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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.12 no.2 Florianópolis ago. 2012

 

A sabedoria prática: estudo com base na psicodinâmica do trabalho de criação literária

 

Practical wisdom a study based on psychodynamics of work of literary creation

 

 

João Batista FerreiraI; Ana Magnólia MendesII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
IIUniversidade de Brasília - UnB

 

 


RESUMO

As relações entre arte e trabalho remontam aos primórdios da existência humana, sendo o fazer literário uma das mais antigas e conhecidas formas de arte. O fazer literário oferece um campo de estudos favorável à compreensão da potencialidade do trabalho de criação na constituição do sujeito. O objetivo deste estudo é discutir aspectos da sabedoria prática, a partir do trabalho de criação artística do fazer literário, como aspecto significativo do processo de subjetivação. A investigação é parte de uma pesquisa mais ampla, concluída com base no referencial teórico da psicodinâmica do trabalho. A abordagem é qualitativa e exploratória, com metodologia de pesquisa documental. Foram analisadas 33 entrevistas e depoimentos de escritores publicadas no Brasil nos últimos 25 anos, a partir da técnica da Análise dos Núcleos de Sentidos (ANS). A análise dos resultados destacou a forma e a temporalidade singulares da sabedoria prática, configurada como processo subjetivo de permanente invenção das situações de trabalho e do sujeito. Conclui-se que a análise dos trabalhos de criação, que resultam em forte implicação subjetiva, fornece operadores críticos significativos das estruturas sociais, institucionais e organizacionais que produzem o trabalho alienado e que podem subsidiar análises e intervenções nessas situações.

Palavras-chave: Trabalho, Psicodinâmica do Trabalho, Criação Literária, Sabedoria Prática.


ABSTRACT

The relationship between art and work goes back to the beginnings of human existence, literary production being one of the oldest and best known art forms. Literary production offers a favorable field of study for understanding the potential of creative work in the constitution of the subject. The objective of this study is to discuss aspects of practical wisdom, from the creative work of literary art, as a significant aspect of the process of subjectivization. The investigation is part of a larger study, completed on the basis of theoretical psychodynamics of work. The approach is qualitative and exploratory, with a documentary research methodology. We analyzed 33 interviews and testimonies of writers published in Brazil in the last 25 years, based on the technical analysis of the Centers for Senses (ANS). The results highlighted the unique form and temporality of practical wisdom, set up as a subjective process of continuous invention of work situations and of the subject. It is concluded that the analysis of creative work, resulting in a strong subjective implication, provides workers significant critics of social, institutional and organizational structures producing alienated labor, which can provide analysis and assistance in these situations.

Keywords: Work, Psychodynamics of Work, Literary Creation, Practical Wisdom.


 

 

As relações entre arte e trabalho remontam aos primórdios da existência humana. Artistas de diversas épocas nomearam seu processo de criação como trabalho, referindo-se tanto às suas produções ou obras, quanto ao processo de criação propriamente dito.

O reconhecimento do trabalho artístico ganhou evidência especialmente a partir do Renascimento, quando o nome do artista passou a ser associado à sua criação. Até então, essa forma de trabalho tendia a ficar no anonimato, salvo algumas exceções. O reconhecimento dessa autoria, com o passar do tempo, alcançou as diversas manifestações de arte, entre as quais a criação literária (Heinich, 2008).

O fazer literário é uma das mais antigas e conhecidas formas de arte. Ao longo da história, os trabalhos de criação de inúmeros escritores alcançaram espaços coletivos que se estenderam para além do seu tempo. As formas históricas do trabalho apontam para uma relação entre tempo e narrativa. No modelo pré-capitalista de produção, as pessoas se reuniam em torno do narrador - nos momentos ociosos ou quando, sem pressa, estavam envolvidos no trabalho coletivo e artesanal - que ajudava a enunciar a experiência do mundo. Como assinala Kehl (2007, p. 268): "A experiência de viver e trabalhar em um ritmo não ordenado pela produtividade permitia que o abandono dos sujeitos à temporalidade guardasse uma proximidade grande com o tempo do sonho".

A sociedade moderna - marcada pela complexidade, abstração e instabilidade - favorece o isolamento e a perda de sentido da experiência. No mundo da modernidade, o oposto da narrativa é a informação jornalística escrita ou televisiva, essencialmente centrada na novidade, na imagem como espetáculo, conectada ao acontecimento fugaz que, como mostra Kehl (2007, p. 268), "corresponde a um tempo vazio da experiência e da subjetividade". Neste contexto, em que cada um vive a própria vida de maneira individualizada, esta perda de sentido é compartilhada pelos sujeitos desgarrados das formações sociais estáveis.

Ainda assim, o fazer narrativo, na qual se inclui o fazer literário, possui função organizadora do campo social, do processo de "permanente constituição do sentido da vida, pois dá consistência imaginária a uma noção de eu de que o sujeito dispõe para sentir-se vivo" (Kehl, 2001, p. 67).

Em Foucault (2000), vemos que a literatura se constitui como artifício movido pela necessidade de transgressão e instauração do novo, que produz efeitos de verdade. No Dicionário Aurélio (Ferreira, 2001), o termo artifício é apresentado como "processo ou meio para se obter um artefato ou um objeto artístico, recurso engenhoso, habilidade, perspicácia".

A definição de literatura tem variado ao longo do tempo, é sempre provisória. Diversos critérios são utilizados para identificar literatura, como: tipos de linguagem, textos, identificação do autor da obra. Um critério complementa o outro e dificilmente se chegará a um consenso.

Literatura é tudo aquilo que se escreve? Literatura é ficção? O fazer literário escapa às determinações e afirmações que o estabilizem em conceitos determinados. Nunca está dado, está sempre por se reinventar. Como fazer da arte, a literatura não pode ser medida pelos critérios da funcionalidade, da utilidade ou da informação (Blanchot, 2005).

Embora a literatura como ficção se apresente como conceito mais fácil de ser apreendido, seria difícil delimitá-la olhando somente o ficcional. Na fronteira dessa discussão, resgatamos a proposição de Sousa (2000) de que a escrita dos casos clínicos em psicanálise pode ser considerada como "ficção clínica resultado de uma hipótese teórica", tendo em vista a impossibilidade de um relato real.

Com o tempo, a especialização literária levou à diferenciação entre ficção e outros tipos de escrita, como jornalismo, filosofia, ensaio, estudo histórico. O percurso da literatura em direção ao texto produzido pela imaginação tornou-se uma das referências do romantismo. O conceito de literatura tem sido colocado em questão e, com isso, surgiram conceitos mais abertos como textos, escritura ou discurso (Costa, 2005). Adotamos o conceito de literatura como produção de uma nova realidade constituída pelo ato de escrever (Foucault, 2000, p. 140), como palavra-ação de ruptura, que nomeamos aqui de litera-ruptura.

O ato de criação, intrínseco à experiência do trabalhar, frequentemente se depara com o grande prescrito ordenador das configurações mais específicas da cultura: grupos, comunidades, organizações. Antonio Negri (apud Sousa, 2007) evidencia essa tensa dinâmica, ao utilizar os conceitos de poder constituinte e poder constituído.

O poder constituinte é a capacidade de retornar ao real, de organizar uma estrutura dinâmica, de construir uma forma formante que, através de compromissos, ordenações e equilíbrio de forças diversas recupera sempre a racionalidade dos princípios, ou seja, a adequação material do político em relação ao social e ao seu movimento indefinido.(Negri, apud Sousa, 2007, p. 25).

A partir do encontro com o real, a criação artística instaura possibilidades de questionamento da ordem institucional, social e do conhecimento. Como escreve Sousa (2007, p. 26) o ato de criação é "um fazer que só se faz fazendo e informa ao sujeito, a partir de sua obra, os horizontes que se desenham em seu trabalho. O ato criativo adquire necessariamente uma potência crítica e de desequilíbrio dos saberes vigentes."

O fazer artístico possibilita experiências que podem levar o sujeito a situações de descentramento e, desta forma, a repensar sua constituição nas dimensões mais imediatas da existência - e também mais amplas e sociais - nas quais está presente uma desconstrução da temporalidade: o passado como espaço de imensidão ancestral, habitado por mitos, fábulas e histórias que traduzem as enigmáticas dimensões da existência humana; o presente como espaço de síntese de um determinado contexto sociohistórico; e o futuro como projeção para além do tempo presente, para uma espécie de transcendência e o espaço de possibilidades do ser.

Com essa perspectiva, entendemos que o trabalho de criação literária - que depende de um forte engajamento subjetivo - oferece um campo de estudos que parece favorável à compreensão da potencialidade da sabedoria criativa nos processos de mobilização subjetiva e na constituição subjetiva do sujeito na sua singularidade que, numa dinâmica dialógica, pode oferecer contribuições para os aportes da própria compreensão do trabalho como potência constituinte da condição humana.

A ação de trabalhar pode ser entendida como possibilidade de desenvolvimento das capacidades humanas, de acesso à autonomia, à construção de sentidos para o sujeito e a sociedade. Para isso, é necessário que o trabalho não esteja submetido a situações que levem à fragmentação das capacidades individuais e coletivas, nem anulem a experiência da singularidade, como se observa nos efeitos do império das relações de troca no mercado, da divisão alienante do trabalho.

Neste sentido, como ato de criação, o fazer artístico pode ser utilizado como instrumento de crítica aos modelos sociais e econômicos que resultam no trabalho alienado. Foi com esta perspectiva que Marx e, posteriormente, Adorno tomaram a atividade artística como referência para uma crítica ao trabalho assalariado - principalmente na distinção entre trabalho livre e trabalho alienado. A análise do fazer artístico, como forma de trabalho, possibilita estender esse campo de estudos a profissões com forte engajamento subjetivo, voltadas para a criatividade, características cada vez mais demandadas no mundo do trabalho (Menger, 2005).

No referencial da psicodinâmica do trabalho, encontramos em Dejours (2004b) referências a situações de trabalho marcadas por essas características como, por exemplo, nas atividades de pesquisadores e artistas. As pesquisas com esse referencial voltadas para o trabalho artístico, no entanto, são muito recentes (Segnini, 2006 e 2010; Lima e Mendes, 2009; Assis e Macedo, 2008; Santos, 2008; Bueno, 2010). Além disso, não foram identificadas pesquisas concluídas sobre o trabalho de criação artística do escritor.

Entendemos que a psicodinâmica do trabalho oferece recursos para delimitar o quadro teórico em torno do fazer literário. O trabalho é compreendido como "o saber fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar (Dejours, 2004a, p. 28)". Com esse olhar, enfatiza-se a dimensão criadora do trabalho, seu estatuto de ação que possibilita a constituição da subjetividade e do sujeito, sua "condição transcendental de manifestação absoluta da vida" (Dejours, 2004a, p. 31).

Sendo por definição o que não é dado pela ciência e pela técnica, a experiência de trabalhar nos coloca, com frequência, diante do imprevisto, daquilo que desvela nossa impossibilidade de organizar o mundo em concepções estáticas. Tal experiência se constitui por um fazer nem sempre visível, pontuado por aspectos incompreensíveis, pela aura enigmática em torno das situações inusitadas que desafiam conhecimentos consagrados e aparatos técnicos construídos sobre a pretensão do infalível.

Trabalhar não se reduz à racionalidade instrumental, pois se constitui como evidência do fracasso dessa racionalidade, de ruptura com o estabelecido, na qual uma verdade se desvela. A verdade, para a psicodinâmica do trabalho, se constitui pela experiência do real. Tal pressuposto dejouriano é uma referência fundamental dessa pesquisa, ao indicar que o trabalhar não se reduz às relações sociais que o enquadram, aos salários, às relações de poder ou normas.

Trabalhar não é somente produzir. É a possibilidade para o sujeito se constituir e, ao fazê-lo, transformar a si mesmo. O trabalho é parte fundamental para afirmar a subjetividade, para o processo de enunciação do sujeito e construção da saúde. O conceito de saúde torna-se mais abrangente quando articulado ao trabalhar. No entanto, de acordo com Dejours (2004b, 2007a), a saúde é antes um ideal. Como o ideal de justiça, sem o qual não se pode pensar a justiça, mas que não existe do ponto de vista prático. Nessa linha, entendemos saúde no trabalho como a capacidade de mobilização subjetiva para uma relação gratificante com o trabalho, essencial para o processo de subjetivação (Mendes, 2007).

O processo saúde-adoecimento precisa ser compreendido no contexto específico de cada situação de trabalho que, por sua vez, não pode ser pensada fora da dinâmica da história, dos laços sociais e, mais especificamente, das relações do sujeito com seu trabalho.

As situações de trabalho estão, direta ou indiretamente, associadas a uma organização ou comunidade de filiação. A compreensão da psicodinâmica sobre a organização do trabalho vai além da racionalidade que tenta controlar as situações cotidianas, extrapola aspectos físicos, alcança a subjetividade individual, as relações interpessoais e a sutil rede intersubjetiva mobilizada pelo trabalho (Mendes, 2007).

A organização do trabalho tem duas dimensões: prescrita e real. A primeira é composta por regras e normas ligadas à lógica da produtividade, tende a ser desconectada das necessidades e desejos das pessoas e das atividades reais. A segunda reflete as situações imprevistas que ultrapassam o domínio técnico e o conhecimento científico; evidencia o fracasso da normatização diante da modificação contínua da realidade e estabelece desafios constantes à compreensão e ao fazer humanos.

É importante assinalar a grande diferença teórica entre 'realidade da atividade' (a que é visada pela expressão atividade real ou trabalho real) e 'real do trabalho', isto é os limites do saber, do conhecimento e da concepção, com os quais se chocam os atos técnicos e as atividades de trabalho. (Dejours, 1997, p. 43).

Como reconhecer a distância irredutível entre essas duas dimensões? Sempre na forma de um fracasso: o real se revela ao sujeito pela resistência aos procedimentos, ao saber fazer, à técnica, ao conhecimento, isto é, pelo fracasso do estabelecido e do conhecimento. Trabalhar é fazer a experiência do real, esse é o centro de gravidade da clínica do trabalho (Dejours, 2004b).

O real na psicodinâmica do trabalho é influenciado pelo conceito de real de Lacan, "mas o próprio Lacan tirava esse conceito de seu conhecimento da fenomenologia. Devemos muito, neste aspecto, à antropologia, que mostra que o acesso ao real nunca é imediato" (Dejours, 1999b, p. 47).

A mobilização para enfrentar as adversidades do trabalho e fazer a experiência do real - que entendemos se aplica também ao trabalho dos artistas - articula conceitos importantes da psicodinâmica do trabalho, como a sabedoria prática decorrente da mobilização subjetiva no trabalho.

A mobilização subjetiva possibilita a constituição da sabedoria prática, necessária para fazer a experiência do real do trabalho. Com isso, o sujeito desenvolve um modo particular de invenção, de usar a capacidade de criação e de um saber fazer singular. A sabedoria prática frequentemente ultrapassa e está à frente da consciência e do conhecimento que o sujeito tem do mundo e de si mesmo. A sabedoria prática é enraizada no corpo e depende de condições psicoafetivas.

A sabedoria prática é parte essencial para processo de subjetivação em todas as formas de trabalho. Conforme Mendes (2007), a subjetivação é entendida como "o processo de atribuição de sentido, construído com base na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho, expresso em modos de pensar, sentir e agir individuais ou coletivos" (p. 30). O essencial da subjetividade e do processo de subjetivação é invisível.

O processo de subjetivação pelo trabalho precisa ser renovado e reinventado todos os dias. Condição essencial para a constituição do sujeito e que depende de situações favoráveis ao equilíbrio psíquico e à saúde. A reinvenção dessa escrita da subjetividade (Ferreira, 2007, 2009), no entanto, enfrenta desafios crescentes, tendo em vista o cenário adverso do admirável mundo novo do trabalho.

O desafio permanente do sujeito no trabalho é fazer a experiência do real, o que indica, em nosso entendimento, que o trabalhar é também fazer a experiência de descentramento do sujeito. Nesse sentido, resgatamos os comentários dejourianos de que as pesquisas deveriam investigar mais as articulações entre as situações de trabalho e as dimensões do funcionamento subjetivo e intersubjetivo (Dejours, 2004a).

O encontro da história singular com a situação presente, o encontro do sujeito com o campo social, mediado pela experiência do trabalhar, é marcado por contradições (Dejours, 2004b). A palavra, desta forma, é um mediador privilegiado para a compreensão sempre provisória dessas contradições.

O termo sujeito na psicodinâmica do trabalho não é utilizado como denominação genérica para designar uma pessoa ou um agente indefinido. O conceito refere-se a quem vivencia afetivamente a situação, não é um conteúdo de pensamento, mas essencialmente um estado de corpo (Dejours, 1999a). A afetividade é o modo pelo qual um corpo singular vivencia seu contato absolutamente único com o mundo. Há um irredutível na singularidade. A afetividade está, portanto, na base do processo de subjetivação.

Com estes aportes, este estudo tem como objetivo discutir aspectos da sabedoria prática ou criativa, a partir do trabalho de criação artística do fazer literário, como aspecto significativo do processo de subjetivação no trabalho. A investigação é parte de uma pesquisa de doutorado, já concluído, que analisou a criação literária como trabalho vivo, com base no referencial da psicodinâmica do trabalho.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa exploratória, de natureza qualitativa, realizada com base em pesquisa documental e no referencial teórico da psicodinâmica do trabalho. Por meio da análise de entrevistas com escritores, buscamos investigar o trabalho de produção literária, tendo como principal objetivo evidenciar aspectos de seus processos de criação relacionados à sabedoria prática.

Com esse olhar, não buscamos a representatividade do pensamento de cada escritor ou grupo de escritores, nem delimitar generalizações sobre o processo de criação literária. Trabalhamos na articulação das manifestações dos entrevistados com o referencial da psicodinâmica do trabalho. Tal método encontra paralelos na investigação sobre o trabalho do escritor realizada pela socióloga da arte Nathalie Heinich (2000), que entrevistou trinta autores, visando "a maior variedade possível" no perfil dos autores, mas buscando sempre a conexão e a articulação com o referencial teórico utilizado e com seus objetivos de pesquisa.

No presente estudo foram analisadas 33 entrevistas completas publicadas em livros e revistas especializadas e cinco trechos de entrevistas realizadas com 32 escritores, sendo 11 brasileiros, 11 hispano-americanos e dez de outras nacionalidades, publicadas no Brasil, nos últimos 25 anos, conforme descrito na Tabela 1.

Esses escritores consolidaram trabalhos que são reconhecidos por sua contribuição à literatura. Alguns autores abordam com maior profundidade o trabalho de criação literária, nas entrevistas e em sua produção literária. Ricardo Piglia, Júlio Cortázar e Jorge Luis Borges, por exemplo. Clarice Lispector - cujos trabalhos tornaram-se mais conhecidos a partir dos anos 80 e estão entre os mais estudados no país - também é uma das maiores referências neste sentido. Seus romances Água viva e Um sopro de vida, por exemplo, apresentam inúmeras referências aos desafios do ato de escrever.

O recorte temporal de 25 anos foi estabelecido após levantamento bibliográfico inicial, no qual se buscou identificar as principais publicações de entrevistas com escritores editadas no país, e também com base no acompanhamento deste tipo de publicação realizado desde o início dos anos 80, em oficinas literárias, e que resultaram na publicação e premiação de contos, alguns incluídos no livro O doce vermelho das beterrabas, em 2006, de nossa autoria.

Para Sá Silva et al. (2009), uma justificativa para a utilização da pesquisa documental é que permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão da temática em estudo. Documento é entendido aqui como: "tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é considerado como documento ou fonte" (Cellard, 2008, como citado por Sá Silva et al., 2009, p. 7).

Os autores (Sá Silva et al., 2009, p. 3) citam Helder (2006, p.12) para discutir o estatuto da técnica: "A técnica documental vale-se de documentos originais, que ainda não receberam tratamento analítico por nenhum autor... é uma das técnicas decisivas para a pesquisa em ciências sociais e humanas".

Este trabalho constitui-se, assim, de uma investigação cuja coleta de dados foi realizada com base em pesquisa documental, escolha que se justifica pelo fato de haver uma enorme quantidade de entrevistas disponíveis, em um horizonte temporal extenso, com escritores importantes - alguns já falecidos - que constituem um vasto material disponível como fonte de pesquisa. Não foram identificados tratamentos desse material com base na abordagem da psicodinâmica.

Além disso, o interesse pela entrevista refere-se ao espaço de significação que essas conversas também propiciam, na medida em que o processo criativo se constitui em enigma também para os artistas-escritores. Como vemos nesta referência de Ehrezenweig, resgatada por Coutinho Jorge (2009, p. 42): "É um espetáculo espantoso ver os artistas, uma vez findo seu trabalho, começar às vezes a examiná-lo em todos os seus detalhes, como se ele não viesse deles".

As entrevistas-documentos foram analisadas com base na técnica de Análise dos Núcleos de Sentido (ANS), desenvolvida por Mendes (2007). Esta técnica de análise qualitativa possibilita a construção de núcleos de sentido e a investigação de temas que se evidenciam nas narrativas dos entrevistados.

As categorias temáticas foram definidas com base nos objetivos da pesquisa aqui apresentada e na perspectiva da psicodinâmica do trabalho. Após a leitura das entrevistas, foram identificados trechos das narrativas que estabeleceram ressonância com as categorias temáticas previamente definidas. Foi realizado, então, um trabalho de análise das narrativas que foram, gradativamente, articuladas em torno de temas-proposições. Esse trabalho de análise resultou na composição de trechos significativos dessas narrativas que procuramos articular às dimensões teóricas da psicodinâmica do trabalho.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos relatos dos escritores, identificamos aspectos relacionados à sabedoria prática que resultaram em duas categorias temáticas "o trabalho me impõe um método" e "apressa-te lentamente", bem como na proposta de diferenciação conceitual entre saber fazer instrumental e saber fazer com o real, apresentados e discutidos a seguir.

"O trabalho me impõe um método"

Essa categoria temática oferece elementos para pensarmos a sabedoria prática como permanente invenção de um caminho para cada situação de trabalho. São recorrentes as manifestações de escritores que vivenciam o fazer literário como caminho que se mostra no percurso da escrita, à frente do conhecimento, o que constitui aspecto significativo desse modo de saber fazer. Encontramos isso no relato de Clarice Lispector (2007, p. 163): "Eu nunca sei de antemão o que eu vou escrever... Vou me seguindo e não sei no que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria". Júlio Cortázar (1991, p. 165) ressalta o saber fazer que antecede a consciência, mobilizado por uma espécie de súbita corrente entre ele e o trabalho.

O trabalho me impõe um método. Posso estar dando voltas ao redor de um conto durante semanas e de repente vou para a máquina achando que está pronto, que posso me soltar e abandoná-lo bruscamente e não fazer nada de nada durante semanas. Mas o que eu posso dizer, e por isso falo que o trabalho me impõe o método, é que, quando começo uma coisa, há subitamente uma espécie de corrente entre mim e essa página que foi posta na máquina.

O escritor Júlio Cortázar (2002, p. 34) também resgata a conhecida frase de Picasso "eu não procuro, eu acho" ao se referir ao seu próprio modo de trabalhar. A distinção é significativa para nossa discussão. A procura pressupõe algo previamente conhecido. Achar é o encontro com o inesperado, com a dimensão enigmática do não saber. A frase do artista espanhol também serviu de mote para Lacan identificar, neste processo, um método para a psicanálise.

Lacan refere-se a esse dito de Picasso para ver nele uma verdadeira metodologia psicanalítica: o psicanalista também não procura o que sabe nas análises que conduz, mas acha aquilo que não sabia que encontraria e, como Freud já recomendara, deve abordar cada novo caso como se fosse o primeiro, esquecendo tudo o que sabe (Coutinho Jorge, 2009, p. 48).

No relato do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1999): "O escritor deve enfrentar cada tema novo de maneira nova. Eu não podia trabalhar Los adioses da mesma forma que em Junta-cadáveres. O tratamento é sempre outro" (p. 104). Ainda com Onetti (1999), vemos que a descoberta é um dos componentes da mobilização subjetiva do escrever: "Eu não sentiria o mínimo interesse em escrever se soubesse o que vai acontecer. (...) Nada delibero de antemão" (p. 105). A manifestação do escritor Charles Kiefer (1990) aponta nesta direção: "A questão de conteúdo/forma é dialética e imbricada. A minha tentativa é de deixar que a literatura, na medida em que eu a faço, se faça. Parece meio redundante, mas é o máximo que eu posso chegar na explicação do meu próprio texto. Deixar que a coisa se faça dentro de si mesma" (p. 7).

Para Caio Fernando Abreu (1988): "O primeiro momento de escrever é intuitivo. Depois vem o trabalho braçal. Os dragões não conhecem o paraíso, eu reescrevi seis ou sete vezes" (p. 8). Ao comentar o processo de criação do romance Onde andará Dulce Veiga?1, durante uma oficina de criação literária, o escritor contou que as quase mil páginas iniciais do livro foram transformadas, depois de muito trabalho, na versão final do livro com pouco mais de duzentas páginas2. Referência semelhante encontramos em Ricardo Piglia (1999), na qual o autor enfatiza o trabalho da reescrita:

Reescrever é a única maneira de saber aonde vou. Nada está previsto em minhas obras. O ponto de partida de Respiração artificial foi o desejo de escrever em forma de um arquivo, misturando tudo o que há num arquivo: cartas, testamentos. O título foi encontrado no final, pois chamava-se A prolixidade do real, baseado em versos de Borges: "y la noche que de la mayor congoja nos libra/la prolijidad de lo real (p. 38).

O comentário de Piglia é significativo para nosso percurso: a prolixidade do real, entendida como dimensão da realidade que não cessa de mostrar o inesperado e colocar o instituído em questão. O correlato simbólico das tentativas de lidar com a prolixidade do real é a busca incessante de dar-lhe forma por meio da palavra. A interminável busca de simbolização. As tentativas - marcadas pelo fracasso - de constituir sentidos para o real.

Nessa perspectiva, a reflexão de Maurice Blanchot (1987) é elucidativa: "Escrever é fazer-se eco do que não pode parar de falar" (p. 17). O real não pode parar de falar, mas é contido - e ao mesmo tempo alcançado - por nossas configurações simbólicas. A escrita é a construção de uma escuta e materialização dessa prolixidade infinita.

No que se refere ao saber fazer que procura contornar a dificuldade de simbolização, encontramos em Vargas Llosa (1999): "Algumas vezes, eu também busquei a expressão: agora sei que meus deuses não me concedem mais do que alusão ou menção" (p. 180). A referência à alusão como forma de trabalhar com a simbolização também é enfatizada por Ricardo Piglia (1994):

O que se busca é o que não se disse, e esse processo equivale a uma edição, pois é mais importante saber o que não se vai narrar. Os grandes narradores são aqueles que sabem deter um relato no momento em que a alusão, o não dito, a elipse produzem um efeito sobre o que se está dizendo. Borges é um mestre absoluto nisso... Trabalho a partir de um rascunho e, quando chego ao final, vejo que deixei de contar muita coisa que pretendia (p. 133).

Os depoimentos dos escritores oferecem elementos para pensarmos a sabedoria prática como permanente invenção de um caminho para cada situação de trabalho. Desta forma, se configura uma dinâmica mergulhada na experiência do real. Campo enigmático que escapa à simbolização. A dimensão de um saber que se constitui na experiência do real - e com o real e o simbólico - é significativa para reafirmar a compreensão de que o trabalho se constitui no seu próprio fazer, cujo método é continuamente reinaugurado a partir de uma prática singular.

"Apressa-te lentamente"

Outro aspecto fundamental da sabedoria prática é o saber fazer em um tempo próprio, que desconhece sua face cronológica e se aproxima da temporalidade do inconsciente. Assim, destacamos o comentário do escritor Octávio Paz (1999): "O tempo é o núcleo do que eu creio que seja a experiência literária. Ela é um dos modos de aparição desse elemento estranho" (p. 99).

Tempo imponderável da elaboração que pode levar à produção de sentido do próprio trabalho e do sujeito. Tempo da ressonância com o desejo, potencialmente dissonante do mundo conformador das representações. Como indica Clarice Lispector (2007): "Eu elaboro muito inconscientemente. Às vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase..." (p. 150). E também Jorge Luis Borges (2009): "O trabalho essencial do escritor consiste em distrair-se, em pensar em outras coisas, fantasiar, não se apressar para dormir" (p. 152).

Tempo que extrapola horários regulares, se estende para o sono e os sonhos. Horas e noites nas quais sonhamos com o trabalho: "Quando escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes, viajo para ter sossego, às vezes fico por aqui mesmo, mas mando dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda", conta Chico Buarque (2007, p. 100).

Isso nos reporta aos comentários de Dejours (2004b): "O trabalho não é, como se acredita frequentemente, limitado ao tempo físico. (...) O trabalho ultrapassa qualquer limite dispensado ao tempo de trabalho; ele mobiliza a personalidade por completo" (p. 31). E também à consideração de que "sonhamos com o trabalho. Pois bem, isso é necessário para nos tornarmos hábeis em nossas atividades. (...) É toda a subjetividade que é arrebatada nesse movimento, até o mais íntimo do ser" (Dejours, 2007a, p. 19).

O tempo da criação artística - e de todo trabalho de criação - se contrapõe à exacerbação do tempo instrumentalizado pela conformação capitalista do trabalho, e é potencialmente transgressor. Como ressalta Edson Sousa (2000, p. 216), o trabalho do artista introduz novas experiências sobre a função do tempo no trabalho: "Justamente por não responder a uma lógica do capital, que em nosso tempo propõe equivalências entre tempo e dinheiro, o artista produz muitas vezes, num longo tempo silencioso, um trabalho nem sempre visível".

Encontramos aproximações disso nas reflexões de Calvino (1990) sobre a problematização do tempo necessário à criação literária, descritas no livro Seis propostas para o próximo milênio. O autor resgata a máxima latina festina lente ("apressa-te lentamente"), e a sublinha com uma história chinesa:

Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. "Preciso de outros cinco anos", disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu (p. 67).

Nesta linha, ao analisar o conto resgatado por Calvino, Ricardo Piglia (2004) ressalta que a história se refere ao tempo outro necessário ao trabalho de criação:

Como o relato trata de um artista, seu núcleo básico é o tempo e as condições materiais de trabalho: neste sentido, o conto é um tratado sobre a economia da arte. Firma-se um contrato de trabalho entre o pintor e o rei: a dificuldade reside, recordemos Marx, em medir o tempo de trabalho necessário numa obra de arte e, portanto, a dificuldade de definir (socialmente) o seu valor (p. 98).

A observação de Piglia é bastante próxima das críticas contundentes de Dejours (2008) às tentativas de avaliar o trabalho, que igualmente se reportam a Marx:

Acho importante ressaltar que, em seus escritos filosóficos, Marx já sustentava que o trabalho não pode ser medido, pois provém de uma experiência subjetiva e fundamentalmente incomensurável. E é na ausência de outra possibilidade que se passa da avaliação do trabalho à avaliação do tempo de trabalho, e que as duas dimensões passam a ser consideradas equivalentes (p. 34).

As avaliações quantitativas têm dificuldade para capturar o tempo singular de elaboração e realização do trabalho, cuja parte mais importante é essencialmente invisível. Dejours (2008) afirma ainda que "as pesquisas mostram claramente que o empenho da subjetividade ultrapassa, e muito, o tempo que é contabilizado como tempo de trabalho" (p. 65).

Tal instrumentalização é uma das faces da lógica que induz à alienação, dado que a experiência de trabalhar não é redutível à dimensão objetiva. Aqui reencontramos a visão de que a experiência de trabalhar também escapa às definições. E nos encontramos com as reflexões de Blanchot (2005) sobre a impossibilidade de definir o trabalho de criação literária, reflexões que se contrapõem à visão instrumental do trabalho, como enfatiza, de modo crítico, a psicodinâmica.

O fazer literário escapa às determinações, às afirmações que o estabilizem em conceitos determinados. Nunca está dado, está sempre por se reinventar. Como fazer da arte, a literatura não pode ser medida pelos critérios da funcionalidade, da utilidade ou da informação (p. 49).

Quando situada no território da não funcionalidade, a sabedoria prática possibilita a experiência do real do trabalho e o desenvolvimento de um saber fazer singular, um modo próprio de criação e invenção do sujeito e da vida.

A sabedoria prática frequentemente ultrapassa a consciência e o conhecimento que o sujeito tem do mundo e de si mesmo. Como indica Dejours (2004a), uma das construções significativas da psicodinâmica é que "a experiência precede o saber" (p. 287) e depende das condições psicoafetivas (ressonância simbólica e mobilização subjetiva) e sociais (reconhecimento pelo outro) nas quais o trabalho é realizado.

A sabedoria prática suscita questões sobre os requisitos para sua mobilização que, segundo Dejours (2004b), demandam investigações sobre o tema. A análise psicodinâmica dos trabalhos de criação, em nosso entendimento, oferece elementos importantes para este percurso. Com essa perspectiva, sugerimos uma distinção teórica para a sabedoria prática, descrita a seguir.

Saber fazer instrumental e saber fazer com o real

O saber fazer da criação literária oferece um contraponto crítico às formas de trabalho alienadas, anteriormente enfatizadas, e fornece elementos para pensarmos em configurações diferentes da sabedoria prática: saber fazer instrumental e saber fazer com o real. Tal distinção foi construída nesta pesquisa a partir da discussão dos depoimentos dos escritores com base no referencial teórico da psicodinâmica e, de modo especial, articulada à observação de Lacan, conforme Lima (2009), sobre as expressões savoir-faire e savoir-y-faire:

...a primeira traduz um saber fazer com uma técnica conhecida pela habilidade que se tem de um elemento qualquer, um saber ensinado através de normas porque se tem as regras universais do uso, um artifício. Ao passo que a segunda expressão - que serviu como título para o Colóquio que originou o livro Saber fazer com o real - possui uma interpretação mais próxima aos psicanalistas e aos artistas, pois valoriza a diferença entre o universal e o particular. Enquanto o saber fazer não traz grandes surpresas, visto que supõe um saber domesticado, submisso, universalizado pelo conceito que advém do Outro, na expressão savoir-y-faire há um saber fazer com, um saber se virar com isso, que não universaliza o sujeito, ao contrário, produz surpresa e o conduz ao singular de seu ato (p. 26).

A distinção entre saber fazer instrumental e saber fazer com o real parte justamente dessa proposição lacaniana, que entendemos pertinente para pensarmos uma amplificação das dimensões da sabedoria prática. O saber fazer instrumental opera nos aspectos mais diretamente ligados ou intrínsecos à organização do trabalho, tende a ser formatado pela lógica da produtividade, da otimização de resultados, podendo desconsiderar as consequências éticas e de saúde das pessoas em situação de trabalho. Busca viabilizar alternativas às deficiências e adversidades do trabalho, cujo aprimoramento implicaria maiores custos para as organizações, como a aquisição de equipamentos de segurança ou recursos materiais e tecnológicos que ofereçam melhores condições de trabalho. A exacerbação do saber fazer instrumental pode ser identificada no zelo perverso (Ferreira, 2009).

A visão de que trabalhar é fazer a experiência do real demanda um saber fazer com o inusitado, com a surpresa que indica e aponta para o real, e implica colocar em questão modos de ser e de existir. Isso abre possibilidades para o processo de significação do sujeito que nomeamos aqui de saber fazer com o real que é um fazer na borda indefinível entre o trabalho prescrito e o real do trabalho.

Um aspecto significativo da interlocução da psicodinâmica do trabalho com a psicanálise é a articulação do real com o inconsciente. A dimensão primeira do real é o inconsciente "fonte primordial do não saber do eu - seu núcleo central" (Coutinho Jorge, 2000, p. 97). Assim, fazer a experiência do real é, sobretudo, fazer a experiência do inconsciente. Neste sentido, o saber fazer com o real está conectado à experiência do inesperado, produz surpresa e conduz o sujeito ao seu ato singular e, ao mesmo tempo, voltado e decorrente da sua relação com a dimensão do coletivo, que se manifesta no fazer da criação.

Essa distinção também fornece elementos para uma amplificação conceitual que pode contribuir para a análise psicodinâmica de trabalhos mais voltados à criação, realizados, por exemplo, por pesquisadores, psicanalistas e artistas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a visão de que trabalhar é fazer a experiência do real, do inusitado, da permanente busca da verdade instaurada pelo não saber, a permanente reinstauração subjetiva possibilitada pelo trabalho de criação é processo indispensável para colocar em questão situações de adoecimento e alienação no trabalho. Esses sugerem importantes questões para pensarmos a indissociável articulação entre as teorias do sujeito, da ação e da saúde, projeto com o qual a psicodinâmica do trabalho tem se ocupado na sua jovem e inovadora trajetória e que tem produzido significativas contribuições para a evidenciação da alienação no trabalho e para a construção de práticas de emancipação do sujeito-trabalhador.

Nosso exercício de análise da experiência de criação literária, a partir das categorias temáticas constituídas e com base no referencial da psicodinâmica do trabalho, destaca a sabedoria prática como aspecto fundamental do processo de subjetivação. Além disso, foram identificados operadores críticos, nessa dimensão da experiência criadora, que enfatizam os efeitos do trabalho alienado na constituição do sujeito.

A análise dos resultados sinalizou aspectos da sabedoria prática relacionados à necessidade de se considerar a forma e a temporalidade singulares das situações de trabalho, bem como seu caráter de permanente invenção, que nos levou à proposta de distinção conceitual entre saber fazer instrumental e saber fazer com o real.

O primeiro saber foi identificado como voltado à reparação das deficiências primárias do trabalho prescrito e mais facilmente reforçado pela exacerbação da produtividade, resultando em perda do sentido do trabalho e adoecimentos. O segundo saber, potencialmente transgressor do trabalho prescrito, continuamente se depara com a irredutibilidade do real à simbolização (déficit semiótico), referente à insuficiência das palavras para traduzir a experiência do real.

O saber fazer com o real desafia conhecimentos e aparatos técnicos estabelecidos. Ao se constituir como operador crítico das estruturas sociais, institucionais e organizacionais que produzem o trabalho alienado, torna-se essencial para a desconstrução de enunciados naturalizados do eu. Tais proposições contribuem, em nosso entendimento, para uma melhor diferenciação dos conceitos de real do trabalho e trabalho real, assinalada por Dejours (1997).

O fazer literário é entendido como forma de trabalho na qual os processos de criação fornecem elementos para análise do poder constituinte de outras formas de trabalho que possam ser configurados como trabalho vivo. Estudar formas de trabalho dinamizadas por essas características possibilita a compreensão e a delimitação de elementos práticos das experiências do trabalhar, que podem ser utilizados como base para a construção de sentidos e da vida.

Nesta perspectiva, o estudo da sabedoria prática possibilita ressaltar questões importantes sobre a articulação dos requisitos físicos, sociais e cognitivos de seu funcionamento que, segundo Dejours (2004b), demandam mais investigações para elucidação de seus fundamentos. As descobertas advindas das experiências singulares dos trabalhos de criação, em nosso entendimento, podem fornecer elementos significativos para este percurso.

 

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Recebido em: 20.12.2011
Aprovado em: 01.03.2012

 

 

1 Adaptado para o cinema por Guilherme de Almeida Prado, em 2007.
2 Oficina de contos coordenada pelo escritor na Casa de Cultura Mario de Andrade, em São Paulo (SP), conforme notas pessoais do autor deste artigo.