SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número20Os centros de convivência: dispositivos híbridos para a produção de redes que extrapolam as fronteiras sanitáriasProjetos culturais nos centros de atenção psicossocial: um desafio em direção à cidadania índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Cadernos Brasileiros de Saúde Mental

versão On-line ISSN 1984-2147

Cad. Bras. Saúde Ment. vol.8 no.20 Florianópolis  2016

 

ARTIGOS

 

A dimensão do rádio no campo da saúde mental: a experiência da Rádio Ondas Mentais Online

 

The dimension of radio in the field of Mental Health: the radio Online Mental Waves experience

 

 

Danilo Moreira Marques1; Ellen Cristina Ricci2 ; Thiago Lavras Trapé3; Rosana Teresa Onocko-Campos4; Bruno Ferrari Emerich5

Unicamp

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir sobre o lugar (a dimensão) possível do rádio, concebido como modo de se comunicar, no contexto ético e político da Reforma Psiquiátrica brasileira, a partir de minha experiência em uma oficina de rádio de um Centro de Convivência. A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, pautado em um complexo processo de transformação social, que, por um lado, visa redirecionar o modelo assistencial ao sofrimento psíquico para os serviços territoriais, e por outro, combater a visão preconceituosa da sociedade com suas diferenças, observa-se que o tema do resgate dos direitos sociais historicamente negados às pessoas confinadas durante décadas dentro dos manicômios, sobretudo, o direito à liberdade e à comunicação, são os pilares deste movimento. Neste sentido, inventar novos dispositivos que possibilitem o acesso aos meios de comunicação contra hegemônicos, que possibilitem novos modos de se comunicar e se expressar, são assuntos de interesse das políticas públicas de saúde mental no Brasil.

Palavras-chave: Oficinas de Rádio; Centros de Convivência; Reabilitação Psicossocial; Cidadania; Saúde.


ABSTRACT

The goal of this paper is to discuss the possible dimension of radio, conceived as a way to communicate, ethical and political context of the Brazilian Psychiatric Reform, from my experience in a radio workshop a Community Center. From the movement of the Brazilian Psychiatric Reform, based on a complex process of social transformation that has sought redirect the care model to mental suffering for the territorial services, and on the other, fight the prejudiced view of society with their differences, it is observed that the rescue theme of social rights historically denied to persons confined for decades in the asylums, above all, the right to liberty and communication are the movement's bases. In this sense, invent new devices that allow access to the media against hegemonic, that enable new ways to communicate and express themselves, are subjects of interest of public mental health policies in Brazil.

Keywords: Radio workshops; Community Center; Psychosocial Rehabilitation; Citizenship; Health.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho busca refletir sobre uma experiência uma como psicólogo residente a partir do contato de um dos autores (DMM) com o Centro de Convivência e Cooperação (CECCO) Tear das Artes6, localizado no município de Campinas/SP.

Chegar como psicólogo residente no Centro de Convivência me possibilitou uma atuação profissional mais "solta", no sentido de não ter a obrigatoriedade de exercer uma prática burocratizada, que atenda as exigências das demandas institucionais. Tive a possibilidade de experimentar as ofertas disponíveis, primordialmente, as oficinas de diversas atividades.

Sem muitas habilidades para atividades manuais, me questiono: qual seria o meu lugar neste serviço? Qual recurso poderia utilizar como dispositivo terapêutico? Sempre gostei muito de música e tenho interesse em questões que envolvam tecnologia e afins, porém, até então, não havia encontrado um lugar no qual pudesse usar este tipo de atividade como recurso terapêutico.

De início, um lugar logo me chamou a atenção: o estúdio musical, palco da antiga oficina de rádio. Ao chegar no Centro de Convivência, encontro o estúdio musical abandonado e a oficina de rádio desativada. O desafio inicial era reorganizar o espaço do estúdio, e consequentemente, reativar a oficina de rádio. Com o apoio de alguns profissionais e usuários do serviço, revitalizamos o estúdio e reconstruímos a oficina de rádio. Com a oficina reativada, começo a problematizar alguns pontos: qual o lugar do rádio no campo da Saúde Mental Coletiva? A oficina de rádio contribui para o processo de inclusão social e afirmação da cidadania, conforme os pressupostos éticos e políticos da Reforma Psiquiátrica brasileira?

Neste sentido, trago como objetivo deste trabalho refletir sobre o lugar possível do rádio, concebido como modo de se comunicar, no contexto ético-político da Reforma Psiquiátrica brasileira, a partir de minha experiência em uma oficina de rádio de um Centro de Convivência.

 

2 OS CENTROS DE CONVIVÊNCIA: SAÚDE, CULTURA E CIDADANIA NO TERRITÓRIO

A Reforma Psiquiátrica brasileira, como movimento social e político, não visa apenas a reestruturação dos serviços de assistência ao sofrimento psíquico, mas também à superação do estigma historicamente construído sobre a figura do louco. Para dar conta dos desafios de cuidar dos sujeitos em sofrimento psíquico no território e efetivar a inclusão social, faz-se necessário a invenção criativa de novos dispositivos e novas práticas de intervenção. Os Centros de Convivência (CECO), dispositivos inovadores, concebidos no território da cultura e cidadania, têm se destacado pelo papel estratégico no projeto ético e político da Reforma Psiquiátrica brasileira.

A implementação dos CECOs iniciou-se em 1989, no município de São Paulo, expandindo-se para outros municípios, com destaque às cidades de Belo Horizonte e Campinas. Cada município construiu modelos de CECOs distintos entre si. Em São Paulo, apostou-se em um modelo baseado na intersetorialidade, com gestão compartilhada entre as Secretarias de Saúde, Meio Ambiente, Trabalho e Cultura. Já em Belo Horizonte, a implementação dos CECOs esteve diretamente ligada à Secretaria de Saúde a partir do projeto da Reforma Psiquiátrica desta cidade, tendo os usuários da saúde mental como seu principal público-alvo. Campinas, por sua vez, construiu um modelo para acolher pessoas em situação de exclusão social, não atendendo somente às pessoas diagnosticadas com algum tipo de sofrimento psíquico (FERIGATO, 2013).

Em 2005, o Ministério da Saúde lança uma cartilha denominada Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, definindo os Centros de Convivências, baseando-se nestas primeiras experiências, como:

[...] dispositivos públicos que compõem a rede de atenção substitutiva em saúde mental e que oferecem às pessoas com transtornos mentais espaços de sociabilidade, produção cultural e intervenção na cidade. Estes Centros, através da construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade, facilitam a construção laços sociais e a inclusão das pessoas com transtornos mentais. O valor estratégico e a vocação destes Centros para efetivar a inclusão social residem no fato de serem equipamentos concebidos fundamentalmente no campo da cultura, e não exclusivamente no campo da saúde. Os Centros de Convivência e Cultura não são, portanto, equipamentos assistenciais e tampouco realizam atendimento médico ou terapêutico. São dispositivos públicos que se oferecem para a pessoa com transtornos mentais e para o seu território como espaços de articulação com a vida cotidiana e a cultura. (BRASIL, 2005, p. 38)

O decreto 7.508/11, no qual institui as Redes de Atenção Psicossociais (RAPS), também citam os Centros de Convivência como dispositivos estratégicos no projeto de consolidação da Política Nacional de Saúde Mental. Apesar disto, os Centros de Convivência ainda não possuem uma portaria oficial que as regulamente, dificultando assim, sua implementação nas demais cidades brasileiras.

2.1 As oficinas terapêuticas

As oficinas terapêuticas e as atividades coletivas são as ofertas primordiais dos CECOs. Apesar de terem sido empregadas nos manicômios como estratégia de tratamento moral, as oficinas terapêuticas nos novos serviços substitutivos ganharam uma dimensão radicalmente diferente de sua origem como ocupação do tempo ocioso. Resgatamos o sentido dicionaresco da palavra oficina: "lugar em que se verificam grandes transformações". Transformações não somente de produtos, mas transformações de vida, de relações, de um lugar social.

Para Yasuí (2010, p. 167),

As oficinas não são um fim. São apenas trilhas, veredas. São possibilidades de construção de novos territórios existenciais, a partir de um encontro com alguém e da produção de um algo. Alguém que ocupe esse lugar de acolhimento, de respeito a singularidade, de escuta, por vezes de incentivo, por vezes de intervenção na relação.

Faz-se necessário pontuar que não é a atividade em si mesma que produz um efeito terapêutico, mas sim, seu poder de possibilitar um espaço de experiências, de trocas entre os participantes. É necessário que uma oficina terapêutica promova a retomada de conexões de seus participantes com o laço social e suas práticas com o mundo externo ao serviço de saúde. A vida não se articula para dentro, como nos manicômios, mas para fora, para o cotidiano, a família, a comunidade. Neste sentido, uma oficina terapêutica deve criar um espaço de conexões com o mundo de seus participantes: seja um mundo em processo de reconstrução, como é o caso da psicose, seja o mundo da política da cidade, das questões relacionadas à violência e ao preconceito, o acesso à cultura e ao lazer, de lutas pela garantia de direitos sociais.

Além das oficinas terapêuticas, faz parte do cotidiano dos CECOs a articulação com os demais serviços da RAPS 7, além da rede assistencial, dos campos do trabalho, educação e cultura. Esta ampla inserção do CECO nestes diversos territórios das políticas públicas contribui para a ruptura das barreiras que historicamente separam os serviços de saúde mental dos outros dispositivos públicos. Rompe também a percepção social estigmatizada sobre a loucura historicamente produzida pelo confinamento das diferenças nos manicômios. O CECO, dentro de uma complexa rede de atenção à saúde mental no território, contribui efetivamente para a transposição das ações em saúde mental como ações de promoção de cidadania, direitos, acesso à cultura, lazer, convivência pacífica entre os diferentes modos de existência, no qual convivem crianças e adultos, homens e mulheres, adolescentes e idosos.

2.2 Oficinas de rádio no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira

No campo da atenção à saúde mental têm surgido diversas experiências de oficinas de rádio como dispositivo terapêutico, de inserção social e de exercício da cidadania8.

Para Mello (2001), estas oficinas propiciam um espaço facilitador da comunicação e das relações interpessoais, favorecendo deste modo a interação e a reinserção social dos participantes. Nas oficinas, os participantes produzem, criam, convivem, encontram motivação para falar de seus sentimentos, suas angustias, ressignificando suas histórias de vida.

Na perspectiva teórica de Paulo Freire (2005), a comunicação é o meio pelo qual é possível transformar o ser humano em sujeito de sua própria história, conduzindo-o a uma consciência crítica e a uma transformação de si mesmo e de sua realidade. O autor afirma que a comunicação possibilita uma construção coletiva do conhecimento mediada pelas relações entre sujeito e mundo.

Em seu livro "Comunicação ou extensão" (FREIRE, 1983), Paulo Freire afirma que o ato de se comunicar é um ato essencialmente coletivo, que se dá de modo recíproco. Para ele, o mundo humano é um mundo de comunicação, onde os sujeitos atuam, pensam e falam sobre suas realidades para o outro. A presença deste outro, como sujeito coparticipante, é condição indispensável para que ocorra o processo comunicativo (FORTUNA, 2013).

Na perspectiva da comunicação comunitária, a rádio possibilita a produção de conhecimento coletivo e democrático, nos quais qualquer cidadão poderá tanto ouvir, quanto participar ativamente da construção da emissora. A audiência deixa de ter papel central na organização da rádio, direcionando o foco para a relação entre os participantes, produzindo assim, um exercício coletivo de afirmação da cidadania e de transformação social. Uma comunidade habituada a se relacionar e a construir seus próprios meios de comunicação tende a ser mais crítica sobre os fatores que se interrelacionam com sua realidade que comunidades que apenas consomem opiniões e notícias previamente definidas e direcionadas a manutenção do status quo social.

Para Peruzzo (2007), participando do processo de fazer rádio, as pessoas vivenciam um processo que contribui para sua formação enquanto cidadãs. Para ela, as pessoas passam

[...] a compreender melhor a realidade e o mundo que as cercam. Aprendem também a trabalhar em grupo e a respeitar as opiniões dos outros, aumentam seus conhecimentos técnicos, filosóficos, históricos e legais, ampliam a consciência de seus direitos. Desenvolvem a capacidade de expressão verbal, além de conhecerem o poder mobilizatório e de projeção que a mídia possui, em geral simbolizado no atendimento a reivindicações e ao reconhecimento público pelo trabalho de locutores. (PERUZZO, 2007, p. 12)

No contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, as oficinas de rádio objetivam a promoção da socialização e o desenvolvimento de habilidades comunicacionais dos participantes e, ao mesmo tempo, transformar a visão estigmatizadora dessas pessoas nos ambientes sociais nos quais estão inseridas, para assim, superar o preconceito em torno das questões relacionadas ao sofrimento psíquico.

 

3 ONDAS MENTAIS: UM PROGRAMA DENTRO DO AR!

Tudo começou no ano de 2005. Neste ano, acontecia no CECCO Tear das Artes uma oficina de música, na qual participavam artistas da região, com o desejo de gravar seus trabalhos, porém, sem condições financeiras para tal. Nesta época, o Tear das Artes recebera a doação de um computador e uma mesa de som, possibilitando a construção de um modesto estúdio público para gravações musicais.

Durante os anos de 2005 e 2006, o projeto foi se consolidando. Diversos artistas de Campinas e região passaram a ter no estúdio musical do Tear das Artes, uma possibilidade para registrar gratuitamente seus trabalhos. Os participantes das demais oficinas do CECCO também passaram a ter suas produções registradas de modo mais sistemático. Nesta mesma época, a partir do estúdio, surge a demanda para a criação de uma oficina de rádio, com o intuito de divulgar o material gravado no estúdio, além de oferecer um lugar de produção de informação, conhecimento e cultura aos habitantes desta região. Como resultado desta oficina, surge o programa Ondas Mentais: um programa dentro do ar!. Devido a questões burocráticas e estruturais, o projeto de criação de uma rádio comunitária no espaço do Tear das Artes ficou inviabilizado. Neste momento, surgiu a possibilidade de uma parceria com uma rádio comunitária, a Rádio Renovação FM, de cunho religioso, localizada na mesma região do CECCO, no qual pôde-se fazer um programa semanal com duração de uma hora. Infelizmente, conflitos ideológicos e de interesse impediram a continuidade do programa nesta rádio.

Em 2007, o Programa Ondas Mentais entra na programação da Rádio Muda 88,5 FM, da Unicamp. A Rádio Muda era alinhada aos pressupostos da mídia livre, possibilitando uma atuação mais criativa e independente do programa, sendo realizado ao vivo, seja através de pautas pré-definidas, ou ainda, no improviso. Também em 2007, surge a parceria do Tear das Artes com o Centro de Referência em DST/AIDS, da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Esta parceria resultou na ampliação do espaço físico do estúdio e na aquisição de equipamentos profissionais, e também, na criação da Oficina de Radionovela, no qual foram produzidas duas: Nas tramas da prevenção e Mãe, acho que estou louco. A primeira, teve como temática a questão da prevenção das DST/AIDS, já a segunda, focou no cotidiano das pessoas que vivem com transtorno mental (QUEVEDO, 2010).

A partir da inauguração do novo estúdio do Tear das Artes, em agosto de 2007, inicia-se o projeto Tom das Artes, no qual apresentava artistas ao vivo no espaço do Centro de Convivência. Este projeto contou com mais de 40 gravações de 20 grupos musicais de diversos gêneros. Deste projeto, foram lançadas duas coletâneas: Tom das Artes 1: a música do outro lado da cidade e Tom das Artes 2: mente popular brasileira.

Além das gravações musicais e radionovelas, o programa Ondas Mentais contava com várias outras produções. Destas produções, surgiram alguns quadros criados de acordo com o desejo dos participantes: Ondas Poéticas, quadro de poesias criado por F. M., poeta e usuário da rede de saúde mental da região; Cultura, informação e opinião com Benjamin Jacob, produzido por M. S., técnico de enfermagem e usuário da saúde mental de outra região da cidade; É hora de filosofar e É hora de viajar, sendo o primeiro criado por R., professor de filosofia, e o segundo por A. V., enfermeiro aposentado, ambos moradores da região; além do Jornal Tudo Acontece, no qual são produzidas entrevistas, reportagens e debates com os participantes da oficina de rádio. Estes quadros demonstram a heterogeneidade entre os participantes da oficina, desvinculando-se de uma oferta exclusiva aos usuários da saúde mental.

Após a experiência com a Rádio Muda, o Programa Ondas Mentais estabeleceu uma parceria com o Ponto de Cultura Maluco Beleza do Serviço de Saúde Cândido Ferreira, no qual passou a transmitir semanalmente os programas na Rádio Maluco Beleza Online. Esta parceria durou até o final de 2013, sendo interrompida devido a substituição de quase todos os profissionais do Centro de Convivência, ocasionando a desativação da oficina de rádio.

3.1 Reconstrução da oficina de rádio e a criação da Rádio Ondas Mentais Online

Em 2015, após pouco mais de um ano desativada, tive o desejo de reativar a oficina de rádio. Após alguns encontros com participantes antigos e novos, decidimos por um novo formato, mais próximo a uma rádio comunitária, tornando-se mais acessível e democrática. Criamos nossa própria rádio web, a Rádio Ondas Mentais Online, uma rádio com programação 24 horas por dia, e que pode ser acessada por qualquer um, via internet.

A princípio, resgatamos e digitalizamos as gravações antigas; após isto, hospedamos os arquivos de áudio em um servidor gratuito específico para rádios online 9 ; a partir disto, criamos um blog 10 para divulgação e transmissão da programação da Rádio Ondas Mentais Online.

A oficina de rádio organizou-se em encontros semanais, com duas horas de duração. Num primeiro momento, apostamos em realizar a oficina ao vivo, no qual na primeira hora conversávamos com os participantes que lá estavam a fim de construir coletivamente a pauta do programa, que iria ao ar online ao vivo na segunda hora da oficina. Na primeira hora, debatíamos algum tema de interesse coletivo, utilizávamos a internet como fonte de busca de notícias, informações, textos literários, etc. Este modelo, apesar de interessante por criar um ambiente mais próximo a uma rádio, apresentou certas dificuldades, principalmente no que diz respeito à dependência da tecnologia. Por exemplo, falta de energia elétrica, ou ainda, instabilidade do sinal da internet, inviabilizando a transmissão.

Em seguida, a oficina configurou-se em gravações dos participantes para a posterior inclusão na programação da nossa rádio online. Na primeira hora da oficina, conversávamos com os participantes, nos quais cada um falava sobre o que queria gravar; a partir disto, iniciávamos um debate coletivo sobre as gravações de cada um. Na segunda hora, realizávamos as gravações, escutávamos coletivamente e, se fosse consenso do grupo, já incluíamos na programação online da rádio.

Em nossos encontros, pude presenciar grandes momentos, de intensa produção coletiva de afetos. Cito como exemplo a participação de dona M. A., uma senhora de 76 anos, já frequentadora há anos do CECCO, e que chega pela primeira vez em um dos encontros semanais da oficina. Ao chegar, conta um pouco de sua história e de sua paixão pela música: "eu canto desde os nove anos de idade. Se não fosse a música, já estaria morta". Diz que tem um sonho de gravar uma música chamada "Beijinho Doce", falando que a música representaria uma nova fase de sua vida. "Eu fiquei internada muito tempo, e a única coisa que lembro deste tempo é de ter sonhado várias vezes com esta música". Para ela, está música "é sensível, alegre, contagiante, e cantá-la faz com que eu transmita isso para as pessoas". Após esta fala, outro participante da oficina se dispõe a acompanhar M. A. na gravação, tocando a música no violão. Depois da gravação, os dois, que não se conheciam antes, se abraçam afetuosamente. O sentimento coletivo deste momento incentivou outro participante a escrever uma poesia relatando esta situação. Este é apenas um dos exemplos da interação coletiva propiciada pela oficina, incentivando a grupalidade e o compartilhamento de experiências e de histórias de vida.

Outro participante da oficina é L. R. M., um senhor de 64 anos com muito interesse em temas artísticos, como pintura, dramaturgia e música. Diagnosticado com esquizofrenia, além de ser deficiente auditivo, faz com que L. R. possua um modo muito singular de estar no mundo e de se comunicar com as pessoas.

L. R., ou como gosta de ser chamado, R. Luigi, seu nome artístico, frequenta o Centro de Convivência há anos, realizando diversas atividades, desde pinturas, desenhos e música. Gosta muito de tirar fotografias e fazer filmagens com sua câmera digital. R. Luigi também é inserido como usuário no CAPS, porém, mostra-se muito resistente a qualquer tipo de tratamento mais convencional, principalmente o centralizado em uso de psicotrópicos, afirmando "o CAPS acha que eu tenho problemas psiquiátricos, mas eu não tenho nada, sou um artista profissional". Seu quadro delirante, muitas vezes percebido pelos profissionais como "doença" ou "problema", transforma-se em "potência" e "criação" no espaço do CECCO.

Com a reativação da oficina de rádio, convido R. Luigi para participar dos encontros, porém, por seu modo singular de habitar o mundo, tem difícil participação nas discussões grupais realizadas com os demais participantes. A partir disto, convido R. Luigi para fazer suas gravações em outro momento, como meio de garantir sua participação no espaço da rádio. Ele criou o programa "Rádio Flórida", onde apresenta aos ouvintes à realidade do qual habita. Ao apresentar seu programa, ele diz: "Alô Alô, câmbio! Começa agora a Rádio Flórida, direto do Tear das Artes, com apresentação do grande comunicador, ator e pintor, R. Luigi". Em seu programa, R. Luigi relata histórias criadas por ele mesmo, interpretando diversos personagens e reproduzindo efeitos sonoros, como latidos ou trovões; além disso, gosta muito de falar sobre as "visitas" realizadas em diversos lugares pelo mundo.

Além dos encontros semanais, experimentamos realizar a oficina em outros espaços e com um outro formato. Fomos convidados a cobrir alguns eventos culturais e acadêmicos. A ideia inicial era ir com os participantes da oficina para realizar entrevistas com as pessoas que estariam nestes eventos, e, consequentemente, produzir um programa informativo. Este projeto cresceu, surgindo a possibilidade de realizarmos a transmissão ao vivo destes eventos. O link da transmissão era compartilhado através das redes sociais, podendo ser acessado por qualquer pessoa com acesso à internet. Ao todo, realizamos a oficina de rádio em quatro eventos externos relacionados à cultura, educação, políticas públicas e cidadania.

Esta experiência possibilitou uma maior interação da oficina com a realidade da comunidade. Pudemos transmitir shows de grupos musicais, sarais de poesia, entre outras manifestações artísticas produzidas pelas próprias pessoas da comunidade. Através da oficina de rádio realizada no território, conseguimos dar visibilidade a grupos socialmente excluídos da grande mídia, produzir circulação pelo território aos participantes da oficina, dando-lhes outro lugar social diferente do diagnóstico psiquiátrico: aqui eles não são "doentes", mas sim, repórteres.

Cito o exemplo de L. V. M., jovem de 23 anos, que é acompanhado pelo CAPS há três anos, serviço do qual tem uma circulação bastante conflituosa com a equipe e demais usuários. Com comportamento bem agressivo, tem muita dificuldade em se relacionar com as pessoas de seu convívio social, principalmente com sua mãe. Começou a participar da oficina de rádio a partir de seu interesse em tecnologia e em música. Tem difícil inserção no grupo com os demais participantes, o que torna sua participação nas oficinas de difícil manejo. Porém, apropriou-se muito bem das técnicas de gravação e tornou-se o locutor da rádio. Nos eventos que realizamos fora do CECO, sempre se dispôs a participar, mostrando grande autonomia e apropriação do espaço oferecido pela rádio. Em um dos eventos, convidou sua mãe para participar, demonstrando estar muito feliz com a presença dela. De certo modo, esta experiência possibilitou à L. uma maior circulação pelo território e uma maior inserção coletiva, proporcionada por sua posição de repórter e locutor da rádio, além de oferecer um lugar social que possibilite ressignificar suas relações com as demais pessoas.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomo aqui as questões iniciais: qual o lugar do rádio no campo da Saúde Mental Coletiva? A oficina de rádio contribui para o processo de inclusão social e afirmação da cidadania, conforme os pressupostos éticos e políticos da Reforma Psiquiátrica brasileira?

A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, pautado em um complexo processo de transformação social, que, por um lado, visa redirecionar o modelo assistencial ao sofrimento psíquico para os serviços territoriais, e por outro, combater a visão preconceituosa da sociedade com suas diferenças, observa-se que o tema do resgate dos direitos sociais historicamente negados às pessoas confinadas durante décadas dentro dos manicômios, sobretudo, o direito à liberdade e à comunicação, são os pilares deste movimento. Inventar dispositivos que possibilitem o acesso aos meios de comunicação contra hegemônicos, que possibilitem novos modos de se comunicar e se expressar, são assuntos de interesse das políticas públicas de saúde mental no Brasil.

Neste sentido, a oficina de rádio do CECCO Tear das Artes, contribui para o processo de resgate da cidadania, de direitos sociais, ao tratamento em liberdade, à comunicação em suas mais diversas formas de expressão, seja pela poesia, pela música, por relatos, além de oferecer um novo lugar social à comunidade e a seus participantes: produtores de informação, de histórias, artistas, locutores, repórteres.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Brasília. 2005.         [ Links ]

DELIBERADOR, L. M. Y.; LOPES, M. F. A comunicação comunitária na contramão da cidadania: o caso da Rádio São Francisco FM. X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, 2009.         [ Links ]

FACHINI, F.; CARMO ROLDÃO, I. C. Maluco Beleza: no ar, um exercício de cidadania. Anais do XIII Encontro de Iniciação Científica da PUC-Campinas, Campinas, 2008. Disponível em: <https://www.puccampinas.edu.br/websist/portal/pesquisa/ic/pic2008/resumos/Resumo/%7B83D05572-58DE-45A7-ACAF-B8151359182F%7D.pdf>. Acesso em: 2015 novembro 29.         [ Links ]

FERIGATO, S. H. Cartografia dos centros de convivência de Campinas: produzindo redes de encontros. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2013.         [ Links ]

FORTUNA, D. B. S. O papel do rádio no campo da saúde no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: estudo de caso da Webradio Revolução FM. Dissertação de Mestrado. Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Rio de Janeiro. 2013.         [ Links ]

FREIRE, P. Comunicação ou extensão? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.         [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.         [ Links ]

GOMES, D. C. A. A mídia como forma de construção social do conhecimento em Saúde Mental. Rev. Comun. Midiática (online), Bauru, v. 9, n. 3, p. 155-158, 2014.         [ Links ]

GORCZEVSKI, D.; PALOMBINI, A. D. L.; STREPPEL, F. F. Entre improvisos e imprevistos: os modos de comunicar Potência Mental. XV Encontro Nacional da ABRAPSO, 2009.         [ Links ]

GUERRINI JÚNIOR, I. Loucos por diálogo: um estudo comparativo de programas de rádio produzidos por pessoas com transtornos mentais no Estado de São Paulo. Tese de Doutorado. Faculdade Cásper Líbero. [S.l.]. 2009.

MELLO, V. P. D. Papo-cabeça, a experiência de uma oficina de rádio para usuários de serviços de saúde mental. Anais do 24. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Campo Grande, 2001. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/1064218887831029630364770109512902 21552.pdf>. Acesso em: 2015 novembro 1.         [ Links ]

PALOMBINI, A. D. L.; CABRAL, K. V.; BELLOC, M. M. Dispositivos Clínicos em Saúde Mental: a clínica na cidade entre o acontecimento e a permanência - Do AT à radiodifusão como estratégia de ocupação da cidade. III Congresso Internacional de Psicopatologia, Niterói, 2008. Disponível em: <http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/iii_congresso/mesas_redon das/do_at_a_radiofusao_como_estrategia_de_ocupacao_da_cidade.pdf>. Acesso em: 29 novembro 2015.         [ Links ]

PERUZZO, C. M. K. Rádio comunitária, educomunicação e desenvolvimento local. In: PAIVA, R. O retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2007.         [ Links ]

QUEVEDO, D. A voz do ouvinte: o rádio como dispositivo de empoderamento e cidadania. Revista ALTERJOR, São Paulo, 2010.         [ Links ]

SOUSA, S. S. G. D. Ondas paranóicas: a loucura está no ar! Revista IMES, São Caetano, 2005. Disponível em: <http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inovacao/article/view/611/461>. Acesso em: 29 novembro 2015.         [ Links ]

YASUÍ, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Danilo Moreira Marques
E-mail: danilo1987@gmail.com

Ellen Cristina Ricci
E-mail: ellenricci@gmail.com

Thiago Lavras Trapé
E-mail: thitrape@gmail.com

Rosana Teresa Onocko-Campos
E-mail: rosanaoc@mpc.com.br

Bruno Ferrari Emerich
E-mail: brunofemerich@gmail.com

Artigo encaminhado: 13/03/2016
Aceito para publicação: 08/12/2016

 

 

1 Psicólogo especialista em Saúde Mental e Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp.
2 Terapeuta ocupacional e especialista em Esquizoanálise. Terapia Ocupacional e Produção de Vida. Mestra em Saúde Coletiva pela Faculdade pela Unicamp.
3 Psicólogo. Doutor em Política, Planejamento e Gestão pela Unicamp
4 Graduação em Ciências Médicas pela Universidade Nacional de Rosário, mestre e doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp.
5 Psicólogo, mestre e doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP (2012).
6 O Centro de Convivência e Cooperação Tear das Artes está localizado no Distrito Sanitário Sudoeste de Campinas/SP. Sua gestão é compartilhada entre as secretarias municipais de Saúde e Cultura. É referência para uma população estimada em 280 mil pessoas, nas quais grande parte de sua população encontra-se em situação de vulnerabilidade e risco social. Além do Centro de Convivência, a rede de saúde deste Distrito conta com dois CAPS III, doze Centros de Saúde e um Hospital Geral.
7 Atenção Básica em Saúde, Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Atenção Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e Estratégias de Reabilitação Psicossocial.
8 Citamos os trabalhos de Deliberador e Lopes (2009), Fachini e Carmo Roldão (2008), Fortuna (2013), Gorczevski, Palombini e Streppel (2009), Gomes (2014), Guerrini Júnior (2009), Mello (2001), Palombini, Cabral e Belloc (2008), Quevedo (2010) e Sousa (2005).
9 http://radionomy.com
10 http://radioondasmentais.blogspot.com.br

Creative Commons License