdos, restringindo o aluno surdo à cópia dos conteúdos expostos no quadro e à tentativa, quase sempre frustrada, de apreensão desses conteúdos.

A não interação dos professores com os surdos, pela sobreposição do ouvintismo, denota a exclusão desses alunos do processo de ensino-aprendizado. De acordo com Espote, Serralha e Scorsolini-Comin (2013), a exclusão é fruto dos valores presentes nas relações sociais, pois é a partir disso que são criados os estereótipos e preconceitos, os quais alimentam a discriminação.

A classe 2, "Experiência e expectativas com relação à surdez", representou 14,7%. Essa classe refere-se à visão dos pais sobre a experiência de ter um filho surdo e as suas expectativas. Os pais relatam, de forma geral, sobre a dificuldade, as mudanças, o processo solitário de aceitação da surdez e da importância de se querer abraçar a causa. Apresenta-se um segmento de texto que compõe a classe 2: "[...] eu abdiquei de tudo por causa dele, eu não queria que ele tivesse lá fora ou dentro de casa sem ele conhecer a língua dele, querendo que ele vivesse a minha língua e eu não conhecesse a dele, então eu corri atrás. Fomos fazer curso [...]" (Pérola).

Essa fala demonstra a preocupação da participante, por ter consciência das dificuldades que o filho irá enfrentar e da importância em se ter a língua natural, Libras, como primeira língua e de ela conhecê-la para permitir a convivência e interação.

A respeito da dinâmica familiar, é interessante que a família esteja envolvida no desenvolvimento do surdo, na sua busca de identidade e cultura, sobretudo a partir do conhecimento da Libras. Afinal, conforme declara Stelling (1999), a forma como a pessoa surda é tratada em casa irá determinar a imagem que ela terá de si mesma, pois é na família que muitos dos valores, crenças e costumes transmitidos de geração para geração são repassados por meio da linguagem.

Porém, esse processo de buscar a Libras e de se adaptar ao mundo do surdo não é automático. Geralmente, acontece depois de algum tempo depois de receber o diagnóstico da surdez; e pode-se afirmar que é um processo gradual e difícil para a maioria dos pais. De acordo com Iervolino, Castiglione e Almeida (2003), posterior à fase do diagnóstico, os pais têm um tempo de negação que possibilita acolher o impacto, superar o seu "pesar" e aceitar-se novamente como pais. Harrison (1994), em seu estudo, assinala para a fragilidade dos pais, no momento inicial, pós-diagnóstico da surdez, demonstrando sentimentos dolorosos e intensos.

Os pais passam pelas seguintes fases, depois de receberem à notícia da surdez: negação, resistência, afirmação e aceitação (Bevilacqua & Formigoni, 2000). De acordo com Melo (2011), na fase da negação, os pais não aceitam a notícia da surdez, indo, geralmente, de médico em médico para buscar uma notícia positiva, diferente da já ofertada. Na fase da resistência, os pais sabem que o filho é surdo, mas acreditam que ele terá uma vida igual à do ouvinte. No estágio da afirmação, a surdez sobrepuja sua vida em todos os aspectos, assimilando informações e tomando decisões sobre o processo de reabilitação (Schmaman & Straker, 1980, citado por Melo, 2011). Já no estágio da aceitação, a surdez já é um fato na vida dos pais e eles a aceitam, incluindo suas limitações e reestruturam, assim, suas vidas, incluindo seus sistemas de valores (Luterman, 1979).

Os participantes, que contribuíram para a classe 2, já se apresentam na fase da aceitação e afirmam que a presença de um filho surdo trouxe uma transformação positiva na forma de eles verem o mundo. Isso é representado nos trechos a seguir:

[...] Mudou muito a minha maneira de ver o mundo. Às vezes, tinha mania de reclamar das coisas, vejo meu filho surdo e não tem tempo ruim para aquele menino [...]. (Guilherme)

[...] é um presente, é muito bom conviver, ter ela na vida, é bom demais, mesmo que ela não fale e ouça, ela sabe quando tô triste, quando estou alegre, ela percebe, então é um presente na vida [...]. (Joana)

[...] Ela me ensina o tempo todo com posicionamento, caráter, perseverança, então eu sou feliz. Eu sou uma pessoa feliz, eu não tenho do que me lamentar, ela é feliz [...]. (Felipe)

Marchesi (1995) relata que os pais, geralmente, apresentam como estratégia de adaptação à notícia da surdez reforçar o vínculo com o filho surdo, reconhecendo e aceitando sua deficiência auditiva; ou podem não aceitar a deficiência, isolando e discriminando o filho; ou, ainda, reorganizar a família e responsabilizar um dos seus membros, geralmente a mãe, pelo filho surdo.

Williams e Darbyshire (1982), citado por Melo (2011), destacam que o processo de preocupação e frustração do momento do diagnóstico reaparece em outras circunstâncias: quando acaba a escola, quando entra na adolescência, quando conclui seus estudos e entra na idade adulta, quando começa a trabalhar e pretende casar, entre outras. Como expectativas com relação ao futuro do filho, têm-se os seguintes elementos significativos:

[...] Eu vejo para ele um futuro duro, difícil, muito difícil, ele é muito inteligente, agora ele tem que acordar para ver que as coisas não estão fáceis para nós ouvintes, as coisas já estão difíceis... ele vai pegar uma barra pesada [...]. (Guilherme)

[...] É muito difícil, ela quer fazer um curso, ter um dinheiro dela, moto ela não quer não, porque a irmã tem e ela acha perigoso, mas comprar um carro e me ajudar. Ela fala que quer muito me ajudar [...]. (Cristina)

[...] Eu tenho que jogar ela pro mundo e ver como vai ser... a minha preocupação é, por exemplo, a gordura interfere socialmente, já dificulta ela estar no meio, dá vergonha, além de não falar, não ouvir, então esse processo é mais difícil [...]. (Joana)

[...] Então, vou botar na academia, gosta muito de natação, dança, quero ver se introduzo também nessa parte, ao mesmo tempo, quero ver se ela tem também mais independência, quero ver se introduzo ela na vida dos surdos [...]. (Felipe)

Percebe-se, nas falas, a preocupação dos pais por perceberem a dificuldade de os filhos serem inseridos e incluídos socialmente. Glat (1995) considera que ainda hoje existem grandes dificuldades de inclusão social, sobretudo de marginalização imposta aos surdos e a sua família, "por contaminação".

Espote, Serralha e Scorsolini-Comin (2013) esclarecem que, mais do que uma questão cultural, o preconceito leva com ele ideias quanto à deficiência apresentada, a maioria catalogada com a ideia de falta de capacidade. Desse modo, entende-se a preocupação dos pais quanto ao futuro do filho surdo.

Guilherme apresenta uma visão muito realista sobre o assunto e, na fala de Cristina, foi possível perceber certa simbiose, talvez pela culpa que a mãe traz por ter aceitado a surdez da filha com apenas 10 anos. Atualmente, essa mãe vive para filha e a filha para ela. É como se elas quisessem recuperar o tempo perdido. Na sua fala, Cristina demonstrou o sentimento de independência que a filha deseja.

Joana e Felipe têm a esperança de tornar os filhos mais independentes, pois acreditam que isso pode ajudá-los. Provavelmente, os pais agiram até o momento com uma superproteção inconsciente - fato que Melo (2011) enfatiza ser comum - na busca do crescimento do filho, visando preservá-lo e defendê-lo de possíveis dificuldades. Porém, agindo assim, dificulta-se a autonomia do filho para a conquista de suas capacidades.

Na classe 3, com 19,1%, foram mostradas as relações familiares e os preconceitos, sendo assim, por isso, essa classe recebeu o nome de "Relações familiares e preconceito". Apresentam-se segmentos de texto ilustrativos componentes dessa classe.

[...] O preconceito, para qualquer criança especial, é uma maldade, uma crueldade. Infelizmente esse preconceito existe até dentro de nós, mães de surdos. No início eu falava: não use as mãos não, fique calada. Ela dizia pra irmã "eu acho que minha mãe tem vergonha de mim" [...]. (Cristina)

[...] O preconceito começa na própria família, depois nas ruas, nas instituições. Sempre existe esse preconceito na família. A gente quer que eles sejam como nós, a gente nunca se coloca no lugar deles [...]. (Felipe)

[...] Na própria família, tenho um irmão que é muito brincalhão, ele brinca com todo mundo, mas, de vez em quando, vem aquela brincadeira sobre a forma que meu filho fala e todo mundo ri. Isso também era uma forma de preconceito e eu briguei muito com a família também [...]. (Aline)

Segundo Witkoski (2009, p. 571), "é incorporado ao ambiente familiar o poder das ciências médicas, como regime de verdade, que vai ao encontro do tipo de representação social dominante, que também identifica a surdez como uma condição de inferioridade, de incapacidade".

Pode-se considerar que são comuns, nos pais de surdos, sentimentos como tristeza, raiva, vergonha, medo e insegurança diante do novo, do desconhecido. Esses sentimentos são, muitas vezes, potencializados, pois os próprios profissionais da saúde, ao revelarem o diagnóstico, transmitem uma visão fatalista. Witkoski (2011) destaca que a descoberta da surdez pelos pais, geralmente, é realizada depois de exames audiológicos e, logo depois, eles têm contato com discursos clinico-terapêutico que contribuem para o rótulo estigmatizante de como o surdo é visto.

Existe uma grande polêmica com relação à língua de sinais. A esse respeito, Witkoski (2009) esclarece que a família, muitas vezes, apresenta resistência à utilização da Libras, geralmente, pelo constrangimento de ter um filho visto como deficiente, conforme visualizado na fala de Cristina.

Reafirma-se que o primeiro olhar que os familiares têm sobre a criança surda é o rótulo de deficiente, sendo as famílias influenciadas pelos discursos científicos dos "especialistas em surdez", que os veem como um corpo com defeito que precisa ser corrigido e reparado (Witkoski, 2012). São ilustrativos os seguintes segmentos de texto:

[...] Os médicos colocam muitas necessidades que, na verdade, não existem na cabeça dos pais e tratam de uma forma muito, como se diz, falsa, com a mentira, muita falta de profissionalismo [...]. (Maria)

[...] Ele começou a balbuciar muito, nessa época, e dava aquele ânimo, aquela coisa, eu não tinha muita orientação, nem informação, achava que ele pudesse falar, falta de informação mesmo [...]. (Pérola)

Os pais, como se pode perceber nesses trechos, tinham a esperança da normalização de seus filhos, por meio da fala, influenciados pelas ciências médicas, como se fossem regimes de verdade, como se o filho precisasse ser corrigido por profissionais da saúde, como o fonoaudiólogo, e pelo uso de aparelhos cocleares. A medicalização da surdez, conforme declara Witkoski (2011), é sustentada por uma ideologia oralista, percebida na fala de Pérola, quando compartilha, com alegria, a sua esperança de o filho falar ao vê-lo balbuciando e, depois, explica a falta de orientação recebida por anterior "ignorância" no assunto.

Maria, no segmento de trecho anterior, adverte que, possivelmente por estar enraizado no discurso baseado no oralismo, visto como algo normal, ela e o marido, apresentaram muitas necessidades que, se tivessem conhecimento, não precisariam ter passado. Hoje em dia, ela e o marido, com o filho, abraçam a causa, cultura e identidade surda.

Além disso, Maria foi a única participante que não sentiu reação de preconceito na família: "[...] nunca senti então nenhuma reação, pelo contrário, para ele, eu acho que ele sempre foi muito exaltado [...]" (Maria).

Esse caso, portanto, de acordo com o visualizado na pesquisa, constitui-se uma exceção à regra. Maria complementa: "[...] ele sempre foi muito consciente das coisas, nunca demonstrou nenhuma frustração por ele ser surdo, nunca se colocou em nenhuma limitação por ser surdo, ele acha, às vezes, que a gente faz muitas coisas por ele, que ele devia fazer mais [...]".

A não reação de preconceito da família, provavelmente, influenciou o fato de esse participante aceitar a sua condição e se sentir realizado com ela, assumindo sua identidade e cultura. Porém, o relato da mãe, de que o filho procura ser mais independente, demonstra a superproteção, comum pelo excesso de preocupação e indiretamente pode manifestar um preconceito sutil, por não confiar no potencial dele para se desenvolver - fato enraizado no estigma de que o surdo não tem condições efetivas de desenvolvimento semelhante às dos ouvintes.

Glat (1995) afirma que a marginalização imposta ao indivíduo surdo acaba provocando o isolamento de muitas famílias e, por conseguinte, reforçando a superproteção, fazendo com que a condição especial do sujeito surdo seja atribuída a dimensões maiores, em comparação a suas capacidades e aptidões.

Na classe 1 (22,29%), é exaltada a experiência de ter um filho surdo, com todas as dificuldades e aprendizagens que isso suscita. Essa classe recebeu o nome de "Principais dificuldades e aprendizados". O segmento de texto a seguir é ilustrativo dessa classe: "[...] Foi um privilégio aprender Libras e não ficar só pra mim, expandir pra quem precisa, as dificuldades foram muitas e o aprendizado é que eu não fico só pra mim, eu procuro ajudar as pessoas também [...]" (Cristina).

As dificuldades da relação com o filho surdo podem influenciar no preconceito ou, às vezes, é até o próprio preconceito, conforme trechos a seguir.

[...] nós tínhamos uma orientação muito deturpada, encaminhavam a gente e era aquela coisa: tem que ir para o psicólogo, psicopedagogo, fonoaudiólogo; então, tratam o surdo como doente, eles não estão preparados para a orientação [...]. (Maria)

[...] outra dificuldade é a questão da própria discriminação que ela sente da família em geral, não a gente, mãe, pai, irmã, e depois há discriminação de amigos em geral e da própria sociedade [...]. (Felipe)

[...] primeiro é o preconceito, porque acham que o surdo é uma pessoa doente, como se não merecesse um lugar na vida [...]. (Aline)

Maria traz como principal dificuldade a questão da orientação no momento diagnóstico e pós-diagnóstico, fazendo uma crítica à ideia construída de surdez como desvio de normalidade, numa abordagem patológica. Já Felipe e Aline relatam como dificuldade a própria questão da discriminação e do preconceito, por significar sua exclusão e privação de direitos básicos constitucionais.

Como ponto positivo, os pais declaram:

[...] a gente passa a ser mais sensível, passa a ter um olhar diferente sobre a deficiência, pode ser a qualquer uma, não só a surdez, passa a ser mais humano e a acreditar mais nas pessoas [...]. (Felipe)

[...] o principal é a gente começar a ser mais humano e ver as coisas de forma diferente. No momento que eu tive um filho surdo e passei por todas as dificuldades para conseguir seguir o caminho dos surdos [...]. (Maria)

[...] Não que eu não era humano, mas eu fiquei mais humano, de eu enxergar que as dificuldades não são esse bicho de sete cabeças, que tem coisas muito mais difíceis que as pessoas superam [...]. (Guilherme)

Os três trechos trazem a palavra humano. Vale ressaltar que, na classe "Principais dificuldades e aprendizados", a palavra humano foi a quarta palavra mais significativa, com x2 = 13,42. Interessante apresentar a resposta dos pais, por apresentarem uma contradição com os juízos passados, cristalizados sobre os surdos, contrários a humano, que rotula o surdo como anormal e inferior. Os relatos dos pais mostram como a convivência e a presença do filho são significativas para perceber a sociedade de outra forma, mais humana. Os pais têm, assim, a oportunidade de descontruir preconceitos e de se libertar dos juízos e, mais ainda, de conviver e ver os pontos positivos e as aprendizagens que a convivência com o diferente suscita, engrandecendo a experiência humana.

 

Considerações finais

As cinco classes analisadas revelam, a partir da percepção dos pais de surdos, os preconceitos sofridos pelos surdos, especialmente, na família, na escola e na área da saúde. Percebe-se no estudo que, apesar das leis - como a Lei n. 13.146, de 2015, art. 4º, que prevê: "Toda pessoa com deficiência tem o direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação"; e o art. 5º, que complementa: "A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante" (inclusive contemplando que, em casos de prática de discriminação, em razão da sua deficiência, a Lei prevê pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, podendo ser maior, em casos específicos) -, das políticas igualitárias e da luta pelos surdos para conquistar seu espaço, os preconceitos contra eles são constantes, estando presente ainda o caráter clínico-terapêutico, que percebe o surdo como doente e deficiente.

Os pais dos surdos revelam existir manifestações expressas de preconceito, de discriminação, exemplos de tratamentos negativos, de exclusão, contra seus filhos surdos, atribuindo a falta de conhecimento das pessoas como o motivo de preconceito. É fundamental conhecer, aceitar a identidade e a cultura surda, acreditar no potencial do surdo e praticar com eles os desafios da vida cotidiana, como forma de se diminuir os preconceitos vividos e ajudar a eliminar essa imposição "normalizadora" ainda presente na sociedade.

A pesquisa estudou os pais conhecedores da Libras, uma vez que os filhos também a utilizam como forma de comunicação. Sugere-se que posteriormente sejam realizados estudos com pais de surdos que não têm conhecimento da língua de sinais, visto ser esse um fato comum que pode potencializar os preconceitos sentidos pelos surdos, tendo-se a oportunidade de enriquecer os conteúdos sobre o tema e até traçar um comparativo com este estudo.

Os preconceitos e as crenças com relação ao surdo devem ser repensados na sociedade, pois o surdo é um cidadão que tem uma particularidade de comunicação - sendo essa a única diferença dele se comparado a outros cidadãos - que deve ser contemplada, acolhida, incluída e respeitada.

 

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Recebido em: 6/12/2017
Aprovado em: 26/6/2018

 

 

Anexo

Roteiro de Entrevista - Estudo 4

Identificação:

Nome: ____________________________ Idade: ______________________

Profissão: ______________________ Escolaridade: ______________________

Sexo: _________ Renda familiar: ____________

1. Conte-me um pouco sobre as características do seu filho. Qual o tipo de surdez dele(a)?

2. Como foi o momento da descoberta da surdez? Quando foi percebida? Qual a causa?

3. Quais sentimentos e percepções estavam envolvidos na suspeita à detecção do diagnostico da perda auditiva? Houve aceitação imediata? Caso não, quais as principais dificuldades envolvidas na elaboração e aceitação da surdez do seu filho?

4. Com quais as fontes de apoio que vocês contaram em situações como a de descoberta de uma perda auditiva? E quais contam?

5. Como é a rotina de vocês? Como é o relacionamento na família?

6. Como é a experiência de ter um filho surdo?

7. Quais as principais dificuldades cotidianas que seu filho enfrenta? E a família?

8. Seu filho já sofreu alguma discriminação por ser surdo? E a família?

9. Quais os preconceitos sentidos na família? E fora dela? Podem me contar mais a respeito?

10. Qual a pior situação de preconceito enfrentado pelo seu filho surdo? Podem me contar mais a respeito?

11. Qual a sua opinião sobre os preconceitos sentidos pelos surdos?

12. Quais as estratégias utilizadas pela família e pelo filho surdo para enfrentar o preconceito?

13. Quais as expectativas da família em relação à fala, à linguagem e ao futuro do seu filho surdo?

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