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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.13 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.36298/gerais202013e15382 

ARTIGOS

 

Modos de Subjetivação e Contemporaneidade: uma Reflexão sobre a Memória

 

Modes of Subjectivation and Contemporaneity: a Reflection on Memory

 

 

Wallace da Costa BritoI; Fernanda CanavêzII

IUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: wallacedacostabrito@gmail.com. (orcid.org/0000-0002-2041-2710)
IIUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: fernandacanavez@gmail.com. (orcid.org/0000-0003-1205-0200)

 

 


RESUMO

O artigo objetiva examinar a memória à luz das descontinuidades observadas na contemporaneidade. De natureza teórico-conceitual, parte do diálogo com estudiosos de diferentes campos do saber, tipificando-se como multidisciplinar. Na cultura contemporânea, os modos de subjetivação se dão sob influência do pretenso desapreço com o passado, como também sofre o impacto da artificialidade com que se lida com a alternância entre o lembrar e o esquecer. No século XX, cresce a aceleração social do tempo, processo impulsionado nas suas últimas décadas e agora amplificado. Sob esse paradigma, conformações ancestrais pelas quais a memória funciona são preteridas, com as tecnologias digitais ocasionando consideráveis alterações na configuração, atividade e compreensão da memória. Os modos de subjetivação contemporâneos têm na memória uma questão de expressivo valor em favor da reinvenção de si e da singularidade.

Palavras-chave: Memória. Subjetividade. Cultura Contemporânea. Tempo.


ABSTRACT

The article aims to examine the memory in the light of the discontinuities observed in contemporaneity. Of a theoretical-conceptual nature, it starts from the dialogue with scholars of different fields of knowledge, typifying it as multidisciplinary. In contemporary culture, the modes of subjectivation occur under the influence of the alleged disregard for the past, as also suffer the impact of the artificiality with which it deals with the alternation between remembering and forgetting. In twentieth century, the social acceleration of time grows - a process that has been driven in its last decades and is now amplified. Under this paradigm, ancestral conformations for which memory works are neglected, with digital technologies causing considerable changes in the configuration, activity and understanding of memory. Modes of subjectivation contemporary have in memory a question of significant value in favor of the reinvention of self and singularity.

Keywords: Memory. Subjectivity. Contemporary Culture. Time.


 

 

Introdução

O presente texto promove uma leitura do contemporâneo, apontando algumas características mais expressivas presentes em determinados modos de subjetivação concernentes a esse tempo. O objetivo é refletir sobre as possíveis implicações para uma questão em particular, a memória.1 Para entrelaçar os temas da cultura contemporânea, dos modos de subjetivação2 e da memória busca-se dialogar com estudiosos de diferentes campos do saber, por isso, este estudo pode ser tipificado como teórico-conceitual e multidisciplinar.

Parte-se do princípio de que, atualmente, estão em jogo formas de subjetivação nas quais a memória se compõe como um elemento que não se mantém incólume, no tocante às recentes transformações sociais, nem deixa de ocupar um lugar. Conforme Sibilia (2016), na cultura contemporânea, as compreensões sobre o passado, a oscilação entre as técnicas para lembrar ou a incômoda apreensão do espectro do esquecimento repercutem nos modos de constituição dos sujeitos. Assim, são frequentes os fenômenos que remetem à questão da memória. A esse propósito, é possível ver que se apresentam duas tendências contrastantes: em primeiro lugar, têm sido comuns modos de subjetivação que demonstram intensa imersão no presente em detrimento do passado, ou, diferentemente, em segundo lugar, como uma resposta a tal fato, tentativas de valorizar o passado que se dão exatamente porque haveria uma suposta ameaça de perda total e irrecuperável do que passou.

Em relação ao primeiro modo, um exemplo são os sujeitos que expressam que têm observado em si mesmos uma incidência do esquecimento, no que se refere aos afazeres cotidianos, atribuindo tal ocorrência à intensa agitação com que se defrontam na vida contemporânea. Assim, falam da necessidade de lidar com inúmeros compromissos e da "exigência" de absorver e dar conta da grande quantidade de informações que não cessam de chegar a cada novo dia. Nesse sentido, muitos sujeitos dizem vivenciar uma sensação de passagem vertiginosa do tempo, pela qual sobressai o que se vive agora, desconsiderando-se o que passou ou colocando-o em plano secundário. O que também pode ser observado em algumas matérias jornalísticas encontradas na internet, entre as quais, a título de exemplo, Tempo: cada vez mais acelerado (Gwercman, 2005) e A angústia do (nosso) tempo (Duarte, 2014). Em se tratando do ambiente acadêmico, podem ser verificadas recentes pesquisas relativas ao assunto nas mais diversas áreas do saber, ilustradas pelos vídeos3Tempo, trabalho e subjetividade (Giannini, 2011) e Tempo e aceleração social na hipermodernidade (Giannini, 2012).

Outro exemplar, agora referente ao segundo modo supramencionado, diz respeito ao fato de que há sujeitos, grupos e instituições que percebem na sociedade contemporânea a força sedutora do agora em detrimento do passado, respondendo com iniciativas que remetem ao que passou como tentativa de chamar a atenção para sua importância e imperiosa valorização (Assmann, 2011). Essa forma de pensar e agir pode ser encontrada na Arte, na Literatura, na Arquitetura, em pesquisas acadêmicas etc. O número crescente de publicações biográficas e o interesse que elas despertam se situam nesse contexto.4 Outrossim, os museus e galerias culturais são espaços especialmente dedicados, entre outras coisas, à valorização do passado, resgatando-o e tentando resguardá-lo.

Também se assiste à descrição do funcionamento da memória atribuída a uma parte do corpo amplamente mencionada (o cérebro), de modo que é até mesmo possível falar na abordagem de um sujeito cerebral, conforme Ehrenberg (2009). Esse autor aponta que a Neurobiologia vem tornando banal a assimilação de que o cérebro conservaria em si a chave para o entendimento do sujeito, sublinhando que as Neurociências vêm se mostrando em diversas publicações científicas como o suposto futuro da Psiquiatria. Visam tais pesquisas à compreensão dos mecanismos das células e moléculas com a pretensão de ser alcançada uma intervenção sobre o cérebro que seja capaz de alterar os estados da mente.

Pode-se observar, assim, que a memória tem despertado a atenção e os estudos sobre o tema vêm se multiplicando. Segundo Gagnebin (2009), tal movimento se caracteriza como uma empreitada ética, uma espécie de débito com a preservação da memória que opera com o resgate do passado por meio das tradições, biografias, palavras e imagens. Ao longo do século XX, expande-se a valorização da memória, tendência que adentra o século atual e demonstra o apreço pelo tema. A recente procura por memorização não se restringe ao interesse ou à preocupação voltados tão somente ao passado. Consoante a autora, a busca pelo passado e sua valorização não se findam aí, pois remetem ao desejo de modificar o presente.

A inquietação com a memória apresenta características peculiares na cultura atual, ponderadas por Gagnebin (2009) quando afirma que não nos situamos mais na tradição da memória como algo vigoroso que se transmite pela oralidade e possa ser encontrado em expressões de vida comunitária e coletiva. As obras erguidas por mãos humanas aparentam não desfrutar de grande durabilidade e, assim, parece que se parte para a criação de mecanismos com o intuito de manter e recordar. Mecanismos esses com os quais se tenta recuperar o passado para dele dispor ao alcance dos olhos. A crença que se coloca parece ser da seguinte ordem: conhecer o passado para então lhe dar valor e preservar, o que se exprime como um dos objetivos das exposições em salas culturais e museus.

Para alcançar o objetivo ora colocado, é traçado o seguinte percurso textual: pontuam-se de forma sucinta certos episódios marcantes para a configuração do atual cenário cultural; em seguida, são esboçadas considerações acerca da cultura contemporânea e dos modos de subjetivação, que são nesta encontrados de maneira mais expressiva; em continuação, lançam-se observações sobre um aspecto notável e em franca expansão ao longo do século XX e hoje tornado amplamente vigente e influente na cultura, a difusão das tecnologias digitais. Com esse itinerário realizado, são apresentadas considerações sobre o tema da memória na cultura contemporânea.

A Ascensão da Cultura Contemporânea

Para pensar o tema da memória no contexto da dinâmica cultural atual, bem como as mutações ocorridas nas últimas décadas que conformaram o presente, mostra-se relevante esboçar algumas linhas ao que aqui estamos designando como contemporaneidade. Pesquisadores os mais diversos entendem a cultura contemporânea nos termos de época histórica distinta àquela designada como moderna, localizando sua emergência no século XX. Para Batista (2007), por exemplo, os traços dessa época começam a ser definidos a partir da Primeira Guerra Mundial. Birman (2012), por sua vez, afirma que entre as décadas de 1920 e 1930 ocorre o que chama de fase terminal da modernidade, em que novos circuitos culturais se encontravam já em ebulição, mas ainda não claramente constituídos, o que teria ocorrido nas décadas seguintes. Para Canavêz (2015), são mais precisamente os anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que assistem ao surgimento de uma era contemporânea, tomando como referência dois fatos marcantes do século XX: a Guerra Fria, que desencadeia novo ordenamento geopolítico; e a evolução tecnológica, que resulta na internet.

Esse tema, contudo, é marcadamente complexo e não encontra consenso entre os estudiosos que sobre ele se debruçam. Não obstante os calorosos debates sobre a questão, é visível que o século XX trouxe vultosas alterações na cultura que continuam efervescentes na atualidade. É notório, ainda, o quanto, ao longo do século XX, ocorreram significativas mudanças culturais. Na conjunção dos seus mais diversos acontecimentos e fenômenos, entre estes alguns, sem dúvida, mais notáveis, como as Guerras Mundiais, a Guerra Fria, a ascensão das grandes mídias, a mobilidade tecnológica. Mas podemos também falar de um processo de alteração no cotidiano que talvez sem grandes alardes exerceu influência, perpassando o século, sobretudo, sua segunda metade.

Alguns marcantes acontecimentos do século passado podem ser tomados como referências para a configuração do cenário cultural contemporâneo. Batista (2007), por exemplo, traça certo panorama da cultura contemporânea, reputando como marco a Primeira Guerra Mundial. Interpreta assim que desde esse evento e nos anos que a ele se seguem passam a ocorrer alterações culturais notáveis intensificadas por uma generalizada crise de valores. Alguns dos eventos de magnitude mundial que o autor menciona são os seguintes: 1919 (ano de criação do partido fascista na Itália); 1929 (queda da bolsa de Nova Iorque); 1933 (ano que marca a ascensão do nazismo na Alemanha); 1939-1945 (Segunda Guerra Mundial); 1946-1948 (início da Guerra Fria e surgimento da TV); 1960 (movimentos de contracultura); 1980 (primeiros computadores pessoais); 1986 (irrupção dos movimentos ecológicos); 1989 (queda do muro de Berlim); 1998-2001 (expansão das manipulações genéticas, clonagem, decifração do DNA); 2001 (ofensiva terrorista de grandes proporções nos EUA).

À sua lista é congruente acrescentar outros eventos consideráveis, entre os quais se destacam a radicalização do capitalismo com o chamado neoliberalismo surgido no fim dos anos 1970 a partir da Grã-Bretanha e dos EUA. O fim da divisão mundial em dois blocos, evento situado no limite entre as décadas de 1980 e 1990, prevalecendo no mundo, desde então, o capitalismo sobre o socialismo. E, ainda, a expansão da chamada globalização, que não é um fenômeno precisamente novo, pois é possível encontrá-la já no início da época moderna. Vale então esclarecer a forma como a globalização é neste texto abordada, isto é, como fenômeno que recebe continuidade, demonstrando novo vigor. Mas sua continuidade não significa exatidão, uma vez que os contextos inevitavelmente pesam sobre os objetivos, métodos e resultados de tal processo. Fato é que, na cultura contemporânea, a globalização se intensifica em razão das novas configurações presentes no mundo, caracterizando-se de modo acentuadamente econômico em sua nova versão. Tal continuidade se organiza e executa, portanto, mediante mecanismos relativamente recentes, entre os quais, talvez, os exemplos mais emblemáticos sejam os recursos e possibilidades acarretados por velozes meios de transporte e por dispositivos tecnológicos digitais. Em concordância com Batista (2007, p. 114), a globalização pode ser definida como a "[...] força do capitalismo multinacional e transnacional transformando todo produto em mercadoria, fonte de lucro". Esses notáveis acontecimentos concorreram para os modos de compreensão e vivência da memória que se podem encontrar na atualidade.

Ao longo do século XX, e hoje mais ainda, há uma generalizada instabilidade de paradigmas que consiste no seguinte: em um mundo no qual todo conhecimento deve ser interpretado, qualquer que seja o entendimento, ele sempre é tido por provisório, uma vez que se faz por contextos historicamente localizados. Assim sendo, não há garantias quanto à sua durabilidade, na medida em que as mudanças ocorrem em grande velocidade e há explícita pluralidade nas leituras do mundo. Assim é que Batista (2007) elenca acontecimentos pungentes que se encontram na ordem do dia, como as guerras civis e entre nações, conflitos sociais que parecem nunca dormir; ascensão e visibilidade da intolerância com o diferente; identidade flutuante vista nos papéis sociais descontínuos exercidos em conformidade com a lógica do imediatismo.

Apesar da grande pluralidade presente em nosso tempo, é admissível notar, como aponta Bicca (1999), que se corre permanentemente o risco de submissão à similaridade ou uniformização. Uma observação como essa parece plausível, uma vez que há muito tenta e alcança notável sucesso tudo aquilo que insistentemente pretende reduzir os sujeitos à condição de consumidores e espectadores, sejam quais forem seus gostos e interesses. Essa dimensão de sentido uniformizante convive com a disposição à pluralidade, o que parece ser um paradoxo. Eis por que é apropriado interpretar essa ambivalência como uma engenhosa característica da complexidade que marca a cultura contemporânea.

A memória não passa intocável a todas essas mutações, sofrendo então realocamentos, cuja força de influência sobre os modos de existência e as configurações sociais esteja constantemente situada em uma corda bamba. Nesta, por um lado, a memória recebe desprezo e não tem qualquer peso para influenciar o presente, enquanto, de outro lado, tem sobre si lançada a atenção e a pretensão de se promover o resgate do passado, extraindo-lhe os ensinamentos e ilustrações para o agora e o porvir.

Para melhor refletir sobre a memória em meio a esse processo, expõe-se a seguir uma breve composição do cenário com a leitura de certos modos de subjetivação presentes na cultura contemporânea.

Modos de Subjetivação Contemporâneos

Com a cultura contemporânea, há novidades nas construções psíquicas e nos laços sociais que porventura se configuram entre nós, exercendo, consequentemente, influência sobre a memória. A esse propósito, assiste-se a novas possibilidades de configuração do eu. Há sobre a subjetividade a incidência de forte propensão à instantaneidade. É o que se dá a ver em meio à avassaladora ascensão das tecnologias digitais. Nesse reordenamento social, Sibilia (2016) observa que algumas formas contemporâneas de descrição de si são feitas por analogias ao aparato tecnológico.

Assim é que, em relação à informática, a autora evoca termos já banalizados, por exemplo: arquivar ou deletar conteúdos presentes na mente; a memória precisa por vezes ser escaneada para dar conta de algo que porventura tenha sido esquecido; o cérebro armazena informações que precisam ser devidamente gravadas; pensamentos incômodos merecem ser desfeitos e, por vezes, um click no lugar correto pode ser de algum modo útil. Dispositivos tecnológicos como os pendrives e os discos externos também têm sido usados para descrições do cérebro. Não são raros, igualmente, dizeres como acabou minha bateria, em alusão ao telefone celular e à própria memória; ou ainda tal como o computador ou o avião, quando se diz que teve uma pane. Informações importantes devem ser submetidas a um procedimento chamado backup, isto é, serem armazenadas em mais de um lugar, a fim de evitar a perda irrecuperável, em clara alusão à memória humana. Quando se trata do esgotamento consequente de uma vida tão agitada, urge desligar-se, como se faz com um equipamento, arrancando os fios das tomadas para poder, ao menos um pouco, respirar profundamente e voltar, assim, a operar melhor com o equipamento mental, bastando para isso teclar algum mágico botão. Pode ser que, em algum momento, para evitar riscos, seja necessário prover uma turbinada para elevar a capacidade de memória ou mesmo trocar o disco rígido.

No capitalismo contemporâneo, segundo Matos (2009), há um desejo que nega o pensamento, promovendo inclusive um modelo educacional que tem no pensar algo que se requer minimamente. Pode-se dizer, estendendo a reflexão da autora, que interessa aos gestores e entusiastas do Capital apenas um pensar que faça a máquina funcionar, sem qualquer divagação nem o levantamento de questões que para eles signifiquem perda de tempo e possam, de algum modo, oferecer riscos aos seus interesses em jogo. Matos (2009) atesta que tal configuração do capitalismo é de certa compulsão ao imediato que proporciona aos sujeitos um empobrecimento de sua capacidade para simbolizar e se fortalecer diante do que frustra e decepciona - quando se sabe que qualquer um está sujeito a ocorrências frustrantes ou decepcionantes ao longo da sua trajetória.

Em função disso, segundo Matos (2009), a fase atual do capitalismo impõe certa configuração subjetiva im-pulsionada. A aceleração do tempo pressiona a rapidez, dificultando ou mesmo impossibilitando relações que só podem funcionar com o fluxo vagaroso do tempo. Sob o domínio da agitação e da precariedade ao estilo do capitalismo corrente, o convívio, a atenção e o cuidado com o outro, a fraternidade, enfim, teriam se tornado difíceis. Em consonância com essa observação, pode-se postular que a funcionalidade do capitalismo atual lança os sujeitos numa frenética corrida contra o tempo, motivo pelo qual a atenção se volta predominantemente ao agora e ao futuro próximo. Isso resulta no desapreço pelo passado e no estranhamento da memória enquanto propriedade efetiva do psiquismo e das relações sociais. A precária aplicação da memória contribui para o seu empobrecimento e infortúnio.

As análises de Matos (2009) e Sibilia (2016) chamam a atenção para o fato de que transcorrem formas de construção subjetiva perpassadas por fenômenos recentes. Formas que se configuram no seio do capitalismo atual e não deixariam de afetar o pensar, uma vez que o tempo tem sido vivenciado aceleradamente e as tecnologias digitais são cada vez mais enaltecidas, a ponto de serem encontradas alusões a si mesmo forjadas na linguagem de que o humano é compatível com os dispositivos tecnológicos. Ao observar o contexto atual, Sibilia (2016, p. 163) lança mão do conceito de extimidade, que significa "[...] uma entidade para cuja configuração foi necessário deslocar o eixo das subjetividades: do magma causal da interioridade psicológica para a capacidade de produzir efeitos no olhar alheio".

Trata-se, desse modo, de uma cultura do ter em detrimento do ser com uma passagem para o parecer e a centralidade ocupada pela mercadoria, conforme Sibilia (2016). Sendo assim, com certa facilidade, assiste-se a relações articuladas pelas imagens, que terminam acentuando o nível de mercantilização dessas mesmas relações, pois o que se torna importante é não só o ter, mas o parecer ter. Há uma mercantilização que pretende tudo abarcar e a subjetividade do espetáculo é o que se avista diante da vida reduzida ao que se exibe, isto é, ao que é apresentado visando ao olhar alheio.

De fato, tal análise remete a um procedimento recorrente nas diversas redes sociais, qual seja, o recorte dos supostos momentos felizes, em uma espécie de propaganda de si com o manifesto - e por vezes sutil - desejo de atrair o olhar, a atenção, a aceitação e até mesmo a admiração do outro. O que advém dessa atitude parece ser o termômetro com o qual se mensura o nível de popularidade e sucesso alcançado e, com base nesses elementos, o próprio valor. Aos outros se apresenta, portanto, uma espécie de memória forjada, uma vez que apenas as vivências aparentemente prazerosas ou que remetem a um suposto bem-estar próprio são expostas. Com isso, forma-se um mosaico que articula pequenos relatos para os outros e para si mesmo, permeado, desde o início, por uma construção narrativa fantasiosa e visivelmente adaptada à lógica social hoje predominante.

Nota-se, como assinala Sibilia (2016), um processo de transição na cultura. Esse processo tem proporções abrangentes, sendo percebido na virada para o século XXI e em funcionamento nos seus primeiros anos, mas também é concebível afirmar não se tratar de algo tão novo, pois esteve presente ao longo do século XX.

Atualmente, a escrita encontra certo nível de declínio, enquanto ascende a tela, acarretando um lugar privilegiado para a imagem em prejuízo do investimento na leitura. Fato esse desenrolado ao longo do século passado e agora intensificado. Um fenômeno que parece, nesse sentido em específico, designar enorme distância do século XIX, época em que muitos eventos, ideias e sentimentos eram passíveis de serem contados em um livro. Na atualidade, ao contrário, algumas vezes só parece ter se realizado ou se tornado fato o que se expõe na tela. Os sujeitos contemporâneos estão expostos, em grande medida, à sedução da internet, que a todos convida para se exibir feliz e contente, o que pode até ser encarado como uma imperiosa exigência.

Ao lado disso, verifica-se o declínio do apreço pela escrita própria e do outro e o hipercrédito concedido à informação que tem sido, hegemonicamente, forjada e constantemente despejada pela mídia. O fenômeno em questão demonstra de forma contundente o esmaecimento da memória, afinal de contas, o que se escreve pode ser gravado e armazenado, consultado, recuperado e utilizado a posteriori. Com a informação, por sua própria dinâmica, a prática é bem outra, pois esta requer a exposição sempre recente e, portanto, efêmera, caducando com demasiada brevidade. Nesse caso, é comum que a memória fique relegada a um plano secundário.

A ascensão da internet é um fenômeno que se insere de um modo particular e específico em outro mais amplo que lhe é precedente: o das mídias, que ocasionam a fragilidade do exercício de reflexão, incutindo à superficialidade por meio de insistentes procedimentos de informação, imagem e espetáculo, que se colocam como sedutoras atrações aos sentidos, sobretudo, visuais, e também auditivos. A percepção é exigida com uma avalanche de estímulos cada vez mais numerosos e alternados a cada dia. O psíquico, ao se deparar sempre com estímulos como nunca tão diversificados e, de maneira corriqueira, com interrupções e troca de estilos dadas às constantes variações, defrontar-se-ia com certa dificuldade para manter constância e estabilidade.

Não obstante a força das mídias, grupos sociais e sujeitos têm possibilidades e condições para reagir e romper com a cadeia de identificação passiva, como enfatizam Severiano e Estramiana (2006). Mas qualquer forma de reação e rompimento não são de modo algum fáceis, uma vez que a mídia contemporânea tem grande força na construção imaginativa da realidade. Tem sido lugar-comum as grandes mídias atribuírem a si o papel de influenciar e talvez até mesmo construir de antemão a "verdade dos fatos" da maneira como bem entendem seus gestores e parceiros. Deliberadamente, produzem discursos que logo se convertem em um tipo de memória sofisticadamente modelada.

É conhecido, porém, que não é nova a objeção por meio de mídias alternativas, que se destacam pela produção própria de conteúdos diversos, entre as quais algumas funcionam como canais de veiculação da notícia, refutando frontalmente a mídia tradicional e seus aliados. No Brasil, sempre houve resistências por meio da comunicação contra-hegemônica, desde os tempos da Colônia, perpassando o Império e as diversas fases da República, com destaque para os anos de chumbo da ditadura civil-militar (1964-1985), período mais recente na imposição de forte censura. Amorim (2007) argumenta que a produção alternativa da informação e, por vezes, até do conhecimento se dá por diversos canais de expressão, tais como: jornais e revistas impressos, panfletos, circulares, informativos, murais, pôsteres, grafites, teatros na rua, danças, músicas, vídeos, documentários etc.

No estado do Rio de Janeiro, chama a atenção, nos últimos anos, a efervescência e multiplicação de uma prática antiga, os saraus poéticos. Essa forma de agrupamento e manifestação artística vem alargando sua presença social com a ocupação de espaços comunitários, ruas e praças, sobretudo, nas periferias, primando por formas de transmissão marcadas por forte crítica social. Cabe ainda frisar uma modalidade de comunicação que vem se notabilizando com a expansão por que passa a internet nos últimos anos, os sites e blogs. Não há dúvidas de que a internet facilita a criação de canais ousados que seguem na contramão da mídia tradicional. Com esses meios, discursos de caráter afirmativo são produzidos, dando voz àqueles que foram relegados à margem da sociedade, ocasionando, por conseguinte, a possibilidade de outra memória, demonstrando, assim, o potencial criativo e a capacidade de resistência também presentes na sociedade contemporânea. São exemplos desse tipo as páginas eletrônicas Jornalistas Livres, Mídia Ninja e Resistir é Preciso.5

Outro importante aspecto que merece ser ponderado na cultura contemporânea é o tempo (cronológico), que é fator intrínseco ao processo de constituição do sujeito. É necessário por isso examinar o modo como o tempo vem se configurando, bem como sua relevância para os estudos sobre o sujeito. Se o tempo é um aspecto de vários modos ligado à memória, também se vincula a tantos outros processos, tais como percepção, pensamento, afeto, linguagem etc. A vivência do tempo, em sua dimensão cronológica, encontrada na cultura contemporânea, tem sido inexoravelmente marcada pela sensação de um presente que não se esgota, um presente inflacionado, como diz Sibilia (2016).

Ao longo do século XX, cresce a aceleração social do tempo, processo que se intensifica nas suas últimas décadas e agora está ainda mais forte e visível. Há uma pressão temporal sobre todos, como coloca Sibilia (2016). Se por um lado o presente se encontra inflacionado, por outro, o passado parece cada vez mais sem importância no interior desse modo de relação e compreensão do tempo em voga.

Se o passado não recebe mais a importância que de fato tem ou como defende Sibilia (2016), não tem mais a força de referência para o hoje, sua capacidade de influenciar o presente ficaria à deriva e seu sentido estaria se esvaindo. Na contemporaneidade, parece que sempre é preciso começar, o que para Sibilia (2016) demonstra ser algo ligado às diferenciações no estatuto do sujeito nos contextos dos capitalismos da indústria e da informática. Se no primeiro o sujeito foi designado como ser psico-lógico; no segundo, parece migrar para um modo de ser que pode ser designado como tecno-lógico. E o passado para esse sujeito da era da informática parece cada vez mais desvinculado do presente, não recebendo o sentido e importância que de fato tem.

E como isso se vincula ao fenômeno recente das redes sociais? Segundo Sibilia (2016), nestas, o passado e o futuro não encontram relevância, mas o presente que não cessa, pelo que há uma frenética adesão ao modismo do momento. Parece que a anuência apaixonada do presente também se dá porque o passado se encontraria apagado, deixando de ser referência para a construção do eu, e o futuro não pareceria dotado da condição de se realizar como algo tão diferente do que aí está. Esse entendimento, segundo Sibilia (2016), ajudaria a discernir, ao menos em parte, o porquê da febre das mais diversas redes sociais, nas quais o que importa é o instante. Sendo assim, nada mais comum do que a rápida e entusiástica aprovação de tudo aquilo que se propaga como novidade, algumas vezes até como se fosse uma obrigação.

As questões concernentes ao imperativo do momento ou ao foco no agora expõem o lugar privilegiado do presente e o prejuízo conferido tanto ao passado quanto ao futuro no processo de subjetivação privilegiado na cultura contemporânea. As leituras sobre o tempo na cultura contemporânea apresentadas por Sibilia (2016) vão ao encontro daquelas efetuadas por Matos (2009), quando detecta certa amnésia vinculada ao nosso modo de subjetivação, a qual decorreria, sobretudo, da vivência temporal manifestamente contaminada por uma passagem vertiginosa. Aliás, Matos (2009) sinaliza que a cultura atual é descuidada com a memória. Isso porque mudar constantemente ao gosto do momento presente e compreender o sujeito reduzido à condição de negócio ou funcionalidade, como ocorre no contexto do capitalismo desde sempre e que se acentua em sua versão mais recente, contribuiria enormemente para que a memória sofra deméritos.

Se o capitalismo se impõe não só como sistema econômico, mas como processo sociocultural que ambiciona reger nossas formas de subjetivação em todos os aspectos e direções, ao entender o tempo como dinheiro, deve o tempo por isso ser oportunamente aproveitado. Em outras palavras, se o tempo é sugado tanto mais quanto for possível, a empreitada capitalista age com força para que os sujeitos sejam inexoravelmente marcados pela pretensa falta de tempo. Como postula Matos (2009), assim como o mercado financeiro não descansa, o sujeito não deve dormir, daí a tensão, a impaciência e o esgotamento como alguns dos atributos característicos do sujeito contemporâneo. Enquanto tal, a tensão é algo comum aos mais diferentes estilos de grupo ou aos mais diversos momentos de existência. Todos são impelidos à hiperatividade corrosiva. Por essa perspectiva, portanto, o que se tem é um tempo devorado e esvaziado de sentido promovido no interior da lógica capitalista.

Sendo assim, sucede uma lógica fragmentada cuja atitude de desvinculação com o passado, que se opera com o tempo acelerado em conformidade com o ritmo do mercado mundializado, ocasiona o que Matos (2009, p. 102) chama de "pulsão antigenealógica". Esta desconsidera a existência de qualquer ligação ou mesmo herança do passado, desprovendo esse mesmo passado da força simbólica capaz de influenciar o presente. Nesse sentido, pode ser comum pensarmos que nada devemos ao passado, acreditando que tudo o que somos e realizamos estaria circunscrito tão somente aos limites de nós mesmos. O que revela uma das faces da condição da memória na cultura contemporânea, sua retração, isto é, sua condição diminuta ou a redução do seu poder de alcance e influência.

Os acontecimentos supramencionados se dão no seio do capitalismo também chamado de consumo, que, para Matos (2009), incita o eu a desconsiderar os sentimentos, desencadeando uma alteração dos laços, ganhando importância o valor monetário. O consumo se tornou hábito recorrente incitado pelo mercado. Hábito esse que fomenta a velocidade, fortalecendo a aceleração da vida e elevando o número de contatos superficiais. Se os sentimentos requerem certa durabilidade para seu avanço, quando essa durabilidade é desprezada, os sentimentos tenderiam à minimização, resultando em uma interioridade significativamente empobrecida. Se as relações passam a ser transitórias ou talvez até mesmo evitadas, o afastamento sobressairia, e em casos mais graves a solidão prolongada e corrosiva.

De modo semelhante, Severiano (2010, p. 138) se apoia na teoria psicanalítica para examinar a relação entre a "lógica do mercado" e a "lógica do desejo". A comentarista encontra entre as duas uma conexão da seguinte forma: por meio da idealização promovem-se identificações com a lógica mercantil, nas quais os sujeitos têm a alteridade esvaziada enquanto valor, afetando suas vinculações. Com isso, ocorreria forte diminuição do pensamento crítico, enquanto se elevaria o fascínio exercido pelo objeto de consumo, enredando o sujeito em um estado psíquico sem conflitos. Mas apenas na aparência, pois o que ocorreria de fato é a camuflagem do indelével sentimento de desamparo e impotência diante da realidade.

Acrescente-se a essas observações o fato de que na sociedade atual, conforme Matos (2009), ganha importância o que tem valor atribuído pelo Capital, o que parece conduzir à fragilização da fraternidade e encolher, por conseguinte, os espaços reservados à amizade. Ao perder o sentido da fraternidade e enaltecer o Capital como portador da verdade sobre o que tem ou não valor, nossa sociedade estaria limitada ao pragmatismo adaptativo ao status quo. Neste o que importa é consumir, crescer economicamente e progredir. Essa operação cultural exposta até aqui influencia ativamente a presença de determinadas formas de subjetivação em larga escala.

Para falar sobre tais modos de subjetivação, Severiano e Estramiana (2006) afirmam que as estratégias de sobrevivência estariam se dando, predominantemente, por soluções particularistas calcadas no bom desempenho em prejuízo das causas coletivas. Essas estratégias são os atributos da cultura contemporânea que enaltecem o indivíduo pelo culto da expansão da consciência, do crescimento pessoal e da saúde oferecidos por algumas propostas terapêuticas. Apelar-se-ia para uma vivência intensiva do instante ligada a um desapreço pelo passado e descuido com o futuro. Assistiríamos ainda à apologia do poder e da vontade individuais como fatores que determinam o destino de si, acarretando certo isolamento e diminuição dos interesses político-coletivos. Essa ilusão de onipotência e sua marca de personalismo seriam recorrentemente incentivadas pelas campanhas publicitárias. Em meio a tanto, os autores afirmam que ganha força o culto ao corpo e a escassez de uma reflexão crítica influenciada pelo recurso às imagens e pela expectativa de completude oferecida pelo objeto de consumo. Esses fatores submeteriam o desejo aos ditames do mercado.

Vale sublinhar que vários fenômenos aqui retratados podem ser encontrados em grande número, mas uma ressalva se mostra necessária, a saber: estes expressam o modo de subjetivação predominante ou hegemônico, que não se deve tomar como generalizado ou totalizante. A memória toma parte nesse contexto, sofrendo visível desgaste por um lado, enquanto, por outro, é objeto de busca e incremento em face da acirrada ameaça de desagregação por que passa.

Diante desse contexto, a seguir, é brevemente explorado o fenômeno das tecnologias digitais, o qual impele uma apreciação, pois certamente exerce influência sobre a maneira pela qual a memória é compreendida e vivenciada na atualidade. Nas últimas décadas, essas tecnologias vêm passando por franca ascensão, chegando mesmo a pertencer ao cotidiano de um sem número de sujeitos.

Observações Acerca da Tecnologia Digital

O fenômeno global da tecnologia digital avança tanto em termos de uso para as mais diversas funções, tarefas e procedimentos como em seu poder de alcance, uma vez que chega a muitos ambientes e atinge um número crescente de sujeitos.

Ao longo do século XX, sobretudo em suas últimas décadas e nesses primeiros anos do século presente, assiste-se à ascensão e ao avanço da tecnologia digital. Conforme Trevizan (2014), a ocorrência se mostra crescente nos mais diversificados campos, desde a vida profissional, passando pela educação, pelos encontros sociais e episódios de lazer, pelas brincadeiras das crianças, chegando até mesmo a questões tão íntimas como as vivências sexuais. Fato é que há mudanças em curso, como entende o mencionado comentarista. E essas mudanças não estão limitadas a um campo em específico. Nos mais variados aspectos da vida contemporânea, essa tecnologia se torna presente de forma cada vez mais insistente, podendo mesmo ser vista como um elemento regente do dia a dia e participante da intimidade. Como quer que seja, os vínculos entre os sujeitos, o modo como o mundo é visto e se lida com o conhecimento e a informação tem sofrido significativas alterações com a forte presença das novas ferramentas tecnológicas.

Na era da informatização, em que a tecnologia sempre em renovação se faz presente no cotidiano em inúmeras situações, Seligmann-Silva (2006) problematiza algo marcante na condição humana desde tempos remotos: a capacidade de construir memória. Depois do movimentado século XX, sob a égide de ideologias e interpretações universalistas em situação de quase desaparecimento, parece que cada vez mais se migra em direção aos apertados contornos do próprio corpo. O autor reconhece nesse movimento uma profunda crise que desgasta os fundamentos do conhecimento e se impõe como maior do que uma guinada restrita apenas ao plano linguístico.

Nas sociedades globalizadas, com o lugar cada vez mais proeminente que a tecnologia digital vem ocupando, ocorrem modificações e inovações sem parar e um ritmo frenético parece se impor a todos. Presencia-se, a título de exemplo, o uso do aparelho celular por incontável número de sujeitos, de maneira cada vez mais extensa e intensa. Extensa em termos de quantidade de tempo e intensa nos investimentos de energia que tal prática demanda. Com os olhos fixados e os dedos agitados, muitos sujeitos contemporâneos parecem se restringir cada vez mais à tela e passam a interagir menos com aqueles que se encontram geograficamente próximos, enquanto aumentam os contatos pelo aparelho. As informações não cessam, chegam aos milhares constante e incessantemente. Com efeito, passa-se de uma a outra tão rápida e irrefletidamente que se mostra pertinente indagar como são processados os fatos, de que maneira os sujeitos são atingidos por estes e que posicionamentos, afinal, são construídos.

Assmann (2011) constata que atualmente decorre um novo paradigma, em que conformações ancestrais pelas quais a memória funciona são trocadas por outras, com as tecnologias digitais ocasionando significativas alterações no que tange à configuração, à atividade e à compreensão da memória. A autora ilustra que mesmo nas mais longínquas caracterizações da memória já se lança mão de emblemas do registro a partir de recursos tecnológicos, desde as tábuas de cera e pergaminhos até a fotografia, o filme e o computador. Em seu texto, julga haver indicações na cultura de uma transição de época, pois aquela que pode ser reconhecida como a mais eminente insígnia da memória (a escrita) sofre desgastes diante do forte apelo visual da rede eletrônica. Perante a aglomeração de dados viabilizada pela tecnologia digital, os estudos sobre a memória se encontram diante da premissa da sobrescrita infindável e da presumível recomposição das recordações. Nesses termos, refere-se à mutação de paradigma pela qual a cultura passa por meio de dois casos: as tecnologias de armazenagem e a investigação da estrutura cerebral. Em ambas, a formulação de um repertório perdurável de conhecimento é preterida em função da lógica da sobrescrita ininterrupta.

Para Assmann (2011), a escrita digital se caracteriza como fluida, isto é, conveniente ao fluxo constante, dada sua condição imaterial. Em função dessa característica, ela permite que batam em retirada os distintivos elementares que tornaram a escrita uma considerável insígnia da memória. A autora chega até a afirmar que, na escrita digital, aptidões como armazenar (registrar) e apagar (deletar) estão tão aproximadas que o lapso entre elas pode estar restrito ao simples aperto de um botão. E acrescenta que se as imagens são elaboradas em séries e voltam-se ao esquecimento, a recordação não é alvo de estima. Na comunicação, como em muitas outras áreas, opta-se predominantemente pela mercantilização - uma política que parece não se ocupar da memória. E adverte que, se a informação é veiculada incessantemente, o recordar, que precisa de intervalos, torna-se inviável.

Para Serres (2013), vive-se uma época de mudanças de certo modo excepcionais, dada a originalidade de suas características quando comparada com outras épocas. Ao pensar sobre esse contexto, o autor coloca no centro da cena uma personagem a quem apelida Polegarzinha, que significa ao mesmo tempo a jovem que lida com um mundo hoje visivelmente diferente daquele ainda conhecido por seus antepassados (mesmo os mais recentes) e também a figura historicamente desvalorizada daqueles considerados socialmente subalternos e, portanto, julgados menos importantes (o cidadão anônimo, o camponês, o operário, o estudante, o eleitor, o passante, entre outros). Seu livro é permeado do início ao fim por uma contundente crítica ao mundo ocidental tal como fora construído ao longo dos séculos, da antiguidade à modernidade. Desde as formas orais de comunicação e estruturação social até a consolidação e expansão da escrita, o que se vê é, segundo Serres (2013), uma cultura que restou marcada por desigualdades, privilégios e injustiças, com hierarquias nas quais os detentores do poder decisório estavam atribuídos de conduzir, organizar e normatizar a vida em sociedade.

Polegarzinha dispõe de uma forma diferente de lidar com o saber e com o mundo por intermédio da internet, das redes sociais e de tantos outros dispositivos tecnológicos da era da informática. O autor chama a atenção para o fato de que Polegarzinha (muitos sujeitos do século XXI), não convive mais com animais, mora em um planeta bastante urbanizado e suas formas de relação são notavelmente diferentes daquelas até então conhecidas. No decorrer do século XX, houve exponencial aumento numérico de habitantes no planeta, levando-o a ultrapassar a marca de sete bilhões de seres humanos. Isso quer dizer que a Polegarzinha mora em um mundo superpopuloso. O comportamento e o corpo mudaram em relação aos bisavós e até mesmo em relação aos próprios pais da Polegarzinha. No turbilhão das mudanças em curso, nenhum adulto lhe inspirou princípios. Seu nascimento foi quase certamente programado, diferentemente de seus pais, ainda concebidos com o efeito surpresa.

Polegarzinha é formada pela mídia - geralmente planejada e conduzida por adultos -, que atinge e prejudica sua capacidade de atenção. Por essa mídia, morte é palavra amplamente exibida e reforçada por imagens em que cadáveres aparecem explicitamente. Serres (2013) calcula que por volta dos 12 anos Polegarzinha já foi levada a assistir algo em torno de 20 mil assassinatos. E sentencia que diante de um mundo velho, duro, injusto e em ruínas, não é dos gestores de tais estruturas sociais que virão as mudanças favoráveis à igualdade e à justiça. Ao contrário, as mudanças e o novo, na cultura do Ocidente, só poderão vir daquelas Polegarzinhas que conhecem, vivem e têm a oportunidade de erguer e consolidar um mundo diferente deste que há séculos é conhecido.

A sociedade que ao longo do tempo cresceu no Ocidente, observa Serres (2013), foi marcada por injustiças, brutalidades, guerras, sofrimentos e mortes. As instituições, ao mesmo tempo em que garantiam um perfil identitário aos sujeitos, impuseram-lhes a entrega da própria vida caso se fizesse necessário. Não faltaram dores e perdas irreparáveis. Uma sociedade, por assim dizer dura, que forjava seus membros no sofrimento e se organizava por instituições que exerciam poder sobre o modo de ser dos sujeitos, perpassando-os inexoravelmente. Esse mundo, para o teórico, está em vias de extinção. Ele não mais serve, não sobreviverá.

Sendo assim, está cedendo lugar a outro mundo, mais suave, arejado e leve, o mundo atual no qual vive Polegarzinha. Não mais o mundo oral, tampouco o mundo da escrita - embora esta continue tendo grande força -, pois, como nota: "Nem sempre percebemos, mas vivemos em coletividade, hoje em dia, como filhos do livro e netos da escrita" (Serres, 2013, p. 39). Apesar disso, hoje se vive em um mundo virtual, da tecnologia digital, da internet com suas redes sociais, páginas, blogs e um mar de informações.

Polegarzinha é reconhecida como a garota conectada à internet, falante, agitada, que lida de modo diferente com o mundo, com um corpo que habita outro espaço nessa cultura que passa por alterações na língua e no trabalho. Frequentemente incompreendida, é acusada de individualismo e egoísmo pelos mais velhos. Ela é um novo sujeito para quem as velhas instituições (família, escola, universidade, religiões, exército, Estado, nação) não mais respondem à altura, embora ainda se façam presentes e atuantes. Todas se forjaram quando a cultura ainda se movia pela oralidade ou pela escrita. Entre as instituições enumeradas pelo teórico, a maior em estrutura e força é o Estado. E a escola é a que recebe Polegarzinha com a missão de ensiná-la e "adaptá-la" à vida social, mas que vem demonstrando sucessivos fracassos, uma vez que sua estrutura e funcionalidade não respondem aos anseios da jovem personagem. Na atualidade, Polegarzinha dispõe de diversos meios de acesso ao saber, ou seja, o professor vem perdendo o lugar privilegiado de único detentor do conhecimento e, portanto, aquele status do mestre que seria o único capaz de transmiti-lo. Essa ordem, para Serres (2013), é sacudida pelas possibilidades dadas pelas novas tecnologias, às quais Polegarzinha recorre e pelas quais transita com notável habilidade. A era digital - que apenas começa -, pelo olhar entusiasta de Serres (2013), traria novas e potentes possibilidades para que outros modos de saber e de subjetivação, bem como inéditas formas de organização social, possam ser construídas e consolidadas.

Sendo assim, para o teórico, um mundo diferente está em franca ascensão, o mundo habitado por Polegarzinha, que experimenta uma passagem de época com a eclosão da tecnologia digital e seu potencial para novas formas de relação, inserção social e o incremento da participação de todos. Um mundo inclusivo e potencialmente mais democrático, onde aqueles até então desprezados podem ter voz e fazer valer sua vez. Em Serres (2013), Polegarzinha é o símbolo do sujeito filho dessa era de mudanças, na qual se poderá realizar algo efetivamente novo.

Como aponta o autor, a geração atual não surge do nada, mas é, de certo modo, e até certo ponto, fruto e consequência das gerações que lhe antecedem. Aquelas que não poucas vezes, equivocadamente, direcionam o dedo para a atual com acusações e comparações tendenciosas. Mas os acusadores não reconhecem que foram incapazes de lhe inspirar confiança e transmitir valores sólidos que refletissem um mundo de fato justo e coerente, uma vez que cada um de nós só consegue dar o que tem. O escritor coloca como protagonista uma personagem que aglutina em si todos aqueles que sempre foram tratados com desconfiança e submetidos aos esquemas forjados nas mais diversas instituições, vindo a ocupar sempre um lugar menor, aquela posição de quem deve apenas ouvir, obedecer, enquadrar-se e executar as ordens. Serres (2013) entende que a cultura ocidental se forjou com base em injustiça, desigualdade e imposição de um modo de ser e existir à grande maioria, que é excluída do papel de protagonista da sociedade, chegando até mesmo a ser privada da tomada de decisões em relação à própria vida.

O que será do mundo atual e futuro, quais possibilidades e rumos as novas tecnologias estão imprimindo e contribuirão para se concretizar, bem como o papel e importância que terá a Polegarzinha de Serres (2013) não se sabe. É inviável prever se fará valer um suposto potencial de gestar o novo, superando o individualismo e unindo-se a outros ou uma hipotética inclinação ao isolamento e à comunicação superficial interessada apenas na autoexibição. Parece difícil que apenas uma dessas formas permaneça atuante em detrimento da outra, tendo em vista que ambas se exibem com força e compartilham espaços nessa trama. É presumível ora uma tendência maior a uma forma, ora à outra. No que tange a essa questão, o mais compatível seja, quiçá, pensar que um mesmo sujeito pode concentrar em si ambas as formas de agir, concomitantemente, expressando-as até em um mesmo gesto.

Trata-se, portanto, de uma questão marcada pelo múltiplo. Como indica Canavêz (2012), esse múltiplo pode ser compreendido como aquele condão que potencializa o sujeito em lugar de detê-lo resignado ao Um, isto é, ao padrão sugerido ou talvez até impelido socialmente, ainda que esse padrão suceda de maneira dissimulada. A memória, nesse sentido, também está marcada pela multiplicidade, uma vez que sua expressão não remete tão somente ao passado, como é tão comum pensar. A memória também se relaciona com o presente e o futuro, pois trafega por esses distintos tempos como uma construção presente sobre o passado e uma propriedade que contém eminente potencial de exercer influência sobre o futuro.

Sendo assim, o múltiplo mobiliza o sujeito em direção destoante daquela confinada à estreiteza ou uniformidade em modos de subjetivação copiosamente ofertados pela tendência predominante na cultura. Essa rota antagônica é a da sua disposição singular, pela qual se constitui simultaneamente próximo e diferente dos que lhe são contemporâneos e até de si mesmo, uma vez que se forja suscetível a mutações e a diversificados estilos de expressão. Por essa razão, qualquer previsão relativa à prevalência de uma tendência ou outra parece um tanto quanto insuficiente de fundamentos. Assim, torna-se necessário reconhecer a ambiguidade tanto da tecnologia digital como da própria geração atual. Ambas podem contribuir com a perpetuação de injustiças, desigualdades e brutalidades, talvez até com novas roupagens, ou podem somar em favor de mudanças, contribuindo na consolidação de um mundo pretensamente melhor do que este que chegou até aqui.

Nesse sentido, Sibilia (2016) percebe nas manifestações proporcionadas pelas mídias sociais tanto a possibilidade de favorecer o mundo em direção a mudanças significativas para melhor quanto a possível propensão para usos de conteúdos danosos em incontável número, que não disponha de nada além do que possa ser reconhecido como supérfluo, inconsistente e oco. Por certo, o acesso à mídia em proporções como as que se tem hoje é uma alternativa para o avanço de uma democracia de cunho participativo. Se tais formas de mídia podem ser descritas, por um lado, como ferramentas potentes de articulação e mobilização para os mais diversos meios e grupos que desejam a efervescência do novo tomando conta do tecido social, por outro, não deixam de ser um palco para exibições vãs e grotescas de todo gênero.

Ao reconhecer possibilidades, como um vislumbre, a pesquisadora não deixa de expor alternativas e propostas. Ela defende o valor da opção por um modo de viver discreto e silencioso, em franco descompasso com a era atual, que nos convoca à frequente exposição repleta de imagens e barulhos. Para Sibilia (2016), essa atitude na contramão seria uma forma discreta de resistir à vida convertida em espetáculo. Sendo assim, a projeção, comunicação e disposição de si em termos imagéticos, e em alguns casos talvez até mesmo mercadológicos, pudessem encontrar uma barreira que venha a interferir nas redes sedutoramente oferecidas. A resistência que a autora concebe em relação ao convite por se fazer visível talvez eleve a potência para gestar novos jeitos de ser e se situar no mundo.

 

Considerações Finais

O entendimento sobre o lembrar e o esquecer, bem como o reconhecimento do que significa sermos únicos vinculam-se às recordações sui generis, ao mesmo tempo em que dependem dos contextos culturais. Nessa direção, os amálgamas da história recente talvez tenham levado a formações impensáveis que estão mexendo com o entendimento acerca de quem somos. Questão essa decisivamente ligada ao modo como se produzem lembranças e esquecimentos.

Em meio ao cotidiano da aceleração do tempo realizada globalmente, acha-se, segundo Sibilia (2016), certa vulnerabilidade da memória encontrada nos procedimentos para rememoração do que se viveu, bem como nos mecanismos pelos quais se constroem narrativas do eu. Ao mesmo tempo, porém, ocorre uma busca obsessiva por memórias, arquivos, registros e museus. Fenômeno esse talvez ligado a um temor do esquecimento, em que haveria tensão diante das falhas passíveis à memória e insegurança relativas à possibilidade de se verem apagadas as lembranças, com a consequente eliminação do passado. Essas preocupações com o passado se dão, conforme Sibilia (2016), quando se observa tanto a busca pelo emprego de técnicas que prometem o bloqueio das lembranças incômodas quanto pela insegurança mediante a ameaça do esquecimento.

Para Assmann (2011), nas sociedades ocidentais, a memória se encontra num momento ímpar, no qual as novas formas de mídia avançam de forma exponencial sua presença e importância na dinâmica social. Além disso, nunca está descartado o risco de insurgirem regimes tirânicos de governo. Sob tais condições, o que se dará com a memória se torna enigmático e inseguro pela atuação desses dois sistemas prenunciadores de incertezas e perigos: a cultura das mídias de massa e o estado totalitário. Para a autora, ambos representam ameaças à memória porque operam por meio de extremos. Enquanto a primeira oferece informações em excesso, o segundo impõe rígida limitação às informações.

Com efeito, segundo esse modo de ver, sob qualquer desses extremos a memória talvez se encontre em uma situação delicada. Pelo excesso de informação, parece que tende a se tornar sem grande valor, vindo a ocupar um lugar periférico, ao passo que por seu controle totalitário parece ser objeto estratégico nas artimanhas que visam estabelecer certas formas de compreensão do passado, condução do presente e construção do futuro. Isso talvez signifique que somente livre dessas malhas a memória seria um elemento potente na constituição de sujeitos inquietos capazes de questionar a si mesmos e a cultura na qual vivem.

As excitações que provêm da cultura, como vimos, há décadas e especialmente no presente, chegam ininterruptamente. Influenciariam, assim, os conteúdos psíquicos em cada sujeito. Faz-se pertinente, desse modo, reconhecer a relevância da investigação sobre a constituição e funcionamento da memória no sujeito, pois esta, como diz Assmann (2011), é tanto um fenômeno interno ligado ao funcionamento psíquico quanto cultural, que se vale de mecanismos ou meios produzidos na cultura, ambos sempre articulados, entrelaçando-se mutuamente. Segundo a pesquisadora, o ato de recordar, mesmo que seja negligenciado individual ou coletivamente - como ela entende ser o caso na atualidade -, não parece sucumbir, exibindo então uma presença assídua e persistente.

As apreciações desenvolvidas por Matos (2009), Severiano (2010), Severiano e Estramiana (2006) e Sibilia (2016), embora tenham especificidades, podem ser tomadas como convergentes e mesmo similares em diversos pontos. As autoras apresentam observações ásperas e incisivas lançadas em direção a diversos aspectos da atualidade. Serres (2013), diferentemente, exibe uma interpretação entusiasta da cultura vigente, saudando-a confiante. O autor constata nela motivos suficientes para cultivar perspectivas de melhores condições do que aquelas experimentadas outrora, tanto na antiguidade quanto na modernidade.

Tanto as avaliações mais pungentes e adversas quanto aquela mais confiante e empolgada que foram apresentadas são sugestivas, embora se inclinem notoriamente para apenas um dos lados; seja este afirmativo, seja fatídico, atendo-se precisamente aí. Contudo, é factível promover uma apreensão sobre o contemporâneo efetivamente peculiar, que leva em consideração tanto os aspectos nocivos quanto os promissores de nosso tempo e, mais além, que instiga a reflexão sobre os modos de subjetivação. Essa apreensão pode ser sondada na teorização sobre o que é o contemporâneo, enunciada por Agamben (2014).

Agamben (2014) declara que as luzes do tempo atual podem turvar os olhares sobre a época. Se assim for, desponta a incapacidade de enxergar a escuridão também presente, na medida em que as luzes e sombras da atualidade são inseparáveis. Para dar conta de ver a escuridão, é preciso proteger-se das luzes que ofuscam a visão. Ser contemporâneo exige coragem, pois a escuridão própria da época requer a observação atenta, fixa; sem, contudo, deixar de ver a luz que vem com essa mesma escuridão. Para o contemporâneo, o tempo de agora contém em si um presente, uma atualidade, mas não só, pois nele também mora o que passou e o devir. Portanto, o que já se foi e o que ainda virá coincidem em sua participação no agora, ambos são constitutivos do atual. O não vivido do presente, o que contém em si algo que não se consegue nomear, porque talvez ainda não esteja entendido, é o que chama a atenção ao contemporâneo. Ser contemporâneo significa também presentificar-se, voltar-se ao hoje em que jamais se esteve. O contemporâneo busca compreender o agora do seu tempo não apenas fixando seu olhar no atual que contém luzes e trevas, mas direcionando sua visão ao passado, que o auxilia a encontrar as respostas que busca. Ser contemporâneo significa, nesse sentido, transcender o olhar circunscrito tão somente ao atual, buscando situar-se como contemporâneo também do que é antecedente, ou seja, daquilo que provém do passado.

Por tal leitura, um contemporâneo é alguém do seu tempo, mas não preso a ele, pois se mostra também fora, uma vez que percebe nesse tempo o que foi em outro e o que poderá vir a ser em um tempo ainda não chegado. O contemporâneo, portanto, não se limita à cronologia do tempo, pois o transcende e revoluciona. Trata-se de um modo de ser no tempo que se faz in-tempestivo e ana-crônico no encontro entre o que foi, o que está e o que será.

Ao se considerar essa linha de raciocínio, especialmente no que toca no mote da memória, pode-se supor que os mecanismos em voga no presente em vista da sua subsistência se constituem como tentativas para suprir um vazio, chamando a atenção para a memória. Segundo Gagnebin (2009), tais mecanismos são criados e operacionalizados no contexto cultural, que parece, em maior medida, importar-se intensamente com o presente, havendo então uma tendência, à primeira vista, aparentemente predominante nesse tempo, na qual se propõe (ou seria melhor dizer impõe?) o olhar voltado ao agora, nele concentrando o agir. Por tal tendência, o futuro se mostra entendido tão somente como algo próximo, não guardando longa distância de tempo, como apontam diversos estudiosos da cultura contemporânea (Assmann, 2011; Bicca, 1999; Matos, 2009; Severiano & Estramiana, 2006; Sibilia, 2016).

Trevizan (2014), por sua vez, concebe a memória como conceito indispensável para qualquer noção singular e social, pois é por ela que são possíveis as histórias de vida de sujeitos e sociedades. A concepção de memória circunscrita ao passado, em uma espécie de noção de tempo tradicional, é por ele questionada. Por isso, argumenta que se faz premente subverter tal entendimento, retirando o posto do passado como o único a fornecer orientações para as narrativas da atualidade.

Se o presente e o futuro são essenciais à memória humana, como afirma Trevizan (2014), também é possível falar da importância das mais diversas questões para o estudo do tema, desde trivialidades do cotidiano até eventos de proporções maiores que alcançam estatura política e histórica, como afirma Seligmann-Silva (2006). Esse pesquisador considera que tanto em outros tempos como na atualidade "[...] a questão da memória é incontornável" (Seligmann-Silva, 2006, p. 31). Diante dessa indicação, não obstante as condições, bem como os modos de subjetivação até aqui enfatizados na cultura contemporânea, parece que de alguma forma a memória persiste em desassossegar e inquietar os sujeitos contemporâneos.

Diante desse contexto, em consonância com o pensamento de Agamben (2014), mostra-se relevante fazer valer algo que Bicca (1999) chama reinvenção de si, que significa o processo pelo qual cada sujeito valoriza a autenticidade e se compõe como singular. A singularidade é uma possibilidade, uma forma de se situar no mundo não antecipada ou dada de antemão. É algo que coloca em cena a potência e criatividade do sujeito, impulsionando-o em um permanente movimento de construção de si. No fluxo do vir a ser, a singularidade ganha destaque e suas expressões são dignas de apreço. Atitude essa antagônica à presumida normalidade e incompatível com as prescrições de adequação às impertinências correntes na contemporaneidade, como sugere Canavêz (2011).

E nessa mobilização contra a corrente prevalecente nos modos de subjetivação contemporâneos, a questão da memória se mostra como elemento considerável. Isso porque toma parte como fator imprescindível na busca pela reinvenção de si. Memória aqui entendida em sua dimensão criativa como processo que se dá em direção oposta àquela das recordações, crenças, autoimagem e ações com que os sujeitos se acostumam ao longo das suas trajetórias e que, manifestamente, sedimentam-se no cotidiano.

A memória, portanto, não é um elemento impassível, nem tampouco homogêneo. Ao contrário, tem a marca da multiplicidade. Seu caráter multiforme aponta tanto para a condição de fragilidade e precariedade própria do sujeito quanto para seu potencial criativo. Nesse sentido, a memória pode ser fator de inspiração para atitudes inventivas em campos distintos, desde o psíquico e o ético até o político. A pluralidade de aspectos que lhe é intrínseca a desvela como algo que extrapola o nível do sujeito em si e assinala sua feição política e histórica. A multiplicidade da memória favorece que o passado seja encarado como motivo de atuação no presente e o futuro assimilado como oportunidade para o novo. Assim, a memória se mostra, num só tempo, como conteúdo decisivo para a elaboração do passado, bem como para o posicionamento que hoje se assume ante a própria história, enquanto sujeito singular, intrincada na macro-história. Além disso, precede deveras o futuro enquanto tempo acessível a mudanças. Pelos fluxos da memória, o sujeito não apenas foi e é, ele pode vir a ser.

 

Referências

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Recebido em: 17/3/2018
Aprovado em: 27/5/2019

 

 

1 Trata-se de artigo decorrente da pesquisa teórico-conceitual desenvolvida no âmbito do mestrado em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
2 Neste texto, aparecem os termos subjetividade, sujeito e modos de subjetivação, que, embora muito próximos, apresentam variações conceituais. Na Psicanálise, por exemplo, sujeito e subjetividade adquirem uma conceituação peculiar, pois ambos assinalam não uma unidade indivisa, mas clivada, uma vez que apontam para uma divisão subjetiva (psíquica) em dois grandes sistemas (Inconsciente e Pré-consciente/Consciente). Nesse caso, o sentido é direcionado fundamentalmente ao Inconsciente. Em outro exemplo, nas perspectivas aproximadas de autores como Foucault, Deleuze e Guattari, a subjetividade é especificada como algo que experimenta uma contínua formação dada a partir das relações em fluxo no campo social. O que esses três autores denominam modos de subjetivação se refere às possíveis variações e distintas composições nas formas de viver e se organizar como sociedade, que são mutáveis. Nessa perspectiva, o sujeito se forja por meio dos modos de subjetivação que têm caráter histórico e processual.
3 Trabalhos produzidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
4 Ao consultar o Portal de periódicos Capes/MEC, em novembro de 2016, constatou-se o registro de 1.075 artigos científicos, nos idiomas português, espanhol, francês e inglês, de diversas áreas do saber, cujo tema biografia figurava no título ou subtítulo das publicações (confira em http://www.periodicos.capes.gov.br). No mesmo período, ao consultar o Google Acadêmico, verificou-se que os registros disponíveis que contêm a palavra biografia no título, subtítulo ou no corpo do texto sinalizaram 4.190 trabalhos publicados. Para mais detalhes, veja o site https://scholar.google.com.br.
5 Para uma exploração desses exemplares, acesse os seguintes endereços eletrônicos: https://jornalistaslivres.org/; http://midianinja.tumblr.com/; e http://resistirepreciso.org.br.

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