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Cadernos Brasileiros de Saúde Mental

versão On-line ISSN 1984-2147

Cad. Bras. Saúde Ment. vol.8 no.20 Florianópolis  2016

 

ARTIGOS

 

Arte e cultura para a promoção dos direitos humanos junto a usuários de saúde mental

 

Art and culture for the promotion of human rights at the mental health users

 

 

Carla Regina Silva1; Isadora Cardinali2; Pamela Cristina Bianchi3; Marina Sanches Silvestrini4; Sabrina Ferigato5

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho tem como objeto a interface entre cultura, direitos humanos e saúde mental. Para explorar essa interface, apresentaremos um relato de experiência de uma extensão universitária que inclui previamente a contextualização da temática, a narrativa de uma intervenção e sua posterior análise crítica. O projeto utilizou a arte e a cultura como estratégias sensíveis para promover espaços de formação, criação e emancipação junto a usuários de equipamentos de saúde mental de uma cidade no interior do estado de São Paulo. Pautado pela intersetorialidade e a transdisciplinaridade, foram elaboradas oficinas artístico-culturais para promover a discussão e reflexão acerca dos direitos humanos com populações que tem seus direitos violados frequentemente. A análise crítica da proposta se deu a partir do uso da técnica de construção de diários de campo, dos quais extraímos registros para a construção desse texto. Com essa experiência pudemos evidenciar: i) a importância do uso de atividades artístico-culturais junto aos usuários da saúde mental como meio de sensibilização, expressão e apropriação acerca dos seus direitos humanos fundamentais. ii) que os espaços de criação artístico-culturais oportunizaram vivências, discussões e reflexões que produzem em ato a experimentação de direitos violados ou suprimidos. iii) criações artísticas geraram importantes deslocamentos sensíveis e estéticos para pessoas com transtornos mentais que promovem importantes transformações individuais e coletivas no âmbito da saúde mental. Na direção de qualificar formação profissional, ações e relações para a emancipação dos sujeitos e fortalecer espaços para a cocriação de estratégias de superação.

Palavras-chave: Cidadania; Inclusão social; Direitos sociais; Formação humana; Estética afetiva.


ABSTRACT

The object of this paper is the interface between culture, human rights and mental health. To exploit this interface, we will present the description of an experience carried out in a project of university extension that previously includes the contextualization of the topic, the narrative of an intervention and its subsequent critical analysis. Art and culture were used as sensitive strategies in order to promote formation spaces, creation and emancipation together with users of mental health services of a city in the state of São Paulo. Guided by intersectoriality and transdisciplinary, artistic and cultural interventions were performed to promote the discussion and reflection about human rights with people who have their rights often violated. The critical analysis of the proposal was obtained by the use of the technique of construction of field diaries, which were employed to the extraction of clippings for the construction of this text. This experience showed: i) the importance of using artistic and cultural activities to the users of services of mental health, as altenatives of awareness, expression and appropriation of their fundamental human rights. ii) the spaces of artistic and cultural creation provided experiences, discussions and reflections that produce in the act the experimentation of violated or suppressed rights. iii) artistic creations generated important sensitive and aesthetic movements for people with mental disorders that promote important individual and collective transformations in the context of mental health. In the sense of qualifying professional formation, actions and relationships for the emancipation of individuals and strengthening of spaces for co-creation of overcoming strategies.

Keywords: Citizenship; Social inclusion; Social rights; Human formation; Affective aesthetic.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Esse texto se caracteriza como um relato de experiência que visa explorar a potência da arte e da cultura para a construção de direitos humanos junto à usuários da saúde mental. Para isso, faremos uma breve contextualização sobre o tema em discussão para posteriormente apresentarmos uma experiência concreta de cruzamento das fronteiras entre arte, cultura, direitos humanos e saúde mental; experiência compartilhada entre pesquisadores, profissionais e usuários da saúde mental em uma cidade no interior de São Paulo.

Os direitos humanos têm como marco importante a Declaração Internacional dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas, de 1948, a qual preconiza que todo indivíduo, em qualquer lugar, deve "ser reconhecido como pessoa perante a lei". Afirma o reconhecimento do instituto de "pessoa" como o elemento intrínseco à dignidade de todos (ONU, 1984, artigo VI).

Os direitos humanos podem ser classificados em três gerações, a primeira se caracteriza pelas liberdades individuais ou os direitos civis e sociais; a segunda refere-se aos direitos econômicos, sociais e culturais, originados dos direitos ligados ao mundo do trabalho ou àqueles de caráter social e a terceira geração diz respeito aos direitos coletivos da humanidade, desta e de gerações futuras, aludindo ao meio ambiente, à paz, à partilha do patrimônio científico, cultural e tecnológico, à democracia, entre outros (BENEVIDES, 2007).

Não é segredo que a grande desigualdade social frente ao mundo globalizado e neoliberal dificulta a real efetivação dos direitos humanos. Se por um lado, todos os direitos humanos são de extrema importância e indissociáveis da construção da saúde mental de cada um de nós, por outro ainda há uma grande barreira para sua efetivação em relação a todas suas gerações, em especial, no que diz respeito aos direitos sociais, econômicos e culturais. Quanto mais for preciso afirmar a existência dos direitos humanos, mais assistimos à violação desses direitos, havendo até um retrocesso em muitos países (CANDAU, 2008), incluindo o Brasil.

O ser humano, na sua pluralidade de características, comportamentos e fazeres, não encontra lugar para existir nessa diversidade sem esbarrar em violações amplas de seus direitos básicos. Essas violações são vivenciadas cotidianamente, e por isso, e a construção de garantias desses direitos se faz imperativo na produção de vidas potentes.

Entendemos que as políticas neoliberais acirraram as tensões naturalmente produzidas pela pluralidade humana e forçam uma busca constante pela garantia de políticas sociais e direitos humanos em tese já assegurados. Vasconcelos (2012) apresenta como as problemáticas geradas numa conjuntura como essa desencadeiam fortes impactos no campo da saúde mental. "Crise econômica, privatização, focalização, subfinanciamento e sucateamento das políticas sociais; precarização dos vínculos de trabalho; perda de direitos substantivos e da qualidade dos serviços públicos; desigualdade social; desemprego e trabalho informal; aumento da pobreza, violência social e abuso de drogas" (p. 10-11) - são alguns dos exemplos que influenciam quando não determinam diferentes formas de sofrimento psíquico emergentes na atualidade.

Além disso, a assistência à saúde mental no país ainda enfrenta o desafio de superar seu histórico marcado pelo asilamento manicomial, com "caráter de marginalização e exclusão econômica e social típico da psiquiatria tradicional" (RIBEIRO et al, 2008, p. 73) e todas as violências e violações de direitos humanos e sociais induzidas, provocadas e ampliadas por esse processo.

Saraceno (2011) afirma que entre aqueles que sofrem algum tipo de transtorno mental, encontramos pessoas com grave sofrimento biopsicossocial e/ou problemáticas como a privação econômica, afetiva, social ou educativa. Situações como, a violência doméstica ou social, a extrema pobreza, o desenraizamento dos migrantes, os deslocamentos dos refugiados e o isolamento das populações indígenas, são todas condições que agridem a saúde mental dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais, e todos possuem uma condição em comum - estão expostos a violações dos direitos humanos e de cidadania e têm necessidade de respostas concretas que se articulem em um quadro comunitário e de desenvolvimento humano global.

Depois de séculos de confinamento de pessoas vítimas de problemáticas como essas, o Movimento de Reforma Psiquiátrica6 do Brasil, inspirado pelo modelo Italiano apresenta uma série de medidas para transformação da lógica assistencial, promoção e garantia de direitos para os usuários de serviços de saúde mental e seus familiares. Amarante e Diaz (2012, p. 85), afirmam que as transformações propostas por esta reforma estão pautadas na desinstitucionalização como uma "nova tecnologia de intervenção, nos dispositivos institucionais diversos do hospital psiquiátrico, no corpo de profissionais unidos em uma multidisciplinaridade e no estatuto do usuário como sujeito de direitos".

Compreende-se, portanto, a necessidade de produzir espaços de aprendizagem dialógica, escuta sensível e criação sobre os direitos sociais e humanos junto às populações que vivenciam de alguma forma seu cerceamento "É preciso compreender que as práticas reabilitadoras devem se encontrar no exercício dos direitos sociais e, para isso, devem poder sair do discurso técnico para fazerem sentido, para se aproximarem da realidade social, com seus conflitos, contradições, sensos e contrassensos" (RIBEIRO et al, 2008, p. 73).

No bojo da construção desses direitos sociais é importante apontar a questão da inclusão da cultura como direito básico, bem como as barreiras encontradas na discussão e realização de ações públicas para garantir tal direito. Discutir cultura é refletir sobre modos de vida, sobre singularidades e expressões na diversidade, sobre como lutar por políticas que acolham essa demanda e viabilizem reconhecimento e acesso aos meios e fazeres culturais materiais ou imateriais.

Amarante et al (2012) afirmam que na dimensão sociocultural ocorrem importantes estratégias para a transformação do lugar social da loucura, ou seja, ações de transformação das relações entre a sociedade e a loucura, estratégias que visam promover a "constituição de um movimento social cultural como base desse novo campo artístico-cultural" (AMARANTE et al, 2012, p. 126).

Dentre essas estratégias podemos citar a implementação dos Centros de Convivência, a ampliação dos empreendimentos solidários, as cooperativas sócias e iniciativas de geração de renda previstas na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial)7 ou como os marcos emblemáticos que poderiam ser citados em que a fronteira entre a clínica que a arte se borraram na história da saúde mental brasileira. Neste caso, gostaríamos de ampliar a zona de interface arte-clínica, introduzindo, por meio da cultura, a complexidade dos direitos humanos.

 

2 DIREITOS HUMANOS PARA A DIVERSIDADE: construindo espaços de arte, cultura e educação

Nesta perspectiva, apresentamos o Programa "Direitos Humanos para a Diversidade: construindo espaços de arte, cultura e educação"8 que uniu a potência da arte e da cultura para implementar espaços integrados educacionais e lúdicos para a promoção, o debate, a formação e a execução de ações na defesa dos Direitos Humanos, pautados nas diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)9 (BRASIL, 2010).

O programa foi estruturado em três subprojetos que implantaram os espaços interativos, com respeito à diversidade, para promoção de ações integradas, intersetoriais e fomentadoras de processos de empoderamento, cidadania ativa e autonomia de grupos historicamente estigmatizados (SILVA, 2014). Os subprojetos foram realizados com os usuários que frequentavam os serviços públicos: Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II), Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (CAPS-AD), Centro de Referência Especializada da Assistência Social – População de Rua (CREAS-Pop) e Albergue Noturno da cidade de São Carlos, interior do Estado de São Paulo10.

Os participantes dos subprojetos consistiram em usuários do CAPS II, adultos que apresentam alguma demanda em relação à saúde mental, usuários do CAPSAD, adolescentes e adultos dependentes ou que fazem uso abusivo do álcool, outras drogas ou a associação entre elas, e a população em situação de rua, jovens, adultos e idosos frequentadores dos serviços do CREAS-POP e do Albergue, sendo a maioria do gênero masculino, que fazem uso de álcool ou outras drogas. Alguns dos participantes frequentavam mais de um desses serviços.

O programa elaborou ações de arte e cultura em formatos acessíveis, lúdicos e integrados de acordo com as demandas e as características específicas dos grupos. Foram ofertadas oficinas criativas semanais com usuários, familiares e profissionais em cada um dos equipamentos durante dez semanas com três horas de duração cada. Cada oficina foi previamente planejada, contendo um tema dos direitos humanos e um recurso artístico para sua sensibilização, elaborado em parceria com diferentes artistas e grupos artísticos da cidade que auxiliaram neste processo, além de qualificar a proposta e ampliar o debate para outros setores sociais.

Como acordado com os profissionais de cada serviço, as oficinas eram abertas para todos os usuários que frequentassem o local e estivessem presentes no momento de sua realização, assim como para qualquer profissional. Foram conduzidas de forma acolhedora e flexível para que fossem compostas pelos usuários que se interessassem, sendo permitida a entrada e saída com autonomia entre eles. A cada semana havia uma novidade e proposta diferente o que também era refletida nos objetos e recursos utilizados, essa materialidade interessava e surpreendia os usuários que eram convidados a interagir com as propostas, expressões e artistas e membros da equipe.

Arte e cultura são elementos indissociáveis da experiência humana. Neste programa a arte reflexiva e a cultura sensibilizadora foram pilares de uma forma de pensar estruturas de resistência às violências e violações cotidianas. Por isso, a importância de tais temas aliados à discussão dos direitos humanos, para produzir e criar no fomento ao pluralismo, (re)inventar e desconstruir lógicas enrijecidas, objetivando vivências e debates sensíveis que dialogassem na perspectiva da luta pela existência digna, pelos direitos básicos de respeito a vida e sua diversidade.

A equipe foi composta com profissionais e estudantes de diferentes formações11, de forma transdisciplinar, permitindo que os talentos individuais pudessem emergir promovendo a integração da equipe e o reconhecimento de produzir coletivamente. Como também foram realizadas parcerias com artistas da cidade para a composição de estratégias e apresentações artísticas que envolvessem as temáticas dos direitos humanos.

A metodologia adotada teve como princípio os preceitos educacionais e humanos elaborados por Paulo Freire (2005) e relação com o fazer proposto pela terapia ocupacional. Segundo Lima (2003), a Terapia Ocupacional é um campo de práticas e saberes constituído historicamente para responder a problemáticas relacionadas a populações que, por razões diversas, sofreram a ação de processos de exclusão e que ao longo do tempo invertido a lógica disciplinar, afirmando o direito à diferença e encontrando positividade em formas de vida as mais singulares e em situações as mais adversas.

Cada Oficina teve como tema central e proposta:

Oficina 1) "O que sabemos sobre os Direitos Humanos?" - dinâmicas, diálogos e rodas de conversas;

Oficina 2) "Direito à Identidade, à Memória e à Vida" - fotos dos usuários, cartazes no formato de Carteira de Identidade e questões sobre a identidade, memórias e reflexões que contribuíram a preencher painéis coletivos e reflexivos;

Oficina 3) "Direito à Igualdade na Diversidade" - apresentações circenses com esquetes, e malabarismos, utilizando direitos anexados aos malabares;

Oficina 4) "Direito à Liberdade de Expressão e de Pensamento" - modelagem em argila, sendo propostos bustos e corações despertando expressões, histórias e afetos;

Oficina 5) "Direito à Cultura e ao Lazer" - composição de expressão corporal, danças circulares e contação de história.

Oficina 6) "Direito à Participação Popular e Política" - apresentação teatral crítica e interativa, "Senhor Cidadão".

Oficina 7) "Direito à Comunicação e à Informação" - técnicas de expressão e propostas textuais e orais (carta ao governo, quadrinhos, desenhos, poemas, fotonovelas, depoimentos) que compuseram um fanzine;

Oficina 8) "Cidadania" - produtos artesanais e pintura coletiva para expressão de emoções pessoais e coletivas.

Oficina 9) "Valorização da pessoa como sujeito central do processo de desenvolvimento"- organização de um espaço de bem-estar e apresentação de um sarau;

Oficina 10) "O que aprendi sobre Direitos Humanos" celebrou o final do programa com uma dinâmica de 'Caça aos Direitos', com mural interativo e apresentações musicais e teatrais livres.

Todos os procedimentos passaram por processos de planejamento, monitoramento, avaliação, sistematização e compartilhamento (ANDRADE; GUIMARÃES, 2012). Ao final de cada projeto, foram realizadas avaliações com todos os envolvidos: participantes, equipe, profissionais do serviço e artistas parceiros em diferentes formatos como entrevistas, avaliações coletivas, relatórios e diários de campo.

Através da análise das avaliações constatou-se a apropriação pelos participantes acerca dos direitos humanos, evidenciou-se que os espaços de criação oportunizaram discussões, reflexões e expressão de sentimentos e que as criações artísticas geraram importantes deslocamentos sensíveis e estéticos, reforçando a potência da escolha de utilizar tais recursos.

Na subjetividade do fazer artístico, as pessoas compartilharam histórias doloridas, sofrimentos guardados, memórias queridas e fazeres singulares, tornando-os menos pesados ou negligenciados, mais visíveis e sensíveis. Esse viés foi capaz de encantar, pois, é a partir de "deslocamentos sensíveis" produzidos, tanto no âmbito de criações coletivas, quanto dos processos criativos individuais, que acontece a descoberta de que arte é criar e que todo ser cria enquanto vive e essa vivência de criação tem potência clínica, social, cultural, orgânica, política e expressiva. É recurso sensível de exploração do mundo na sua dimensão infinita através de aspectos cotidianos mais intrínsecos. É possível se reconstruir, se reinventar, mudar as lógicas, compreender o subjetivo mais complexo (SILVA, CARDINALLI; SILVESTRINI, 2014, p. 34-35).

2.1 Relatos das avaliações dos participantes

A arte foi apontada como uma ferramenta potencializadora, um canal de sensibilização que proporcionou grande expressão de deslocamentos sensíveis, ou seja, expressões singulares potentes, mas que ao mesmo tempo coletivas.

A arte de modelar, dar forma, dar vida e significado para um pedaço de massa, parece desenvolver um processo criativo e sensível muito expressivo. Logo que chegamos com os utensílios e objetos houve um interesse, uma procura das pessoas, a demonstração de que queriam estar ali, queriam fazer. (Diário de campo, 4ª atividade CAPS AD).

De repente, o rádio parou de funcionar e os participantes começaram a cantar e fazer sons com os pés. Fizeram uma espiral de mãos dadas e cantavam cada vez mais alto, demonstrando que estavam se entregando de corpo e alma à atividade (ainda bem que o rádio não funcionou!). (Diário de campo, 5ª atividade CAPS AD).

De acordo com Emerich, Campos e Passos (2014) a emergência de sujeitos de direitos não pode se dar senão no plano coletivo, por um lado, como prática vivida de intersubjetividade e, por outro, a partir da gestão coletiva e compartilhada de experiências, que produzam modos de existência mais livres, com incorporação efetiva da autonomia dos usuários e dos direitos humanos.

A interação com membros da equipe, a participação ativa nas oficinas e o compartilhamento de sentimentos, opiniões e desejos foram importantes elementos alcançados através da utilização de recursos artísticos.

Quando C. e M. estavam absolutamente imóveis e pouco caracterizados. Os usuários foram convidados a vesti-los com diversos acessórios para dotá-los de vida e individualidade. Vários usuários participaram desse momento ativamente e de maneira divertida (...). O momento de vestir os palhaços foi marcado pela interatividade dos usuários com a equipe, rompendo um pouco com a lógica passiva ligada à ação de assistir. (Diário de campo, 3ª atividade CAPS II).

Em seguida, C., M. e W. (palhaços) prosseguiram com a intervenção com a participação de alguns usuários que até então não haviam participado. C. soube misturar muito bem os direitos humanos (que fazia questão de falar dos que estavam nos malabares) com humor (nos fazendo rir bastante). Me chamou bastante atenção a maneira que os usuários interagiram com a intervenção, ficou evidente o prazer que estavam sentindo por fazerem parte do número apresentado. (Diário de campo, 3ª atividade CAPS AD).

As atividades artísticas e culturais foram recursos importantes para a apropriação e empoderamento pelos usuários sobre a temática dos direitos humanos. Através de abordagens simples, com linguagens claras, foi possível trazer ao cotidiano dos usuários as reflexões sobre o que e quais são seus direitos, como buscar e reivindicar por eles, tantas vezes violados.

Ao explicar a atividade da carta [carta à presidente] (...), os usuários remeteram a elaboração da carta aos problemas atuais do CAPS, como a falta de café da manhã e da tarde, proibição de festas comemorativas, não recontratação do guarda para segurança, piora na alimentação. (...) Percebi, durante essas discussões, que os usuários não estavam tendo espaço para fazer tais reclamações e encontraram na atividade e nos membros da equipe espaço para colocarem seu ponto de vista (...). Na mesa da carta, os usuários continuam seu desabafo acerca da mudança da gestão municipal. Neste momento, uma usuária se exalta falando da mudança de gestão e dos atuais problemas do CAPS: "a gente tá aqui abandonado", "a gente tem nossos direitos". Outros usuários também se colocam, com falas como "a gente quer nossos direitos". (Diário de campo, 8ª atividade CAPS II).

No final da intervenção, os artistas leram novamente os direitos que estavam escritos nos malabares e M. levantou o que havia ficado para os usuários daquela oficina: direito à alegria, direito à união, prazer de ser feliz, "direitos trocados e envolvimento de pessoas nessa troca" disse a usuária R., "esperamos que vocês continuem vindo aqui, pois quando vocês vêm aqui, vocês tiram sorrisos da gente" completou o usuário M. (Diário de campo, 3ª atividade CAPS AD).

Outro ponto relevante aos resultados alcançados, diz respeito à sensibilidade e afetividade envolvendo a arte e despertadas nos participantes e na própria equipe, a potência na criação de vínculo e na sensibilização do outro. É a aprendizagem alcançada por meio da empatia e do afeto.

R. oportunamente fez uma intervenção falando sobre o direito à cultura e ao lazer. E, em seguida, uma usuária respondeu dizendo ser uma pena sempre nos esquecermos desse direito. L. perguntou para os usuários o porquê da atividade ter dado certo, foi então que alguns usuários responderam: "porque todos se dispuseram a fazer", "hoje eu acordei muito mal, mas vocês conseguiram transformar meu dia, estou me sentindo bem melhor" (...) "uma hora não tínhamos nada na brincadeira e depois começamos a transformar o mundo, ai eu vi que podemos criar coisas na alma da gente, aprendi que a força de vontade transforma coisas, eu havia me esquecido que a gente era capaz de aprender as coisas", "eu descobri que eu existo e que dá pra criar e fazer coisas boas sem judiar do meu corpo". (Diário de campo, 5ª atividade CAPS AD).

M. respondeu: "senti uma energia muito boa. O que vocês fizeram é a verdade mesmo. Eu vejo como o cidadão hoje só pensa nele mesmo. Vocês proporcionam a realidade mesmo. Vocês me proporcionam amor ao próximo, cada olhar, cada sorriso. Quando vocês chegam é a nossa alegria. Eu vejo que vocês querem um mundo melhor. Eu não consigo mudar meu passado, mas posso mudar meu futuro. Obrigado por ter conhecido vocês". Aproveitando a fala anterior, M. também completa "vocês animam a gente. Uma de vocês me disse que eu tinha a voz bonita, aí ontem eu passei o dia todo cantando lá no meu filho. Nós somos fracos, o que da raiz, o que dá força, são vocês". Rita aproximou-se da discussão: "vocês estão sendo nosso primeiro contato de volta à sociedade. Vocês são a chave que abre nossas portas. Começar a falar, a ter liberdade de expressão. Vocês são a chave para nossa segunda chance". (Diário de campo, 7ª atividade CAPS AD).

Olhar para os indivíduos como sujeitos de direitos que possuem uma trajetória singular de vida e sentir o forte desejo de compartilhar dessas experiências, ouvir essas histórias - a arte neste ponto foi sentida como uma ferramenta potente especialmente para a criação de vínculo, o qual permitiu maior aproximação com os atores envolvidos, trocas de afetos e significados nas vivências em conjunto.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quero afirmar, com todas as forças, que sem emoção, alegria, afetividade e senso de humor, não há possibilidade de crítica, de autocrítica e de transformação. Num país como nosso, marcado por desigualdades e injustiças devastadoras, não podemos sucumbir ao ceticismo ou à melancolia dos conformistas. Há que se ter uma pedagogia da indignação – porém, livre de ressentimentos, que só causam amargura estéril; há que se ter, como mostrou Paulo Freire, uma pedagogia da construção, do assombro e da admiração diante de tudo o que afirma a vida, que seja um permanente convite para compartilhar a alegria de viver (BENEVIDES, 2007, p. 349).

O relato da experiência nos permite afirmar a importância de espaços mais lúdicos, da arte e da cultura nos serviços de saúde mental, mas também a potência de se tratar de questões sociais importantes e complexas, compartilhadas por diversos cidadãos em situação de vulnerabilidade, com ou sem transtornos mentais.

A partir da leitura atenta e análise das avaliações realizadas, identificamos que os recursos advindos da arte e da cultura foram estratégias potentes para a sensibilização e apropriação da temática dos direitos humanos e, sobretudo, o empoderamento acerca da cidadania e percepção do direito individual e coletivo, principalmente, ao se tratar de uma população caracterizada pelo estigma e violação destes direitos – usuários de serviços da saúde mental.

Comprovou-se a importância de trazer para esses serviços, a discussão sobre essa temática, que significou um espaço oportuno de luta para os participantes. Nota-se, desta forma, que a arte e a cultura possibilitaram maior aproximação, expressão e abertura dos sujeitos, a partir das quais foi possível aprofundar a leitura das necessidades dos sujeitos e promover uma maior conexão, experimentação e convivência na construção coletiva desses direitos.

O formato das oficinas abertas, flexíveis e acolhedoras gerou interesse, permanência e frequência dos participantes, sendo que o número de usuários aumentou nos encontros iniciais e se manteve com de forma equilibrada com o decorrer dos subprojetos.

Ademais, foi possível sinalizar o quanto os instrumentos artísticos e culturais foram potencializadores e facilitadores dos processos de aprendizagem e empoderamento acerca dos direitos humanos, uma vez que serviam de sensibilizadores para os temas propostos, e ao mesmo tempo produziam a experimentação de direitos humanos em ato. Tornaram nossas ações mais afetivas e significantes, como muitas vezes foi expresso nas oficinas. Tal processo foi identificado como fundamental na vinculação dos participantes nas oficinas e com a equipe.

Ressalta-se que a associação entre arte e cultura produziu o significado expressado pelos usuários em detrimento e associado a forma com que foram planejados e conduzidos os encontros, a relação de interesse, confiança e vínculo foram fundamentais para a produção de sentido, somados os cuidados e qualificação das relações estabelecidas desde sua produção e materialidade até as avaliações desenvolvidos.

A matéria-prima do fazer artístico cultural é a criatividade, ou seja, material inerente a nossa espécie e canal potente de ser/fazer/sentir. O produto da discussão sobre direitos humanos é a emancipação dos sujeitos e o fortalecimento de espaços para a cocriação de estratégias de superação de violações, muitas vezes dolorosas e marcantes, através do coletivo acolhedor. Nesse sentido, tem-se tal relação: a sensibilidade e a diversidade que agregam pessoas com o intuito de pesar formas de existências no mínimo humanas.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Carla Regina Silva
E-mail: carlars@ufscar.br

Isadora Cardinali
E-mail: isadora.cardinalli@gmail.com

Pamela Cristina Bianchi
E-mail: pamelacbianchi@gmail.com

Marina Sanches Silvestrini
E-mail: mariadellacoletta@hotmail.com

Sabrina Ferigato
E-mail: sabrinaferigato@gmail.com

Artigo encaminhado: 15/03/2016
Aceito para publicação: 01/12/2016

 

 

1 Professora Doutora. Graduada em Terapia Ocupacional pela UFSCar, mestre e doutora em Educação pela UFSCar; professora adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar e do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar; Líder do Grupo de Pesquisa Atividades Humanas e Terapia Ocupacional.
2 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduada em Terapia Ocupacional pela UFSCar; especialista em Terapia Ocupacional, Arte, Saúde e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP); mestre em Terapia Ocupacional pelo Programa de Terapia Ocupacional da UFSCar; pesquisadora do Laboratório de Atividades Humanas e Terapia Ocupacional da UFSCar.
3 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduada em Terapia Ocupacional pela UFSCar; especialista em Terapia Ocupacional, Arte, Saúde e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP); mestre em Terapia Ocupacional pelo Programa de Terapia Ocupacional da UFSCar; pesquisadora do Laboratório de Atividades Humanas e Terapia Ocupacional da UFSCar.
4 Terapeuta Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos, especialista em gestão da cultura; pesquisadora do Laboratório de Atividades Humanas e Terapia Ocupacional da UFSCar.
5 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduada em Terapia Ocupacional pela PUCCampinas, doutora em Saúde Coletiva pela Unicamp e professora adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar e do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar.
6 Formulada como uma política pública do Estado, a Reforma Psiquiátrica brasileira é respaldada pela Lei nº 10.216 e pelas diversas portarias implantadas pelo Ministério da Saúde em consonância com o Movimento da luta antimanicomial. O projeto em expansão constitui-se por modelo comunitário de atenção, por meio dos chamados equipamentos substitutivos (CAPS, CECOs, Oficinas de Geração de renda, Serviços Residenciais Terapêuticos, os leitos psiquiátricos em hospital geral, entre outros, associados à construção de uma política pública intersetorial, seja para pessoas com transtornos mentais, pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, e também para crianças e adolescentes; visando a construção de redes de atenção, a inclusão social e a consequente redução dos leitos nos hospitais psiquiátricos (AMARANTE; DIAZ, 2012).
7 De acordo com o Art. 2º da portaria 3088 que institui a RAPS, o respeito aos direitos humanos, a garantia da autonomia e da liberdade das pessoas constituem-se como uma diretriz para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (BRASIL, 2011).
8 Programa de Extensão Universitária desenvolvido em 2013 pelo Laboratório Atividades Humanas e Terapia Ocupacional – AHTO do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos, coordenado pela Profa. Dra. Carla Regina Silva, com apoio da Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar e financiado pelo Programa de Extensão PROEXT, da Secretaria de Ensino Superior – SESU do Ministério da Educação.
9 O Brasil desde 1996 possui um Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), elaborado pelo Ministério da Justiça em conjunto com diversas organizações da sociedade civil. Foram, então, estabelecidas diretrizes nacionais para os direitos humanos no país, visando proteger o direito à vida e à integridade física, o direito à liberdade e o direito à igualdade perante a lei (BRASIL, 1996). Este programa foi revisado e atualizado em 2002, resultando no segundo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II), que incluiu os direitos econômicos, culturais, sociais e ambientais. Atualmente é vigente a terceira versão do documento (PNDH-3), orientada pelas perspectivas de universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos (BRASIL, 2010).
10 Foram realizados todos os procedimentos éticos e autorizações por todas as instâncias envolvidas, para realização das atividades propostas.
11 Terapia Ocupacional, Imagem e Som, Psicologia, Pedagogia, Ciências Sociais, Ciência da Informação e Biblioteconomia.

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