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Cadernos Brasileiros de Saúde Mental

versão On-line ISSN 1984-2147

Cad. Bras. Saúde Ment. vol.8 no.20 Florianópolis  2016

 

ARTIGOS

 

Marginalidade: habitando o "entre" na interface das artes e da saúde

 

Marginality: inhabiting the "between" on the interface of arts and health

 

 

Juliana Araújo Silva1,I; Elizabeth M. Freire de Araújo Lima2, I, II

IUNESP, Assis
IIUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é um extrato da pesquisa de mestrado "Poéticas e Marginalidade: experiência no Projeto Cidadãos Cantantes". A pesquisa foi uma cartografia da experiência neste projeto existente desde 1992, composto por uma oficina de Coral Cênico e uma oficina de Dança e Expressão Corporal, que habita a zona de fronteira entre as artes e a saúde, principalmente a saúde mental. Especificamente para a elaboração deste artigo focamos em questões relativas a sustentação desta experiência, na interface de campos, com a ajuda da ideia de marginalidade trabalhada por Hélio Oiticica. É realizado um breve panorama que contextualiza o surgimento deste Projeto, seus passos iniciais, bem como questões surgidas em mais de vinte anos de experiência. As questões conceituais para a constituição de um trabalho fronteiriço, bem como as relações institucionais com os espaços de cultura também são abordadas.

Palavras-chave: Atenção Psicossocial; Artes; Políticas Públicas; Saúde Coletiva.


ABSTRACT

This article is part of the dissertation "Poetics and marginality: experience in the Singing Citizens Project". This research was a cartography of that experience on this project created on 1992 in an interface between art and health, it consists in two workshops: a Scenic Chorus workshop and a Dance and body expression workshop. By mapping the problems that emerged during the encounter with this experience, blocks of discussion were built and organized around them. Specifically for this article we chose to focus on matters related with How to sustain such projects, on the interface between arts and health. The Project's relations with the cultural institutions are questioned. The research allowed to realize how, by existing in the between fields, at a border region that we here call marginality, as Hélio Oiticica told us, the Project potentiates itself on it's experimentations, incorporating elements of art, health and other fields.

Keywords: Psicossocial Attention; Arts; Public Politics; Collective Health.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é um extrato da dissertação de mestrado intitulada "Poéticas e Marginalidade: experiência no Projeto Cidadãos Cantantes", desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP, campus Assis. Foi realizada uma cartografia a partir das vivências da pesquisadora nas oficinas de Coral e Dança do Projeto, entre os anos de 2008 a 2012, e elencados temas para serem discutidos. A pesquisa foi possível pela parceria existente entre o Projeto Cidadãos Cantantes e o Laboratório Arte, Corpo e Terapia Ocupacional do Curso de Terapia Ocupacional da USP.

O Projeto Cidadãos Cantantes surgiu no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Desde sua criação, esteve comprometido com a transformação dos modelos de atenção em saúde mental propondo a experiência do viver-junto para pessoas em sofrimento psíquico. Duas oficinas compõem esse Projeto: o Coral Cênico (regido por Julio Maluf), e a Oficina de Dança e Expressão Corporal (coord. Tatiana Bichara), com coordenação geral de Cristina Lopes.

Neste texto intenta-se abordar questões relativas à interface de campos – arte e saúde mental - a partir da problematização de se habitar este lugar de fronteiras, o "entre", na composição com a ideia de marginalidade. Apresentamos três linhas de discussão para refletir sobre este trabalho de interface: 1. as linhas que possibilitam o surgimento desta proposta com o olhar direcionado para a própria interface; 2. as linhas que compõem a relação do projeto com as instituições de cultura e que definem possibilidades de sua existência; 3. as linhas poéticas que dizem das produções realizadas neste lugar. Ao final, apontamos a interface como um lugar político de marginalidade, composto por potências e desafios que singulariza estas experiências.

 

2 LINHAS

2.1 Fazer relevos em linhas de tempo: a formação do Projeto Cidadãos Cantantes

Pensar o surgimento do Projeto Cidadãos Cantantes implica produzir saliências em linhas diversas, e compor com elas para construir certo caminho. Diferentemente de dispor fatos históricos, a tentativa aqui será buscar, neste relevo, fazer encaixes de movimentos.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve início no final dos anos 1970, impulsionada pelo nascimento do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) e pela Luta Antimanicomial, que reunia trabalhadores, familiares e pessoas com sofrimento psíquico. O objetivo da Reforma Psiquiátrica é a construção de formas de atenção e cuidado mais próximas dos direitos das pessoas, de suas potencialidades, dos espaços de vida e de convivência social que ocupam. Ela fomenta discussões sobre cidadania, construção da rede de atenção em saúde mental não hospitalocêntrica, entre outras questões, mediante fóruns, encontros e conferências (LEAL, 2010; GALVANESE, 2010; MALUF, 2005).

A principal influência da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi a reforma italiana, liderada pelo psiquiatra Franco Basaglia. Com a ideia de que "a liberdade é terapêutica", diversas ações foram elaboradas, em Triste, em prol de restaurar a vida dos internos e as trocas sociais entre eles e a cidade. As ações visavam, por um lado, que moradores da cidade circulassem pelo espaço do hospital psiquiátrico, transformado posteriormente em parque, e, por outro, que os internos de San Giovanni retornassem aos espaços de Trieste, por meio de passeios programados e manifestações culturais (BARROS, 1994).

Com essas ações, assinalou-se uma profunda diferença em relação às ideias da psiquiatria tradicional, que acreditava que a reclusão e o distanciamento da cidade e de seu caos seriam terapêuticos. Franco Rotelli (2001) aponta que um dos principais equívocos da psiquiatria foi ter separado a "doença" da vida em sua forma complexa e concreta, criando, assim, todo um conjunto de ações relativas somente à "doença", um objeto fictício, como refere o autor.

[...] o problema não é a cura (a vida produtiva), mas a produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização das formas (dos espaços coletivos) de convivência dispersa. E por isso a festa, a comunidade difusa, a reconversão contínua dos recursos institucionais, e por isso solidariedade e afetividade se tornarão momentos e objetivos centrais na economia terapêutica (que é economia política) que está inevitavelmente na articulação entre materialidade do espaço institucional e potencialidade dos recursos subjetivos. (ROTELLI, 2001, p. 30)

Inspirada neste ideário, a Reforma Psiquiátrica brasileira foi sendo organizada a partir da criação de um conjunto de políticas públicas, leis e serviços de atenção às pessoas em sofrimento psíquico grave, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Centros de Convivência de Cooperativas (CECCO), Residências Terapêuticas, ações e programas ligados à inclusão no trabalho, na escola, etc. Um forte desdobramento das construções de novas formas de cuidado em saúde mental foram os projetos, como o Cidadãos Cantantes, inseridos em campos como o da cultura, ao apostarem na potência de trabalhos que não se situam em locais de saúde e que não acontecem prioritariamente a partir dos processos de saúde e doença, mas da produção de vida, linguagens e poéticas.

Neste contexto, as ações para instituir um novo modelo de Saúde Mental na cidade de São Paulo ganharam força, segundo Lopes (2003), no período entre 1989 e 1992. Nesta época, o atendimento em saúde mental na cidade organizava-se com 4.685 leitos em 22 hospitais psiquiátricos, com ações de saúde mental em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e quase nenhum projeto intersetorial. Foi naquele momento que foram criados e instalados os Centros de Convivência e Cooperativa (CECCOS).

Os CECCOs foram uma importante iniciativa desta época, que colaborou para o planejamento e efetivação do Projeto Cidadãos Cantantes, em 1992. Na proposta do CECCO, implantada a partir de 1989, podemos notar uma inclinação maior para a construção de espaços de encontros de singularidades, que objetivassem a convivência e o trabalho compartilhado.

Utilizando-se dos espaços públicos e implicando na participação da população de cada território, os CECCOS tinham por base o agrupamento em torno do esporte, do artesanato, das linguagens artísticas, entre outras ações. Os espaços escolhidos para comportar estes equipamentos, em sua maioria, eram parques, praças, centros comunitários e de esporte, em ações que envolviam as Secretarias de Saúde, Esportes, Áreas Verdes, Educação e Cultura (LOPES, 2005).

O desejo pela produção compartilhada através das diferenças fortaleceu também o surgimento do Projeto Cidadãos Cantantes, em 1992. Para sua criação iniciou-se um mapeamento das oficinas mais procuradas nos CECCOS da cidade e, posteriormente, um local para que a ideia pudesse efetivar-se. Neste mapeamento constatou-se que as linguagens mais procuradas eram a música e o teatro, e foi assim que surgiu o Coral Cênico de Saúde Mental, sob a forma de oficina aberta. O espaço encontrado para acolher o Projeto foi, inicialmente, o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Com o espaço definido, os participantes do Projeto colocaram-se em busca de um regente, e assim iniciaram seus ensaios.

Em 2001, ainda ocupando o espaço do CCSP, surgiu a oficina de Dança e Expressão Corporal, com coordenadores diferentes daqueles da oficina do Coral, para trabalhar o corpo e a expressão gestual de pessoas que, em sua maioria, traziam em si marcas das internações e/ou reclusões em seus corpos. Com o tempo, as oficinas foram constituindo seus próprios movimentos, e, embora componham o Projeto Cidadãos Cantantes, cada uma tem dinâmicas e características singulares.

Este Projeto tem como foco diferentes modos de produzir subjetividade e ressoa em outros campos sociais, ou outras ecologias, configurando uma ecosofia. Para Guattari (2007), a ecosofia articula politicamente três ecologias: a ecologia do meio ambiente, a ecologia das relações sociais e a ecologia mental, ou da subjetividade humana.

Para descrever este conceito, o mesmo autor nos localiza no Capitalismo Mundial Integrado e suas formas de poder, cada vez menos centralizadas e mais infiltradas em veículos que atingem de forma homogênea a população, como as mídias, cujo funcionamento visa produzir modos pré-fabricados de subjetividades e capturar a força criativa e inventiva das pessoas. A ecosofia, ao contrário, exerce uma resistência a esses poderes para produzir a existência humana, como parte de uma revolução que busca a reorientação de nossas produções materiais e imateriais, de nossa sensibilidade e do desejo. "Trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderia ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero." (GUATARRI, 2007, p. 15).

Cada ecologia terá então que desdobrar seus modos de trabalho para produzir modos de resistência e, assim, produzir vida. Guattari sugere que a ecologia mental se aproxime do modo de invenção dos artistas para produzir novas relações dos sujeitos com o corpo, o inconsciente e o tempo. É preciso compreender a existência de vetores múltiplos de subjetivação, que se cruzam e compõem o desenho subjetivo, operando uma concepção de subjetividade que se opõe a concepções pautadas em cristalizações ou em estruturas fixas.

A ecologia social, por sua vez, consistirá em desenvolver práticas que tendam a modificar e reorientar as relações humanas nos diversos contextos: maneiras de ser em grupo, na cidade, na família e no casal; trabalhando para cultivar o dissenso e as produções singulares. A ecologia ambiental consiste em trabalhar no sentido de evitar as piores catástrofes e desenvolver evoluções flexíveis. Suas ações estão conectadas com as relações entre o homem e o meio.

Com isso, percebemos que todas as ecologias se conectam, e que o trabalho com uma delas implica em modificações nas demais. A separação entre as ecologias, feita pelos homens, é apontada por Guattari (2007) como causa da deterioração das relações sociais, psíquicas e da natureza. É preciso pensar as interações destas ecologias de forma transversal. Como coloca Guattari:

Parece-me essencial que se organizem assim novas práticas micropolíticas e microssociais, novas solidariedades, uma nova suavidade juntamente com novas práticas estéticas e novas práticas analíticas das formações do inconsciente. Parece-me que essa é a única via possível para que as práticas sociais e políticas saiam dessa situação, quero dizer, para que elas trabalhem para a humanidade e não mais para um simples reequilíbrio permanente do Universo das semióticas capitalísticas (GUATARRI, 2007, p 35).

A transversalidade, apontada pelo autor, é buscada pelo Projeto Cidadãos Cantantes. Quando se muda o foco da doença para a produção de subjetividade e de vida, a produção de saúde não pertence mais a saberes e a procedimentos específicos dos profissionais e do campo da saúde, encontrando potência em procedimentos os mais diversos e experimentais propostos por outros campos sociais.

2.1.1 Linhas institucionais - espaços culturais e sua ocupação pelo Projeto.

Em 1992, quando se idealizou o Projeto Cidadãos Cantantes, a utilização do espaço público de cultura era premissa para a implantação de um trabalho que buscava constituir um grupo heterogêneo. E para isso era pensada uma estratégia que não fosse excludente e sim convidativa às diferenças que pudessem aparecer.

O Centro Cultural São Paulo (CCSP) foi o espaço escolhido, por sua localização – no centro da cidade, próximo ao metrô e a grandes avenidas –, além de seu histórico e de sua conc epção apontarem para um espaço público aberto à diversidade cultural e subjetiva. Sua arquitetura, inclusive, fora pensada de modo a possibilitar os encontros.

O projeto conseguiu a liberação do uso do espaço, ficando a coordenadora e os demais participantes do Projeto com a incumbência de procurar um regente . Como não havia verba para a contratação, utilizou-se o expediente de deslocamento de profissionais ligados à prefeitura e, assim, uma pianista foi emprestada para o Centro Cultural para esta função. Em 1995, houve a necessidade de afastamento da funcionária, ficando o grupo sem regência. Mesmo assim, o grupo permaneceu ocupando o local para seus ensaios e dedicou -se a outras produções dos participantes, o que resultou na primeira edição do Cadernos loucriação: o vôo das borboletas. A oficina de Dança e Expressão Corporal surgiu em 2001, também no CCSP (MALUF, 2005).

O Projeto Cidadãos Cantantes foi implantado no final da gestão de Marilena Chauí na Secretaria de Cultura, gestão marcada por entraves e novas compreensões do uso dos espaços e produções culturais . Chauí coloca a necessidade de questionar e transformar os modos de relação do Estado com a produção de cultura, já que, para ela, na perspectiva democrátic a, a função do Estado deveria ser a de garantir direitos existenciais, criar novos direitos e desmontar privilégios (CHAUÍ, 2006, p. 65). Assim, em sua gestão, a Secretaria da Cultura definiu sua política como de Cidadania Cultural: a cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação. Era necessário ultrapassar a ideia de cultura como belas -artes, para efetuar uma política cultural. A autora coloca que compreender a cultura como belas -artes equivale a compreendê -la como uma produção d e especialistas em teatro, artes plásticas, literatura, cinema etc., em que o processo criativo evidencia -se menos do que o resultado, que toma, por sua vez, proporções de lazer e entretenimento. Assim, aqueles que não são especialistas tornam-se apenas receptores de tais produções. Era preciso que a gestão buscasse uma compreensão de cultura que abarcasse a elaboração coletiva e socialmente diferenciada dos símbolos, ideias, práticas e comportamentos ; que definisse cultura como trabalho de criação, da sensibilidade, da imaginação nas obras de arte e no pensamento.

Além desse fator, a autora argumenta que era preciso também desvincular-se dos modos pelos quais o poder público relacionava -se com a produção cultural, pautados por uma cultura oficial produzida pelo Estado e designada pela autora como populista e neoliberal. A cultura oficial produzida pelo Estado colocava o poder público como produtor cultural, determinando para a sociedade as formas e conteúdos culturais definidos pelo grupo dirigente (CHAUÍ, 2006, p. 67), com ações como a valorização indiscriminada do folclore, da identidade nacional, entre outras. A forma populista polariza a cultura como "cultura de elite" e "cultura popular", ficando para o poder público a fun ção de apropriar -se da cultura popular para, pedagogicamente, passar ao povo o seu valor. A posição neoliberal busca nas ações da iniciativa privada as parcerias para as atividades culturais e o modelo de gestão. O que temos aí é a compra de servi ços culturais por empresas que seguem critérios do mercado. Esta forma de gestão do poder público ganhou forte expressão a partir de 1980.

Opondo-se a esta tradição, a gestão de Marilena Chauí na Secretaria da Cultura procurava

recusar o controle estatal sobre a cultura e a monumentalidade oficial da tradição autoritária. Procurou-se recusar a divisão populista entre a cultura de elite e cultura popular [...] enfatizando outra diferença , aquela entre a produção cultural conservadora, repetitiva e conformista e o trabalho cultural inovador, experimental, critico e transformador [...] garantindo a independência do órgão publico e da cultura em face das exigências do mercado e da pri vatização do que é publico (CHAUÍ, 2006, p. 68-69).

A autora descreve diversas dificuldades na mudança do modo de funcionamento da Secretaria de Cultura. Interessa-nos, para constituir nosso problema em relação aos espaços de cultura e sua ocupação, o apontamento da autora de que além da deterio ração dos espaços de cultura, tanto da infraestrutura dos prédios, como da sua manutenção e uso, o órgão público de cultura aparecia como "espaço a ser apropriado privadamente e como 'naturalmente' destinado aos 'cultos' (via de regra, artistas consagrados, instituições consagradas e empresários da cultura)" (CHAUÍ, 2006, p. 75).

O Projeto Cidadãos Cantantes, em seu início, foi um dos projetos denominados "Especiais", entre outros que aconteceram naquela gestão. No entanto, Chauí ressal ta a questão que surgiu, na época, entre as Secretarias Municipais de Saúde e Cultura quanto à sustentação do Projeto, já que a Secretaria de Saúde dizia ser aquele um programa cultural e a Secretaria de Cultura dizia, por sua vez, que o projeto envolvia questões clínicas. Segundo Marilena Chauí, o próprio diretor do Centro Cultural indagou a tais administrações, questionando se o que se propunha com essas separações era um apartheid cultural das pessoas com sofrimento psíquico.

Julio Maluf (2005) faz uma análise do uso do espaço do CCSP, a partir de entrevistas com funcionários e coralistas. Nas entrevistas, os profissionais que haviam trabalhado no projeto apontavam a importância dele acontecer no CCSP. Ao adentrar em um espaço de cult ura, o tom do projeto se modificava: não estava mais em um espaço como CECCOS e Hospitais -Dia. Estar em um espaço de cultura já colocava uma outra energia. Na palavra dos entrevistados: "já brincávamos: 'estamos no palco', tinha o piano de cauda, tinha uma relação mágica também... A hora que pisa no tablado já é outra história." (MALUF, 2005, p. 57).

Segundo os relatos apresentados na dissertação de Maluf, a relação dos funcionários do CCSP com o projeto passou por diferentes momentos: havia relatos de funcionários que, por terem medo dos participantes, não se disponibilizavam para colaborar com o projeto e questionavam o uso do espaço por pessoas "loucas" . No intuito de trabalhar essa relação, o grupo realizou uma apresentação de ntro do CCSP, na qual funcionários puderam aproximar -se do trabalho e, a partir de então, construir um outro olhar. Tanto profissionais do projeto, quanto do CCSP apontaram que a utilização daquele espaço, com sua biblioteca, teatro, exposições etc. permitia que os participantes do projeto tivessem acesso às outras propostas que lá aconteciam, ampliando essa experiência do encontro com as artes e a produção cultural.

Dois depoimentos citados na dissertação, e que reproduzo aqui, correlacionam a coerência entre a proposta do Projeto e a proposta da instituição. O primeiro depoimento é de um integrante do projeto e o segundo é de um funcionário do CCSP:

Estar no CCSP é bom, pois estamos num lugar onde a idéia é o trabalho cultural. O que fazemos é produção de cultura . E é um espaço aberto para quem quiser vir. Esse projeto faz com que isso seja realmente um centro cultural, pois casa de espetáculo não é centro cultural. Nesse projeto se está fazendo cultura viva. Um espaço de discussões artísticas, da cultura atual, isso faz com que seja um centro cultural (MALUF, 2005, p. 205).

É´ bom este tipo de trabalho acontecer aqui, para que o CCSP seja difusor de cultura. Este é um ponto que não só o CCSP , mas a Secretaria de Cultura deveria investir mais: não se incentiva a produção. Você tem que ter produzido antes para que , a partir daí, você tenha o espaço para se apresentar. Não existe e stímulo para isso (MALUF, 2005, p. 205)

No entanto, a ocupação do espaço do CCSP só aconteceu até 2007. O Coral Cênico foi transferido para a Galeria Olido, espaço cultural da Secretaria de Cultura de São Paulo, com a justificativa de que o trabalho do Coral Cênico não se enquadrava mais nas propostas do Centro Cultural São Paulo. A Oficina de Dança permaneceu na instituição até 2008, conseguindo negociar a sala que utilizava por mais um ano, mas perdendo-a após a mudança de direção da instituição.

A história do Projeto nos possibilita perceber uma certa tensão para a continuidade do mesmo. Poderíamos associar isso, como já fizeram alguns dos participantes, ao fato do projeto transitar entre a cultura e a saúde mental. Nos anos de 2011 e 2012 a renovação da parceria entre o Projeto e a Galeria foi complexa, tendo o Projeto corrido o risco de não poder ocupar mais o espaço . Um participante muito entristecido pela situação chegou a escrever uma carta na qual discorria, entre outras coisas, sobre o fato de terem sofrido preconceito. Um dos fatores da complexidade é a necessidade dos aportes burocráticos para sustentar as relações de parcerias institucionais que projetos como este têm dificuldade de manter (CNPJ, documentos de associação, entre outros). São situações delicadas que surgem na habitação entre campos, que guarda potências e fragilidades.

Para além da luta pela ocupação de um espaço público de cultura, o Projeto buscou outras entradas para viabilizar a realizaç ão e a divulgação de seu trabalho. O Coral Cênico Cidadãos Cantantes foi contemplado com o Prêmio Loucos pela Diversidade, no ano de 2010. Tal prêmio fora lançado pelo Ministério da Cultura, com grande alcance nacional, por iniciativa da Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural, visando fomentar trabalhos relacionados com a população em sofrimento psíquico. Ser contemplado com o prêmio foi muito importante para o grupo da oficina, pois afirmou a importância de anos de trabalho e sua po tência. Com esse apoio, o grupo pôde pensar em formas de divulgar o trabalho que vinha realizando.

Em 2011, a oficina de Dança também foi contemplada no edital do Circuito Vozes do Corpo – pelo Ninho Sansacroma, um projeto com apoio do Programa de Ação Cultural da Secretaria do Estado de São Paulo (PROAC). O grupo da oficina de Dança acabara de se apresentar no Congresso da Universidade das Mães da Praça de Maio, na Argentina, e estava bem empolgado para buscar possibilidades de divulgação e c ompartilhamento da experiência. O edital apresentava algumas categorias para os grupos encaixarem -se, mas a oficina não se encaixava bem em nenhuma delas. A coordenadora da Oficina chegou a conversar com a equipe do Ninho Sansacroma para verificar qual seria a situação. Foram enviadas as fotografias das apresentações na Argentina e a sinopse do espetáculo . A oficina de Dança foi aprovada.

Esta aprovação em um edital de dança gerou muita alegria nos participantes, afinal era a primeira vez que a oficina era reconhecida no campo das artes. O prêmio era uma apresentação na sede do Ninho Sansacroma, na região do Campo Limpo, Zona Sul da capital, e 600 reais em dinheiro a serem gastos com transporte e cachê. Gostaríamos de ressaltar a importância de editais como estes para colaborar com a sustentação de projetos na interface arte-saúde.

2.2. Linhas poéticas: da relação com a produção artística

2.2.1 A oficina de Dança e Expressão Corporal

A oficina de Dança é como um laboratório de movimentos e de contato, em que cada encontro é diferente, tem um clima próprio, uma sequência de músicas particular, uma proposta construída naquele dia, uma configuração dada pelas pessoas presentes. Um laboratório de encontros do corpo consigo mesmo, com as sensações dos contatos, com as formas que ele possui no cotidiano, com suas possibilidades de habitar os espaços. Concomitantemente, ao ir ao encontro de outra pessoa e refazer -se pelas afectações, existe um exercício de si, de ser o que se é ou o que se está sendo, no sentido de perceber como se é/está a cada dia. Não somos os mesmos sempre.

O trabalho, nesta oficina, busca uma maquinação que não a do corpo-máquina para o capital. Trata-se de um trabalho de investimento em si, que procura criar escapes também às "formas moldantes" com as quais somos bombardeados cotidianamente por revistas, programas de TV e filmes, nos quais o cuidado com o corpo é a vigilância do peso, das medidas corpóreas a serem seguidas, das posturas adequadas para se ter etc.

Uma das potências da dança, neste trabalho, é o exercício de apropriação de si e das possibilidades de transformar-se, individuar-se em outro. A partir da investigação dos movimentos, é possível uma qualidade de conexão consigo, de percepção da sensação que potencializa o encontro com o outro corpo e ajuda a tecer relações.

Para que o corpo possa ser um potente processador ambiental, que possibilite sua presença no mundo, ele passa por diferentes processos desde o nosso nascimento até nossas condições de vida atuais. Sua capacidade de afetar-se está sempre em relação com os ambientes. Neste ambiente, formado na oficina de Dança, os participantes podem trazer vivências suas, as mais íntimas, para serem compartilhadas e trabalhadas por todos, tecendo um campo coletivo de conexão e trocas.

No começo era o movimento [...] no começo era o movimento porque era o homem de pé, na terra. Erguera-se sobre os dois pés oscilando, visando o equilíbrio. O corpo não era mais que um campo de força atravessado por mil correntes, tensões movimentos . Buscava um ponto de apoio. Uma espécie de parapeito contra esse tumulto que abalava os seus ossos e a sua carne. (GIL, 2002, p. 13)

O movimento, como pensamos, é aquele que dá forma às sensações dos encontros, aos atravessamentos no corpo, se constituindo em gestos que vão além dos gestos cotidianos. É o trabalho com a forma c orporal a partir das necessidades do próprio corpo de construção de lugar para as sensações e as afetações. O compartilhamento desses movimentos é o ponto de partida para a dança . Para José Gil (2002), o gesto dançado vem do interior do corpo e o carrega, o movimenta. O movimento que vem do interior transporta o espaço. Ao dançar, o bailarino cria um espaço que não é interior e nem exterior, é o espaço do corpo. E assim tecemos este campo coletivo, pois cada qual entra na construção deste espaço, embora o movimento seja acessado de si e do contato com o outro.

2.2.2 Oficina do Coral Cênico

Os participantes elaboram um tema em conjunto para ser trabalhado naquele ano. A partir dessa definição cada participante vai em busca de músicas presentes em suas memórias, vai pesquisar músicas novas, ou escrever letras para serem cantadas pelo grupo, que sejam atravessadas pelo que foi decidido no conjunto . As músicas vão sendo trazidas para os ensaios, cantadas de cor ou com a letra impressa em papel, e até mesmo trazidas em CD para tocar no aparelho de som portátil que pedimos emprestado na Galeria, ou que é levado por algum participante. A partir das músicas que vão sensibilizando mais o grupo, vai-se trabalhando em sua harmonia e montando as partes cênicas, para compor o repertório final.

O uso da linguagem musical procura construir um plano de compartilhamento de enunciados comuns e provocar, nos participantes, processos de construção de si dentro do trabalho coletivo, a fim de poder construir este plano. A afinação, elemento importante no trabalho musical, é buscada pelos participantes e pela coordenação, mas não é o essencial, e, nas músicas apresentadas pelo grupo, a desafinação surge. O uso da arte que se faz procura, através das experimentações e acontecimentos vividos coletivamente, provocar mutações na sensibilidade dos participantes e dos espectadores. A presença da desafinação acaba por ser também uma provocação dentro da própria linguagem, como os silêncios de John Cage. Desafiar os limites das linguagens pode ser abrir um caminho de experimentações fundamentais à produção de vida. Como escreve Lima (2006, p. 326),

o valor que determinadas produções podem ganhar, passando a interessar justamente por seu caráter de singularidade, dissidência, deriva e inacabamento, e sua circulação num coletivo, provoca um enriquecimento dessas vidas; e aqui estamos tomando a vida, e não a arte, como critério.

 

3 FECHAMENTO: a marginalidade como lugar da experiência

No resgate de anotações e memórias de acontecimentos das oficinas, tentamos capturar um pouco deste muito do que se passa no Projeto. Maurizio Lazzarato diz que é através de um acontecimento que surgem novas possibilidades de subjetivação, existência e criação. Atualizações que prove m de uma multiplicidade de virtuais que compõem o mundo e se expressam nos agenciamentos coletivos de enunciação.

As formas de organização política (de cofuncionamento dos corpos ) e as formas de enunciação (teorias e enunciados sobre o capitalismo, sobre os sujeitos revolucionários, formas de exploração ) precisam ser medidas, reavaliadas à luz do acontecimento (LAZZARATO, 2006, p. 23).

Entre os acontecimentos, movem-se diferentes linhas que constroem a dimensão do trabalho político. As linhas que se movem constituem a vida – "somos feitos de linhas", escrevem Deleuze e Guattari (2008, p. 7) –, que se relacionam e que funcionam de maneiras diferentes. Essas linhas atravessam tanto as oficinas do Projeto, nos territórios coletivos que formam, quanto cada vida que ali se encontra. Existe uma linha de segmentaridade dura que faz com que as coisas pareçam contáveis e previstas, onde há questões e respostas, conversações; uma linha de segmentaridade flexível, que traz maleabilidade e desterritorialização, silêncios e alusões; e uma terceira linha, chamada linha de fuga, explosão das anteriores, linha de ruptura. As linhas se misturam a todo instante.

Nesta dinâmica, elas produzem duas formas de política: a macropolítica e a micropolítica. São dois planos com alcances, funções e potências qualitativamente diferentes e que guardam uma relação entre si. Como escreve Suely Rolnik (2003, p. 8),

macropolítica dos interesses, dos dissensos e dos consensos, dos graus de negociação e de responsabilidade civil ; micropolítica dos desejos, dos graus de modulação de abertura para o outro e de contágio, mas também dos processos de subjetivação e de criação de territórios que o contágio desencadeia.

No decorrer da vida de cada um ou do próprio Projeto, estas linhas vão se misturar, compor com as experiências vividas e destacar -se de forma diferente em momentos alternados, embora sempre conectadas. Não é o caso de polaridades entre bom e mau, mas de movimento de vida.

Não. Não queremos os manicômios, o isolamento, a reclusão, negar as possibilidades de vida a outros ! No processo histórico da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, a partir de relações micropolíticas, dos encontros dos trabalhadores com os pacientes dos hospitais psiquiátricos, com as condições em que viviam, com os familiares, do encontro entre os familiares e os aspectos dos hospitais, no encontro entre trabalhadores e a potência dos usuários, um novo campo foi se compondo de indagação e desconforto a partir do que já estava posto e definido como modo de funcionamento, embates, conflitos. Relações micropolíticas, pois são relações de contágio, de encontro, de criação de territórios. Linhas de flexibilidade destacam-se e ganham força, compõem com as experiências vividas, contagiam outros seres.

Neste movimento, acontecem passeatas, denúncias, fazem-se filmes, panfletos, reuniões..., suscitam-se ações de transformação que vêm compor um campo de desejo e questionar uma forma majoritária construída para lidar com a loucura. Surgem múltiplas propostas que ganham força e espalham -se, tensionando a realidade social. Não se transformam totalmente os modos de conceber e experienciar a loucura, a desrazão, no campo social, mas colocam -se outras possibilidades, pensamentos, questionamentos, experiências. Pequenas fendas e rupturas trabalham em meio às formas duras e resistentes.

Em algum momento uma linha de fuga se destacou, provocou profunda desterritorialização. Ela passa e transforma. Não há retorno, nela "nem mesmo há forma" (DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 70). As linhas coexistem do mesmo modo que coexistem diferentes concepções e ações em relação à loucura. De uma micropolítica que é produzida nos e ncontros e que mobiliza afetos e propulsiona questionamentos, discussões, passeatas e etc., surgem políticas públicas que pretendem nortear os modos de fazer na saúde mental e que funcionam na dimensão macropolítica, dimensão das segmentaridades molares, duras.

O Projeto que surge neste boom de ideias, apoiado em uma política pública que o sustenta em sua entrada no campo cultural, assiste e vive, nestes vinte anos, movimentos incessantes de flexibilidade e endurecimento no campo da saúde mental, da assistência social, entre outros, mesmo habitando uma marginalidade, como qualidade ou condição de quem ocupa uma região de margem.

Na relação das oficinas com as instituições de cultura, percebemos como existem diferentes momentos e movimentos. A um acolhimento inicial, que dava condições para o Projeto existir nesta margem, seguiram-se conflitos, expulsões, conversas, estranhamentos e parcerias. A presença do Projeto, em sua condição de marginalidade, provoca as instituições ao permanecer em um campo indiscernível, pois elas exigem demarcações claras, tendendo para uma forma única. Mas é preciso lembrar novamente que as linhas coexistem.

O Projeto funciona em uma maquinação vital, que consegue, em muitos acontecimentos, fazer vingar as movências em proveito de segmentações mais maleáveis. Guattari escreve sobre uma concepção interessante de máquina: as máquinas produzem agenciamentos maquínicos para aquém e além da própria máquina, incluindo um ambiente maquínico. A máquina tem por essência procedimentos de desterritorialização, que envolvem seus elementos, seu funcionamento e as relações de alteridade. Para o autor, não há oposição entre o ser e a máquina, pois o ser diferencia -se qualitativamente pela própria criativ idade dos vetores maquínicos. A máquina tem uma dimensão autopoiética que faz com que ela mesma seja autoprodutora de si. O elemento do núcleo maquínico são as relações de afetos ou relações páticas. As relações de afeto, para ele, constituem o vivo. Assim, pensamos que o Projeto funciona como uma máquina, ao situar-se em uma marginalidade essencial para buscar a transversalidade em um trabalho que põe em jogo a reorientação de nossas produções materiais e imateriais, de nossa sensibilidade e do desejo. Um trabalho ecosófico.

Hélio Oiticica utiliza uma frase no final dos anos 1960, dentro de uma série de trabalhos conhecida como Marginália, que dizia: "Seja marginal . Seja herói." Heroísmos a parte, interessa-nos a ideia de pensar a margem e a marginalidade como lugares potentes para a criação3. Barthes (2003) escreve que a busca de certos indivíduos (ou pequenos grupos) por viver no seio da sociedade, mas à parte dela, é uma busca pela experiência de marginalidade. De certa forma, os participantes do Projeto engajam -se nessa busca. Por um lado, poderíamos pensar o estar à parte da sociedade como uma forma de estar incluído nela, em uma posição vulnerável economicamente, com poucas condições de expressão e circulação pelos meios sociais. De fato, alguns dos participantes têm o Projeto quase como o único espaço no qual é possível habitar com propriedade, colocar-se tal como se é e ter sua produção apreciada, compartilhada e afirmada. Outros só circulam por espaços circunscritos ao campo da saúde.

Por outro lado poderíamos pensar o estar à margem da sociedade como uma posição de enfrentamento e conflito com as muitas expressões da segmentariedade nela e por ela destiladas com o modo de organização dominante . Ocupar este lugar permitiria enfrentar formas menos potentes para a vida, que privilegiam as força do capital. Isto porque não pensamos que seja possível, para quem quer que seja, ficar de fato à parte da sociedade, como se não houvesse já um lugar para que nela se seja colocado. A ideia de marginalidade não fica fora do sistema social, uma vez que o sistema capitalista é bem sucedido ao construir classificações para todos. Loucos, pessoas em situação de rua, ciganos e outros têm um lugar já delimitado no sis tema em que vivemos, embora possam exercer também enfrentamentos essenciais às formações de poder. A marginalidade, como qualidade de estar nas margens dos campos sociais, é interessante para pensar a potência de uma zona de indiscernibilidade.

Em carta de julho de 19664, Hélio Oiticica escreve sobre uma posição ética, ao discorrer sobre seu programa ambiental. Diz que seu trabalho, Parangolé, não pretende colocar uma nova moral e sim derrubar todas as morais. Para ele, a ideia de marginalidade possui um viés transgressor, que efetua uma busca pela felicidade. A verdadeira busca pela "vida feliz", como escreve Oiticica, só é possível com grande revolta e destruição. Desta forma, seria possível desviarmos a busca pelos valores pretensamente estabelecidos, como o bem -estar – que ele diz servir para muito poucos. Ou seja, Oiticica define a necessidade de rupturas, para que seja possível a busca pela vida feliz, como uma posição ética.

Nos anos 1970, houve no Brasil uma forte influência de propostas internacionais que envolviam manifestações artístico -comportamentais, e foi -se produzindo, na arte, um deslocamento do enfoque sobre as obras para os processos de criação e para uma arte de viver em favor de proposições abertas com ênfase na criação coletiva. Celso Favaretto (2008)5acompanhou essas mudanças na arte desde 1960 e coloca que houve neste período uma busca por experiências alternativas, que incluíam uma nova sensibilidade cultural, explorando as possibilidades na arte e nos comportamentos. Eram experiências que configuraram "novos modos de sentir, de se relacionar, de agir socialmente, com que pretendiam induzir novas formas de subjetividade, inclusive política, pelo entendimento que se fazia da fusão entre arte e vida." (FAVARETTO, 2008, p. 243). A conjunção da crítica social e do experimentalismo na arte produziu a arte de protesto, da qual Hélio Oiticica era um dos expoentes e propositores de mudanças. Nesta configuração, o conceito de participação foi um forte operado r; ele respondia diretamente à censura e às repressões do regime militar. Além disso, havia a crença de que a arte capacitaria o homem para modificar a realidade.

Favaretto (2008) coloca que as propostas ambientais de Oiticica tratavam de fazer do artista um motivador da criação, ao provocar o participante e proporcionar debates sobre aquele tempo. Quando Hélio Oiticica realiza a proposta Éden, ele condensa a redefinição de arte, que vinha trabalhando em seu percurso, para uma concepção de estar no mundo, configurando poéticas do instante e do gesto. Oiticica já buscava, então, em suas propostas, um redimensionamento cultural em relação ao participante e "ao devir da experiência, em que a totalização do vivido levaria necessariamente à transmutação das relações entre arte e vida." (FAVARETTO, 2008, p. 245).

Favaretto afirma que tais ações inscreveram as categorias de marginalidade e de nova sensibilidade como responsáveis pelas proposições e vivências que se queriam livres das normatizações. Nesse sentido, "experimentalismo, invenção, nova sensibilidade e marginalidade são os signos, até mesmo operacionais, das imaginadas transformações da arte e da vida" (FAVARETTO, 2008, p. 246).

São estas ideias que se conectam com o que pensamos sobre a potência da marginalidade – possibilidades de maquinação em proveito do experimentalismo, sem atear -se, a priori, às normatizações, abrindo espaç o entre as margens para novas produções. Em 1970, durante uma entrevista com Hélio Oiticica, lhe é perguntado o que a criação artística expressa, se ela tem alguma conexão com a realidade, sendo seu sintoma ou seu reflexo. Ele responde:

Eu acho que o trabalho criador não é nem sintoma nem reflexo da sociedade. Pode ter alguns sintomas e alguns reflexos, mas não é uma coisa e outra. Eu acho que o trabalho criador propõe uma nova sociedade. É exatamente aí que eu acho que todo o esforço cri ador tem um lado marginal, um lado marginalizado, é uma coisa que nunca está condicionada ao que existe, ao que é, ao status quo. Por isso eu acho que não pode ser nem sintoma e nem reflexo. (OITICICA FILHO, 2009, p. 69).

A qualidade de inovação deste lugar da marginalidade encontra -se presente tanto no Projeto como em outras iniciativas que funcionam na margem, entre campos, buscando uma transversalidade. Lima (2006) ao referir -se a Bispo do Rosário e sua obra, afirma

Essa trajetória mostra uma outra face daquilo que podemos chamar de marginalidade: um movimento de desterritorialização, de ruptura em relação a certos códigos disponíveis, que pode conter em seu bojo uma possibilidade de reterritorialização em outro lugar . (LIMA, 2006, p. 324).

Desta forma, poderíamos compreender a marginalidade como um lugar potente para que os corpos e os grupos tracem suas linhas de fuga.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Juliana Araújo Silva
E-mail: juliana.arsi@gmail.com

Elizabeth M. Freire de Araújo Lima
E-mail: beth.araujolima@gmail.com

Artigo encaminhado: 15/03/2016
Aceito para publicação: 01/12/2016

 

 

1 Terapeuta Ocupacional, Doutoranda e Mestre em Psicologia e Sociedade (UNESP- Assis).
2 Terapeuta Ocupacional, Doutora em Psicologia, Pós-doutora pela University of the Arts, London. Docente do Curso de Terapia Ocupacional da USP e da Pós-graduação em Psicologia da UNESPAssis.
3 Em carta endereçada a Lygia Clark, em 15/10/1968, Hélio Oiticica dirá: "Quando digo 'posição à margem' [...] não se trata da gratuidade marginal ou de querer ser marginal à força, mas sim colocar no sentido social bem claro a posição do criador [...]" (AYALA, 1970, p. 10).
4 Presente no catálogo da 27a Bienal de São Paulo - Como viver junto.
5 Seminário "Viver a arte, inventar a vida", presente no catálogo dos seminários da 27a Bienal de São Paulo - Como viver junto.

 

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