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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

On-line version ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.1 no.2 Florianópolis Dec. 2001

 

ARTIGOS

 

A estrutura cognitiva do significado do trabalho

 

The cognitive structure of the meaning of work

 

 

Livia de Oliveira BorgesI; Álvaro TamayoII

IDoutora em Psicologia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (liviab@digi.com.br)
IIDoutor em Psicologia. Departamento de Psicologia Social do Trabalho da Universidade de Brasília (tamayo@uol.com.br)

 

 


RESUMO

Propõe-se um modelo de estrutura cognitiva do significado do trabalho, composto de quatro facetas: centralidade do trabalho, atributos valorativos (o que deve ser), atributos descritivos (o que é) e hierarquia dos atributos. Os atributos valorativos e descritivos são considerados a partir de suas estruturas fatoriais. Para avaliar o amparo empírico desse modelo e explorar as relações existentes entre as citadas facetas, desenvolveu-se o estudo com 622 empregados de uma construtora habitacional e de redes de supermercado, aplicando questionário estruturado, em duas versões (com o uso de recursos não-verbais) em conformidade com o nível de instrução. Desenvolvem-se análises de regressão que, entre outros aspectos, sublinham a independência da centralidade do trabalho e revelam O imbricado relacionamento dos fatores dos atributos valorativos e descritivos. O desenvolvimento de análise de clusterscom o conjunto de escores nas quatro facetas do significado do trabalho revelou seis padrões (configurações) do significado do trabalho, compartilhados entre segmentos dos participantes da amostra. Os padrões majoritários caracterizam-se por atribuição de elevada centralidade ao trabalho e por articular valores econômicos (de sustento da vida) com expressivos (êxito e realização pessoal). Por fim, reflete-se sobre o modelo proposto e os resultados encontrados, apontando como podem ser úteis na administração de pessoas.

Palavras-chave: significado do trabalho; valores; percepção do trabalho; construção civil; comerciários.


ABSTRACT

It proposes a model about the cognitive structure of work meaning that is composed by 4 facets: work centrality, value attributes (what must work be), descriptive attributes (what is work), and the hierarchy of attributes. The descriptive and value attributes are considered from their factor structures. To evaluate the empiric support of this model and to explore the existing relations among the referred facets, a study was developed with 622 employees in a dwelling building firm and two supermarket chains, applying structured questionnaire, in two versions (with the use of non-verbal resources), in conformity to educational level. Regression analyses were developed, that among other aspects, they show the independency of work centrality and the complexity of the relationship among the factors of value and descriptive attributes. The development of cluster analyses with a set of scores in the four facets show six patterns of work meaning, which are shared among the sample segments. The modal pattern is characterized for attribution of high work centrality and by articulating economic values (of the of life) with expressive values (success and personal realization). Byend, discuss about the proposed model and the found results, indicating the ways in which can be useful in the manager of persons.

Keywords: work meaning; values; perception of work; building firm; supermarket chains.


 

 

1. Introdução

Atribuir significadoé um processo realizado subjetivamente por cada indivíduo, no qual este é sujeito na proporção em que tanto sua intencionalidade quanto suas habilidades cognitivas são implicadas e, ao mesmo tempo, trazem as marcas de sua inserção no mundo (Fiske, 1992). Revela, portanto, as contradições de tal inserção, bem como o processo incessante de mudança do mundo e do indivíduo.

O trabalho,por sua vez, é rico de sentido individual e social. É meio da produção da vida de cada um, provendo a subsistência, criando sentidos existenciais ou contribuindo na estruturação da personalidade e da identidade. Também é categoria central da própria organização societal. Apresenta-se em uma variedade de ocupações, sendo objeto de diversificada classificação. E glorificado desde os defensores mais tradicionais do capitalismo aos marxistas. Mesmo quando utilizado em seu sentido econômico (trabalho remunerado) e restrito ao contexto das organizações formais, continua diversificado, ambíguo e complexo.

Assim, aborda-se o significado do trabalhocomo uma cognição subjetiva e social. Varia individualmente, na medida em que deriva do processo de atribuir significados e, simultaneamente, apresenta aspectos socialmente compartilhados, associados às condições históricas da sociedade. É, portanto, constructo sempre inacabado (Borges, 1998).

Este caráter dinâmico do significado do trabalho é suficiente para justificar a necessidade de desenvolver estudos neste campo. Além disso, é importante considerar que o significado do trabalho, como uma temática de estudos sistemáticos na Psicologia Social e do Trabalho, é muito recente, na proporção que sua construção começa a se consolidar a partir de meados da década de 1980. Esse tempo é suficiente para firmar uma tradição empírica, porém é mais suficiente para expor divergências, questionamentos e dúvidas.

Pretendendo-se, então, contribuir para a crítica, revisão e aprofundamento da compreensão da estrutura cognitiva do significado do trabalho,partiu-se da reflexão sobre sua composição estrutural e sistêmica e desenvolveu-se um estudo empírico, através da aplicação de questionário-padrão, em amostra de trabalhadores da construção habitacional e de redes de supermercados no Distrito Federal do Brasil.

Para tanto, norteou-se o estudo pelo seguinte problema geral: qual o significado corrente do trabalho entre trabalhadores da construção habitacional e de redes de supermercados no Distrito Federal?

Escolheu-se desenvolver o presente estudo com tais categorias ocupacionais devido às suas características peculiares. Estas categorias ocupacionais raramente são foco das pesquisas em Psicologia Organizacional e do Trabalho no Brasil. Não contam com um processo de trabalho mecanizado nos moldes tayloristas e/ou fordistas. Bicalho-Souza (1983) descreve detalhadamente a organização do trabalho na construção civil, mostrando que a divisão do trabalho baseia-se nas "profissões" (por exemplo: marceneiro, pedreiro, armador, carpinteiro e eletricista) estabelecidas pela tradição; e não na fragmentação das tarefas em operações cada vez menores nas quais os operários se especializam, nem na execução em série das operações. O operário da construção civil pode identificar o produto do que faz.

Nas redes de supermercado, qualquer observador pode perceber que o produto do trabalho (a venda), apesar de visível e fácil de ser avaliado, não permite que cada trabalhador identifique com clareza sua parcela de contribuição. A divisão do trabalho, porém, não ocorre com base em operações. Cada trabalhador responde por uma função, na qual executa tarefas completas.

Além de tais peculiaridades, a construção civil e o comércio têm um significado histórico para aqueles que vivem no Distrito Federal. A história dos trabalhadores da construção civil e de sua organização trabalhista (primeiros habitantes a chegar ali) está intimamente imbricada pelo processo único de construção da cidade de Brasília (Bicalho-Souza, 1983, 1994). Ambas as categorias são mais importantes na oferta de empregos no Distrito Federal do que em outros Estados brasileiros. Contribuem para isto o retardamento do processo de industrialização do Distrito Federal quando, sediando o governo federal, sua população conta com um poder aquisitivo elevado quando comparado com o padrão brasileiro (Bicalho-Souza, 1994; Borges, 1998).

As peculiaridades do plano urbanização de Brasília levam o comércio estabelecido entre as quadras habitacionais a exercer um papel ligado a sociabilidade de sua população. As lojas das redes de supermercado participantes deste estudo estao situadas em tais "entre-quadras" e nas cidades-satélites.

Entende-se que as razões que motivaram focalizar as citadas categorias ocupacionais ampliam a relevância do presente estudo.

 

2. Antecedentes bibliográficos e conceitos básicos

Sendo predominantes, na Psicologia, os estudos que tomam o significado do trabalho como Cognição Social, aqueles que foram aqui revisados (por exemplo, MOW, 1987; Soares, 1992; Salmaso & Pombeni, 1986; Pérez, 1996; Brief & Nord, 1990; Brief, Rose & Adalg, 1977; Borges-Andrade, 1995) apontam na direção da compreensão do significado do trabalho como multifacetado, ou seja, compondo-se de muitos aspectos.

A bibliografia, entretanto, não é consensual na identificação de quais são estas facetas. Por isso, apresenta-se formulação própria da identificação destas, o que representa uma síntese do que foi encontrado na bibliografia e, ao mesmo tempo, maneira própria de compreender o fenômeno, sendo, portanto, uma proposta de modelo.

Assim identificam-se como facetas do significado do trabalho: a centralidade do trabalho, os atributos valorativos, os atributos descritivos e a hierarquia dos atributos(Borges, 1997; 1.998). A centralidade do trabalho é conceito consagrado. Na psicologia, o primeiro estudo encontrado utilizando-o foi o de England & Misumi (1986). Tal conceito popularizou-se principalmente a partir da publicação do estudo da equipe do MOW (1987). Refere-se à importância que o indivíduo atribui ao trabalho, comparando-o às outras esferas de vida: família, lazer, religião e comunidade.

Atributos valorativos referem-se às características atribuídas ao trabalho, as quais oferecem uma definição de como este deve ser(Borges, 1997, 1998 e 1999). São, portanto, os valores do trabalho. Toma-se aqui como referência o conceito de valor de Schwartz (1994, p.21), segundo o qual valoré um "alvo transituacional variando de importância, que funciona como princípio-guia na vida de uma pessoa ou outra entidade social. "

Os atributos descritivos designam o que o trabalho éconcretamente. E a realidade do trabalho como mentalmente representada ou abstraída por cada pessoa (Borges, 1997; 1998; 1999).

Hierarquias de atributos se referem aos arranjos individuais, os quais consistem na organização dos diversos atributos valorativos e descritivos segundo sua ordem de importância. Estudiosos sobre valores humanos (por exemplo, Rokeach & Ball-Rokeach, 1989; Schwartz & Ros, 1995; Tamayo, 1994) têm ressaltado que as pessoas e as culturas se diferenciam mais pela ordem de prioridade atribuída aos valores do que pelos próprios valores.

Os diversos atributos valorativos e descritivos foram levantados a partir da bibliografia e através de estudo exploratório anterior (Borges, 1996), o qual consistiu na análise de conteúdo de entrevistas realizadas com empregados da construção civil, confecções e costura e comércio no Distrito Federal e em Natal. O número de atributos identificados era, entretanto, bastante elevado; tornando qualquer tentativa de desenvolver outras análises a partir deles excessivamente complexa. Visando, então, contar com uma tipologia mais simples (conseqüentemente mais factível de utilização ou aplicação), foram realizados outros estudos (Borges, 1997; 1999), encontrando-se duas estruturas fatoriais - uma para os atributos valorativos e outra para os atributos descritivos - as quais se tomam aqui como uma tipologia empírica de tais atributos (Quadro 1 e 2).

Observa-se que o estudo da equipe do MOW (1987) trata as normas societais1 referentes ao trabalho como uma faceta do significado do trabalho distinta e independente das demais. Fundamentando-se nos resultados dos estudos anteriores já citados (Borges, 1997, 1999), aqui são tomados como atributos valorativos, quando definem como o trabalho deve ser, e descritivos, quando são usados para descrever a realidade como ela é. E em cada tipologia, as normas societais não compõem um fator em separado, mas estão distribuídas nos demais fatores. Assim, na tipologia empírica dos atributos valorativos (Quadro1) o leitor encontra a definição de que o trabalho deve gerar progresso da sociedade e implicar em obediência aos superiores no fator Exigências Sociais; implicar obrigação geral de todas as pessoas no fator Sobrevivência Pessoal e Familiar e direitos da pessoa humana no fator de Justiça no Trabalho. Esta configuração do significado do trabalho é corroborada pelos resultados dos estudos de Borges-Andrade (1995), Borges-Andrade & Nogueira (1994) e Soares (1992) que, seguindo o modelo da equipe MOW, não conseguiram comprovar o fator/dimensão normas societais com amostras no Brasil.

A base empírica da identificação dos atributos foi decisiva para a consideração de categorias não inclusas em questionários utilizados em estudos internacionais, mas referidas em estudos no Brasil, como é o caso de sobrevivência(Tamayo, 1994). Da mesma forma, foi importante na consideração da crítica da bibliografia (Brief & Nord, 1990 e Ros, Schwartz & Surkiss, 1995), apontando a necessidade de ampliação do leque de valores nos estudos do significado do trabalho.

Acompanhando o Quadro 1 o leitor compreende que os aributos valorativos estão classificados em dois grandes grupos (ou fatores): Exigências Sociais e Humanização no Trabalho. O primeiro representa as exigências da sociedade e da família a quem trabalha, e o segundo, as condições almejadas pelo trabalhador para atender as demandas (do primeiro fator).

As Exigências Sociais,por sua vez, se subdividem em Socio-Responsabilidades e Esforço Corporal e Desumanização.Os primeiros destes atributos se referem as exigências de arcar com responsabilidades oriundas em demandas da sociedade, da família e pessoal. Os segundos de responsabilidades relativas ao trabalho propriamente dito (tarefas) e define que o trabalho deve implicar esforço físico, carga ou peso, ritmo acentuado e desgastante, portanto, desumanizar. Os atributos de Socio-Responsabilidadeestão organizados em mais dois fatores primários, a saber: Exigências Sociais(demandas do mundo do trabalho e da sociedade para com o trabalhador) e Sobrevivência Pessoal e Familiar(definindo que o trabalho deve garantir o sustento pessoal e familiar).

A Humanização no Trabalhosubdivide-se em dois fatores primários: (1) justiça no Trabalho,definindo que o trabalho deve prover proteção ao indivíduo, na forma de assistência, de segurança física, de higiene e de conforto no ambiente de trabalho, de garantia de direitos e proporcionalidade entre esforços e recompensas; e (2) Realização Pessoal,revelando que o trabalho deve ser prazeroso nos resultados que gera, pelas recompensas, pelos desafios intelectuais e oportunidades de crescimento e de autovalorização.

Como o primeiro fator quaternário (Exigências sociais) apresenta uma maior poder explicativo (Borges, 1999), a principal idéia aglutinadora e classificatória dos atributos valorativos são os fins sociais do trabalho, portanto, um princípio de caráter coletivista.

Tal estrutura fatorial dos atributos valorativos, apesar de contar com correlação positiva entre os dois fatores, os indivíduos vivenciam conflito na compatibilização dos dois conjuntos de demandas (busca de atendimento das exigências sociais e da humanização no trabalho).

Passando, então, a acompanhar o Quadro 2, o leitor entende a tipologia empírica dos atributos descritivos. Estes se subdividem em os dois grandes fatores (fatores de quarta ordem): (1) Responsabilidades Recíprocas,referindo-se à obrigação concreta de arcar com a Durezae/ou Carga Ocupacionale com a Sobrevivência Pessoal e Familiar, e (2)Justiça no Trabalho,consistindo na avaliação de quanto o trabalhador percebe as obrigações para com ele próprio serem concretamente cumpridas pelas organizações. A Durezae/ou Carga Ocupacional,por sua vez, subdivide-se em dois fatores primários - (1) Êxito e Realização Pessoale (2) Carga Mental - além de englobar uma série de itens referentes a esforço corporal e desumanização.

Percebe-se claramente que a estrutura fatorial dos atributos descritivos apresentam uma estrutura distinta. Os atributos que exprimem o peso do trabalho e suas características desumanizantes e desgastantes são centrais na diferenciação dos fatores de quarta ordem. Observa-se que, desde a análise de segunda ordem até a de quarta, os itens de maiores pesos, no primeiro fator, referem-se à dureza ou à carga do trabalho. Portanto, a principal idéia aglutinadora dos atributos descritivos é a carga no trabalho.

Por fim, importa expor que a configuração geral do significado do trabalho para cada indivíduo pode ser apreendida pelo conceito de padrão do significado do trabalho (MOW, 1987), que consiste na forma como os indivíduos organizam mentalmente tal significado nas diversas facetas que o compõem. Como o significado do trabalho é, simultaneamente, individual e social, é possível encontrar padrões compartilhados por grupos de pessoas. Trata-se de conceito eminentemente sistêmico. Operacionalmente, no presente estudo, os padrões do significado do trabalho consistirão na combinação dos escores nas diversas facetas descritas anteriormente - centralidade do trabalho fatores dos atributos valorativos e descritivos e a hierarquia dos mesmos fatores - compartilhadas por grupos não muito inferiores a 10% da amostra em estudo.

 

3. Metodologia

O presente estudo pode ser classificado corno sistêmico na medida em que explora as relações entre os diversos aspectos que compõem o significado do trabalho e preocupa-se com a apreensão de cada aspecto e do todo. Mas também trata-se de estudo de campo, desenvolvido em duas redes de supermercado e em um conglomerado do setor da construção habitacional. Das duas redes de supermercado, uma é uma instituição privada que opera quase que exclusivamente no Distrito Federal e vivia uma fase de visível crescimento, marcado, por exemplo, pela abertura de novas lojas, pelo processo de modernização das demais, pelo aumento do número de empregados e implantação de programas de amparo ao trabalhador. A outra era uma instituição pública, vivendo acentuada crise econômica. Havia sido criada visando garantir o abastecimento básico da cidade (Brasília) quando esta contava ainda com um comércio limitado. Seus empregados eram considerados funcionários públicos e, por isso, não eram filiados ao sindicatos dos comerciários, mas ao sindicato dos funcionários públicos e apresentam uma história de forte mobilização trabalhista. Mesmo assim, devido à crise da empresa, havia ocorrido redução do quadro de pessoal, os salários estavam estagnados e velhas conquistas trabalhistas ameaçadas.

O conglomerado do setor da construção habitacional contou com empregados de três de suas empresas participando do estudo: uma fábrica de concreto e duas empresas de construção habitacional, sendo uma incorporadora, e outra, construtora de obras de terceiros. A incorporada, enquanto se desenvolvia este estudo, estava construindo vários prédios residenciais no plano piloto de Brasília e a incorporadora construía um conjunto habitacional popular em uma cidade no entorno de Brasília.

O conglomerado vivia um período de crescimento lento. Vinha adquirindo equipamentos e tentando se modernizar.

A administração de recursos humanos contava com serviços de registro e burocráticos sistemáticos, mas as demais atribuições eram realizadas sem muita sistematização e pela tradição.

Como todo o setor da construção civil no Distrito Federal, a organização trabalhista tem uma história forte de identificação com a construção de Brasília e os operários relatam uma história com muitas conquistas, quando comparam os direitos que hoje têm com um passado recente (Bicalho-Souza, 1983). Evoluíram, por exemplo, do "queima-latas" para uma alimentação negociada pelo sindicato e do caminhão-gaiola para o vale-transporte.

3.1 Questões de Pesquisa

Visando encontrar resposta(s) para o problema de pesquisa citado anteriormente - Qual o significado corrente do trabalho entre trabalhadores da construção habitacional e de redes de supermercados no Distrito Federal?-, questões mais específicas foram formuladas.

a) Qual é a distribuição dos escores nos fatores descritivos e valorativos?

b) Qual é a hierarquia dos atributos?

c) Qual é a centralidade atribuída ao trabalho?

d) Qual é a relação entre centralidade e atributos?

e) Como as diferentes facetas articulam-se formando padrões?

f) Qual a distribuição de freqüência dos participantes da amostra nos padrões de significado do trabalho conforme a organização em que trabalham?

3.2 Amostra

Desenvolveu-se a investigação com a uma amostra de 622 trabalhadores, dos quais 28,8% (179) são empregados da rede pública de supermercados, 43,1% (268) da rede privada de supermercados e 28,1% (175) da construtora habitacional.

As duas categorias ocupacionais (trabalhadores da construção habitacional e de redes de supermercados) diferem bastante quanto ao nível de instrução, o que se reflete na composição da amostra do estudo (c2= 166,15; para p<0,0001), sendo que a maioria (54,2%) dos trabalhadores da construção habitacional estudaram no máximo até a 4º série do ensino básico, enquanto os empregados das redes de supermercado concentram-se (41,4%) na faixa que se caracteriza por estudar, no mínimo, alguma série do ensino médio.

Quanto ao sexo, há quase perfeita identidade com a categoria ocupacional dos participantes. Os homens representam 63% da amostra e as mulheres, 37%; porém, destas, 4% estão empregadas na construção habitacional e 96% nas redes de supermercado.

3.3 Instrumentos de Coleta de Dados

Para coletar os dados, foram utilizados como instrumentos:

• O IST - Inventário do Significado do Trabalho2(Borges, 1997 e 1999), que é um questionário desenvolvido especificamente para mensurar os atributos valorativos e descritivos segundo os fatores citados na seção dos antecedentes bibliográficos. Este questionário consta de duas versões: uma, para analfabetos e pessoas com instrução muito reduzida (até as quatro primeiras séries do ensino fundamental); outra, para ser aplicada a partir da quinta série do Ensino Fundamental.

• Duas questões sobre Centralidade do Trabalho,baseadas nas questões utilizadas pela equipe MOW (1987): a primeira solicita ao participante atribuição de pontos ao trabalho (de 1 a 5) conforme sua importância, e a segunda, pôr em ordem de importância as cinco esferas de vida (família, trabalho, lazer, religião e comunidade). Estas questões foram apresentadas com formatos distintos seguindo a mesma divisão de nível de instrução usada para o IST. Assim, para aqueles sem instrução formal ou com instrução muito reduzida, para responder a primeira questão usaram cartões azuis de variadas tonalidades. Quanto mais escura, mais importância atribuída. Na segunda, punham em ordem figuras (desenhos, previamente testados) que representavam cada esfera de vida. Os participantes com instrução relativamente mais elevada respondiam as mesmas questões por escrito. Assim, na primeira questão marcavam um número (de 1 a 5) e, na segunda, atribuíam números (de 1 a 5) ordenando as mesmas figuras em uma página.

• Uma ficha sociodemográfica em formato tradicional (formulário).

3.4 Procedimentos de Coleta de Dados

A coleta dos dados deste estudo foi desenvolvida conjuntamente ao projeto de pesquisa mais amplo no qual se insere (Borges, 1998). Por isso, os instrumentos citados anteriormente faziam parte de um protocolo mais amplo de coleta de dados. Tal protocolo foi aplicado em sessões coletivas (13 participantes no máximo), as quais se desenvolveram na seguinte seqüência: apresentação dos aplicadores; apresentação dos objetivos da coleta de dados; explicação da manutenção de anonimato dos participantes; confirmação da participação dos presentes; instruções específicas sobre a forma de responder e utilizar o material, incluindo o ensaio coletivo através de exemplos programados; aplicação dos questionários e aplicação individual das fichas sociodemográficas.

3.5 Procedimentos de Análise dos Dados

Registraram-se as respostas na forma de banco de dados do SPSS (Statistical Package for Social Science) for Windows,a partir do qual se desenvolveram as análises estatísticas.

Os escores nos fatores para cada participante foram estimados, através de média ponderada dos escores atribuídos a cada item (1 a 4), pelo peso fatorial3 (Borges, 1999). O interrelacionamento entre os escores nos fatores foi explorado através de análises de regressão múltipla (stepwise).As hierarquias dos atributos, por sua vez, foram identificadas levantando-se o fator em que cada participante obtinha o maior escore. Para identificação dos padrões do significado do trabalho, aplicou-se Análise de Clusters.E, finalmente, para avaliar a distribuição de freqüência dos participantes nos padrões do significado do trabalho (variável nominal) por organizações, aplicou-se o teste Qui-Quadrado.

 

4. Resultados

4.1 Os escores nos fatores valorativos e descritivos

Estimados os escores individuais nos fatores valorativos e nos descritivos, constata-se que os escores nos fatores descritivos apresentam a modada sua distribuição em faixas mais baixas do que nos fatores valorativos, como observa-se na Tabela 1.

 

 

O referido fenômeno torna-se mais evidente se são comparados os escores nos fatores valorativos e descritivos de Justiça no Trabalho.Estes dois fatores são certamente os mais passíveis de comparação entre as duas estruturas, porque se compõem aproximadamente dos mesmos itens. No fator descritivo, a segunda concentração de participantes da amostra não se encontra na faixa mais elevada de escores como nos demais fatores, mas na segunda faixa (2<x<3).

Na mesma tabela, é também importante observar que o fator valorativo Esforço Corporal e Desumanizaçãoé o menos consensual. Portanto, é mais frágil como um valor quando comparado com os demais fatores valorativos. Tal constatação leva a compreender que certamente é aquele mais factível à mudança, restando saber em que direção (consolidar-se ou ser rejeitado como valor).

Para explorar o relacionamento entre os fatores desenvolveu-se uma série de análises de regressão, tomando cada um dos fatores como variável dependente por vez e os demais fatores como variáveis independentes (Tab. 2). Estas análises avançam em relação aos estudos anteriores, porque exploram o relacionamento entre facetas (atributos valorativos e descritivos), enquanto as análises fatoriais (Borges, 1997; 1999), adotando rotação oblíqua, revelam as correlações entre os fatores de uma mesma faceta. Constatou-se que os nexos entre estes escores explicam uma ampla proporção da variância de cada fator (de r2 = 0,28 a r2 = 0,64), se for levado em conta que aqui estão sendo consideradas apenas variáveis que compõem o próprio significado do trabalho. Tais análises revelam, portanto, um imbricado relacionamento entre os fatores dos atributos valor ativos e descritivos, indicando que, para estudar o relacionamento entre significado do trabalho com outras variáveis, deve ser considerado o aspecto sistêmico do próprio significado do trabalho. Isto significa que o modo ideal do que seja o trabalho (atributos valorativos) e a percepção da realidade do trabalho (atributos descritivos) se influenciam mutuamente (relação dialética).

Tal caráter sistêmico torna-se mais evidente se em cada equação for examinado qual o principal preditor (fator que apresenta maior coeficiente b) daquele fator tomado como variável dependente (y), ajudando a compreender as redes de associações. Tais redes revelam de forma mais rica a subjetividade dos significados atribuídos.

Assim, a primeira equação da Tabela 2 indica que o fator valorativo Exigências Sociaisestá mais fortemente relacionado ao fator valorativo Sobrevivência Pessoal e Familiar.Estes dois fatores na estrutura fatorial têm sinais contrários, indicando que os indivíduos vivenciam as demandas sociais (da sociedade ou da organização para consigo) e familiares com algum tipo de conflito. São, entretanto, diretamente proporcionais, ou seja, quanto mais definem que devem atender às demandas sociais, mais também acreditam que devem atender a suas demandas e da família por sustento econômico. Atingir estes dois alvos "nobres" simultaneamente não é fácil e a contradição, aparente nos sinais contrários da análise fatorial, apresenta-se no discurso dos trabalhadores quando relatam a dificuldade em assistir à família, ora pelo envolvimento efetivo com suas atividades, ora pelas jornadas diárias de trabalho.

Tal compreensão da primeira equação é fortalecida quando se observa a terceira equação, na qual o fator valorativo Esforço Corporal e Desumanizaçãoé a variável dependente. Seu principal preditor é exatamente o primeiro fator valorativo Exigências Sociais(b= 0,61), mostrando que aqueles que definem que o trabalho deve implicar Esforço Corporal e Desumanizaçãotendem a ser os mesmos que mais valorizam as Exigências Sociais,sejam da sociedade como um todo, sejam da própria organização. A última equação, que toma o fator descritivo Carga Mentalcomo variável dependente, mostra que este também tem no fator valorativo Exigências Sociaisseu maior preditor. Porém, a valorização da Sobrevivência Pessoal e Familiar(quinto fator valorativo) o prevê negativamente. Em outras palavras, quanto mais carga mental é vivenciada no trabalho, maior a contradição entre valorizar as Exigências Sociaise/ou o sustento pessoal e familiar. Isto mais uma vez é a representação quantitativa da queixa (já citada) existente no discurso.

Voltando à Tabela 2 e examinando-se as equações ainda não referidas, é interessante perceber que o melhor preditor do fator valorativo Justiça no Trabalhoé o fator também valorativo Realização Pessoal(b=0,46) e vice-versa (b=0,27). O principal preditor do quinto fator valorativo são, por sua vez, também as exigências sociais, indicando que os participantes da amostra tendem a valorizar estas simultaneamente aos fins econômicos.

Outro aspecto a destacar é que o relacionamento encontrado entre os fatores valorativos Exigências Sociaise o Esforço Corporal e Desumanizaçãopode sinalizar a direção da tendência à mudança do terceiro fator sublinhada anteriormente pela sua fragilidade como um valor (Tab. 1). A primeira e terceira análise de regressão na Tabela 2 mostram que tais fatores oferecem previsibilidade um ao outro, sendo que o primeiro (Exigências Sociais)prevê melhor o terceiro (Esforço Corporal e Desumanização)do que o contrário. Portanto, a definição de que o trabalho deve implicar Esforço Corporal e Desumanizaçãotende a se fortalecer com a ênfase nas demandas sociais do trabalho, porque o torna justificável.

Reforçando a idéia de que os fatores se relacionam de forma sistêmica, informa-se que desenvolvendo-se as análises de regressão levando em conta, para cada uma, apenas o fator que como variável independente revelou-se o principal preditor, seu coeficiente de previsibilidade (coeficiente b) cresce, enquanto o coeficiente que indica a proporção da explicação da variância (r2) decresce. Isto significa que os outros fatores ajudaram efetivamente na explicação, mas que o principal preditor tem ainda um efeito maior sobre a variável dependente, sendo que uma parte deste efeito ocorre indiretamente através dos demais.

4.2 Hierarquia dos Atributos

Inspirados no conceito de hierarquia dos atributos, por sua vez, constata-se que 43,1% dos participantes apresentam o escore mais elevado no fator valorativo Sobrevivência Pessoal e Familiar;19,9%, no fator Realização Pessoal;16,6%, no fator Exigências Sociais;14,9%, no fator justiça no Trabalhoe 2,9%, no fator Esforço Corporal e Desumanização.

Quanto aos fatores descritivos, constata-se que 47,4% dos participantes da amostra apresentam o maior escore no fator Êxito e Realização Pessoal,26,4%, no fator Carga Mental,23%, no fator Sobrevivência Pessoal e Familiar e Independência Econômicae 3,2%, no fator justiça no Trabalho.

Segmentando, então, a amostra total conforme o fator em que os participantes apresentam o escore mais elevado, e repetindo as análises de regressão entre os fatores valorativos e descritivos, constata-se que os nexos entre estes fatores se estreitam. Assim, para aqueles que obtêm o maior escore no fator valorativo Sobrevivência Pessoal e Familiar(43,1% da amostra, n=268), ocorre uma ampliação da proporção da variância explicada (r2 ) em todas as equações que tomam um fator valorativo como variável dependente. Chama atenção que a primeira delas (Exigências Sociaiscomo variável dependente) passe de r2 =0,64 para r2 =0,71. Nesta equação, observa-se também que a variável independente Sobrevivência Pessoal e Familiarpassa a representar o principal preditor. Portanto, conhecer a 32 organização hierárquica individual dos atributos pode tornar previsíveis os nexos sistêmicos existentes entre os diversos fatores valorativos e descritivos, corroborando a previsão da bibliografia consultada sobre o poder discriminativo da hierarquia dos valores.

4.3 Centralidade do Trabalho

Os escores em centralidade do trabalho, por sua vez, indicam que as esferas de vida mais centrais são a famíliae o trabalho,como em outros estudos com amostras brasileiras (por exemplo, Soares, 1992; Santos,1995; Bastos, Pinho & Costa, 1995; Borges-Andrade & Nogueira, 1994). A terceira esfera para a atual amostra é a religião, o que se diferencia dos resultados dos estudos brasileiros citados, nos quais a terceira esfera é o lazer. Constata-se, comparando os dados quantitativos com os conteúdos de entrevistas com uma sub-amostra4 (Borges, 1998), que as esferas lazer e comunidade se"encontram esvaziadas; além disso religião não apresenta uma nitida diferenciação do lazer. Em outras palavras, as respostas nas entrevistas sobre o lazer eram muito pobres, resumindo-se quase à vida em família. Outras vezes, a ida à igreja aos domingosé a principal diversão.O poder aquisitivo e o nível de instrução dos participantes da amostra certamente estão entre as causas do fato.

Para explorar o relacionamento entre a centralidade do trabalho e os fatores valorativos e descritivos, voltaram a desenvolver as análises de regressão (stepwise)sintetizadas na Tabela 2, incluindo a centralidade do trabalho como variável independente. Os resultados gerados consistem na sua exclusão estatística das equações. Isto significa que a capacidade dos escores de centralidade do trabalho em prever os escores nos fatores valorativos e descritivos não é significativa, corroborando as tendências observadas em outros estudos que mostram a elevada independência da centralidade do trabalho (por exemplo, MOW, 1987).

4.4 Padrões do Significado do Trabalho

Todas as relações entre fatores e facetas até aqui elucidadas apontam as tendências gerais da amostra. Partindo do conceito de padrões do significado do trabalho, pretendia-se também identificar as diversas configurações ou formas de relacionar as facetas e seus fatores pelos os participantes da amostra.

Da aplicação da análise de clusters,puderam-se identificar seis padrões do significado do trabalho (Tab. 3). O primeiro padrão (majoritário: 29,2% da amostra) designou-se Instrumentalidade Econômico-Familiar Expressiva,no qual os seus membros consideram o trabalho a segunda esfera de vida, seguindo a tendência geral da amostra. Entre os fatores valorativos, atribuem maiores escores ao quinto - Sobrevivência Pessoal e Familiar- e entre os descritivos, ao fator Êxito e Realização Pessoal.Apresentam uma tendência por escores altos.

O segundo padrão, Instrumentalidade Econômica,compartilhado por 11,9% da amostra, caracteriza-se pela atribuição de importância mediana ao trabalho e, tanto nos fatores valorativos como nos descritivos, as pessoas atribuem escores mais elevados a Sobrevivência Pessoal e Familiar.Portanto, há uma ênfase em aspectos econômicos.

O terceiro, Expressivo-Social,reúne 15% da amostra. Seus membros atribuem importância mediana ao trabalho. Entre os fatores valorativos, atribuem escores mais elevados às Exigências Sociaise, entre os descritivos, enfatizam o Êxito e Realização Pessoal.

O quarto, Significado Conflitante,reúne 15% da amostra. Este segmento atribui importância mediana ao trabalho. A designação utilizada se deve à diferença entre os escores de Justiça no Trabalho,como fator valorativo e como fator descritivo, e a atribuição de elevados escores às Exigências Sociaisjunto à percepção da Carga Mentalconcreta acentuada.

O quinto, APático,é compartilhado por apenas 8,9% da amostra. Caracteriza-se pela apresentação de uma centralidade 34 inferior moderada e a tendência por escores baixos na maioria dos fatores valorativos e descritivos.

O sexto, Centralidade Valorativa,reúne 20,5% da amostra. Seus membros apresentam o nível mais elevado de centralidade no trabalho e uma tendência geral por escores elevados.

Quanto à natureza dos padrões encontrados, a observação que mais chama atenção é o fato de os dois padrões que reúnem mais participantes incluírem a atribuição de elevada centralidade ao trabalho. O padrão majoritário, por sua vez, traz a articulação entre alvos econômicos e expressividade. Da mesma forma é o interessante notar a articulação no padrão Expressivo-Socialde alvos coletivistas presentes no Fator de Exigências Sociaiscom a vivência de prazer individualista de Êxito e Realização Pessoal.

4.5 A variabilidade dos padrões do significado do trabalho por organizações

Os padrões do significado do trabalho se constituem em variável nominal. Testou-se, por isso, a independência da distribuição de freqüência dos participantes nestes padrões em relação às organizações nas quais os participantes trabalham, através da aplicação do Qui-Quadrado. O resultado do teste (Qui-Quadrado=21,36 para p=0,02) rejeitou tal independência.

A observação da distribuição dos participantes nos padrões do Significado do Trabalho por organização (Tab. 4) revela que a moda nas três empresas está no primeiro padrão Instrumentalidade Econômica-Familiar Expressivamas, mesmo assim, esta freqüência é menos acentuada para os trabalhadores da rede pública de supermercados. Estes estão também menos presentes entre os que apresentam o padrão da Centralidade Valorativae, em compensação, mais presentes entre os que apresentam opadrão de Significado Conflitante.Os trabalhadores da construtora habitacional são menos freqüentes entre os que apresentam o padrão de Significado Conflitante.

 

 

5. Discussão dos resultados e conclusões

Nesta seção, destacam-se algumas peculiaridades do presente estudo, com a finalidade de promover a reflexão de seus resultados em um caminho que conduza a repensar práticas organizacionais.

Partiu-se de estudos antecedentes que identificaram categorias dos atributos valorativos e descritivos e uma estrutura fatorial que podem ser surpreendentes mesmo para o ambiente acadêmico. Um fator valorativo de Realização Pessoale um fator descritivo (forte quanto à proporção de explicação da variância) de Êxito e Realização Pessoal,significando a presença tanto de alvos quanto de vivências de prazer no trabalho, contrastam com a expectativa de senso comum de encontrar uma mentalidade caracterizada pela instrumentalidade econômica. Os escores que os participantes da amostra obtiveram em tais fatores confirmam sua importância. Estes fatos certamente estão associados à natureza das tarefas que executam, se for lembrado que, nem na construção civil, nem no comércio, o trabalho é organizado de forma tipicamente parcelada e mecanizada nos moldes taylorista e/ou fordista,como foi referido na introdução.

Os escores em centralidade do trabalho, bem como a consistência e a importância do fator Exigências Sociais,na estrutura fatorial primária dos atributos valorativos, e de Socioexigências,na estrutura de quarta ordem, revelam uma consciência coletivista raramente atribuída a operários da construção habitacional e comerciários de redes de supermercado. Do ponto de vista da gestão organizacional, tais resultados conduzem a defender que os empregados são capazes de se guiarem por objetivos e princípios de trabalho ou da organização. Tais possibilidades se coadunam com os pressupostos sobre a natureza humana dos novos estilos de gestão. Exclui-se desta afirmação o grupo de participantes da amostra que apresentou o padrão de significado do trabalho Apático.Estes, no entanto, representam grupo minoritário na amostra. Necessitam, certamente, para se adaptar ao trabalho formal, de uma supervisão mais estrita, de disciplina externa e devem ser mais eficazes na execução de tarefas de maior estruturação prévia.

O grupo do padrão Apáticoé minoritário. Os administradores devem atentar que medidas de controle visando atingir este grupo podem afetar negativamente "o moral" dos demais, para os quais a autodisciplina é forte e combina-se às atitudes de resignação.

As diferenças encontradas de escores nos fatores valorativos e descritivos significam que a realidade do trabalho difere do modelo ideal de trabalho definido pelos próprios trabalhadores. Por outro lado, o estreito e complexo relacionamento entre os fatores valorativos e descritivos evidencia que os valores do trabalho afetam a leitura da realidade e esta afeta a definição dos valores. Em outras palavras, há um relacionamento profundamente dialético entre o mundo concreto do trabalho e a estrutura cognitiva construída no processo de atribuir significado ao trabalho. Assim, quando se supõe que trabalhadores menos instruídos costumam ter aspirações muito limitadas, antes se deveria lembrar que serão tanto mais limitadas quanto mais empobrecidos forem o contexto e a realidade do mundo do trabalho.

A tendência forte em justificar o esforço, a carga e/ou a dureza do trabalho, através da consciência dos fins sociais mais amplos do trabalho e da responsabilidade com a subsistência de si mesmo e da família traz a idéia de atitudes de resignação e abnegação.

Mesmo com tais atitudes, a carga e a dureza do trabalho apresentam-se como o alicerce que torna conflitante a busca de fins sociais amplos (organizacionais e/ou societais) e de sustento e assistência à família. Por isso, o amparo ao trabalhador, facilitando a resolução de problemas pessoais e familiares, pode aliviar "a carga" percebida do trabalho. Este argumento é fortalecido se forem recordadas as respostas às questões de centralidade no trabalho, que põem o binômio família/trabalho como as duas esferas mais importantes ou centrais na vida dos participantes. Tais resultados corroboram o que já foi argüido por Bicalho-Sousa (1983 e 1994), destacando que a moralidade dos operários da construção civil se baseia na relação entre estes dois âmbitos (família e trabalho). Manter o papel de "provedor" e "chefe" da família tem como "o outro lado da moeda" o comportamento submisso no canteiro de obra.

As atitudes de resignação certamente vêm sendo responsáveis pela reduzida fluência das ações e discursos que expressam a insatisfação com as condições de trabalho. Tal insatisfação no estudo vem à tona, principalmente, nas diferenças dos escores dos dois fatores designados de Justiça no Trabalho,sendo um valorativo e outro descritivo. Se a insatisfação existe, no entanto, ela terminará se manifestando, logo que encontre um caminho viável.

Quanto à identificação das hierarquias de atributos valorativos e descritivos, é importante assinalar a sensibilidade destas em diferenciar os indivíduos. Aqueles que se assemelham quanto a atribuírem mais importância aos mesmos fatores valorativos e descritivos tendem a se assemelhar também nos nexos que estabelecem entre os demais aspectos do significado do trabalho. Tal observação é fortalecida observando-se que, nos seis padrões de significado do trabalho identificados, não se repetem combinações das duas hierarquias. Coaduna-se com a ênfase que a literatura sobre valores vem atribuindo ao conceito de hierarquia de valores, conforme foi referido no início deste artigo (Rokeach, 1989; Schwartz & Ros, 1995; Tamayo, 1994).

Perceber este poder discriminativo das hierarquias dos atributos é importante para nortear diagnósticos organizacionais, orientando o consultor quanto aos conteúdos a serem postos em foco. Levanta-se adicionalmente a hipótese de que o uso de questões que gerem uma mensuração mais direta da hierarquia de atributos pode simplificar instrumentos de coleta de dados, ajudando, conseqüentemente, a agilizar e precisar as atividades de diagnóstico.

A fragilidade das esferas de vida lazer e comunidade,para a amostra do estudo, acresce que, antes de comparar as esferas de vida, importa examinar que esferas são realmente constituídas para cada amostra.

A diferenciação dos padrões de significado do trabalho deve, portanto, chamar a atenção no sentido da necessidade de políticas capazes de atingir diferencialmente os trabalhadores e não tentando homogeneizar. Por conseguinte, também torna claro que políticas gerais adotadas com o intuito de elevar motivação terão sempre impacto diferenciado entre trabalhadores. Daí, que organizações complexas exigem a criação de variados tipos de incentivos.

Quanto aos padrões do significado do trabalho identificados, é importante assinalar quejustamente aqueles que são majoritários na amostra - Instrumentalidade Econômica Familiar e Centralidade Valorativa- trazem uma articulação de alta valoração a aspectos econômicos e expressivos do trabalho. Estas estruturas mentais, provavelmente, apontam na direção de que estão refletindo a conjuntura nacional, quanto a tentar introduzir-se na terceira revolução industrial sem ainda ter concluído a fase que lhe foi historicamente anterior nos países centrais do capitalismo, concernente com os valores do welfare state.Em outras palavras, tal padrão de desenvolvimento nacional (Matoso, 1994; 1995; Antunes, 1995), no campo da subjetividade humana, representa-se na elaboração da articulação mental entre aspectos econômicos e expressivos, tomando-os como interdependentes.

A menor incidência deste padrão do significado do trabalho entre os trabalhadores da rede pública de supermercados pode estar associado à estagnação dos salários e à falta de políticas que vinculem o mérito do desempenho profissional à remuneração. Situação oposta ao operário da construção habitacional, que recebe o pagamento por produção. A maior incidência, por sua vez, do Significado Conflitante nos trabalhadores da rede pública de supermercados deve refletir a ameaça da perda de suas conquistas quando engajados na luta pela sobrevivência da organização.

Registra-se, ainda, que o estudo da variabilidade dos padrões do significado do trabalho por organizações poderá ser elucidativo em,relação ao processo de construção do significado do trabalho. E necessário compreender se a estrutura das organizações, os estilos de gestão, as táticas de socialização organizacional, as condições de trabalho e idéias ou crenças divulgadas deliberadamente ou não pelas ações institucionais afetam tal processo de construção do significado do trabalho. Da mesma forma, é necessário refletir sobre o efeito de tendências conjunturais e históricas do mundo do trabalho. Tais aspectos poderão ser explorados em outros estudos e publicações.

Finalizando, assinala-se que os resultados encontrados e as reflexões possíveis de levantar a partir deles apontam na direção da adequação do modelo de estrutura cognitiva do significado do trabalho proposto e, ao mesmo tempo, são suficientes para considerar o problema de pesquisa satisfatoriamente respondido. Tal modelo pode ser útil para fundamentar o planejamento de diagnósticos organizacionais bem como delimitação de políticas de gestão de pessoas. Não se rejeita, porém, a necessidade ou pertinência de outros estudos considerarem outras facetas

 

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1 Os padrões que as pessoas empregam quando fuzem avaliações normativas e/ou morais sobre o trabalho. São normalizações de cunhomoral e ético que se referem aos direitos que os indivíduos adquirem em contrapartida às obrigações que cumprem com a sociedade em geral ao trabalharem. Assim abrangem atribuições de significadosao trabalho, como defini-los como um dever social, uma contribuição à sociedade e um meio de conquistar equilibrio entre direitos e deveres.
2 O IST teve sua estrutura fatorial estudada anteriormente de forma que se dispõe de suas qualidades psicométricas. A consistência dos fatores foi avaliada, estimando-se os coeficientes Alfa de Cronbach, os quais valiam entre os fatores primários dos atributos valorativos de 0,79 a 0,87 e entre os fatores primários dos atributos descritivos de 0,77 a 0,87 (Borges, 1999).
3 O questionário utilizado (IST) teve sua estrutura futorial estudada anteriormente (Borges, 1999) de forma que se dispunha do peso de cada item na composição do fator.
4 Entrevistas realizadas parao estudo mais amplo do qual o presente faz parte.

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