SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número1Prazer e sofrimento no trabalho docente: estudo com professoras de ensino fundamental em processo de formação superior índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.5 n.1 Florianópolis jun. 2005

 

RESENHA

 

Repensando o trabalho a partir das relações entre valores e comportamento

 

 

Ana Magnólia Mendes

Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta da Universidade de Brasilia (anamag@unb.br)

 

 

A leitura do livro Valorese Comportamento nas Organizações,organizado por Álvaro Tamayo e Juliana Barreiros Porto, publicado pela Editora Vozes, em 2005, permite repensar o trabalho, a partir da análise dos valores humanos como motivadores das atitudes e dos comportamentos dos trabalhadores. A questão central a que o livro busca responder é se existem ou não e quais são as relações entre valores e comportamento, mas particularmente pretende verificar quais são os impactos dos valores no comportamento organizacional. Para tal, discute em suas três partes uma diversidade complementar de temas e autores, brasileiros e estrangeiros, oferecendo uma visão, ao mesmo tempo genérica e espeáfica, das inter-relações entre valores e comportamento, em diferentes contextos de trabalho.

A primeira parte do livro trata de questões teóricas e metodológicas. A teoria dos valores abordada no livro privilegia o modelo da estrutura universal dos valores de Shalom Schwartz, que vem sendo desenvolvido desde a década de 1980. Também são destacados importantes autores como Rokeach, Allport, Hofstede e Triandis.

Rokeach é um dos precursores das pesquisas sobre valores humanos individuais. Segundo o livro, o autor define valores como crenças abstratas que transcendem objetos e situações, sendo essas crenças relativas aos modos desejáveis e indesejáveis de conduta e estados de existência.

O destaque a Triandis tem uma das razões no fato de seus estudos incluírem, além dos valores individuais, os coletivos. Ele considera os diferentes contextos sociais, com o oIJjetivo de caracterizar o funcionamento dessas sociedades ou culturas. Para o autor, os valores refletem dois grupos de dimensão cultural: o coletivismo e o individualismo.

A contribuição de Hofstede relaciona-se com o estudo dos valores nas organizações, articulados à cultura. Para ele, os valores formam o coração da cultura, manifestam-se em alternativas de comportamento, são adquiridos cedo pela socialização e podem se diferenciar de acordo com a percepção que os membros da organização têm das práticas organizacionais e da relação entre tarefa, estrutura e sistema de controle.

No entanto, é recorrente em quase todos os capítulos do livro a utilização do modelo da estrutura universal dos valores, proposto com base nas pesquisas de Schwartz. Para o autor, valores são concepções e crenças, pertencem ao desejável e a um estado de comportamento, guiam a seleção e avaliação de comportamentos e eventos e são ordenados pela importância relativa que têm para o indivíduo. Organizam-se em estruturas, em função de conflitos e compatibilidades.

Em parceria, Álvaro Tamayo e Schwartz definem os valores como "princípios transituacionais, organizados hierarquicamente, relativos a estados de existência ou modelos de comportamento desejáveis que orientam a vida do indivíduo e expressam interesses individuais, coletivos ou mistos". Desse modo, os valores caracterizam-se por serem metas que o indivíduo fixa para si mesmo e modelos de comportamento desejáveis, por sua raiz ser motivacional, expressão de interesses e necessidades individuais, coletivas e mistas. Apresentam hierarquia baseada na importância que têm na vida do indivíduo e são determinantes da rotina diária, orientando a vida e moldando a forma de pensar, agir e sentir.

Para os autores, os valores têm sua fonte em necessidades universais do ser humano: necessidades biológicas, sociais e socioinstitucionais. O indivíduo, para lidar com a realidade, tem de reconhecer essas necessidades, a fim de planejar, criar ou aprender respostas apropriadas à sua satisfação.

Nessa perspectiva, Schwartz considera que existem necessidades universais, fonte dos valores que se expressam em tipos motivacionais, os quais retratam a transformação das necessidades em metas. Tais tipos são classificados em hedonismo - a gratificação de necessidades fisicas é transformada em valores socialmente reconhecidos, sendo a meta o prazer e a gratificação; auto-realização - necessidade de reconhecimento social, a meta é o sucesso pela competência; poder social-transforma necessidade de poder em dominação e controle, a meta é o statussocial, prestígio e controle sobre as pessoas e os recursos; autodeterminação - independência de pensamento, ação e opção; conformidade - o controle dos impulsos do próprio comportamento está em conformidade com expectativas sociais; benevolência-interesse e preocupação com o bem-estar das pessoas; segurança - integridade pessoal e de pessoas e grupos nos quais identificam estabilidade social e de si mesmas; tradição - respeito e aceitação dos ideais e costumes da sua sociedade; estimulação necessidades de novidades e mudança; filantropia - compreensão e aceitação dos outros e preocupação com o bem-estar de todos.

Ainda nesse campo das contribuições dos autores, vale destacar a produção de Álvaro Tamayo, que é de pelo menos 15 anos, sobre os valores humanos no Brasil, o que justifica a organização desse livro e o fato de esse autor ser citado em praticamente todos os capítulos e em várias obras sobre valores já publicadas no País.

Tamayo é também pioneiro no Brasil, ao fazer a adaptação da estrutura universal dos valores individuais e sociais desenvolvida inicialmente por Schwartz para as estruturas de trabalho e das organizações, bem como ao introduzir os estudos sobre percepção dos valores, tradicionalmente realizados com base em análise documental e história organizacional. Com esses avanços, contribui para a atuação dos gestores organizacionais, pois seus estudos permitem instrumentalizar os profissionais para traçar o perfil cultural das organizações e, com isso, desenvolver estratégias de ação para mudança da cultura organizacional.

O mencionado percurso, que se reflete na publicação desse livro, garante a consolidação do campo de pesquisa, além da formação de pesquisadores na temática, dentre os quais se destacam três das autoras do livro (Juliana, Lívia e Helenides), que foram suas orientandas de doutorado. Aqui, vale um parêntese para declarar que também fui sua orientanda, sendo essa uma das razões pelas quais escrevo esta resenha com enorme prazer.

Retomando a primeira parte do livro, além de serem tratados os aspectos teóricos já mencionados, também se apresentam aspectos metodológicos. São descritas as principais medidas de valores utilizadas no Brasil, particularmente, as escalas validadas e as recomendações para aplicação das pesquisas.

Em sua segunda parte, os capítulos enfocam os estudos sobre as relações entre valores e comportamento nos contextos das organizações de trabalho. Tratam dos seguintes temas: impacto dos valores na satisfação com inovações tecnológicas introduzidas em ambientes de aprendizagem; valores e comportamento de retaliação organizacional; valores, comprometimento e liderança organizacionais.

Na terceira e última parte do livro, são apresentados estudos e pesquisas sobre valores e trabalho. Discutem-se os valores de trabalhadores de baixa renda; valores e escolha profissional; e valores e discriminação de gênero nas organizações.

Ao final da leitura, à questão central, sobre as relações entre valores e comportamento nos contextos de trabalho, respondese de modo claro e completo, considerando-se que as pesquisas empíricas demonstram existir relações diretas, indiretas e corelações entre as variáveis. Apontam, particularmente, para os conflitos de valores como antecedentes que exercem impacto significativo no comportamento organizacional.

Assim sendo, com base na leitura, identifica-se que o estudo dos valores oferece grande contribuição para se entender o comportamento em diferentes contextos de trabalho. Alguns pressupostos que fundamentam a teoria dos valores veiculada no livro são identificados. Uns estão claros ao longo dos capítulos, outros estão mais invisíveis. Sua revelação é a contribuição que eu gostaria de deixar nessa resenha e que deve ser aprofundada com a leitura do livro.

O primeiro diz respeito ao sentido dos valores. O significado atribuído pelos indivíduos, pelas instituições e pela sociedade para adotar determinados comportamentos e ações em detrimento de outros tem sua explicação no sistema de valores por eles assumidos. Segundo algumas idéias da filosofia existencial, o homem se faz escolhendo sua moral. A vida não tem sentido a priori,não é nada, depende do sentido que damos a ela. O valor não é outra coisa senão esse sentido que se escolhe.

Nessa direção, os valores são mediações que o ser humano utiliza para dar conta de contradições entre o principal e o secundário, o essencial e o acidental, o desejável e o indesejável, o significante e o não-significante. É, assim, uma manifestação da preferência por algo ou por alguém, uma ruptura com a indiferença frente à realidade.

Dessa maneira, os valores têm em sua base a problemática das necessidades e dos desejos que guiam os indivíduos para o estabelecimento de metas que representam estados de existência ou modelos de comportamento. O ser humano, frente às necessidades, tende a reconhecê-las e a criar ou a aprender respostas apropriadas para obter satisfação, que se realiza em formas específicas definidas pela cultura. Tal satisfação implica não somente o processo cognitivo pelo qual o indivíduo é capaz de representar conscientemente e simbolizar essas necessidades, colocando-as no mundo da cultura por meio dos valores, implica também processos inconscientes e a socialização pela qual o indivíduo aprende maneiras culturalmente aceitas para comunicar-se com os outros no nível de tais metas e valores.

Pode-se, então, associar os valores à mediação entre as necessidades e os desejosindividuais e padrões de funcionamento da sociedade e instituições, implicando forma de pensar, de sentir e de agir, por meio de códigos específicos que são permeados pelos processos de mudança,jogos de interesses, regras, normas e vínculos entre as pessoas de determinado sistema social. Portanto, as pessoas podem usar os valores como defesa para suas atitudes em relação a questões sociais, de grupo e morais, podendo os valores exercer papel voltado para racionalizar as atitudes, exagerando a relevância daqueles que justificam suas atitudes e minimizando aqueles que se opõem a elas.

O segundo pressuposto refere-se à instrumentalidade dos valores. Os valores têm papel tanto de atender aos objetivos organizacionais quanto de atender às necessidades dos indivíduos. Os valores organizacionais podem passar mensagens e comportamentos convenientes, levando à naturalização do conteúdo e ao repasse espontâneo para os demais membros, fazendo com que a adesão e a reprodução permitam a liberdade dos indivíduos de aceitar ou não determinados conteúdos ou a eficiência do controle dessa liberdade.

Encontra-se, no caráter de mutabilidade dos valores, a força empreendedora para as mudanças organizacionais. O papel de controle, e ao mesmo tempo de transformação inerente aos valores por atender a necessidades individuais e demanda social, constitui a variável dinâmica que direciona um estudo mais completo dos processos organizacionais.

O sistema de valores faz parte de um universo simbólico que pode permitir a comunicação entre os membros de uma determinada organização, favorecendo a expressão do modo de ser particular do indivíduo e os processos de crescimento da organização. Ao mesmo tempo, pode permitir a ocultação das relações de dominação existentes, que passam a ser percebidas como naturais, bem como o bloqueio dos processos de subjetivação, podendo levar à sujeição do trabalhador e não ao desenvolvimento de sua condição de sujeito. Isso implicaria conservação do que foi estabelecido e cristalização de um sistema específico de valores que dificultaria a convivência com as diferenças individuais e com a expressão da subjetividade dos trabalhadores, condições fundamentais para a integridade psíquica.

Essa necessidade de manter a hegemonia resulta das incertezas provocadas pelas constantes mudanças que podem abalar a confiança e o envolvimento com o trabalho. Assim sendo, a cultura surge como contra-ataque aos problemas da desintegração, enfatizando as idéias comuns, as formas de pensar, os padrões e as maneiras de trabalhar, reproduzindo uma ordem particular instituída, que passa a ser legitimada pelos membros da organização, pelo consenso e pela solidariedade.

Desse modo, os valores são importante instrumento para entender a cultura organizacional. Essa cultura sustenta o processo de socializações, por meio do sistema de valores, que são repassados entre os trabalhadores. Os valores, como experiência subjetiva compartilhada, criam nas organizações a possibilidade de simbolização e mediação das necessidades individuais e organizacionais. Tais mediações podem, a partir do jogo de dominação e resistências, favorecer mudanças mais voltadas para interesses individuais, de grupos ou do coletivo.

Isso posto, recomendo a leitura do livro por sua preciosa contribuição à teoria dos valores e para aprofundar as reflexões aqui apresentadas. Ao final, o leitor terá trilhado um percurso instigante, no qual contradições e mediações fazem-se necessárias, a fim de permitir a construção desafiante de um modo particular de (re)pensar o trabalho, de analisar a teoria dos valores e de criar ferramentas úteis para a gestão organizacional.

Creative Commons License