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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.15 no.1 Belo Horizonte Jan./June 2022

http://dx.doi.org/10.36298/gerais202215e17559 

ARTIGOS

 

Poéticas grupais em psicologia: relatos de experiências

 

Group poetics in psychology: reports of practices

 

 

Dolores Cristina Gomes GalindoI; Ricardo Pimentel MélloII; Morgana MouraIII; Danielle MilioliIV; Thaísa SoaresV

IUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil. E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com. (orcid.org/0000-0003-2071-3967)
IIUniversidade Federal do Ceará, Fortaleza Brasil. E-mail: ricardopmello@gmail.com. (orcid.org/0000-0002-9990-3837)
IIIUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,. E-mail: morganammoura@gmail.com. (orcid.org/0000-0001-9891-1301)
IVUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil. E-mail: daniellemilioli@gmail.com. (orcid.org/0000-0002-2598-1568)
VUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil. E-mail: taisasoares@gmail.com. (orcid.org/0000-0002-0843-1652)

 

 


RESUMO

Este artigo consiste num relato de experiências grupais efetuadas na articulação entre Psicologia e Arte, mais especificamente Artes Visuais, que vínhamos desenvolvendo ao longo dos últimos dez anos, no contexto formativo em Psicologia de uma disciplina de Teorias e Técnicas Grupais. Argumentamos que poéticas grupais podem atuar como estratégias de visibilidade daquilo que pulsa em linhas de força, rompendo com especialismos, teoricismos e profissionalismos instituídos. Para tal, tecemos considerações sobre os imperativos instrumentalistas nos trabalhos com grupos, em seguida, o que entendemos por poéticas grupais, passando dos conceitos ao relato de uma das experiências grupais que ocorrem na interface entre Psicologia e Arte.

Palavras-chave: grupos; Psicologia; Arte.


ABSTRACT

This article is an account of group experiences carried out in the articulation between Psychology and Art, more specifically Visual Arts, which we have developed over the last ten years, in the formative context in Psychology of a Group Theories and Techniques course. We argue that group poetics can act as strategies of visibility of what pulsates in lines of force, breaking with instituted specialisms, theories, and professionalism. For this, we make considerations about the instrumentalist imperatives in the works with groups, then what we mean by group poetics, going from the concepts to the report of one of the group experiences in the interface between Psychology and Art.

Keywords: Groups. Psychology. Art.


 

 

POÉTICAS GRUPAIS EM PSICOLOGIA: RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

Congele o tempo preu ficar devagarinho
Com as coisas que [...] eu sei que são efêmeras.
E que passam perecíveis, que acabam, se despedem. (Ruiz, 2010)

No trabalho autofotográfico da artista visual brasileira Brígida Baltar, cuja imagem abre este artigo (Figura 1), ela realiza uma coleta matutina de orvalho, que possibilita, ao armazenar o orvalho em frascos, a visualização do efêmero, do delicado e do silencioso, que se constituem em matérias líquidas. Um trabalho que muito se aproxima do que realizamos neste manuscrito, o qual, ao modo de uma coleta, diante da efemeridade das experiências, focalizada no trecho da música de Tulipa Ruiz, retém aquilo que, de um percurso formativo numa disciplina de Teorias e Técnicas Grupais, pode ser transformado em palavras que se fazem em memórias.

Ao longo deste artigo, relatamos a experiência de composição de poéticas grupais na articulação entre Psicologia e Arte, mais especificamente Artes Visuais, que vínhamos desenvolvendo ao longo dos últimos dez anos, no contexto formativo de uma disciplina de Teorias e Técnicas Grupais alocada na grade curricular de uma universidade pública. Poéticas grupais buscam mostrar o invisível, contar o indizível, fazem pulsar linhas de força. Como registrar acontecimentos e afetos que parecem escapar à tinta, no papel, que desaparecem frente à lente fotográfica? O que se fixa são, assim, memórias de criação, as quais assim se fazem pelas suas intensidades. Escrevemos o relato desde o caminhar da docência, ou seja, do lugar de quem acompanha processos grupais compostos em aliança com estudantes.

Compreendemos o trabalho com grupos, ao modo das poéticas, como dispositivo que dispara linhas de enunciação e visibilidade, as quais se cruzam e tecem diferenças, um território para a produção de modos de subjetivação, aqui, entendidos como certas condições de existência ou modos de viver. A relação com a Arte viabiliza formas de expressão que escapam à lógica representacional, abrindo fluxos de passagem pelas vias intensivas, ampliando a relação inventiva com o mundo e a criação de modos de viver, na partilha de experiências estéticas singulares. Para pensar grupos, em ressonância com o trabalho de Regina Barros (2007) sobre o tema, utilizamos o conceito foucaultiano de dispositivo como um conjunto heterogêneo multilinear que trama elementos de distintas ordens (que vão das práticas discursivas aos arranjos arquitetônicos), na dimensão do dizível e indizível, cujas finalidades estratégicas se modificam nos tensionamentos das relações de saber-poder (Foucault, 1985).

Nós nos fazemos como seres viventes em "inúmeros dispositivos" (Méllo, 2018, p. 69), podendo a grupalização ser considerada como um deles. O termo grupo deve ser remetido à ação de constituir redes diversas, cuja consequência é a composição de um dispositivo. O dispositivo grupo que constituímos nas poéticas artísticas em grupos, unido à arte, abre-se ao inusitado, portanto, afasta-se do uso comum de grupo que o caracteriza como identitariamente constituído por pessoas.

A apropriação massiva da arte como ferramenta das práticas psi fez um movimento de domesticação de poéticas que passavam a ter objetivos e metas traçadas nas propostas de produção de saúde, mesmo quando hipoteticamente se propunham ações tidas como livres, mas acorrentadas por uma ou outra abordagem teórica. A exemplo, as sessões de terapia com desenhos em temática livre, em espaços manicomiais, todavia, lidos posteriormente à luz de um questionamento: O que você quis dizer com essa pintura?

No Brasil, a Psicologia está vinculada a modelos de formação acadêmica transcendentais ou representativos, os quais ensejaram que o grupalismo fosse instituído como especialidade teórico-técnico-profissional, solidificando a binarização: domínio teórico versus domínio técnico. Com isso, delimitaram-se territórios de saberes e um monopólio de práticas (Rodrigues, 1998, 2004). Ao revisitar a história das práticas grupais, Rodrigues (1998) adverte-nos para aquilo que ela descreve como o "ensino em migalhas" de práticas grupais: disciplinas de grupalismo moldadas por meio de integrações históricas lineares (sem contextualização no que diz respeito às condições de possibilidade para emergência de determinada técnica ou teoria), ensino de técnicas sem densidade epistemológica, além de noção utilitarista atrelada ao trabalho em grupo, para "reunir pares" ou "baratear custos".

Traçando um híbrido de arte/clínica no trabalho de Lygia Clark, Rolnik (2015) descreve que, tanto na prática psi quanto na artística, também há a presença de uma dimensão ética, uma recusa das lógicas estruturantes predominantes orientadas por bússolas morais (Rolnik, 2018), e de uma dimensão política, na qual as práticas se apresentam como forças de resistência aos modos esterilizantes de poder. Na dimensão da micropolítica das poéticas grupais, aliados e aliadas se lançam em experimentações imprevisíveis e singulares quando comparadas às proposições que as mobilizaram, pois o que está em cena é uma bússola ética (Rolnik, 2018) de afirmação da vida. Referimos a poéticas como experimentações cujas formas são efêmeras e contemporâneas aos acontecimentos que as fazem emergir nas afetações e ressonâncias de cada prática grupal. Trata-se de "não ceder à vontade de conservação das formas de vida e à pressão que se exerce contra a vontade de potência da vida em seu impulso de produção da diferença" (Rolnik, 2018, p. 196), o que nos leva a não buscar a fixação das formas e a cultivar uma ética fecunda de mundos por vir.

Interessa-se por operar o híbrido arte-clínica em um fluxo inventivo, do qual extraímos forças para romper com os binarismos e maniqueísmos classificatórios de que nos apropriamos sem crítica alguma. Rolnik (2015) alerta-nos que a separação entre Psicologia e Arte diminui "as chances de constituirmos territórios que sejam a expressão de diferenças engendradas e nosso corpo-bicho, chances de investirmos a dimensão experimental da vida, a construção da vida como obra de arte" (Rolnik, 2015, p. 7).

Psicologia e Arte avizinham-se numa relação que se dá em dupla via: por um lado, a Psicologia, construindo estratégias inventivas de comunicação com espaços de exclusão e, por outro lado, artistas mobilizando a Psicologia em seus processos de criação, como possibilidade de ampliar limites de linguagem estética (Lima & Pelbart, 2007). A apropriação da Arte como ferramenta das práticas psi, que enclausura a arte e a trata como instrumental representativa ortopédica, constitui uma articulação fraca entre Arte e Psicologia, na qual a primeira está a serviço da segunda: para corrigir ou evitar anormalidades, deformidades, ou seja, usa-se a arte para normalizar.

Nas conexões com a Psicologia, a Arte escapa ao disciplinamento na relação com os corpos que não se deixam domesticar, favorecendo conexões relacionais que apontam linhas de fuga. Uma das potências da relação Arte-Psicologia está, justamente, no atuar COM a Psicologia e não PARA a Psicologia. Propõe-se uma modificação do lugar comum ocupado pela Arte nas práticas grupais, por meio de um trabalho que coloca arte e ciência num mesmo patamar de legitimidade sem que a primeira esteja submetida à segunda, ambas orientadas em direção a processos de subjetivação menos estratificados e a novas tramas do social; orientadas ao exercício de "reapropriar-se da força vital em sua potência criadora" (Rolnik, 2018, p.132). Por meio das múltiplas ressonâncias entre Arte e Psicologia buscam-se "metamorfoses das políticas de subjetivação e dos modos de existência que com elas se criaram" (Rolnik, 2018, p. 143) nos terrenos de composição que vão se desenhando a cada prática grupal.

O processo de imersão na Arte pelo qual enveredamos, na composição de poéticas grupais, diferencia-se do reconhecimento e aproxima-se da experimentação, possibilitando criar modos de subjetivação e composições grupais inventivos. Subjetivação é um conceito que extrapola binarismos, tais como: subjetividade versus objetividade; sujeito versus sociedade. É um conceito que não subestima essa força cultural que nos torna seres humanos, em uma trama de procedimentos singulares de identificação, cujo efeito é vivermos a nós mesmos como únicos. Acompanhando a linha traçada por Guattari e Rolnik (1996), entendemos os processos de subjetivação como advindos de múltiplos agenciamentos que fabricam uma certa relação consigo e com o mundo, em que a subjetivação é a própria ação de subjetivar-se. Subjetivar-se não se resume a políticas de identidade, ao contrário, insurge-se contra elas em experimentos de afirmação da vida e da imaginação criadora numa trama que faz germinar mundos atuais e mundos por vir (Rolnik, 2018).

 

Atravessar imperativos instrumentalistas na sala de aula

Os estudos sobre grupo firmaram-se como um subcampo da Psicologia com um viés tecnicista, salvaguardadas as experiências disruptivas que, entretanto, permanecem minoritárias na formação; as experiências artísticas, em conexão com a Psicologia, mantêm-se por meio de iniciativas laboratoriais de docentes, sem a sua integralização ao núcleo comum do currículo de Psicologia, no Brasil. Nas práticas docentes hegemônicas, os imperativos de normas pedagógicas, por vezes, interpõem-se ao fazer criativo, o que nos faz questionar: como reinventar uma disciplina estruturada para ensinar teorias e técnicas grupais, a partir de currículos diretivos, que visam conduzir o trabalho de professores? Como podemos ladrilhar nossas práticas como práticas de inventividades? Essas perguntas ecoam, quando nós nos abrimos ao trabalho de compor uma disciplina orientada à criação, com conteúdos artísticos que não constam no currículo de Psicologia.

As disciplinas de "Dinâmica de Grupo e Relações Humanas" ou "Teorias e Técnicas Grupais" surgiram como possibilidade de ensino-aprendizagem de um objeto dado como pronto, acabado: O GRUPO. Rodrigues (1998, 2004) apresenta-nos dois perigos presentes na formação em Psicologia. O primeiro diz respeito ao "especialismo acrítico", no qual as práticas grupais excluem saberes não especificistas, ou seja, aqueles que não foram psicossociologicamente instituídos, rejeitando produções que emergem no seio de movimentos contestatários, nas Artes e em outros territórios de invenção da vida. O segundo problema é denominado pela pesquisadora como "teoricismo hipertrofiado", isto é, uma exacerbação epistemológica, sem considerar os conhecimentos e práticas sociais.

Para escapar à rigidez pedagógica de uma ementa e planejamento de curso, os quais objetivam instrumentalizar alunas e alunos, com técnicas para condução de grupos, com métodos e receituários de controle e cura, nós nos aliamos à didática da invenção afetiva, não como uma escolha, contudo, como necessidade de desaprender oito horas por dia, desinventar objetos, criar modos relacionais e não hierárquicos de habitar à docência.

Pelbart (2008), em sua leitura deleuziana, ajuda a pensar a grupalidade a partir dos afetos éticos, ou seja, a partir do como trazer um outro para o nosso mundo e retirá-lo do dele, respeitando, porém, as relações e o mundo próprios. Para o autor, a ética deleuziana seria um estudo das composições (composições entre relações, entre poderes), e a questão é saber se as relações grupais podem compor-se para formar bons encontros e, assim, relações mais estendidas, "ou se os poderes podem se compor de sorte a constituir um poder mais intenso, uma potência mais 'intensa'" (Pelbart, 2008, p. 2).

Encontros bons ou ruins são inevitáveis: o que seria evitável é o padecimento dos encontros produzidos pela diminuição da capacidade de afetar e ser afetado, quer dizer, pela diminuição da capacidade de existir. Não é possível determinar, antes dos encontros, de que afetos somos capazes. É uma questão de experimentação, mas também de prudência, saber se as relações irão ou não se sustentar entre os aumentos e as diminuições de intensidades. É preciso pensar os planos de composição. Pelbart (2008) destaca que "num plano de composição, trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afectos" (p.2). Um plano que opera por proliferação, contágio, reunindo elementos heterogêneos. Entra em cena uma ética da atenção e do cuidado, nas composições grupais que realizamos, ética que busca a intensificação da potência da vida. Relações grupais afetivas possibilitam a visualização de territórios existenciais alegres e não patologizantes. O que está em pauta é produzir uma vida para as diferenças, a qual não produz oposições que as enquadrariam como boas ou más, mas as definiriam como variáveis e intempestivas; como possibilidades de mudança.

A organização do dispositivo curricular pode prescindir de um enquadre que persiga uma pretensa estabilidade, na condução das disciplinas, com objetivos e resultados bastante claros, metodologias que ofereçam a segurança de que as informações serão transmitidas e avaliações que traduzam que as mesmas foram capturadas sem deturpações. Dar corpo e atentar às vias de escape de afetos, acompanhando, com cuidado, percursos em processos grupais que se compõem no encontro, é romper com os especialismos, teoricismos e profissionalismos instituídos como verdades universais. As relações inesperadas no processo de ensino-aprendizagem de práticas grupais criam campos de acontecimentos que forçam a construção de novas práticas docentes. Assim como nos adverte Rodrigues (1998, 2004), faz-se necessária a vinculação a possibilidades epistemológicas e ontológicas que norteiem o trabalho, sem amarras situadas em escolas de estilos. Teorização que efetiva o caráter ético-político da proposição grupal. Nenhuma poética se dá em insights espontâneos desvinculados de um trabalho de estudo e pesquisa, na justa medida em que os conceitos teóricos não são fundantes de um dispositivo grupal. Saindo do teoricismo hipertrofiado (Rodrigues, 2004), experimentamos os conceitos teóricos como possibilidade atuando em parceria com a Arte.

Nas poéticas grupais, a experimentação procura mobilizar a apreensão vibrátil do mundo, resistindo, assim, à tendência à institucionalização da grupalidade em modelos preexistentes. As memórias que se criam, nas poéticas grupais, são, portanto, memórias de temporalidades constantemente atualizadas no ato de registrar, já que dizem de processos de cocriação, e não apenas de participação expectadora numa grupalidade anteriormente constituída (Rolnik, 2008). Memória que, não sendo um processo de mero reconhecimento, recognição, traz perplexidade, revela-se outra. Kastrup (1999), apresentando a memória como perplexidade, toma como exemplo a experiência de alguém que retorna à casa onde morou, em sua infância, e se depara com o estranhamento do lugar, com o imenso quintal que agora lhe parece um pequeno pátio.

Para a autora, a perplexidade experimentada irrompe na invenção de uma outra cognição da casa, trata-se de uma experiência em que a cognição atua como problematização dos modelos de recognição, revelando uma cognição instável, na qual o "que a distingue é o fato de referir-se a algo que tem o paradoxal estatuto de familiar e, ao mesmo, tempo, estranho. Por isso, é um tipo de experiência de problematização: intriga, faz pensar, força a invenção" (Kastrup, 1999, p.59).

Memórias que, revisitadas, tornam-se outras e que não transportam, portanto, um tempo anterior, passado, mas o vir a ser, o movimento, a transformação. Memórias que criam relações entre elementos heterogêneos e se efetuam nas imprevisibilidades, que abrem o corpo para o inantecipável, ou melhor, que mobilizam os corpos em sua potência criadora.

 

Estéticas da Arte Contemporânea e composição de poéticas grupais

Nos estudos sobre Arte, as noções de estética e poética podem até ser habituais, em sua multiplicidade conceitual, entretanto, em Psicologia, tais expressões provocam estranhezas. Pareyson (2001) apresenta-nos uma distinção entre ambas, apontando que, enquanto a estética tem um caráter especulativo e filosófico, a poética tem uma característica mais operativa, programática. O caráter filosófico da estética não está dissociado da experiência da arte, quer pela relação direta com esta, quer por meio do testemunho alheio. Já o conceito de poética traduz, em termos operativos, a elaboração da arte, seu processo de operacionalização e concretização. Nessa diferenciação, iniciamos o processo de aproximação com a estética contemporânea para a construção de poéticas grupais, no trânsito Arte-Psicologia.

Fazendo uma distinção entre Arte Moderna e Arte Contemporânea, Cauquelin (2005) afirma que a Arte Contemporânea não se situa em uma dimensão temporal, não pode ser classificada de forma conteudista, estilística ou por valoração monetária. Ela opera, questionando estruturalismos que fixam padrões, papéis, espaços e até mesmo afetos. A estética contemporânea comporta o risco da incoerência, da loucura, ao problematizar o real, abrindo-se ou respondendo ao apelo do acontecimento, ou do encontro/conexões que faz algo existir.

Na Arte, a materialidade torna-se fluxo da vida, misturando, com alguma sutileza, o que está sendo experimentado com o que já foi dito e pensado. Por essa razão, a Arte "não esquece que o real não é representável" (Pellejero, 2017, p. 226). Do mesmo modo, a literatura poética, cuja matéria-prima é a linguagem (verso, prosa, crônica, conto, fábulas, novelas etc.), "[...] não se comporta como um meio de cifração e decifração para significações disponíveis, mas assume a tarefa de produzir significações a partir de uma experiência não pautada do mundo" (Pellejero, 2017, p. 228).

Nessa proposição estética que aqui defendemos, o que interessa não é o fim, mas o meio, o processo de criação e seus efeitos. Quando Pareyson (2001) afirma que a estética se configura na relação direta com a experiência de uma obra, a estética da Arte Contemporânea convoca o espectador a sair desse papel de contemplação, para se deixar envolver no fluxo da arte que o incorpora como experimentador/artista. Nas estéticas contemporâneas, o/a artista e a própria arte são proponentes de experimentações, pois se articulam em afetividades - uma estética pulsante que prioriza o processo de criação e não um objeto final a ser contemplado (Salles, 2009). O processo efetivamente inventivo configura um movimento sem busca por simbolismos ou representações e, nesse fluxo, cada processo, em sua singularidade, vai compondo instrumentos e arranjos que permitem ativar a complexidade criativa.

Na Arte Contemporânea, o/a artista se caracteriza como "proponente" de uma experimentação, na qual a finalidade da criação não é o "consumo" da obra, todavia, as afetações que essa propicia. Uma estética pulsante que nos direciona ao processo de criação, sendo as materialidades constituintes das afetações inventivas (Salles, 2009). As estéticas contemporâneas convidam a acionar a sensibilidade corpórea para reconhecer a multiplicidade da vida, "transcendendo o caráter prático-utilitário da cultura capitalista" (Zanella, 2006, citado por Costa, Zanella e Fonseca, 2016, p.36). A relação estética que se dá na poética trata de uma relação sensível de afetação dos corpos ("humanos" e "não-humanos"), na imprevisibilidade dos encontros como acontecimentos, potencializando as diferenças e rejeitando as formatações predeterminadas que se querem verdades repetitivas e universais.

Em uma revisão sobre a articulação entre Psicologia e Arte, Costa, Zanella e Fonseca (2016) pontuam as possibilidades dos processos de criação, na configuração da vida social e das formas de produção científica. Todavia, não necessariamente porque um trabalho psi se articula à Arte que traz em si já a possibilidade de embaralhar códigos delimitados pela afirmação de uma ciência rígida, centrada em hierarquizações e binarismos. Costa, Zanella e Fonseca (2016) apresentam algumas possibilidades de articulação da Arte com a Psicologia: arte como foco de discussão e análise; arte como ferramenta da Psicologia, principalmente como estratégia metodológica em propostas de pesquisa-intervenção, sendo utilizada como disparadora de acontecimentos, por meio de propostas empíricas previamente definidas; e arte como questão psi, num movimento de hibridização e possibilidade de reconfiguração de ambos os campos.

Desafiamo-nos a alianças com o terceiro movimento de hibridização, visto que o processo ou o modo de fazer e conceber o arranjo grupal como poética busca, com a Arte, experimentar agenciamentos e potencializar a vida. Propõe-se a configuração de singularidades na composição de afetos para saídas inventivas das paralisias e estagnações da vida. Operacionalizar grupos, compor poéticas associadas a esse tipo de estética propicia grupalidades que ampliam modos de subjetivação contemporâneos. Nas obras de arte de Yayoi Kusama, que mora em uma instituição psiquiátrica no Japão, visualizamos potentes territórios de resistências convidando o/a espectador e a espectador/a à participação e composição com a obra. Como consumir somente com olhos o Jardim de Falos de Yayoi? Ele convida o/a espectador/a a entrar e experimentar um campo de delírios e compulsões, na leveza de bolinhas vermelhas e brancas. E como ficar inerte diante da obra "Jardim de Narciso", exposta no museu de Inhotim, em Minas Gerais, onde centenas de bolas de aço flutuam em um lago, criando imagens fluidas, refletindo a paisagem local e o próprio espectador, criando um "tapete cinético" (conforme desejou a artista)?

Relações estéticas supõem, pois, relações com a diferença, permeadas pelo campo sensível das afetações. São possibilidades de emergências de devires, pelas fissuras que conduzem ao inesperado (Zanella, 2006, citado por Costa, Zanella & Fonseca, 2016). Avizinhar-se e contaminar-se pela Arte, sem instrumentalizá-la; rastrear e perscrutar conceitos que se articulam aos experimentos grupais, como uma pele que percute e amplifica a experiência, inscrevendo-a no dizível, esse movimento compõe o que nomeamos como híbrido Psicologia-Arte.

 

Subjetivação, corpo grupal e produção da diferença

O processo de composição de poéticas grupais se direciona aos atravessamentos ético-estético-políticos e nos localiza em uma ética da diferença, já que não buscamos modelos estruturais, mas possibilidades de articulação em situações específicas. Nas poéticas grupais, são instaurados territórios para a criação de modos de subjetivação inventivos, da mesma maneira que um artista plástico cria formas, a partir da palheta de que dispõe (Guattari, 1992). Um paradigma ético-estético que, também político, mobiliza uma constante resistência às linhas de força as quais intentam bloquear as passagens dos movimentos de diferenciação, provocando fissuras nas homogeneidades.

Com base no paradigma ético-estético-político, é possível forjar uma perspectiva de subjetivação que escapa aos complexos fundantes de uma psique fixada nas tentativas de encontrar seu modelo universal. Dos processos de subjetivação participam múltiplos componentes em circulação no dispositivo grupal, numa dinâmica mutante, como fluxos em movimento. Guattari (1992), adotando uma concepção transversalizadora de subjetividade, considera haver uma heterogeneidade de componentes que concorrem para sua produção, e por pensar ser este um processo permanente, instável e polifônico, lança-nos à possibilidade de concebê-la como maquínica. Dessa perspectiva, a subjetividade é operada fora de uma matriz mentalista: "A suposição quanto à existência de um espaço psíquico que coincidiria com uma interioridade privada a qual nós todos, humanos, possuiríamos" (Simões et. al., 2011, p. 355). As instâncias subjetivas estariam, assim, na dimensão relacional dos afetos e sensibilidades, atravessadas e tensionadas por forças de estagnação que estimulam a produção do mesmo.

Guattari (1992) considera que, nos diversos arranjos socioeconômicos e culturais contemporâneos, os quais chamou de Capitalismo Mundial Integrado, há "uma tendência à homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade e uma tendência heterogenética, quer dizer, um reforço da heterogeneidade e da singularização de seus componentes" (Guattari, 1992, p. 15). E, assim o mais interessante "é a criação, a invenção de novos Universos de referência" (idem). Disso, compreendemos que é possível, nas situações em que se sobrepõem subjetividades hegemônicas, transversalizações de modos de viver heterogêneos, operando como fuga ao modelo hegemônico referencial. Para o trabalho em Psicologia, Guattari indica a "constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar" (Guattari, 1992, p. 17).

Daí a perspectiva do paradigma estético para os processos de subjetivação, sempre em vias de criação, percebendo que elementos heterogêneos confluem para a instauração de relações autênticas com o outro e movimentos de singularização. Vemos essa heterogeneidade na discussão de Pelbart (2008) sobre a constituição de um corpo "múltiplo", um corpo que se faz no agenciamento de diversos outros corpos que compõem um corpo grupal determinado, com poder de afetação de um corpo sobre o outro que se constitui nessa multiplicidade. Spinoza (2013) já havia postulado que todo encontro entre corpos diferentes depende tanto da natureza do corpo afetado quanto da natureza do corpo que afeta, mobilizando em função dos afetos que entram em composição nesses encontros.

Isso implica que um "corpo grupal" nunca será idêntico a outros corpos grupais, nem tampouco a si mesmo, se levarmos em conta a variação contínua que se dá entre os elementos heterogêneos que o constituem, em encontros inesperados. Uma lógica dos acidentes, dos acontecimentos, das conexões ligadas apenas por variações intensivas de afecção as quais correm entre os membros que compõem o conjunto, tal como uma transferência de raios disparada entre as extremidades de cada multiplicidade que se liga a outras, como por um pé ou uma mão. Conjunto-matilha, no qual desaparece a totalidade tanto do indivíduo quanto do grupo. Nessa perspectiva só podemos falar de relações variáveis entre as partes, movimentos que vagam despretensiosamente realizando conexões pelas periferias.

O tema da afetividade e dos afetos ainda se apresenta como problemático ao fazer científico do psicólogo, aponta Despret (2008), já que impossibilita posturas de neutralidade e distanciamento. Afinal, afetar-se (emocionar-se) numa situação de pesquisa pode alterar a veridicidade dos fatos. Para tratar dessa questão que insiste em provocar a Psicologia, estabeleceu-se um movimento de manutenção de demarcações do lócus da emoção, seja no corpo, seja no contexto social. Despret, em diálogo com Deleuze e Guattari, entretanto, defende a reescritura das emoções, desde o ponto de vista da indeterminação da origem dos afetos e do afetar-se.

De acordo com Despret (2008), precisamos desacelerar as decisões sobre o que é causa e o que é efeito, para aprender a ser afetado e a afetar. O afeto é o que nos faz hesitar diante da iminência das dicotomias; é aquilo que confunde causa e efeito. Onde está ou de onde vem o que sentimos? Não há como saber, uma vez que nos subjetivamos ao modo de tramas, em redes heterogêneas e múltiplas, agregando materialidades as mais diversas. Por isso, não há como definir o que é sentido, como se a emoção arrebatasse um ser passivo, mas apenas contar sobre este "entre"1 onde se afeta e, ao mesmo tempo, se é afetado. O afeto está no plano da indeterminação, no qual sujeito e objeto não podem ser claramente separados e determinados, no qual corpo e mundo estabelecem processos de coafetação. Chamamos de afeto, assim, as intensidades específicas que nos atravessam, quando, em uma experiência, somos tomadas de solavanco, sem possibilidade de traçar um significante análogo.

 

Poética grupal em contexto formativo, compondo planos de imanência

O relato que segue trata de uma experiência de construção de uma poética grupal, cujas composições iniciais foram atravessadas pelos relatos advindos da ida de alunos e alunas a um Hospital Psiquiátrico, como estagiários de uma disciplina ministrada no mesmo semestre que a disciplina Teorias e Técnicas Grupais. No estágio, alunos e alunas se deparavam com uma instituição psiquiátrica asilar e com o enrijecimento dos corpos e da vida das pessoas que ali viviam: corpos impregnados de medicações, vidas lenificadas pelo controle. Durante a disciplina Teorias e Técnicas Grupais, um dispositivo poético grupal foi sendo composto, ao longo de quatro meses, por meio de tutorias com alunos e alunas, voltadas tanto aos processos artísticos quanto aos estudos sobre processos grupais.

Essa disciplina teórico-prática é ministrada há dez anos, de sorte que esta experiência relatada constitui uma das muitas experiências agenciadas no acompanhamento dos processos de criação dos alunos e alunas durante os semestres letivos. Selecionamos esta experiência, porque evidencia o cruzamento entre o contexto de sala de aula e sua exterioridade, entre a disciplina Teorias e Técnicas Grupais e o percurso formativo do estágio em Saúde Mental. Nesse percurso, foram realizados dez encontros, nos quais trabalhamos os aspectos teóricos da disciplina, bem como os atravessamentos da vivência do estágio.

As poéticas grupais vão sendo engendradas nos processos inventivos propostos em sala de aula, articulando Psicologia, Arte Contemporânea e Política, como operadores de potência para a formação de estudantes de Psicologia. Não há uma proposta única e universal, porém, disparadores nos quais se sucedem interações, conexões: uma grupalidade situada e afetiva. Nessa medida, não trataremos de descrever aqui um modus operandi universal (dada sua impossibilidade, pois cada processo é singular), contudo, procuramos compartilhar vivências; memórias parciais dos corpos que essas vivências afetaram, para que pulsem no presente (Rolnik, 2008).

Como poéticas, os processos de construção dos dispositivos grupais podem se dar num movimento de aproximação com obras, artistas e conceitos. Aproximação, não a título de catalogação ou para discutir escolas de arte ou ainda definir algum sentido comum da obra, mas experimentação coletiva de uma proposição, de um dispositivo compreendido, seguindo Deleuze (1990), como uma composição de múltiplas linhas, em movimento maquínico, agencia a produção de discursos, acontecimentos, modos de ser, corporalidades e afetações.

Durante as tutorias iniciais sobre aspectos teóricos da formação em técnicas de grupos, emergiram os questionamentos sobre os corpos anestesiados e inertes, atados pela medicação ou presos por ataduras, quando os medicamentos eram estéreis. Vivenciar a experiência de um corpo que, mesmo contido, urrava, delirava, trouxe sensações de possíveis resistências frente à lógica psiquiátrica de controle e aniquilação da potência de corpos, de uma clínica baseada na exclusão do desejo do outro. Com os questionamentos sobre a potência disruptiva do corpo, o grupo pesquisou trabalhos em Arte Contemporânea, por meio de catálogos de arte virtuais e físicos, pousando naquelas que afetassem, pelas memórias evocadas nas experiências no hospital. As proposições artísticas de Ernesto Neto ganharam relevo, por seu incessante convite à experimentação que escapa a um modelo de subjetivação enclausurante, como o observado nas instituições asilares e na própria organização do dispositivo disciplinar da sala de aula.

Ernesto Neto é um artista contemporâneo que produz esculturas e instalações, as quais criam uma experiência visual, auditiva e sinestésica: toque, olfato e sons ambientes e corporais são ativados, numa mixagem de sentidos possíveis, quando interagimos com as obras, quando literalmente entramos na sua arte. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1964, e seu trabalho é marcado pelo convite à interação com as obras que acontecem, justamente, no contato com o público quando são ativadas (termo adotado pelo artista). Muitas das esculturas apresentam alusões ao corpo humano, principalmente nas formas sinuosas que estabelecem no espaço. O artista fala de sua obra como forma de sentir sua "própria pele" no trabalho, pedaços de um organismo que proliferam. Vejamos as proposições do trabalho "A vida é um corpo do qual fazemos parte" (2012): uma instalação de quase dez metros de altura, construída com cordas e bolas, as quais formam um caminho instável a ser percorrido. Quando se entra e se caminha, toda a obra balança, provocando e desafiando o corpo a movimentar-se junto a esse balanço. Uma experiência estética que problematiza os corpos habituados às trajetórias lineares, que cria corporeidades as quais precisam recusar sua organização prévia, as quais pulsam à revelia das domesticações da vida. Uma proposição que ressoa como resistência ao anestesiamento de corpos no espaço manicomial com o qual se deparavam os alunos e alunas.

O trabalho de Antonin Artaud2 contribuiu ao diálogo na sala de aula para a composição do dispositivo grupal, uma sala de aula aberta aos fluxos germinativos da criação de mundos possíveis. Declarando guerra aos órgãos, Artaud (2006) questiona a noção de organismo e propõe o "corpo sem órgãos" como possibilidade de produção aquém das amarras: "É que me pressionavam ao meu corpo e contra meu corpo. Foi então que fiz tudo explodir porque no meu corpo não se toca nunca". O "corpo sem órgãos"3 se desfaz da organização produtiva em que foi inserido, para tornar-se produção de realidades diferentes das que lhe deram, que procura outras formas de viver, expressar, sentir, experimentar, afetar e ser afetado.

Voltemos à estética de Ernesto Neto, em conexão com a proposição grupal: desconstruir e construir sensações como experimentação do próprio corpo: corpos reverberam em ecos de comentários, risos e suspiros. Na obra de Ernesto Neto, o espectador interage ativamente com seu trabalho, entrando nas esculturas, cheirando, tocando, sentindo. Na "loucura" psiquiátrica experimentada no hospital, a audição retorna como um dos principais canais de experimentação do delírio: "Ouço vozes". Durante as tutorias, umas das alunas do grupo que coordenaria a experiência expressa estranheza, ao ter contato com o áudio da peça radiofônica "Para Acabar com o Julgamento de Deus", de Artaud. Esse estranhamento ajudou a localizar que se buscava menos uma "clareza" de áudio e mais efeitos de discurso/vozes.

No movimento de fazer criador, repetindo para fazer diferente, introduzimos no grupo, acompanhando o processo de composição dos alunos e alunas, um vídeo: "Estamira". Estamira, uma mulher, uma catadora de lixo, surge com "clareza" auditiva e discursiva, no seu pressuposto delírio. Personagem registrada no documentário de Marco Prado, ela é uma mulher diagnosticada com "transtorno mental" que vive e garante seu sustento em um lixão, na cidade do Rio de Janeiro. Sua lucidez se faz nos discursos filosófico-delirantes sobre aspectos sociais, econômicos, políticos, vivenciados em seu próprio corpo sem órgãos, corpo que se faz diapasão, repercutindo a vida e afinando-a singularmente. A voz de Estamira entra no grupo como uma caixa de ressonância afetiva, envolvendo e tranversalizando. Assim também nos transformamos em diapasões, no suposto delírio de Estamira. O movimento que se faz em uma tela implica processo de criação, no qual um vídeo vai deslizando em movimentos de rastreio, deixando em cada singularidade do grupo pegadas que repercutem em pouso, para a experimentação de conceitos. O vídeo, como toda arte levada ao grupo, passa-se em movimento de recordar, repetir ou reexperimentar, elaborar e criar.

Experimentar as poéticas inventivas da Arte, os aportes conceituais e o grupo em si, o qual se faz ponto de conexões de singularidades com a temática da loucura, é ação que se constitui em instrumentos e arranjos que permitiram ativar a teorização tão importante, na formação daqueles estudantes. Ao propor diversas expressões artísticas, acionamos materialidades, ambiências, sons, imagens, luzes em ações. Ao longo das tutorias semanais, compusemos um material sonoro, por meio de mixagem de sons do teatro radiofônico de Antonin Artaud, falas de Estamira, áudios advindos de um experimento sonoro feito com pessoas com delírios auditivos e, ainda, gravações de sons de pássaros, água corrente e outros animais. Ambientamos uma sala sem cadeiras, para que as pessoas circulassem pelo ambiente, a fim de experimentar a mixagem sonora, junto à exalação de essências de cravo e canela (referência ao trabalho de Ernesto Neto, que utiliza especiarias em sua arte, como forma de potencialização de experiências sensoriais).

A construção técnica da experiência é um importante processo de criação, no qual dificuldades vão sendo superadas, para escolher/criar o que se pretende oferecer ao grupo. Quem está mediando a experiência também vivencia o que propõe a outrem, como em todo processo artístico. É uma poética artística experimentada em grupo. Os ambientes, muitas vezes limitados estruturalmente, podem ser reinventados, de maneira a criar a ambiência mais interessante à proposta de trabalho: como uma instalação que atravessa o instituído.

Em linhas gerais, o processo de composição das poéticas grupais híbridas em Arte-Psicologia, guardadas as variações e singularidades, comporta alguns operadores: 1) Cartografia de Incômodos: intensificação das afetações relatadas durante tutorias para definição de um tópico que funcionará como fio condutor da experimentação a ser trabalhada. Este processo se dá por meio da cartografia de incômodos que são reverberados a partir de dispositivos artísticos como amplificação de sons e outros (visa-se fazer vibrar a pele e desanestesiar subjetividades, abrindo-as à inventividade que requer certa convivência com a instabilidade) ; 2) Imersão na arte contemporânea: abertura às reverberações poéticas dos incômodos cartografados, por meio de imersão na Arte Contemporânea que pode ocorrer por meio de visitas a espaços de arte, entrevistas com artistas, consultas a espaços de arte virtuais e leituras de catálogos. Este percurso é concluído quando a atenção dos alunos e alunas pousa na poética de um/a artista que passa a ser estudado/a e experimentado. Realiza-se este trabalho subvertendo uma mera exposição didática, em que estudantes convidam docentes à experimentação, ativando "subjetividades artistas" (Rolnik, 1995); 3) Tradução: chega-se, então, à poética de um/a artista que é traduzida para um contexto de experimentação em sala de aula, com atenção ao tema proposto e aos aspectos técnicos próprios da Arte que juntos acionam uma sala híbrida de Arte e Psicologia. Neste percurso, mais de um/a artista e linguagem artística pode ser catalisado para a experimentação que vai se dando inicialmente entre os/as estudantes em tutoria. Destaque-se que nunca se efetua uma reprodução ou simples transposição de poéticas da Arte à Psicologia; 4) Proposição: nas reverberações entre Arte e Psicologia é modulada uma proposição grupal passível de mobilizar os demais aliados e aliadas a participar do que se depurou da experimentação nas tutorias. Atinge-se uma determinada forma de expressão provisória (uma proposição grupal), atentando aos planos de afetação, territorialização e desterritorialização, aos movimentos instituintes de afirmação criadora no decorrer da experimentação.

A ambiência está diretamente relacionada com a experiência afetivo-sensorial a ser ativada no espaço construído: caso busquemos experimentar mais intensidades de um som, diminuímos a iluminação; caso nos faltem recursos para uma boa projeção de imagens, precisamos diminuir a iluminação, para uma visão em determinado foco; caso desejemos intensificar a luz para propiciar um contato visual maior, devemos diminuir sonoridades do espaço, o que é possível, solicitando aos participantes que, em um primeiro momento, façam o mínimo de barulho possível.

Com a ambiência composta, uma orientação se faz necessária: é preciso abrir-se às possibilidades artísticas, ao jogo, às relações que podem ser estabelecidas e, enquanto o dispositivo acontece, é preciso ampliar as percepções sobre as intensidades dos afetos mobilizados, sentindo junto ao grupo o que daquele encontro fruirá, disponível a uma experiência estética singular. Deseja-se experimentar um corpo em devir, tentando sentir o que seja isso: um corpo sem órgãos, deslocado, para compor o que seria essa poética. Além dessa orientação, enfatizávamos que, se alguém não se sentisse bem, poderia se retirar a qualquer momento e seria acolhido por uma das proponentes da poética.

Na sala de aula-espaço de arte, com iluminação que entra por frestas de portas e janelas, possibilitando visualizar contornos de corpos, experimentou-se a composição sonora, os cheiros, a circulação pelo espaço. Alguns fazem do ato de andar parte da experiência de ouvir. Outros escolhem uma parede para apoio das costas que escorregaram por ela até o chão. Num próximo momento, baixa-se o volume das vozes gravadas e aumenta-se a sonoridade da mixagem de sons "não humanos". Depois, diminui-se esse último som e se aumenta a fala de Artaud e Estamira, e, por fim, os sons cessam, e ficamos com o som próprio da sala. As/os participantes se acomodam no chão e, aos poucos, a iluminação volta a trazer nitidez aos contornos das corporalidades/materialidades ali presentes.

Vozes começam a emergir na sala-espaço de arte, as pessoas começam a falar livremente das sensações experimentadas. Nem sempre há como traduzir em palavras o vivido e, por isso, precisamos mapear e lidar com campos de forças indizíveis e invisíveis, no processo grupal. Relatam que precisaram fechar os olhos para ouvir melhor e se misturarem aos sons. Uma participante diz não ter conseguido entender o que era dito nos sons, pois ela só conseguiu sentir e ouvir os "sons da natureza", a água corrente e os pássaros. Outros tentaram distinguir os sons humanos: singularidades emergindo da experiência grupal.

Experiências estéticas, como relatamos, são atreladas às condições de possibilidade do serviço ou instituição na qual o dispositivo grupal se realizará. Por isso, não há como desconsiderar a precariedade de recursos nas instituições, principalmente em tempos de desmontes de Políticas Públicas. Numa poética grupal, a precariedade pode ser transformada em recurso para o trabalho, não em movimento de resignação à ausência de infraestrutura nos serviços, mas como possibilidade de produção e manutenção de saúde, quando recursos se tornam inexistentes, em determinados momentos, e como possibilidade de potencializar a atuação daquelas e daqueles inseridos nesses espaços.

Os temas das poéticas grupais podem ser vistos como pontos de paragem em processos heterogêneos os quais não se fundam num sujeito racional, que seleciona o que interessa, sem ser afetado pelas forças do mundo. Algumas perguntas permanecem, a cada passo da composição: o que os agenciamentos do híbrido Arte-Psicologia proporcionam, em termos de territórios existenciais para potencialização da vida? Quais forças de fora atravessam cada dispositivo e impedem que este redunde num arranjo internalista e solipsista? Quais são as forças de estagnação que incidem na composição da poética e como catalisar processos de produção da diferença?

Acionamos a precariedade como vetor de criação poética, produzindo um híbrido sala de aula-espaço de arte. Muitas foram as experiências, múltiplas as entradas temáticas, buscamos descrever alguns aspectos da composição que integram as proposições. Efemeridades coletadas, como o orvalho que forma uma fina película, fazendo durar o tempo da experiência, lembrando que a palavra se situa sempre como limiar entre a experiência e o esquecimento.

Há rigores institucionais que estipulam tempo para os trabalhos em grupo, até mesmo para que esses trabalhos possam compor com as forças do fora que os atravessam. Porém, o tempo que nos importa é o do instante no qual afetos emergem. O que está em tela é um tempo alargado, o tempo da experiência criadora. Dar vazão e atentar às vias de escape dos afetos, reafirmando as proposições de Rodrigues (2004) de romper com os especialismos, teoricismos e profissionalismos instituídos. Da Arte interessa-nos, sobretudo, os materiais e processos criadores. Pensar arranjos com o outro, pensando em nossos próprios arranjos grupais, pensar nesses processos sendo parte deles - e sabemos da importância de se pensar nas relações.

 

Considerações Finais

Em uma experiência estética, a dimensão sensível é ampliada, e do encontro entre corpos e experiências emergem, com efeito, os afetos. Daquilo que afeta, são produzidas sensações que desestabilizam os corpos, estranhamentos, e os colocam em movimento, com potencial para fazer irromperem linhas de produção de subjetividades, derivando aberturas para experiências singulares e, na forma como compreendemos, produzindo saúde. As possibilidades estão em aberto.

Poéticas grupais são criadoras de materialidades, de processos para além dos abstracionismos e da passividade contemplativa, agenciadas que são às propostas da Arte Contemporânea. Independentemente da configuração das grupalidades, seja em ambientes interativos ou não, seja com precariedade de recursos para a proposição ou sem lançar mão de recursos materiais, o rigor se dá na ordem de um posicionamento ético-estético-político, mais do que metodológico-intelectual. Nas poéticas, o grupo faz ver o invisível, falar o indizível, pulsar as linhas de forças que se encontravam em enrijecimentos e criar condições para rupturas, as quais, num contexto formativo de sala de aula, são atravessadas pelas fixações disciplinares curriculares. E não há como registrar acontecimentos e afetos que pulsam, vibram no grupo; eles escapam da tinta no papel, somem da mais potente lente fotográfica.

Algo não se coloca em representação de palavras, mas, certamente, para todos e cada um, há registros de criação de algo novo, ou que quer desabrochar e que advém de instantes efêmeros. "A criação nasce da vivência nesses espaços e do retorno aos cantos, ao interior, registrada e dispersa como a bruma, passando a contemplar os espaços da memória" (Bamonte, 2013, p. 131). Sofrimentos aprisionados, podem encontrar vias de escape. Assim, Guattari (1992) indica a criação de "

instâncias locais de subjetivação coletiva [...] O que importa aqui [...] é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e de se re-singularizar (Guattari, 1992, p. 17).

Uma sala de aula pode ser um lugar de acontecimentos, um lugar onde arte também acontece, um lugar onde a dimensão sensível pode ser ampliada e comunicada, não apenas por verbos adjetivados: as poéticas grupais, em conexão com a arte, convidam a rever a organização disciplinar da sala de aula, abrindo-a às intempéries ético-estético-políticas. Os saberes e fazeres da Arte e da Psicologia se entrecruzam em experimentos grupais de afirmação da vida, num movimento de transbordamento dos espaços delimitados para uma e outra, na efemeridade do acontecimento que faz dos corpos contemporâneos dos mundos por vir germinados na própria experimentação, corpos que se apropriam daquilo que podem, esquecidos de seguir os princípios da regularidade, constância, normatividade.

 

Referências

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Recebido em: 21/1/2019
Aprovado em: 5/6/2019

 

 

1 No agregado heterogêneo de materialidades potencializa-se algo. Por isso, o uso da preposição entre para "referir a um estado de transição, que não se atrelaria de modo essencial nem ao tempo e nem ao espaço" (Méllo, Spink & Menegon, 2016, p. 424).
2 Lembrando que ele também foi internado em asilo psiquiátrico.
3 Conceito de Artaud, usado por Deleuze e Guattari (1997, 2010) para ir além de um corpo biologicizado, como um organismo todo definido, todo mapeado, com fins bem delimitados e ordenados. Um corpo sem órgãos, ao contrário, somos máquinas desejantes, com capacidades de criar a vida e nosso modo de estar nela.

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