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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.3 n.1 Florianópolis jun. 2003

 

RESENHA

 

A transformação do trabalho: uma questão metodológica

 

 

Claudemir Pedroso Flores; Roberto Moraes Cruz

 

 

O trabalho tem sido abordado de diferentes maneiras e a partir de diversas áreas de conhecimento. É objeto de estudo da filosofia, das ciências sociais e humanas, das ciências da engenharia e da saúde. Havendo tantos olhares possíveis, qual a contribuição específica que a psicologia pode fornecer ao .conhecimento sobre o trabalho? Por que é importante para a psicologia compreender o trabalho? O livro "Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia."1 nos ajuda a responder a essas questões, na medida em que enfatiza a importância do método de análise da atividade de trabalho como estratégia privilegiada de compreensão e como uma possibilidade efetiva de promover transformações nas situações de trabalho.

Destinado a um público especializado-pesquisadores, professores, psicólogos, engenheiros, administradores, e consultores - o livro pode parecer à primeira vista um manual de ergonomia. No decorrer da leitura, porém, podemos constatar que é um bem sucedido esforço de discussão e atualização de uma longa experiência de campo e trajetória profissjonal. da escola franco-belga de ergonomia e psicologia do trabalho, que formulou a Análise Ergonômica do Trabalho (AET) como metodologia de pesquisa e intervenção nas organizações, de trabalho. É claro que a ergonomia é uma prática, como indica o próprio subtítulo do livro, mas não uma intervenção que comporte uma receita de como fazer. Foi justamente na prática, a partir da experiência de "chão de fábrica", que impôs aos autores a necessidade de sintetizar modelos teóricos de compreensão dos processos inerentes à atividade de trabalho e seus efeitos sobre o desempenho global dos sistemas de trabalho.

Guérin e colaboradores (2001) convidam os leitores a "descerem do cavalo" ao se colocarem na posição de intérpretes das condições materiais e organizacionais do trabalho, bem como a refletirem sobre o conhecimento co-produzido com aqueles que demandam mudanças: os trabalhadores. Seu ponto de partida é a realidade do trabalho e aquilo que os trabalhadores fazem. Partir da investigação do trabalho como ele acontece é um pressuposto que pode parecer evidente, mas é preciso que seja lembrado aos analistas que se trata de uma opçao metodológica consciente e coerente com a proposta de reduzir a tradicional cisão entre concepção e execução, que prevalece no processo produtivo desde a Revolução Industrial.

O livro construído em uma linguagem acessível para a maioria dos diferentes especialistas, combinando textos teóricos e relatos de experiências de intervenção partem do pressuposto de que o espaço no qual podemos observar as condutas no trabalho é a situação de trabalho. Nela estão condensadas as relações recíprocas entre os processos ambientais, tecnológicos e psicossociais.

O método de análise do trabalho proposto parte da observação, descrição e interpretação da atividade de trabalho. "A análise da atividade é a análise das estratégias (regulação, antecipação etc.) usadas pelo operador para administrar essa distância, ou seja, a análise do sistema homem/tarefa (p.15). Os trabalhadores, a partir da prescrição de suas tarefas, fazem uso de instrumentos fabricados para realizarem a atividade de trabalho, em condições pré-determinadas e de um modo particular (o chamado "modo operatório"). Os autores definem tarefa como aquilo que é prescrito pela organização de trabalho e que autoriza o trabalhador a desempenhar sua atividade. Entre as tarefas prescritas pela organização de trabalho e a atividade realmente executada está a chamada "margem de manobra", que permite aos trabalhadores reordenar as condições da própria execução e alterar o modo operatório para outro mais favorável ao seu bem-estar.

Os autores entendem que quando o ergonomista olha para o trabalho deve procurar evidenciar os constrangimentos aos quais o trabalhador está submetido, pois eles reduzem a margem de manobra (grau de autonomia e de liberdade para sentir-pensar-agir) sobre o saber-fazer (competências). Submetidos a constrangimentos de ordem física e psicológica, os trabalhadores constroem condutas de defesa e de regulaçâo, tanto individuais como coletivas, que lhes permitem, no cotidiano de trabalho, enfrentarem os riscos e as ambigüidades dos sistemas operacionais.

Na organização do trabalho, o conjunto de procedimentos, condutas e valores planificados são confrontados com os valores e experiências pessoais, resultando inevitavelmente em desconfortos e constrangimentos. Ao sentir-se obrigado a alcançar os resultados esperados e da maneira prescrita, estando ciente dos riscos iminentes e não podendo realizar modos operatórios que possam lhe conferir maior autonomia na execução e maior controle sobre os resultados, o trabalhador sofre. O sofrimento e o posterior adoecimento são maiores à medida que a margem de manobra é menor. A análise do trabalho deve fazer voltar a atenção para a sutileza desse sofriment,o, muitas vezes negado ou eufemizado, mas sempre presente. E necessário que essa atenção seja respeitosa, o que implica em não romper aquelas condutas de defesa e de regulação, construídas para garantir a continuidade do trabalho em contextos nos quais a sua ausência tornaria o sofrimento insuportável.

Os autores situam a Ergonomia como a arte de implicar os atores sociais na construção dialógica de conhecimentos que instrumentalizem a ação de compreender e transformar o trabalho. A transformação aponta na direção da criação de um alargamento da margem de manobra entre o modo operatório prescrito e a atividade real de trabalho, de uma maior autonomia e controle por parte dos trabalhadores, tanto na execução das tarefas quanto na definição dos resultados esperados, o que implica em eliminar, ou ao menos reduzir, a cisão entre as instâncias de planejamento e execução do trabalho. Os autores do livro pretendem, com isso, ter indicado os caminhos por eles percorridos no intento de "criar as condições da implantação dessa nova maneira de gerir a empresa, devolvendo ao trabalho - e àqueles que trabalham - seu lugar" (p.46).

Por fim, a leitura desta obra, científica e atual, certamente auxiliará os interessados em estudar e desenvolver ações estratégicas de diagnóstico e intervenção em situações de trabalho voltadas à caracterização das condições de realização da produção e dos graus de eficiência do controle de riscos à saúde, à segurança eao conforto dos trabalhadores. E isso, certamente, interessa aos psicólogos que atuam em organizações de trabalho.

 

 

1 Guérin, F.; Laville, A.; Daniellou, F.; Duraffourg, J.; Kerguelen, A. (2001). Compreender o trabalho para transformá-lo; a prática da ergonomia.São Paulo: Edgar Blucher.

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