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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.13 no.2 Belo Horizonte May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.36298/gerais202013e14853 

ARTIGOS

 

Apoio Institucional e Universidade Pública: A Clínica em Trabalho

 

Institutional Support and Public University: The Clinic at Work

 

 

Camila Maggi NoguezI; Simone Mainieri PaulonII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: canoguez@gmail.com (orcid.org/0000-0002-9587-1145)
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: simonepaulon@gmail.com (orcid.org/0000-0002-0387-1595)

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma pesquisa que explora a dimensão clínica do Apoio Institucional realizado pela equipe de servidores do serviço de acompanhamento psicossocial ao servidor de uma universidade pública do sul do Brasil. A partir do referencial metodológico da pesquisa-intervenção, foram utilizadas duas rodas de conversa e o diário de campo da pesquisadora componente da equipe estudada. Suas análises de implicação foram somadas às observações de seus colegas para produzir reflexões sobre o Apoio oferecido pelo serviço psicossocial. Os sentidos cristalizados nas instituições Gestão, Saúde e Clínica foram examinados, indicando a indissociabilidade entre elas. Uma perspectiva clínica, entendida como posição de escuta acolhedora das singularidades e provocadora de indagações dos sujeitos sobre si mesmos e seus lugares de poder no processo de trabalho, emergiu entre os componentes do trabalho de Apoio.

Palavras-chave: Apoio Institucional. Clínica. Universidade. Políticas Públicas.


ABSTRACT

The paper presents a research that explores the clinical dimension of the Institutional Support carried out by the team of supporters of the public servants in the psychosocial care service of a public university in the south of Brazil. Based on the methodology of the intervention research, two dialogue circles and a field diary were used. Analysis of implications was added to the observations of the colleagues to produce reflections about the Support offered by the Psychosocial service. The senses crystallized in the institutions of Management, Health and Clinical were examined indicating the inseparability between them. A clinical perspective, understood as a welcoming position of the singularities that provokes subjects' inquiries about themselves and their places of power in the work process, emerged among the components of the Support work.

Keywords: Institutional Support. Clinic. University. Public Policies.


 

 

Introdução

A partir de uma pesquisa-intervenção realizada na trama acadêmica, como mestranda e, ao mesmo tempo, como servidora de uma universidade pública, o presente texto tem como objetivo investigar a perspectiva clínica que a tecnologia do apoio institucional pode apresentar. Pela necessidade de superar a ênfase na dimensão privada do trabalhador que adoece, produzimos interrogações sobre a atividade desenvolvida pelas equipes de saúde e de ingresso e mobilidade do servidor, em parceria com a Pró-Reitoria responsável pela gestão de pessoas de uma universidade pública do sul do país. À medida em percorremos as pistas deste trabalho, encontramos trânsitos e defasagens entre as instituições gestão, saúde e clínica. Instituições são pactos formais e informais, mais ou menos conservadores, que organizam a sociedade; cada uma delas diz respeito a um campo de saber, a um modo de fazer e dispõe de lugares de saber. Lançando mão do diário de campo da pesquisadora-servidora da própria equipe pesquisada e de rodas de conversa com parceiros cotidianos de trabalho, como ferramentas privilegiadas da pesquisa-intervenção, constituiu-se um campo problemático indissociável da análise de implicação. Ou seja, assume-se que a relação da pesquisadora com o objeto de sua pesquisa não é neutro, e a análise dos lugares de poder e de saber dos envolvidos constitui o próprio caminho metodológico da investigação. O presente estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade (Protocolo n. 26823414.6.0000.5347).

Hoje achei totalmente descabida a etiqueta que eu mesma havia colocado para designar a gaveta que guardava os registros dos acompanhamentos com as equipes. Nela eu havia escrito "Intervenções Institucionais". Tinha uma sonoridade que eu gostava [...]. Mas se essa era a designação que diferenciava o acompanhamento com as equipes de outras estratégias de intervenção, a tal etiqueta sugeria que os acompanhamentos realizados de forma individual não eram institucionais. A etiqueta enunciava um traço de concepção/prática que estava ali, me habitava. Hipótese: resquícios de uma formação psi que hegemonicamente compreende o sujeito como substancializado, que ensina uma clínica e uma escuta apolítica (como se possível fosse), como se instituições (trabalho, gestão...) não ganhassem as vozes e os corpos de quem é atendido individualmente, como se não fossem "Intervenções Institucionais" os atendimentos individuais. (Diário de campo, 14 de abril de 2012)

O fragmento lança-nos à pergunta feita por Shneider (2004) sobre quando percebemos que somos mais vividos pelas instituições, do que vivemos livremente. Saber que podemos estranhar a nós mesmos talvez nos permita entender as (des)institucionalizações que se insinuam.

Colocam-se, dessa forma, luzes no que é desafio e ponto de tensão para as práticas cotidianas das equipes: como articular a tradicional intervenção individual ao servidor adoecido - terreno conhecido dos segredos e do sofrimento trazido como privado - com o trabalho institucional que convida ao processo coletivo de análise? Em que medida cada um dos casos atendidos na sua singularidade e as discussões e análises que deles decorrem findam neles mesmos ou o quanto puxamos 'fio da meada' da democratização das relações de trabalho? Como esses casos têm produzido as intervenções da equipe de apoio aos servidores, têm refletido em análises críticas e debates internos na organização educacional a que se destinam?

As experiências de trabalho com Apoio Institucional anteriores e exteriores à universidade e o exercício de acompanhamento aos servidores da universidade no serviço de atenção psicossocial foram provocadores dessas interrogações. Ao colocarem em xeque algumas das dicotomias que sustentam práticas clínicas tradicionais tão arraigadas àquilo que se instituiu como fazer psicológico, tais questionamentos vão ao encontro da pergunta lançada no âmbito do apoio às mudanças necessárias nos processos de trabalho do SUS: como operar na zona limítrofe em que a clínica (cuidado) e a política (gestão), enquanto domínios distintos, produzem interferências entre si? (Brasil, 2008). Essa indagação estruturou o processo de pesquisa que passamos a relatar.

Acho que esse negócio da academia... Não é qualquer serviço público que tu tá estudando. Então, bem, tu tá trabalhando não só com os professores, tu tá trabalhando com os servidores [...], os tijolos de uma academia, então se quem tá produzindo em cima, produzindo conhecimento, tá dentro de uma máquina que funciona dessa forma, bem, isso vai refletir na qualidade de conhecimento produzido pela academia, né?! (Roda de Conversa, 13 de junho de 2014)

A universidade em questão abriga aproximadamente 70.000 estudantes entre graduações e pós-graduações, para o que conta com uma estrutura de cerca de 2.500 técnicos administrativos, 2.000 terceirizados, 2.500 docentes e quase 2.000 bolsistas. São quase 30 unidades de ensino distribuídas em seis campi, afora as estruturas paralelas que eles demandam, como centros de pesquisas, teatros, cinema, editora, museu, gráfica, casas de estudantes, etc. Diante do hibridismo que caracteriza esse universo, que não é total (ao contrário do que sugeria o significado primitivo da palavra universidade1 no século XIII), podemos conjecturar que a gestão do trabalho da Universidade se faz sentir plural. Assim, a gestão aqui não diz respeito somente aos processos de trabalho em saúde - tal como enfatiza o referencial do Apoio Institucional, por exemplo.

Passa a fazer sentido, a partir de então, perguntar sobre os espaços de conversa que viabilizam os acompanhamentos realizados pela equipe da Gestão de Pessoas da Pró-Reitoria pesquisada - sejam eles realizados na modalidade individual, em dupla de servidores, ou em grupo (por toda a equipe), etc. Tais espaços de conversa podem ser concebidos como rodas de conversa. Plano problemático e metodologia da pesquisa em questão e do trabalho de apoio pesquisado se enlaçam, portanto, no Método da Roda (Campos, 2000).

No campo da saúde coletiva, o Método da Roda - tal como proposto por Campos (2000) para a análise e a cogestão de coletivos organizados - é apresentado como um método de apoio à elaboração e implementação de projetos e à constituição de sujeitos com maior capacidade de análise, reflexão e intervenção em seus processos de trabalho. É nessa direção que nos indagamos sobre quais são os possíveis diálogos entre o apoio institucional e o fazer clínico.

Os espaços coletivos de cogoverno nas equipes, segundo Campos (2000), cumpririam três funções essenciais: a clássica, cuja função é administrar e planejar processos de trabalho com o objetivo de atender às necessidades sociais; uma de caráter predominantemente ético-político, que é o de fomentar a democracia institucional a partir da redistribuição do poder de reflexão e de decisão; e outra de "caráter pedagógico-terapêutico", na medida em que se assume a forma de fazer gestão como elemento importante na constituição incessante dos sujeitos. Sinaliza-se aí uma dimensão terapêutica nos modos de negociar o trabalho, uma vez que a organização dos processos de uma atividade laboral pode tencionar mudanças nos padrões insistentes da subjetividade (Campos, 2003).

Pasche e Passos (2010, p. 426) ratificam a compreensão do exercício do apoio institucional não messiânico quando o afirmam como um exercício que procura "incluir o outro, aquele que não sou eu [...], que em mim produz estranhamento, provocando tanto o contentamento e a alegria, como o mal-estar", favorecendo, assim, a irrupção de ambiguidades e contradições. Os autores convocam os trabalhadores formalmente investidos nas funções de gestão a suportarem a perturbação dos papéis previamente definidos. Para tanto, propõem que trabalhadores e usuários se ocupem das tensões, surpresas e imprevisibilidade dos dissensos, características dos momentos de decisão até então reservado a poucos. Evidencia-se, com isso, a tríplice inclusão promovida pelo apoio institucional: dos sujeitos com suas diferentes visões de mundo (lateralização), dos conflitos (tomados como analisadores institucionais) e dos coletivos. Afirmam ainda que acolher diferentes posicionamentos para então confrontá-los com a multiplicidade dos interesses do outro e do coletivo não significa receber ingenuamente e sem crítica o que o outro traz como proposição, é necessário um exercício contínuo para que das divergências seja possível a formação de contratos.

 

A clínica em trabalho

Eu achei meio estranho o termo [clínica], eu tenho um pouco de resistência em pensar o termo dentro do nosso trabalho. Não é um termo que eu usaria. Acho que é outra coisa, né... tipo, é trabalho assim. É um desconforto e uma curiosidade na verdade, o quê que ela vai escrever sobre clínica? (Roda de conversa, 13 de junho de 2014)

Paulon (2004) problematiza a demanda por adjetivos ao termo "clínica", tais como transdisciplinar, arejada, ampliada, porosa, etc. É como se a necessidade de tal adjetivação indicasse que se referir à "clínica" não designasse mais o que antes dispensava complementações. Pergunta-nos a autora se estaríamos diferenciando a clínica que tentamos fazer de uma suposta clínica "obtusa" ou se as transformações apresentadas pelo contemporâneo têm questionado os próprios fundamentos teóricos no quais vínhamos nos embasando. Despercebida essa segunda hipótese, corremos o risco de oferecer, por meio de adornos (como "ampliada"), uma resposta adaptativa e talvez mais moderna às demandas de mercado, sem tecer uma reflexão necessária para o tema. Ampliar uma clínica que reproduz os mesmos e conhecidos modos de subjetivação é resistir a perceber os sinais ofertados pelo contemporâneo (para a clínica) de que nossas práticas possam estar cansadas e impotentes. Logo, trata-se, antes, de ampliar modos de existir (sobretudo do analista), e devolver à clínica seu traço de ousadia. Nesse caso, o subversivo Freud segue sendo uma boa inspiração para essas ampliações.

Uma clínica inventiva que aciona novas possibilidades de existência (no e pelo trabalho) coloca-nos, portanto, diante do plano vívido e movente de forças. Temos tido pouca desenvoltura para lidar com as nossas crenças e construções identitárias quando elas se mostram titubeantes. Diante do receio de aceitar os convites processuais e dinâmicos da vida, o homem se agarra aflitivamente ao que em si é narrado como se fixo fosse, tornando-se, assim, menos capaz de conviver com projetos de existência que sofrem instabilidade. No entanto, isso vem sendo constantemente interrogado frente às demandas do contemporâneo.

As experiências subjetivas mais características de nosso tempo apontam para uma sensação generalizada de que as ancoragens de que dispomos são precárias e inconsistentes, de que todo o experimentado é imediato e instantâneo. Por esse motivo, para Birman (2000), o que caracteriza o mal-estar da atualidade são os sintomas evidenciados no estonteante aumento do consumo de substâncias e na adesão massiva a modalidades emergentes de religiosidade. São duas modalidades de adesão que se identificam por oferecerem visões de mundo fantasiadoras de proteção ao desamparo. Uma clínica que se propuser inventiva deve, paradoxalmente, acompanhar aquilo que se repete, na velocidade do trânsito no contemporâneo.

Tendo essas considerações em vista, partilhamos da intenção de Coelho (2006, p. 36), que busca "pensar a diferença entre uma clínica que entende o sofrimento como uma crise de identidade e outra que o entende como crise no processo de subjetivação". Equivalente à distinção feita por Birman (2000), a partir de Deleuze, entre uma clínica que se funda na pessoalidade e uma clínica que se funda na singularidade. O termo singularidade, esclarece o psicanalista, implica a ruptura dos contornos que constituem o paradigma de uma forte noção de eu como território circunscrito à noção de individualidade.

Assim, a subjetividade é marcada menos por um selo de identificação do que pelas incalculáveis formas de expressão que pode assumir, seguindo a "antifórmula" proposta por Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1980). Indicam, assim, os autores, a subtração da unidade em n, que recusa qualquer totalidade àquilo que é múltiplo. Pensemos, então, com a dupla, que, se o pretenso uno já é, por si só, múltiplo, polifônico, o processo dessubjetivação já é a expressão de inúmeros outros em nós, falas plurais, composição de discursos diversos, expressão de múltiplos perpassamentos institucionais. É essa a perspectiva de entendimento clínico-institucional que conduz também a leitura que fazemos dos trechos de diário de campo e da roda de conversa no presente texto.

Compartilhamos das reflexões de Passos (2014) e entendemos a clínica também como efeito da malha contemporânea - que, a todo o momento, se situa entre os acúmulos do vivido e o intempestivo do porvir. Desenvolvemos certa predileção pelas desconstruções, por aquilo que designa falha e desconsertos; que nos tornam mais inclinados às experiências de desvios, de experiências de desinstitucionalização (de si), considerando que não há processos desinstitucionalizantes sem movimentos de institucionalização, de regimes de normatividade, como diria Canguilhem (1990a).

Nessa linha de pensamento, caberia perguntar: que instituições conseguem se aliar a processos instituintes? Ou seja, quais delas tendem à produção de novos arranjos, são aptas a incorporar novos elementos, fazendo com que a realidade permaneça inacabada e suscetível a outros sentidos? E, no seu contraponto, quais normas são insistentemente repulsivas aos convites de invenção da vida? Considerando que a complexidade da vida é a mesma que compõe as instituições, a clínica (que é política) precisa estar engajada com seu tempo, habitando uma atitude-limite e experimental (nas formas de pensar, sentir e agir).

A atitude-limite é uma proposição feita por Michel Foucault (1984) na última fase de sua obra, cuja temática foi a ética no sentido grego do termo: ethos como atitude; no caso, com relação ao instante presente. Essa atitude-limite, que é histórico-crítica, "deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos" (Foucault, 1984, p. 348). Trata-se, pois, de uma atitude, ao mesmo tempo, analítica, em relação à história dos limites que nos foram apresentados, e catalisadora de ultrapassagens. A atitude crítica de afeição pela crise (por enxergar nela a oportunidade de colocar em questão o que está dado) não é de se posicionar, nem verticalmente - embasado como um pilar sobre o saber -, nem horizontalmente - deitado ao lado e sob o mesmo ângulo da questão. Se clínica vem de klinicós, que significa "inclinar-se sobre o leito", podemos inferir que essa posição inclinada não é fácil de sustentar (Passos, 2014); no entanto, é no desconforto da inclinação que nos fazemos mais sensíveis ao desconserto.

 

Desassossegos clínico-institucionais

A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que, de súbito, as coisas não sejam mais percebidas, descritas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo?

(Heliana Conde Rodrigues)

A questão que Rodrigues coloca faz eco à vida das mutações: suas razões, cursos, manifestações e regimes de visibilidade e dizibilidade. Além disso, a questão mantém a amplitude que interessa aos propósitos deste texto por não restringir o fenômeno das mutações a determinados settings, não limitar a indagação a uma só forma e modo de operar a clínica; pelo contrário, sinaliza a dificuldade de capturar suas composições, uma vez que ocorrem a todo o instante, possíveis de se dar em qualquer lugar, inclusive em um consultório.

Se a clínica no contemporâneo pressupõe essa instalação no movimento para acompanhar suas mutações, ela própria, como instituição, também é convidada à análise de seus próprios limites. Trata-se, nesse caso, de um delicado e ousado exercício crítico e clínico de forçar os limites da instituição clínica com o que não é eminentemente clínico. É preciso advertir, no entanto, que esse exercício exige uma política cognitiva (Kastrup, Tedesco & Passos, 2008) capaz de distinguir sem separar, tornando possível a circulação por uma zona de indiscernibilidade e de trânsito que transversaliza diferentes instituições. No caso da pesquisa, as instituições que se propuseram à análise são a gestão, a saúde e a clínica, permitindo-nos a inquietação clínico-institucional: como trabalhar as demandas que nos chegam?

Eu acho que não tá claro nem pra nós, eu digo de uma forma integral. Acho que a gente tá construindo um trabalho diferente do que as equipes esperam. [...] Eu vejo diferença hoje a partir das expectativas das equipes e dos servidores como efeito do que a gente construiu, do que a gente ofertou. Desde 2010, quando eu fazia psicoterapia breve aqui na Universidade e hoje o que a gente oferta enquanto equipe multidisciplinar e como as pessoas já formulam seus pedidos quando chegam aqui. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Eu acredito muito... a gente transformar a nossa oferta, também transforma a demanda. [...] estar atento pra quais a estratégias a gente tem hoje que contribuem pra certas expectativas e outras não. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

A constante tentativa (nem sempre exitosa) de não interpretarmos o papel de solucionadores de problemas implica, por vezes, ofertar aquilo que não é trazido como pedido. Nossa experiência encontra sentido na advertência de que filiar-se a uma política cognitiva do paradoxo, não raro, é arcar com o preço de assumir um lugar de não resolução por pronta-entrega.

Com Paulon (2006), relembramos: por mais coagulados que se apresentem os repertórios de subjetivação que se produzem nos diferentes estratos - enunciados e visibilidades - de uma instituição, eles não podem ser separados da produção desejante que os constituiu. As instituições, quanto mais endurecidas, em suas formatações e em seus velhos contratos, mais indicam a quantidade de energia que ali foi investida para que elas, em algo, nos atendessem.

Deleuze (2006) nos lembra de que o homem não é feito de instintos, ele cria instituições. Não havendo essa dissociação entre instituições e desejo, renegar os velhos e caducos contratos não parece ser uma via suficiente para lidar com aquilo já não nos serve. Desenvolver uma intimidade com as imposições e intempestividades das instituições, ao contrário, pode ampliar nossa capacidade de nos instalarmos no que é movente. O processo de singularização se dá propriamente nas fissuras dos estratos institucionais, e chegar a essa fissura com quem nos convoca aos acompanhamentos, muitas vezes, significa acolher o que é possível de ser dito e visto, mas sem tomá-lo como possibilidade única.

As imposições e intempestividades institucionais podem ser experimentadas no trabalho de apoio ao trabalho. Até o ano de 2008, o setor de saúde do servidor na universidade estudada esteve nomeado como Setor de Assuntos da Comunidade Universitária2 e seu público-alvo eram os servidores ativos, aposentados, seus dependentes e alunos universitários. O termo "Comunidade", incorporado à antiga sigla, remete à própria história e ao processo de subjetivação dos trabalhadores da universidade. Antes da Constituição de 1988, o ingresso dos servidores se dava por indicação, principalmente de familiares que já trabalhavam na universidade; até hoje alguns desses servidores habitam terrenos e casas da universidade; o atual cargo de técnico administrativo outrora tinha sua razão de existir exclusivamente para secretariar o trabalho do docente.

Ou seja, a "comunidade", naquele contexto, não se referia a um bairro, ou à cidade de Porto Alegre e sua relação com a universidade (como uma sanitarista desavisada poderia ser levada a pensar), mas denotava um senso de pertença - autorreferenciado, como se vê - que subsistia nas relações produzidas no e para o território universidade. A mudança de nome não se limitou ao registro semântico e significou também um deslocamento (ainda em percurso) da perspectiva clientelista da saúde, baseada somente na assistência, para a análise e intervenção encontro-centrada3 na interface entre organização do processo de trabalho e saúde do servidor em atividade. Houve um tempo em que no serviço de saúde, por exemplo, o servidor solicitava atendimento com o assistente social, com o psicólogo ou psiquiatra; ele decidia de antemão e a partir de uma leitura particular e solitária das próprias demandas qual profissional poderia atender às suas expectativas. Sentiu-se a necessidade de compor essa oferta conjuntamente com o servidor, e passamos a realizar acolhimentos em dupla interdisciplinar, o que nos permitiu traçar um comum quanto à finalidade e quanto ao projeto ético-político da nossa escuta. Foi produzida assim uma maior clareza quanto ao caráter institucional dos atendimentos - fossem eles individuais ou em grupo -, o que implica a eleição de referenciais, intercessores e ferramentas diferentes dos anteriormente convocados para a intervenção. "Acho que tão importante quanto dizer o que eu faço é dizer o que eu não faço e porque eu não faço" (Roda de conversa, 13 de junho de 2014).

No cotidiano de trabalho da equipe do serviço saúde, por meio do acolhimento e acompanhamento dos servidores (na maioria das vezes individual), percebeu-se que, não raro, existia a relação íntima entre sofrimento no local de trabalho e a impossibilidade de negociação com chefias e/ou demais colegas, tanto nos momentos de conceber quanto nos momentos de executar o trabalho. No compartilhamento dessas impressões, a equipe sentiu a necessidade de avaliar o papel e o lugar do serviço para o universo de aproximadamente 5.000 trabalhadores desse estabelecimento de ensino superior: quais são os motivos que levam os servidores a buscarem atendimento no serviço de atenção à saúde? De que forma esse atendimento tem sido ofertado pelos seus profissionais? Como o serviço pode se organizar de acordo com o levantamento das demandas e da mudança de perspectiva que compõe a história do setor saúde na universidade?

No ensejo dessas preocupações, ainda é frequente o questionamento da equipe em relação ao que antes chamávamos de "prática clínica" do serviço. Por prática clínica, entendíamos a escuta individual que as psicólogas (da equipe multiprofissional) realizavam com os servidores - uma das primeiras propostas de ação em saúde do serviço em questão. A equipe se questiona se um atendimento individual - que carrega consigo os fortes elementos do sigilo, do privado e do segredo (Despret, 2011) - não estaria, dependendo de como for concebido, a serviço da individualização de problemáticas que são institucionais e relacionadas à interface trabalho-gestão-saúde, contextos nos quais seria insuficiente somente lançar mão de encaminhamentos como remoções, licenças e tratamentos de saúde, sem haver também um tencionamento no modo é concebida a gestão do trabalho em alguns locais. Alguns dos servidores que buscam o serviço conseguem se reposicionar subjetivamente frente às adversidades adoecedoras dos seus locais de trabalho, as adversidades, no entanto, seguem em muitos dos locais.

Em consonância com tais preocupações da equipe, Yves Clot (2010) observa que muitos clínicos consideram parte do trabalho ajudar as pessoas a aceitarem situações laborativas insuportáveis sem pautar a situação que compromete a saúde; é o que o autor descreve como "dispositivo de gestão de sofrimento" ou "amortecedores psicológicos do sofrimento". Barros de Barros (2012) também chama atenção para a tendência de algumas práticas psi, no campo das políticas públicas, de tomar o sujeito como a-histórico, quando as características pessoais se circunscrevem numa perspectiva substancialista. Lança-se mão, assim, de estratégias privatizantes baseadas em modelos teóricos que não dão conta da concretude das situações e que consideram "o ser uma unidade fundada sobre si mesma [...] sem capacidade de se defasar em relação a si próprio" (BARROS, 2012, p.5).

Ao mesmo tempo, entende-se que a escuta na perspectiva institucional - que pode ser feita em âmbito individual do ponto de vista metodológico - pode se constituir como canal de circulação da palavra, o que diante de determinados contextos de trabalho pode significar um espaço-tempo que produza clivagem e deslocamento nas relações de poder estagnado. O mesmo paradoxo habita as remoções, licenças e tratamentos de saúde, que tanto podem ser concebidos como manobras da organização para a individualização de fatores que são coletivos, quanto podem fazer parte de um projeto traçado com o sujeito, de modo que seja ampliado o seu poder de agir (como diria Yves Clot) no diagrama de forças da instituição-trabalho.

Para Foucault (1999), relações de poder sempre estão presentes onde haja quaisquer humanos reunidos com diferentes papéis e interesses; o poder não emana de um centro, está em toda a parte e vem de todos os lugares. Assim como as instituições e aparelhos são endossados e perpassados por essas relações de poder (que não limitam sua localização nessas instituições e aparatos), da mesma forma acontece com os pontos de resistência que, pulverizados, se encontram nas diversas configurações sociais e individuais.

A resistência é entendida pelos profissionais do serviço de atenção psicossocial que atendem os servidores também como possibilidade de fala (que desvia e desliza), de escuta, de criação, de ressignificação da situação que atualiza um sofrimento. São indicações de que a prática clínica, com os questionamentos que têm nos produzido, não estabelece preferências metodológicas ao atendimento individual ou de grupo, mas indaga sobre como lidamos com a dimensão institucional que nos chega, independentemente da modalidade ou do tamanho da roda.

Assim como os atendimentos individuais, os grupos têm suas especificidades operativas, seus dispositivos próprios de desvio. Quando em coletivos de análise, nos sentimos convocados a participar, a saber das impressões do outro; convocados à perturbação dos nossos entendimentos a partir de uma alteridade que se oferece com zonas de contato e acaba por expor também, em nós e entre nós mesmos, uma zona de interferência passível de contágio. Em outras palavras, Foucault (1999) diria que é no âmbito coletivo (invocado em atendimentos individuais ou grupais) que os discursos deslizam para serem tomados na existência de cada um, é onde podem encontrar brechas para se disseminar, para se transformar em outras verdades, ou para repensá-las, entender suas engrenagens.

Nesse momento, vemos oportuno nos voltarmos a alguns pilares que vêm sustentando a separação oposicionista entre clínica e política. Segundo Monteiro de Abreu e Coimbra (2005), corriqueiramente, a prática clínica é direcionada para problemáticas pessoais resultantes de conflitos psíquicos que surgem do interior do indivíduo. Enquanto isso, o agir político teria como foco os impasses que geram sofrimentos associados à forma de organização social. Em ambos os casos, há a primazia do indivíduo como referência.

A discussão das intervenções não é monocromática e tem os traços próprios de quem as pauta, assim como a finalidade (o para que) das informações compartilhadas norteia o entendimento e o traçado das estratégias com os servidores e outras instâncias. Conceber as rodas/atendimentos como possibilidade de análise crítica dos modos já instituídos de subjetivação, inevitavelmente, nos compromete politicamente por meio da escuta. Desse modo, as autoras dividem conosco a pergunta: como foi engendrado o discurso de que uma prática como a clínica - que tem a vida humana como foco de interesse - seja a-política?

Nas hipóteses de Foucault, Guattari e Deleuze, a crença excessiva e dogmática nas teorias tende a afastar o pensador de sua realidade; é na proposição de se depararem com essa questão que os autores afirmarão: os conceitos não existem por si só, não podem ser desprendidos de suas situações e conjunturas e aí reside o poder de com eles operar (n)a realidade. A partir dessa consideração, as autoras alertam que o problema político com que temos de nos deparar não se localiza nas características quantitativas e espaciais dos indivíduos (senso comum de coletivo): "o coletivo que importa considerar tanto na clínica quanto nas práticas militantes é o coletivo de forças. Em ambos os casos, é plano das forças, em seu processo continuo de produção diferenciada de si e de mundos, que aparece como questão" (Coimbra, 2005, p. 46). Ou seja, o que interessa para essa perspectiva clínica são os modos de subjetivação (traçado de condições, circunstâncias e efeitos), mais que a subjetividade; as individuações, mais que os indivíduos.

Para tanto, faz-se necessário criar uma intimidade com o fora, tal como ocorre ao percorrermos a banda uniface torcida de Moebius, que permite a experiência-limite de ser engolfado pelo fora para depois absorvê-lo e novamente reencontrá-lo diverso. Tal experiência-percurso ajuda a compreender a indecidibilidade em relação ao nosso lugar dentro e fora dos estratos institucionais; inclinados sobre aquilo que nos demandam, inevitavelmente envolvidos na produção desejante-político-institucional que nos expressa e nos constitui. A clínica em intimidade com o Fora é a clínica que se lança ao mundo, às questões contemporâneas.

Um dos temas enunciados pelos trechos anteriores cria certa colisão entre as profissões reunidas para debater e discutir as intervenções, na medida em que se trata de corpos teórico-metodológicos (disciplinas) e suas forças em movimento, cujos encontros podem ser mais ou menos elásticos. Ou seja, podem gerar mais ou menos inflexões nos próprios corpos disciplinares - que estão em movimento - em questão, e é nesse sentido que podemos estabelecer relação entre essas eventuais colisões disciplinares.

Passos e Benevides (2000; 2006) esclarecem que a relação intercessora não é de troca de conteúdos, mas é da ordem da perturbação, que aproveita o movimento causado para se expressar no que pode diferir de si mesmo. Esse fenômeno exige, no entanto, suportar situações intervalares na quais se operam as composições.

Atender junto com não para diluir lugares e diferenças, mas para acioná-los pela conexão. O acolhimento em dupla possibilitou também o encontro entre serviço e servidor e não apenas a aceitação de um pedido já definido pelo servidor por assistente social, psicólogo ou psiquiatra, aos moldes de "o cliente sempre tem razão". Interessante observar que a designação "prática clínica" caiu em desuso entre a equipe, pois a referência poderia fazer sentido para a Psicologia ou Psiquiatria, mas não para o Serviço Social. O adjetivo "clínicas" de nossas práticas perdeu a equivalência com o atendimento individual: movimento esse que pode ser compreendido como um dos efeitos do acolhimento em dupla. O uso de um termo de tradição médico-psi foi encarado com mais rigor, porque mais exigido quanto ao seu uso: práticas clínicas podem acontecer em inúmeros lugares, com diversos formatos. Talvez o uso de "prática clínica" esteja em suspenso, até que se resolva usá-lo em mais lugares para além da salinha de atendimento.

Em conversa com colega: Se a psicoterapia é uma das fortes contribuições que a Psicologia pode ofertar, qual é a contribuição dessa especificidade agora? A colega chamou atenção para o fato de que tenho mais pistas sobre 'qual é a especificidade da minha contribuição' agora do que "qual é a contribuição da minha especificidade". (Diário de campo, 31 de março de 2014)

O que chamei de especificidade, em alguns momentos do diário, na verdade, foi uma inquietação sobre o especialismo psicoterápico clássico (em mim) da instituição Psicologia, agora, um tanto caduco e desajeitado no novo diagrama da equipe. A clínica não tem lugar fixo e a maior expressão dessa tentativa de captura é o especialismo. Mas se a clínica que aqui problematizamos transbordou os limites do especialismo, e com ele mingua porque perde seu contato com o mundo, não quer dizer que ela não tenha uma especificidade, que não exista uma singularidade do trabalho clínico, no modo de inclinar-se, de oferecer uma escuta à singularidade.

Tem isso que vai pra além da especificidade, da formação [...] é difícil de responder o que é singular de cada especialidade, né, porque... claro, algumas coisas a gente consegue, mas tem algo do exercício profissional que é de cada um e de como essa visão que a gente tem, mesmo com conceitos afinados entre equipes, na pratica, como é que a gente consegue relacionar aquilo com a nossa vida, eu acho bem complexo, que tem diferenças que vão pra além dessas questões de formação. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Assim como nos trechos do diário, essa inclinação parece portar consigo um desafio que se atualiza constantemente, ainda que marcado pela singularidade dos contextos: como permitir abertura àquilo que ainda não é sem perder as bordas referenciais? Como reposicionar as fronteiras, não as deixando no esquecimento de um mesmo lugar e nem rompendo com sua elasticidade? Como usar a envergadura que nos cabe? Estratégias como a do acolhimento em dupla seguem uma pista: quando o encontro se dá no problema, no não saber como comum, é ele quem transversaliza as disciplinas, elas se (re)organizarão para os problemas, e não só os problemas terão de se deparar com o formato de escuta ofertado pelas disciplinas.

Sobre as dicotomizações indivíduo-grupo e as fáceis associações individual-clínica, coletivo-institucional, que foram objeto de reflexão de trechos anteriores do diário, entramos inevitavelmente em contato com a ideia de coletivizar os problemas tradicionalmente acolhidos no registro do privado; assim, convidamos o estranho a participar da nossa roda. O estranho, já dizia Freud (1974) é aquele aparentemente não familiar, o inquietante. Guattari e Rolnik (2005) lembram que em oposição a este padrão de homem, personificação do âmbito privado, está o público: lugar de perigo, das doenças, da barbárie, onde os coletivos tão ameaçadores circulam.

O saber domesticado sobre como deve ser inabalável o sigilo de um sofrimento sentiu-se desconfortável. A estranheza reside na familiaridade do fenômeno para quem acolhe esse sigilo.

O que aconteceria se coletivizássemos nossas questões, com que velocidade nos depararíamos? (Diário de campo, 18 de fevereiro de 2013)

O que o meu colega quer dizer com isso [...], que conceito é esse [ao referir-se a pensamentos que lhe ocorrem durante discussões entre a equipe]? (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

[...] quando tu tá com um incômodo e quando tu consegue compartilhar, isso tem um efeito assim, [...] aí eu fico pensando... quando tu tá vendo que uma equipe tá com esse incômodo individual como é que tu faz pra fazer a intervenção pra que aquilo dispare uma percepção coletiva sobre a cena, sobre o incômodo, né? Eu acho que eu consigo pensar isso como um ato clínico mesmo. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Eu não consigo entender muito bem isso que vocês falam, pra mim me parece superabstrato isso de coletivo, individual... (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Segundo Rolnik (2006), cada um dos órgãos sensoriais é dotado de uma dupla capacidade. A primeira diz de uma percepção que nos permite apreender o mundo em suas formas para que projetemos sobre elas nossas representações prévias, para atribuir-lhes sentido. Essa é uma capacidade mais familiar, pois está intimamente ligada à história e à linguagem do sujeito. Com essa aptidão perceptiva dos sentidos, é que nos situamos no mapa das representações vigentes e por ele podemos nos movimentar - tais como as diretrizes e marco legal referentes à gestão e à saúde do servidor. A segunda natureza de nossos sentidos já não é tão desenvolvida e corresponde ao registro do campo das forças vivas e como ele nos afeta o corpo por meio das sensações provocadas diante da diferença, daquilo que não é passível de reconhecimento, daquilo que ainda não é em nossos registros. Aqui, com esse corpo vibrátil, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a exterioridade, se confundem, o que há é a integração do outro em nossa textura.

Às vezes o pedido das equipes e dos gestores é pra manter aquela situação ruim e às vezes a gente se atrapalha também.

Às vezes cabe à gente desmistificar o pedido que vem: "olha, não é bem isso que eu faço, vou te dizer o que eu faço, te serve? Não serve, não é aqui que tu vai conseguir. Sabe, eu acho que esse é o nosso trabalho, da gente colocar também, não pegar aquilo e fazer com jeitinho, de uma maneira disfarçada. Não, claramente dizer isso eu não faço, eu faço isso, isso e isso, te ajuda? Que bom, então vamos trabalhar juntos. Não ajuda? Então eu não consigo dar conta do que tu quer, vai ter que ser em outro lugar que tu vai ter que procurar, pronto. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Ao que a investigação tem indicado, parece que o acesso a outras possibilidades de ajuda (psicoterapêutica, por exemplo) está vinculado a um olhar sensível e até valorativo para certas fragilidades e incertezas. Na mesma espessura, nossa atividade consiste em manufaturar um ponto, um lugar em que esse olhar sensível para as possíveis dissonâncias e crises de si conviva com uma posição de garantias, aliada a marcos legais e práticas que intencionam proteger os trabalhadores de vulnerabilidades que o trabalho, por vezes, atualiza. Ou seja, como nos mostram os trechos anteriores, nossa atividade - como equipes da Pró-Reitoria de Pessoas - consiste em escolhermos, o tempo todo, nosso lugar ético-político no campo vívido de forças, de modo que possa ser acionada certa natureza de imprevisibilidade. Do tipo que desassossega o corpo diante da estranheza do que ainda não reconhece, conectada aos vacilos - e transformações deles decorrentes - que o encontro com o outro provoca.45 O sujeito constrói as próprias normas - sua saúde possível - nas infidelidades do meio, apesar delas e com elas; é justamente pelo movimento que elas provocam que uma saúde singular se torna possível. É nesse plano, constituído pelas infidelidades do meio e pelas imprevisibilidades nos modos de subjetivação, que se produz nosso lugar.

De todos os modos, como rastrear as marcas de um efeito clínico? Como nos chegam essas notícias? (Diário de campo, 27 de setembro de 2013).

Pra mim o pulo do gato é quando é desenvolvida a compreensão de que as questões são sempre coletivas. [...]Tanto nos atendimentos individuais como nos atendimentos coletivos. [...] o entendimento de que os processos sempre são coletivos, mesmo que aconteça comigo. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Eu tenho prazer com a coisa de poder... um poder pessoal, uma coisa de poder enxergar o troço de um jeito diferente depois de ter discutido em equipe, de ter feito um trabalho com o colega ali... eu enxergar diferente, um prazer talvez egoísta até que eu tenho. Bom, dá pra ver de outro jeito. (Roda de conversa, 25 de abril de 2014)

Na convivência com a tensão, com elementos intercessores, (colegas, equipes de servidores e instituições apontados pelos trechos anteriores) que nos lançam numa zona de interferência desestabilizadora, o modo de sentir e de pensar o que nos circunda ganha outro regime para dar passagem àquilo que nos surpreende. A produção de si, com a produção de bens e serviços, é um dos efeitos - inevitáveis e esperados - do Método da Roda, estratégia do Apoio Institucional. Assim, a gestão do trabalho e os modos de negociá-lo são encarados como alguns dos elementos que, incessantemente, constituem os sujeitos e os padrões inéditos ou vigentes de subjetivação. São as desinstitucionalizações que, ao se darem nos trânsitos dos encontros, possibilitam produzir o comum, não a partir do que temos em comum, mas a partir do que diferimos - entre nós e de nós.

Nossa intervenção - que do ponto de vista desenvolvido apresenta sua dimensão clínica -, novamente se depara com a capacidade de se desprender de nossas existências e modos de funcionamento que nos cristalizam diante de todo o fluxo intermitente da vida, que a todo o momento convida ao novo. Ao mesmo tempo, não se espera que o corpo acompanhe, e "pegue carona" em, todos os fluxos e intensidades propostos, pois há de se respeitar um contorno e há de se ter um contorno para criar a partir da tensão entre o já estabelecido e o novo; do contrário, estaríamos apenas de passagem, flutuando na maré dos acontecimentos. O sujeito necessita se identificar com o discurso do outro, mas é ao romper, em parte, com a ordem desse discurso, que há construção da singularidade, há produção na diferença. "Se o nosso trabalho diz respeito ao trabalho na universidade, nosso trabalho trata do nosso trabalho. Enlouquecedor, não?" (Diário de campo, 9 de abril de 2014).

Fuganti (2008) esclarece que chamamos de acontecimento aquilo que revela uma modificação nas relações de força. A partir do encontro de um corpo com o outro, inaugura-se um modo de ser, e uma diferença desponta com a nova realidade. Assumir o mandato social de analista implica não sabermos o que deve ser feito de antemão, o que é diferente de não estar munido da caixa de ferramentas, diretrizes e certa especificidade de um saber, uma atitude-limite que se dê com o/por meio do acontecimento como efeito de um encontro, um saber inantecipável. No caso das rodas de conversa, ou quando o Método da Roda está operando em um coletivo, a produção do saber sobre a atividade - como ela é e está sendo gerida - se dá o tempo todo. A roda favorece a lateralidade dos poderes, a circulação da palavra e, com isso, se engendram novos modos de subjetivação.

 

Considerações finais

A aposta é que supor um potencial, uma dimensão clínica no trabalho de apoio ao trabalho nos permita embarcar no movimento da vida institucional, em vez de filiar nossa prática cotidiana a um projeto inconfesso na direção de "equipes funcionais", como se não houvesse imprevistos, ineditismos e criações entre o prescrito e o real da atividade. Se o apoio vem se construindo como uma posição de escuta acolhedora e provocadora, que se recusa a dizer ao outro o que ele deve fazer, então a perspectiva clínica do apoio se dá a ver nas rodas de conversa e seus diversos arranjos. E isso produz saúde em qualquer âmbito de trabalho, não se restringindo ao campo específico do trabalho em saúde, como a presente pesquisa se esforçou por demonstrar.

A dimensão clínica do apoio não comporia nenhum constructo em prol do fortalecimento do apoio como estratégia, em vez disso, carrega um potencial de vacilo, fragilidade, dúvida; vulnerabilidades quando estamos sujeitos aos sentidos a posteriori, que podem, por ventura, questionar o próprio apoiador, tanto se ele conceber o apoio como "muleta" quanto se ele encará-lo como um desestabilizador com potencial de abertura de sentidos.

A clínica é um termo que não é utilizado, além de não ser utilizado não é feito pelo serviço social na concepção tradicional que ela tem. Acho que tu me contemplou e como tu não tava gravando, vou falar porque é importante o registro: que as pessoas que estão ampliando esse olhar para a clínica são pessoas que fazem a clínica. Então, acho que tem uma abertura, mas as outras profissões que não fazem clínica, ou não estão disponíveis pra abertura, ou não concordam com a abertura. Não sei decidir, não me interessa, acho também que não te interessa a decisão. (Roda de conversa, 13 de junho de 2014)

Assim, a prática clínica indaga sobre como lidamos com a dimensão institucional que nos chega, independentemente da modalidade, do tamanho da roda. Ruas de Melo (1997) aponta uma pista metodológica: para a análise da clínica como instituição em nós - analistas -, perguntar-se sobre o que se espera se mostra como potente bússola; e as respostas podem revelar armadilhas, algumas delas ligadas a vontades de poder e prestígio.

O que esperamos com a clínica, como instituição que nos habita? Diante do exercício diário de conseguir estar diante dos processos heterogêneos (e já vividos) do que está dado e, ao mesmo tempo, criar uma disposição para o nomadismo, para a imprevisibilidade que se insinua todo o tempo, temos uma sequência de tentativas, vacilos, viradas, equívocos e acertos. Esperamos que a vida não se sossegue no trabalho.

 

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Recebido em: 22/12/2017
Aprovado em: 27/12/2018

 

 

1 De acordo com o dicionário etimológico de José Pedro machado (2003), a palavra universidade tem origem no latim universitate, que pode significar universalidade, totalidade, conjunto, comunidade.
2 Parte do nome foi alterada aqui pela pesquisadora.
3 Alusão ao termo usuário-centrado utilizado por Emerson Elias Merhy (1998).
4 Isso nos faz lembrar a ideia de Arendt (2007), que concebe a ação política como ato de risco, cujos resultados são inantecipáveis. É por meio dela que o sujeito se constitui e se torna capaz de abandonar crenças e valores - condição humana para o ato político, para aquilo que é de preocupação comum à pluralidade dos envolvidos. Assim, a capacidade criadora e a originalidade dos acontecimentos são intrínsecas ao ato político.
5 Ainda sobre o encontro com o outro como exercício, a noção de "cuidado de si" utilizada por Michel Foucault, que se refere à complexa noção utilizada pelos gregos para designar uma série de atitudes, práticas e ações ligadas à ocupação de si, indica certo modo lidar com as coisas, de estar no mundo e de estabelecer relações com o outro. Foucault (2010) distingue o cuidado de si da noção moderna ligada ao "conhece-te a ti mesmo". É pelo cuidado de si que nos encaramos, nos desaprendemos e nos transformamos. Assim, o termo cuidado de si não remete ao movimento de ensimesmar-se, ou de isolar-se, mas ao exercício de com o outro relacionar-se, o que, por sua vez, acorda os outros em nós, ao estilo "não seja você mesmo".

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