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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.5 n.1 Florianópolis jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Prazer e sofrimento no trabalho docente: estudo com professoras de ensino fundamental em processo de formação superior

 

Pleasure and suffering at work: a study about elementary school teachers participant in a university level educational program

 

 

Rosângela Dutra de Moraes

Doutoranda do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA Professora do Departamento de Psicologia da UFAM. Bolsista do CNPq (rosangela_dutra@terra.com.br)

 

 


RESUMO

O trabalho docente demanda a formação de vínculo afetivo, especialmente no nível fundamental. Esse vínculo, sendo uma das condições para a efetividade do trabalho dos professores, também se revela como fonte potencial de sofrimento, por sua natureza incompleta, característica estrutural da relação de trabalho. Os estudos desenvolvidos por Dejours, acerca do sofrimento psíquico do trabalho, apontam para a construção de estratégias coletivas para lidar com ele. O objetivo desta pesquisa é identificar e analisar as principais fontes de prazer e sofrimento psíquico no trabalho dos professores de ensino fundamental, integrantes do Programa Especial de Formação Docente (PEFD), problematizando a exigência da formação superior, bem como as demandas entre professor e estudante. Trabalha com a abordagem qualitativa e participam da pesquisa 33 sujeitos. Como resultados, demonstra que a principal fonte prazer no trabalho se relaciona à tarefà de educar e à troca afetiva com os alunos. Já as principais fontes de sofrimento psíquico são: ausência dos pais dos alunos; evasão escolar agravada por falta de acompanhamento técnico; falta de tempo das professoras para organizar as aulas; violência associada às condições sociais precárias; e desvalorização salarial da profissão. O desejo de cursar pedagogia parece fàcilitar a relação com as novas tarefàs de estudante e a autovalorização profissional é a estratégia coletiva identificada para reduzir o sofrimento decorrente da desvalorização social da profissão.

Palavras-chave: prazer e sofrimento no trabalho; trabalho docente; subjetividade e trabalho.


ABSTRACT

Teacher's work demands the establishment of an emotional/alfectionate link, especially for those who work in elementary and middle school. Being this link one of the conditions for the effectiveness of teacher's work, it also represents a potentlal source of sulfering because of its incomplete nature in face of the work relational structure. Dejours studies about work psychological suffering points the building of collective strategies to deal with this process. The objective of this research was to identify and analyze the mains sources of pleasure and psychological suffering in teacher's work in elementary and middle school, participant in the Special Teacher Education Program of the Public System (PEFD), problematizing the requirement of professional training in the university level as well as the multlple demands to the "teacher student". In a qualitative approach, the research involved thirty-two individuals. It showed, as a result, that the mam source of pleasure in the work field relates to the task of educating and to the emotional exchange with the students. The principal sources of psychological suffering are: student's parent's absence and violence associated with precarious social conditions; and disadvantage professional salaries. The desire of studying in the School of Education seemed to facilitate the adjustment to the student's tasks. The professional self-valorizations were the collective strategy identified to reduce the sulfering originated form the depreciation of the teacher's profession.

Keywords: pleasure and suffering at work; leacher's work; subjectiveness and work.


 

 

1. Introdução

Estudos sobre prazer e sofrimento no trabalho têm avançado nas últimas décadas, possibilitando identificar condições em que o trabalho pode constituir fonte de prazer, sendo profundamente benéfico para o trabalhador ou, inversamente, condições em que pode ser vivenciado predominantemente como fonte de desgaste e sofrimento. A maior pesquisa nacional acerca do trabalho docente em nível fundamental e médio, possibilitada por uma parceria entre a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e o Laboratório do Trabalho da Universidade de Brasília (UNB), abrangeu como sujeitos 52.000 educadores de todas as regiões do País e mostra que cercade 90% dos professores estão muitos satisfeitos com seu trabalho. No entanto, 48% deles apresentam algum sintoma da síndrome do Burnout, revelando que, no trabalho docente, caminham lado a lado prazer e sofrimento (Codo, 2000).

Uma das especificidades do trabalho docente é a formação de vínculo afetivo, especialmente na educação infantil e no ensino fundamental, em que mais bem se caracteriza a situação de cuidado. O vínculo afetivo, sendo uma das condições para a efetividade do trabalho docente no trabalho com crianças, paradoxalmente, revela-se como fonte potencial de sofrimento, por sua natureza estrutural de relação de trabalho, que impede que o vínculo se concretize satisfatoriamente, o que pode ser fonte de sofrimento para o professor (Codo & Gazzotti, 2000).

Este estudo partiu de uma pesquisa realizada pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)1, e tem como objetivo identificar as principais fontes de prazer e de sofrimento psíquico do trabalho docente para os professores de ensino fundamental integrantes do Programa Especial de Formação Docente (PEFD), a fim de indicar medidas de proteção e promoção de sua saúde.

O corpo docente da rede municipal de Manaus iniciou em 1999 o processo de formação superior em magistério, no intuito de atender às exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que estabeleceu a obrigatoriedade (posteriormente flexibilizada) da formação em nível superior para os professores de ensino fundamental. A Secretaria Municipal de Educação de Manaus, encarregada da gestão da educação infantil e do ensino fundamental, estabeleceu convênio com a Universidade Federal do Amazonas, para prover a qualificação das professoras que trabalham com educação infantil e ensino fundamental em nível superior.

Nesta pesquisa, foi problematizada a exigência da formação superior em pedagogia (habilitação magistério), sem considerar o desejo das professoras, bem como as novas demandas da situação de professora-estudante. O ingresso desse grupo na universidade ocorreu em turmas especiais do PEFD e foi considerado, pela comunidade acadêmica local, como uma grande oportunidade, visto que as professoras não precisaram enfrentar a acirrada concorrência do exame vestibular da única universidade federal do estado. Todavia, além de ser algo obrigatório, possivelmente cursar aquela graduação estava fora dos projetos de vida das professoras para aquele momento e exigiu expressivo investimento de tempo e energia, posto que não houve redução na carga horária de trabalho.

Antes de ingressar no curso de pedagogia, a maior parte das professoras trabalhava nos dois turnos diurnos e dispunha de tempo à noite para demandas pessoais e familiares. Durante o período da formação superior, o período noturno foi tomado pelas aulas, sendo ainda necessário tempo extra para as outras atividades acadênticas, o que causou desgaste. Os comentários de profissionais de psicologia e psiquiatria (conveniados com o serviço de saúde do município) de que essas professoras estudantes buscavam freqüentemente atendimento psiquiátrico e psicológico despertou interesse de investigar a condição de trabalhadora-estudante das professoras que, para preservar sua saúde e dar conta das demandas de trabalho acrescidas da exigência da formação superior, precisaram construir estratégias para lidar com a condição de professora estudante em um contexto de obrigatoriedade de obtenção da formação superior em pedagogia, habilitação em magistério.

O trabalho docente com crianças tem especificidades relacionadas ao estabelecimento de um vínculo afetivo. O professor é o principal instrumento de seu trabalho, que envolve a pessoa em sua totalidade: intelecto, afeto, habilidades científicas e técnicas, permeadas por sua formação ética, política e cultural. As professoras da rede municipal de ensino em Manaus trabalham, em geral, com crianças de baixa renda, de precária estrutura familiar, expostas a situações de risco social e violência. O trabalho educativo é perpassado por essas dificuldades do entorno socioeconômico, o que exige maior investimento de energia da professora e causa sofrimento, por ela nem sempre alcançar resultados satisfatórios no processo educativo. A realidade da escola e da maior parte das crianças é diferente daquela prevista na organização formal do trabalho, que norteia o planejamento das atividades escolares. Nas escolas, é freqüente a falta material e de apoio técnico. A estrutura da maior parte das famílias é distinta da estrutura da família idealizada nos livros (típica de classe média), dificultando sobremaneira o trabalho da professora, que enfrenta grandes obstáculos para alcançar o objetivo básico de seu trabalho: educar.

Nas classes sociais de baixa renda, em Manaus, as famílias 163 geralmente não seguem o padrão de família, nuclear tradicional (pai, mãe e filhos), sendo comum haver famílias ampliadas (avós, tios), ausência do pai biológico, presença de padrasto e grande número de crianças, em uma única casa. A responsabilidade pelo cuidado das crianças parece diluir-se nesse agrupamento maior. Quando as professoras chamam os pais de alunos para conversar, é freqüente o comparecimento de irmãos (crianças ou adolescentes), informando que os pais não podem comparecer por estarem trabalhando e a avó ou pessoa que cuida da casa também não pode ir à escola por estar ocupada com trabalhos domésticos ou com os cuidados a outras crianças.

Além dessas dificuldades, nas últimas décadas, houve declínio da valorização social da profissão de professora de ensino fundamental, apesar de ser profissão exigente, que envolve afetividade e grande dispêndio de energia. Tal desvalorização manifestou-se dramaticamente no aspecto salarial, exigindo aumento de carga de trabalho e implicando maior desgaste físico e intensificação de pressões. Esse quadro favorece a manifestação do sofrimento psíquico do trabalho entre as professoras, que conduz à construção coletiva de estratégias defensivas.

Buscou-se nesta pesquisa estabelecer uma relação entre o desejo - ou sua ausência - de alcançar a formação superior em magistério e o prazer e sofrimento no trabalho, com o objetivo de propor medidas que protejam a saúde e integridade psíquica das professoras, expostas a intensas demandas de trabalho (considerando-se o envolvimento da afetividade), acrescidas ainda da obrigatoriedade de formação superior em magistério.

 

2. Fundamentação teórica

2.1 Trabalho docente e afetividade

O trabalho docente tem diversas especificidades, particularmente na educação infantil e no ensino fundamental. A tarefa de ensinar caracteriza-se por uma relação de cuidado, visto que educar, etimologicamente, significa criar, cuidar (Codo & Gazzotti, 2000). Na Revolução Industrial, houve cisão entre subjetividade e objetividade no mundo do trabalho, de modo que os vínculos afetivos passaram a se destinar à fumília e a outros círculos sociais, ficando para o ambiente de trabalho a racionalidade. A cisão entre afeto e trabalho, predominante em grande número de atividades profissionais, não se sustenta em atividades como educar, em que o trabalho não é mediado pela produção de bens materiais. O produto do trabalho da professora é a transformação que acontece no aluno, sujeito que é o objeto do processo de construção do conhecimento.

A formação de vínculo afetivo é uma das condições para a efetividade do trabalho docente no ensino fundamental. Os aspectos objetivos e subjetivos desse trabalho tornam-se indissociáveis, visto que essa se caracteriza como uma situação de cuidado, definida por Codo e Gazzotti (2000:53) como "relação entre dois seres humanos cuja ação de um resulta no bem-estar do outro". A lima relação dessa natureza impõe-se a mediação afetiva.

O resgate do afeto, como característica do trabalho, em princípio, é algo positivo, tanto para o professor como para o aluno. Todavia, a relação afetiva estabelecida a partir de uma situação de trabalho formal está submetida aos futores mediadores característicos da relação profissional. O professor depara-se com situações delicadas do cotidiano da criança, como a percepção de que ela enfrenta dificuldades no ambiente familiar, contudo, não pode interferir em slla rotina fora da escola. A natureza do vínculo encerra lima contradição: o professor investe sua energia afetiva, a qual, em vez de retornar a seu ponto de origem, é dissipada pelos fatores que mediam essa relação (Codo & Gazzotti, 2000). O impasse entre formar ou não o vínculo afetivo pode constituir fonte de sofrimento, posto que a relação afetiva é condição necessária à eficácia do trabalho do professor, entretanto, contém as limitações da estrutura de uma relação profissional.

Os estudos em psicodinâmica do trabalho têm apontado para a construção coletiva de estratégias para lidar com o sofrimento psíquico do trabalho. No trabalho docente, uma estratégia para resolver a tensão entre vincular-se e não se vincular afetivamente seria burlar as regras e ministrar prova de segunda chamada sem apresentação de atestado médico, por exemplo. Professores que conseguem agir para transformar a escola em um ambiente mais humanizado, ainda que para isso seja necessário burlar as regras, conseguem reduzir de forma mais efetiva e saudável a tensão entre formar ou não vínculo afetivo em uma estrutura profissional (Codo & Gazzotti, 2000).

2.2 O cotidiano das professoras: dividindo o tempo entre trabalho, família e estudos

A constituição da família mudou nas últimas décadas, sedimentando o papel da mulher no espaço formal de trabalho. Na América Latina, o número de mulheres economicamente ativas mais do que triplicou entre 1960 e 1990, enquanto o número de homens nem dobrou (Delgado, Cappellin & Soares, 2002). Entretanto, apesar de trabalhar fora de casa, as mulheres geralmente mantêm a responsabilidade de administrar as tarefas no lar, quando não a de executá-las. No caso de trabalhadoras estudantes, pode-se caracterizar a tripla jornada: trabalho, casa, estudos.

Paralelamente, a docência no ensino fundamental alcançou massiva feminilização que, lamentavelmente, seguiu-se de desvalorização salarial, associada à idéia de que o salário da mulher é a "segunda renda" no orçamento familiar. Essa idéia constitui grande equívoco, visto que a percentagem de famílias chefiadas por mulheres, na América Latina, oscila entre 25 e 35% (Delgado, Cappellin & Soares, 2002), sendo os salários femininos nitidamente inferiores aos masculinos, apesar de as mulheres terem maior nível de escolaridade. Nos países em desenvolvimento, a diferença entre salários femininos e masculinos em função equivalente aproxima-se de 50% (Idem). Nesse contexto, as professoras-donas de casa-esposas-mães precisam se desdobrar em diferentes turnos de trabalho, para alcançar um padrão de renda que lhes assegure sobrevivência.

Pesquisas mencionadas por Cooper e Lewis (2000) demonstram que o estresse decorrente do excesso de responsabilidades, típico da acumulação de tarefas de trabalho, família e estudos, pode afetar a motivação, produtividade e o relacionamento interpessoal. Estudos com executivos bem-sucedidos e saudáveis, de ambos os sexos, mostram que há equilíbrio quando se constrói envolvimento satisfatório tanto com situações de trabalho como de família (Idem). Quando se rompe o equilíbrio, mais comum é que o excesso de atribuições resulte em transbordamento de trabalho para o tempo da família, bem como o transbordamento de estresse do trabalho para a vida familiar, tendendo sempre ao prejuízo da relação familiar. Nos casos de transbordamento, as estratégias mais utilizadas são tentativas de gerenciar o tempo, delegando atividades, e a tentativa de estabelecer prioridades, especialmente se a situação de acúmulo de atividades é temporária, como é o caso de um curso superior.

2.3 Prazer e sofrimento psíquico no trabalho

O sofrimento psíquico no trabalho recebeu maior destaque a partir dos estudos de Christophe Dejours, que inicialmente denominou seu campo de estudos de psicopatologia do trabalho, definindo como objeto de estudo "a análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho" (Dejours & Abdoucheli, 1994: 120), tendo também delimitado a utilização do conceito de psicopatologia à acepção freudiana, que remete ao sofrimento e não somente à doença (Dejours & Abdoucheli, 1994; Freud, 1974;Jacques, 2003).

Ao estudar as condições de trabalho de trabalhadores semiqualificados, supondo que a organização de trabalho taylorista-fordista propiciaria o surgimento de doenças mentais especificas do trabalho (segundo o modelo causal que evidenciara doenças somáticas de origem profissional), Dejours (1997) encontrou evidências de que o trabalho repetitivo atua sobre a dinâmica psíquica por meio de uma fragilização que favorece a eclosão de doenças somáticas e a manifestação de comportamentos estranhos que, entretanto, não poderiam ser considerados propriamente patológicos.

Não tendo encontrado doenças mentais específicas causadas pelo trabalho2, Dejours começou a esboçar outro modelo teórico que situou a normalidade como enigma e constituiu como objeto de estudo o sofrimento no trabalho, definido como "vivência subjetiva intermediária entre a doença mental descompensada e o conforto ou bem-estar psíquico" (Dejours & Abdoucheli, '1994: 127), caracterizando um estado de luta do sujeito contra a doença mental (Dejours, 2001). O foco das pesquisas deslocou-se para o estudo das defesas construídas coletivamente contra o sofrimento. O modelo causal foi paulatinamente substituído por um modelo dinâmico específico, que privilegiaria as estratégias coletivas e seus ajustamentos. Assim se redefiniu essa área de estudos, que passou a se chamar psicodinâmica do trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994; Dejours, 1992; 1997; 2001; Jacques, 2003).

O centro de investigação da psicodinâmica passou a ser o encadeamento entre as pressões de trabalho (plano objetivo) que causam sofrimento (plano subjetivo) e conduzem à estruturação de estratégias coletivas de defesas (plano intersubjetivo). As defesas (construídas coletivamente) suavizam a percepção do sofrimento (individual), possibilitando a luta contra os efeitos patogênicos do trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994). As pesquisas indicaram que as pressões de trabalho decorrem da organização de trabalho, sendo conceituadas por contraste com as condições de trabalho, tradicionalmente abordadas em estudos de medicina do trabalho e ergonomia. A organização do trabalho inclui a divisão do trabalho (divisão de tarefas sintetizadas no modo operatório prescrito) e divisão de homens e mulheres (estrutura hierárquica e divisão entre concepção e execução). As conseqüências da organização do trabalho incidem sobre o funcionamento psíquico de forma individual (gerando a carga psíquica de trabalho) e sobre as relações interpessoais, mobilizando a afetividade (amor, ódio, solidariedade, confiança). O sofrimento surgiria do conflito entre organização de trabalho e o funcionamento psíquico, sendo que esse "[ ... ] conflito pode ser reconhecido como fonte de sofrimento, [e] ao mesmo tempo como chave de sua possibilidade de análise" (Dejours & Abdoucheli, 1994: 127).

A constatação da existência de estratégias estruturadas coletivamente levou à formulação do conceito de estratégia coletiva de defesa, que se sustenta por consenso coletivo e tem como função minimizar a percepção do sofrimento. Essas estratégias constituem um paradoxo, visto que, ao minimizar a percepção de sofrimento, protegem o psiquismo, entretanto, contribuem para mascarar o sofrimento, facilitando a adaptação às pressões de trabalho patogênicas (Dejours & Abdoucheli, 1994; Dejours, 2001).

Outra possibilidade mais saudável de lidar com o sofrimento no trabalho é a mobilização da inteligência astuciosa, que envolve processos psíquicos mobilizados na inovação e na criação, considerados forma específica de inteligência tácita, heteronômica e transgressiva, situada no cerne dos ofícios. A inteligência astuciosa origina-se do sofrimento. Quando o sujeito consegue, a partir da mobilização desse tipo de inteligência, subverter a organização de trabalho e colocar sua marca, estabelecendo procedimentos mais eficazes do que os prescritos, tem lugar a vivência de prazer. O exercício bem-sucedido da inteligência astuciosa vai além da atenuação do sofrimento (como é o caso das estratégias defensivas), pois conduz ao prazer. A inteligência astuciosa, herdeira da curiosidade infantil (epistemofilia), é mobilizada pelos desafios do trabalho portador de sentido para o sujeito. Isso constitui a ressonância simbólica, que possibilita a sublimação e resulta da mudança de objetivos da pulsão (Eras, Tanatos)em criações socialmente valorizadas, possibilitando a vivência do prazer (Dejours & Abdoucheli, 1994).

A manifestação da inteligência astuciosa, que é inicialmente transgressiva e elaborada no espaço subjetivo, depende de validação social para se tornar eficaz. A validação da invenção depende do reconhecimento, que funciona em dois registros: dos superiores, que o qualificam quanto à utilidade, e dos pares, que julgam a beleza. criatividade e habilidade, sendo essencial para o sujeito. "O reconhecimento traz um beneficio no registro da identidade, isto é, naquilo que torna este trabalhador um sujeito único, sem igual" (Dejours & Abdoucheli, 1994:135).

As pesquisas relativas à organização de trabalho mostram que há distância irredutível entre concepção e execução (Dejours, 2001). É esse espaço que constitui o desafio da inteligência astuciosa. Para que seja utilizado, é necessário que não seja negado pela hierarquia. Embora Dejours haja desenvolvido esses conceitos a partir do estudo do trabalho industrial, pode-se considerar que o espírito fordista, que separa concepção de execução, estendeu-se a outros espaços organizacionais. No trabalho docente, também há divisão hierárquica e separação entre concepção e execução, caracterizando grande defasagem entre o que é proposto pelos técnicos da Secretaria de Educação e o que pode ser executado pelo professor nas condições concretas da escola. A estratégia de adaptar o planejamento formal às condições reais é positiva, em princípio, por favorecer a manifestação da inteligência astuciosa. Todavia, muitas das vezes, os arranjos precisam ser feitos em segredo, por fugirem à norma. Ainda prevalece entre grande parte dos gestores o estilo autocrático, e eles hostilizam os professores que trabalham de forma mais autõnoma. Essa condição impede o reconhecimento da competência, registro subjetivo importante para a vivência de prazer.

Quando todas as margens de liberdade na transformação da organização de trabalho já foram utilizadas e restam somente pressões fixas que conduzem à repetição, à frustração, ao medo ou ao sentimento de impotência, o sofrimento residual começa a destruir o aparelho mental, conduzindo à descompensação (mental ou psicossomática) e à doença. Aí se caracteriza o sofrimento patogênico (Dejours & Abdoucheli, 1994; Dejours, 1992).

Quando o sujeito consegue utilizar a defasagem entre a organização prescrita e a organização real de trabalho e manifestar a inteligência astuciosa, tem lugar o sofrimento criativo que conduz ao prazer. Assim o estudo dos mecanismos dinâmicos que o sujeito utiliza para lidar com o sofrimento possibilita também a compreensão do prazer no trabalho (Dejours, 1992). Como exemplo, quando o trabalho apresenta condições desafiadoras e o professor consegue lançar-se a elas, alcançando o que julgava inatingível, a fonte original de sofrimento transforma-se em fonte de prazer. Outra condição que favoreceria a vivência de prazer do professor seria o reconhecimento social do valor de seu trabalho, incluindo a valorização da entrega subjetiva, que "pode dar sentido ao sofrimento no trabalho, metamorfoseando este sofrimento em prazer" (Batista & Codo, 2000:85).

 

3. Sobre o método

Elegeu-se a abordagem qualitativa que se mostrou adequada à natureza do objeto de estudo (prazer e sofrimento no trabalho docente) estando em consonância com a abordagem teórica da psicodinâmica do trabalho, que utiliza a fala como recurso fundamental e busca a compreensão aprofundada de aspectos subjetivos, valorizados na abordagem qualitativa. Entretanto, essa opção não significa oposição ao quantitativo ou à utilização de técnicas de uso consagrado na pesquisa tradicional, como referência a porcentagens, ou o uso de quadros ou tabelas para facilitar a visualização dos resultados. Ao eleger a abordagem qualitativa, buscou-se, sobretudo, a ênfase no significado, por sua relevância no trato de vivências subjetivas (Denzin & Lincoln, 2000: Romanelli, 1998; Taylor & Bogdan, 1998; Valles, 1997).

Participaram da pesquisa 33 sujeitos (dentre aproximadamente 1.100 docentes), sendo 31 do sexo feminino (razão pela qual se optou por adotar o termo professora(s) no relatório), predominando os que trabalham em dois períodos e estudam a noite. Procurou-se, na escolha dos sujeitos, alcançar a maior diversidade possível, especialmente em relação à idade e ao tempo de serviço no magistério. A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética instalado na Universidade Federal do Amazonas, e todos os sujeitos foram esclarecidos e consentiram em participar da pesquisa.

O instrumento fundamental de coleta de dados foi entrevista individual semi-estruturada, em uma adaptação da metodologia da psicodinâmica do trabalho, que preconiza a utilização de entrevistas coletivas. Todavia, tendo como sujeitos um grupo de professoras sobrecarregadas de tarefas, constatou-se que seria difícil reuni-las para entrevistas coletivas, optando-se, então, pela entrevista individual, recurso que vem sendo empregado por pesquisadores que utilizam fundamentação psicodinâmica no Brasil e encontram dificuldade de reunir os sujeitos, embora esse procedimento possa dificultar a apreensão das estratégias coletivas de defesa (Jacques, 2003).

Inicialmente se entrou em contato com os sujeitos, marcando-se as entrevistas, entretanto, na hora marcada, eles desculpavam-se pela falta de tempo e remarcavam-nas, por quatro ou cinco vezes, dificultando sobremaneira a coleta de dados. Apenas cinco entrevistas foram realizadas individualmente, no período previsto para coleta de dados no cronograma. Constatou-se que os sujeitos estavam sobrecarregados de tarefas, sendo muito dificil que separassem tempo para a entrevista, o que poderia inviabilizar a pesquisa. A realização das demais entrevistas foi possível quando, a partir de contatos e negociação, um professor do curso de pedagogia cedeu duas horas-aula para a coleta de dados. Uma equipe de cinco estudantes de psicologia, treinada para coleta de dados em entrevista individ ual, sob a coordenação da autora, realizou as entrevistas em grupos de cinco sujeitos. Cada sujeito respondeu a cada questão, e as respostas, em sua maioria, foram gravadas e transcritas. Dessa forma, as entrevistas individuais acontecerem em grupo. Esses percalços da cole ta de dados findaram por favorecer os objetivos da pesquisa, quanto à apreensão das estratégias coletivas de defesa, visto que as professoras, ao ouvir as respostas das colegas, estabeleciam pontes e se referiam a elas em sua resposta individual ("como disse a colega..." "neste ponto discordo da colega ...").

A outra fonte importante de informações acerca das condições e organização do trabalho decorreu do convívio prolongado da pesquisadora com professoras de educação infantil e ensino fundamental, como alunas de pedagogia, curso com o qual a pesquisadora trabalhou por quatro anos.

As categorias de análise foram construídas a partir das entrevistas, cujo roteiro abordou questões relativas às vivências de prazer e sofrimento das professoras, ao desejo de cursar pedagogia e às influências dos novos conhecimentos, bem como à organização do tempo face às novas demandas da condição de estudante. Os resultados foram apresentados em relatório à coordenação do PEFD, sendo posteriormente discutidos em um seminário de educação e trabalho, promovido pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação, unidade acadêmica que abriga os cursos de Pedagogia e Psicologia.

 

4. Os resultados, na fala das pessoas

4.1 Principais fontes de sofrimento no trabalho docente

Duas das principais fontes de sofrimento mencionadas em 19 respostas remetem à dificuldade que as professoras encontram para alcançar seu objetivo precípuo, ou seja, educar. O sofrimento relaciona-se ao vínculo afetivo que as professoras estabelecem com os alunos e as dificuldades estruturais desse vínculo, acrescidas das dificuldades da condição socioeconômica da maioria das crianças, com destaque para sua condição familiar: as professoras não encontram famílias estruturadas e participativas, que colaborem para o bom desempenho das atividades escolares, nem nos aspectos educativos mais amplos, como exemplifica a fala: "O comportamento da criança que vem sem nenhuma educação do lar. E, também, a falta de interesse dos pais ... eles querem que a gente seja responsável pelos filhos. Jogam tudo na escola". Grande parte das crianças de famílias de baixa renda mora com apenas um dos pais, geralmente a mãe, que trabalha fora, deixando a criança aos cuidados de irmãos e de outros parentes, que provêem acompanhamento precário às atividades escolares; o que dificulta o trabalho da professora e lhe causa sofrimento. É nesse contexto que a ausência dos pais no processo educativo é mencionada como uma das principais fontes de sofrimento, agravado quando a criança não consegue se manter na escola e a abandona, também por falta de acompanhamento técnico da escola.

 

 

Provavelmente, os autores clássicos de psicologia da educação contribuam para formar nas professoras a expectativa de encontrar crianças com famílias estruturadas, participativas e articuladas à escola, todavia, as escolas e as crianças concretas integram uma realidade complexa, que escapa aos referenciais idealizados. Se não há pais, se os há desempregados, enfrentando crises sociais, econômicas e afetivas, se a família não tem disponibilidade para acompanhar o trabalho da escola, a escola precisará oferecer à criança uma alternativa que se constitua como referência estruturante da vida e do mundo, desenvolvendo mecanismos para trabalhar com as crianças concretas, como quer que se apresentem.

A outra fonte de sofrimento mencionada em 19 respostas é a faulta de tempo para organizar as aulas, o que reflete a sobrecarga de atividades que caracteriza o cotidiano das professoras nesse momento de formação, como exemplifica a fala: "Eu sempre preparava meu material em casa. Então, depois da fuculdade, eu realmente passei a fazer na própria sala de aula [...] Eu não tenho mais aquele tempo de chegar em casa e preparar previamente. Eu faço naquele momento". A falta de tempo para preparar material didático foi mencionada como fonte de sofrimento em 19 respostas.

Outra fonte de sofrimento mencionada em seis respostas é a violência e a agressividade por parte dos alunos, que se relacionam com sua condição de vida e interferem no trabalho educativo: "Na sala de aula, só era a violência [...] Teve um dia que chorei pra eles contando a história do meu filho que foi assassinado através de violência... eles se comoveram quando me viram chorando. Mas, depois, eles continuaram... isso me levou a sair da sala de aula: foi a violência".

As condições socioeconômicas precárias das crianças também são fonte de sofrimento para as professoras: "[...] sofro quando uma criança chega perto de mim e diz: Professora, eu não tenho nada para comer hoje. Hoje não tenho nada em casa. Meus irmãos estão com fome lá em casa".

4.2 Principais fontes de prazer no trabalho docente

Partindo dos pressupostos da psicodinâmica, da luta contra o sofrimento manifesta-se a inteligência astuciosa que cond uz à orga,tização de trabalho mais eficaz do que a organização formal proposta pelos técnicos da Secretaria de Educação, favorecendo a vivência de prazer. No caso das professoras, isso ocorre quando elas conseguem (a despeito de todas as dificuldades) criar condições que favoreçam o aprendizado do aluno. Na escola pública, isso inclui uma organização real de trabalho, que ultrapassa as normas da Secretaria da Educação, que são pensadas (na divisão de tarefas, pelos técnicos) a partir de uma realidade que pressupõe uma estrutura socioeconômica de classe média, com escolas bem estruturadas, pais presentes e participativos. A professora depara-se com uma realidade muito diversa, tanto no aspecto da escola ("Tem escola que não tem estrutura. Tem que dar jeito pra tudo") quanto no plano da realidade do aluno. Nela o fracasso escolar é quase inevitável. Quando consegue conduzir os alunos à aprendizagem e fortalecer sua educação a partir de valores éticos, isso constitui grande fonte de prazer. Essa é a principal fonte de prazer, mencionada em 18 respostas, exemplificada nas seguintes falas: "[...] o maior prazer é ver o fruto do trabalho no final da alfabetização... as crianças lendo, escrevendo [...]"; "[...] A questão da apreensão do conhecimento pelos meus alunos, a mudança de opnião, a formação de opinião que eles adquirem no passar dos dias, que nós passamos juntos. Isso me causa prazer".

 

 

O vínculo afetivo que se estabelece com o aluno é outra fonte de prazer mencionada por seis professoras: "[...] o carinho e aquelas pessoas tão indefesas chegar aqui e abraçar o professor... dá um abraço, dá uma rosa, dá uma mensagem. Isso não tem dinheiro que pague". Ainda mantendo relação com o vínculo afetivo, cinco professoras referiram como fonte de prazer a possibilidade de ajudar a criança em outras esferas da vida, que extrapolam os assuntos escolares. Todas as fontes de prazer mencionadas relacionam-se ao êxito no processo de ensino-aprendizagem, ao vínculo afetivo com as crianças, incluindo o prazer de conduzir atividades lúdicas, revelando que as professoras se mostram profundamente identificadas com sua tarefa precípua, educar.

4.3 Organização do tempo

Nas respostas das professoras, percebe-se que houve expressiva dificuldade de conciliar as novas demandas da formação acadêmica com as tarefas da rotina de trabalho e vida familiar, sem redução de carga horária. A reorganização do tempo, face às novas demandas, implica sacrificio de lazer, de repouso e de tempo para a família, como exemplificam as falas: "[...] sinceramente, minha família ficou à parte. Eu não tenho muito tempo pra eles. E, também, a cobrança é muito grande. Mas, infelizmente, o que eu posso fazer?". Também leva à sensação de desorganiza ção: "não consegui me organizar [...] deixei de lado as tarefas de casa [...] tem que ter jogo de cintura [ ... ]"; "[ ...] eu tento conciliar, né, mas é o preço, por que eu tenho que fazer tudo isso, tenho que ser artista, para poder ser profissional, dona de casa, mãe e esposa. E eu digo até amante, por que se eu não for amante do meu esposo ele não vai precisar de mim para nada".

 

 

Essa dificuldade de atender à família pode ser fonte relevante de sofrimento, sendo a maioria dos entrevistados mulheres, 70% das quais são casadas, que já incorporaram o papel de profissional-esposa-mãe, mas agora, com a quarta tarefa, a de estudante, relegam a atenção à família para outros ou a deixam sem atenção.

4.4 O Desejo de cursar Pedagogia: relação com o prazer e o sofrimento

Percebeu-se na comparação das respostas que, para as professoras que responderam que desejavam cursar Pedagogia, o sofrimento decorrente das novas demandas parece ser menor, pelo fato de estarem alcançando um objetivo. O futo de abrirem mão de tempo em outras ésferas da vida parece dar sentido ao sofrimento, pois há prazer em realizar um sonho, compensando o desgaste. As novas demandas de tempo e de energia, decorrentes do ingresso no PEFD não implicam, necessariamente, fonte de sofrimento, como se percebe na seguinte fala: "[...] porque eu realmente queria ser professora, e queria fazer Magistério. E, depois, quando eu terminei o 20 grau, eu parei porque os filhos chegaram, mas eu sempre tive o sonho. Eu fiz vestibular três vezes, não passei. Para não ficar parada, eu fui fazer Teologia, aí terminei em 99 e, quando foi em 2000, Deus realizou o meu sonho...".

 

 

Contudo, para aquelas que não tinham desejo de fazer o Curso de Pedagogia (e nem se identificaram com ele durante o processo) o sofrimento aumentou. As novas demandas, advindas do ingresso no curso e do acréscimo do papel de estudante, potencializaram o sofrimento psíquico.

Algumas professoras responderam que, mesmo não desejando anteriormente cursar Pedagogia, identificaram-se com o Curso e atualmente estão gostando muito: "[...] eu desejei fazer outra faculdade [...] Serviço social. Mas, agora está ótimo até demais... Pedagogia é apaixonante [...]".

Nesse caso, depreende-se que a motivação se construiu no processo, apesar da ausência do desejo inicial de fazer o curso de Pedagogia.

4.5 Valorização profissional e sua relação com o prazer e o sofrimento

A maioria das professoras (22 dentre 33) respondeu que não se sente profissionalmente valorizada: "[...] Porque nós formamos médicos, advogados... quer dizer... e todos ganham mais que a gente né? Vivem melhor financeiramente e nós, que formamos esse cidadão, somos desvalorizados na questão do salário mesmo". O reconhecimento do valor do trabalho é essencial para a vivência do prazer, pois traz beneficio para a identidade do sujeito, dando sentido ao investimento afetivo no trabalho e ao sofrimento dele decorrente. Por outro lado, a falta de valorização pode levar ao sentimento de vazio e fulta de sentido. Dentre essas professoras, a maior queixa de desvalorização remete à questão salarial.

 

 

Curiosamente, dentre as professoras que responderam se sentir valorizadas (11), somente uma mencionou uma fonte externa de valorização, a valorização advinda dos alunos. As outras dez referiram-se à autovalorização: "Eu me sinto valorizada, porque todo ano [...] a gente recebe um tipó de clientela, no final do ano, de uma sala de 38, ficam apenas três, quer dizer, eu me sinto valorizada pelo meu trabalho [...]". Esse dado chama a atenção e, em consonância com o referencial dejouriano, o presente estudo apresenta a hipótese de que a autovalorização constitui uma estratégia coletiva de defesa. A falta de reconhecimento do valor de seu trabalho constitui fonte de sofrimento, que conduz a questionar: "Vale a pena?" Para não desistir ou sucumbir ao sofrimento patogênico, as professoras parecem ter constituído a autovalorização como estratégia coletiva de defesa contra o sofrimento, numa tentativa de dar sentido ao trabalho sofrido e pouco valorizado por outros.

Embora as estratégias coletivas de defesa sirvam para atenuar o sofrimento, constituem um paradoxo, porque mascaram as fontes de sofrimento, facilitando a adaptação às condições de trabalho causadoras do sofrimento. Ao adotar a autovalorização como estratégia coletiva de defesa, as professoras não lutam pelo reconhecimento de seu trabalho e do valor social de sua profissão, adaptando-se à condição de desvalorização social, que lhes causa sofrimento, especialmente no aspecto de desvalorização salarial.

4.6 A influência dos novos conhecimentos

Vinte e oito (dentre 32) professoras referiram-se à influência positiva dos novos conhecimentos sobre seu trabalho cotidiano, o que resulta da relação que estabeleceram entre os conteúdos ministrados na faculdade e seu trabalbo, e isso possibilitou uma compreensão abrangente do processo educativo: "[...] Depois que começou o curso de Pedagogia, aí eu percebi, assim, meu Deus, como o professor deveria fazer Pedagogia mesmo. Porque aquele segundo grau lá [...] é tão pouco que não tem nem o que a gente dar tanto pros alunos [...] Então, eu levo pra sala de aula e melhorou muito, muito mesmo. Acho que noventa por cento".

 

 

O dispêndio de tempo e energia que as professoras empregam para conciliar as novas demandas do processo de formação superior parece compensar, quando elas percebem a contribuição positiva dos novos conhecimentos no cotidiano pessoal e profissional.

 

5. Conclusões

Partindo dos postulados da abordagem psicodinâmica do trabalho, é da luta contra o sofrimento que se manifesta a inteligência astuciosa, que pode levar à subversão da organização prescrita de trabalho, a partir do estabelecimento de procedimentos mais eficazes. Quando o sujeito coloca sua marca, recebe o reconhecimento social que promove um registro subjetivo positivo, tendo lugar a vivência do prazer (Dejours & Abdoucheli, 1994; Dejours, 1992; 1997; 2001). Considerando-se que há grande defasagem entre a organização de trabalho (estabelecida pelos técnicos da Secretaria de Educação) e a situação concreta de carências várias (por parte dos alunos, de suas famílias e da escola), supõe-se que há amplo espaço para a manifestação da inteligência astuciosa, pois, se a professora não realizar adaptações, improvisações e burlas, não conseguirá conduzir seu trabalho educativo de maneira eficaz. Todavia, a inteligência astuciosa (inicialmente elaborada no plano subjetivo e transgressivo) necessita da validação social, que passa pelo reconhecimento (Dejours & Abdoucheli, 1994). A falta de reconhecimento do valor do trabalho da professora dificulta o processo de transformação do sofrimento.

As principais fontes de sofrimento no trabalho, mencionadas em dezenove respostas, se relacionam à ausência dos pais do processo educativo, o que dificulta a aprendizagem dos alunos e, por vezes, culmina com o abandono escolar. A outra fonte de sofrimento também mencionada em dezenove respostas, é a falta de tempo para preparar as aulas, relacionada ao acúmulo de tarefas e agravada pelo processo de formação superior, sendo também associada à preocupação das professoras com desempenhar de forma adequada seu trabalho. O sofrimento de não conseguir cumprir seu papel profissional acentua-se pelo fato de existir um vínculo afetivo que as professoras estabelecem com os alunos, dentro de um contexto circunscrito a uma relação profissional. Na luta contra o sofrimento, quando as professoras conseguem ultrapassar as dificuldades e atingir os objetivos de seu trabalho, tem lugar a vivência de prazer.

A principal fonte de prazer, mencionada em dezoito respostas, é a aprendizagem dos alunos e a contribuição para sua formação como cidadãos. Conseguir alcançar os objetivos educativos em situação tão adversa torna-se fonte de prazer por ser o resultado da luta contra o sofrimento. É fruto da manifestação da inteligência astuciosa, mobilizada por desafios de um trabalho portador de sentido. No entanto, ao olhar externo, parece que a professora somente cumpriu seu papel. Todavia, para alcançar seu objetivo (educar), ela teve de lutar contra muitos obstáculos (a ausência da família, a pobreza, a falta de material, a falta de apoio técnico). Assim sendo, o reconhecimento desse mérito seria fundamental para o registro subjetivo de competência. A falta de reconhecimento do trabalho (por parte dos superiores, pais, alunos, sociedade), dificulta o beneficio à identidade da professora, que favoreceria a vivência de prazer, que decorre do reconhecimento do valor, da utilidade e da beleza de seu trabalho.

Diante da falta de reconhecimento (importante para a vivência do prazer) as professoras voltam-se para a estruturação de estratégias coletivas de defesa que minimizem o sofrimento. Este estudo levanta a hipótese de que a autovalorização é uma estratégia coletiva, construída pelas professoras, para reduzir o sofrimento do trabalho exigente e não reconhecido. O reconhecimento do valor social do trabalho da professora poderia dar sentido ao sofrimento, favorecendo sua transformação em prazer, visto que a inteligência astuciosa, inicialmente mobilizada no plano pessoal e transgressivo, depende da validação social, que ocorre por meio do reconhecimento. Nas raras vezes em que recebem reconhecimento por seu empenho, que envolve a entrega subjetiva, a vivência de prazer é profundamente significativa, como exemplifica a seguinte fala: "É, eu não me sinto valorizada [...] O dinheiro, o salário é pouco [...] eu não me sinto valorizada nem pelos pais das crianças, nem pelos alunos mesmo, nem pela direção da escola [...] Mas, assim lá no final de tudo isso, quando eu vejo [...] Uma coisa muito importante que aconteceu na minha vida foi que eu ajudei um menino muito necessitado mesmo, dentro de minha sala, não sei nem como [...] E, quando foi um dia, ele bateu na minha porta para me entregar o certificado de segundo grau! E isso, assim, foi demais para mim! Acho que isso compensou todinha a minha vida profissional".

As professoras destacam que sentem a desvalorização de sua profissão especialmente no aspecto salarial, pois sua faixa de remuneração é nitidamente inferior à de outros profissionais com semelhante qualificação. O baixo poder aquisitivo compromete o acesso a bens culturais e implica comprometimento do padrão de vida da professora, resultando em dificuldades cotidianas que aumentam o desgaste. Um patamar salarial condizente com o esforço necessário para o bom desempenho da docência possibilitaria ainda a redução de carga horária de trabalho, resultando em menos cansaço e melhor qualidade de vida.

Quanto à relação entre desejo de cursar Pedagogia e as novas exigências da condição de estudante, constata-se que, para as entrevistadas que desejavam alcançar essa formação (ou se identificaram durante o processo), o desgaste oriundo das novas demandas parece ser compensado por um processo emocionalmente positivo, com efeitos sistêmicos profundamente saudáveis. Entretanto, para aquelas que não desejavam fazer o curso (e nem se identificaram com ele), o sofrimento aumentou, havendo desgaste em relação ao trabalho, a família e a faculdade, o que compromete sua qualidade de vida e saúde.

 

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Recebido: 25/05/05
Revisado: 03/01/06
Aceito: 15/02/06

 

 

1 Colaboraram na pesquisa os discentes de Psicologia da UFAM: Rebeca Dias de Souza (bolsista PIBIC), Antenor Pessoa Cavalcante, Eva da Costa Silva, Lia Mara de Lima Mendes e Rafael Porto.
2 Exceto a neurose das telefonistas, que Dejours (2001, p.35) tratou como exceção, o que veio a se tornar fonte de críticas contundentes de pesquisadores brasileiros que utilizam a abordagem epidemiológica e têm identificado fatores de risco que conduzem ao estabelecimento de nexo causal entre trabalho e doença mental (Lima, 2002; Codo, 2004).

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