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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versión On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.12 no.2 Florianópolis ago. 2012

 

Espaço coletivo de discussão: a clínica psicodinâmica do trabalho como ação de resistência

 

Collective space for discussion: the clinical psychodynamic of work as an act of resistance

 

 

Soraya Rodrigues MartinsI; Ana Magnólia MendesII

IUniversidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora associada do Laboratório Fator Humano, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Endereço: Rua Tenente Silveira, 225, conj. 309. CEP 80010-301, Florianópolis - SC. Tel.:(48) 91546604 - Fax: (48) 33485768 - E-mail: sorayarm@uol.com.br
IIUniversidade de Brasília. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de Brasília - UnB. Endereço: SQN 206, Bloco K, apto. 105. CEP: 70862-010 Asa Norte, Brasília - DF. Tel. (61) 3238-3253. E-mail: anamag@unb.br

 

 


RESUMO

Com uso do método clínico, esse estudo apresenta e discute alguns aspectos teóricos metodológicos relacionados a práticas de pesquisa-intervenção grupal na clínica do trabalho, apoiado nos princípios da psicodinâmica do trabalho, da psicanálise e da técnica dos grupos operativos, junto ao SUS, com mulheres trabalhadoras de diferentes categorias profissionais que tinham em comum o adoecimento relacionado ao trabalho. Esta articulação viabiliza um tipo de intervenção que envolve a pesquisa, a investigação e a ação, associando modos particulares que fortaleçam a ação, por meio da prática de intervenção grupal. Ao construir coletivamente, mediante o espaço de escuta e de fala compartilhada, o reconhecimento, a cooperação, a ressignificação do sofrimento e a liberdade de agir. Permite a construção de um espaço público de discussão, responsável pelo processo de elaboração e per-elaboração das situações de trabalho vivenciadas, contribuindo, assim, para criar modos de resistência dos trabalhadores à dominação estabelecida nos processo de gestão da organização do trabalho, constituindo uma estratégia para manter e garantir a saúde mental no trabalho.

Palavras chaves: Clínica Psicodinâmica do Trabalho, Processo Grupal, Mobilização Subjetiva, Coletivos de Trabalho.


ABSTRACT

This study utilized the clinical method to present and discuss some theoretical methodological aspects related to group research-intervention practices in the clinic of work, based on the psychodynamics of work and on clinical records related to a group intervention process, by the SUS, with working women from various professional groups, who had, in common, experienced work-related illness. This articulation enables a type of intervention that involves research, investigation and action, involving particular modes that strengthen the action through the practice of group intervention. By means of the space of shared listening and speaking, the recognition, the cooperation, the reframing of suffering, and the freedom to act is built collectively. This allows the construction of a public space for discussion, responsible for the process of elaboration and secondary elaboration of work situations experienced, thereby contributing to create modes of worker resistance to the domination established in the process of managing the organization of work, constituting a strategy to maintain and ensure mental health at work.

Keywords: Clinical Psychodynamic of Work, Group Process, Subjective Mobilization, Works Collectives.


 

 

Historicamente, o trabalho tem se constituído um dos principais modos de produção da existência social, com repercussões diretas sobre a condição de saúde dos trabalhadores. As constantes e aceleradas transformações no mundo do trabalho contemporâneo, trazendo inevitáveis consequências para a saúde, ampliam, enquanto tornam mais complexa, a investigação e o tratamento do sofrimento, da dor e do desconforto físico e psíquico, presentes nas relações entre trabalho e saúde.

Vários estudos(Mendes, Merlo, Morrone & Facas, 2010; Selligman-Silva; 2011; Martins, 2009; INSS, 2006) apontam a progressiva incidência das doenças relacionadas ao trabalho, sendo essas definidas a partir de estudos epidemiológicos e pesquisas interseccionais, dado que as condições de trabalho constituem um fator de risco adicional ou contributivo ao adoecimento (Brasil, 2001). Sob as mais diferenciadas contribuições teóricas e denominações, compondo um campo de investigação genericamente chamado saúde mental e trabalho, o problema principal desses estudos está em dimensionar o papel histórico e cultural que o trabalho desempenha no processo saúde-doença, bem como a delimitação dos aspectos psicossociais, incluindo os organizacionais condicionantes do processo de adoecimento.

Este campo tem recebido diversas contribuições teóricas, entre elas destaca-se a abordagem da Psicodinâmica do trabalho. Para Dejours (2009a), as formas atuais de gestão e organização do trabalho seriam diretamente responsáveis por alguns transtornos mentais e somáticos contemporâneos, classificados basicamente em quatro categorias: a) patologias de sobrecarga e/ou hipersolicitação, em particular, distúrbios osteomusculares, síndrome de burn-out e morte súbita; b) patologias resultantes de assédio moral; c) patologias relacionadas a agressões em que são vítimas funcionários no setor de serviços, na execução de tarefas cotidianas (agressões de usuários, clientes, alunos de escola etc.), atingindo desde caixa de supermercados e operadores de telemarketing a funcionários do serviço público; d) patologias ligadas à intolerância e à pressão no trabalho, que podem ocasionar até suicídios no próprio ambiente do trabalho.

Tais patologias têm sido foco de análise na escuta clínica de vários pesquisadores brasileiros, como Martins (2009) e Santos-Junior, Vital, Mendes e Araujo (2009). Esta escuta tem se caracterizado como uma clínica do sofrimento patogênico, do adoecimento, articulando de modo indissociável a pesquisa da ação. É pesquisa sobre o sofrimento e as defesas construídas antes e após o adoecimento e intervenção nos modos de enfrentar a doença. Neste tipo de pesquisa-ação, reconstrói a história do sujeito no trabalho e traça novos destinos, por meio da discussão coletiva desta história.

Martins (2009) destaca que, no trabalho, o corpo em sofrimento configura-se como uma geografia concreta do real, afirmando materialmente a memória. Sob a perspectiva da psicanálise e da psicodinâmica do trabalho, torna-se essencial pensaros acontecimentos, concebendo a narrativa histórica como um contínuo regresso ao outro, presentificando uma ética do testemunho.O ato de testemunhar sustenta a memória como ética, afirma a transgressão dos significados instituídos e legitimados pelo poder, como resistência desde dentro dos acontecimentos. Possibilita a criação de novos lugares de sentido, resgatando a dignidade, a partir da voz de quem sofreu na materialidade do existir.

A construção de uma ética que dê conta dos transtornos do trabalhar, do viver em comunidade, assegurando na pluralidade a singularidade, é o grande desafio do mundo do trabalho e de nossa sociedade.

Por outro lado, a importância e o desenvolvimento da psicologia como ciência e profissão no contexto da saúde e das organizações de trabalho, bem como no estudo das relações entre saúde mental e trabalho, requer uma produção escrita que apresente, sistematize e fundamente experiências de intervenção na área, com o objetivo de contribuir para uma redefinição de práticas na perspectiva da atenção à saúde no contexto de trabalho.

A clínica psicodinâmica do trabalho tem entre seus princípios fundamentais a promoção do espaço público de discussão do coletivo de trabalho. Mediante o processo de elaboração e per-elaboração do sofrimento no trabalho e das defesas para confrontá-lo busca-se o resgate do sentir, do pensar, do julgar e do agir em liberdade, construindo novos sentidos ao vivido, ressignificando-o. Ressaltando que frente às diferentes realidades que se apresentam para atividade clínica no contexto trabalho, revelam-se diferentes práticas, cujo grande desafio é construir dispositivos técnicos, éticos e políticos específicos sem distanciar-se dos princípios e do propósito de analisar (pesquisa ação) a dinâmica entre a organização do trabalho, o sofrimento e a saúde mental.

Mendes e Araujo (2011) no livro "Clínica psicodinâmica do trabalho: práticas brasileiras" descrevem o desdobramento da clínica psicodinâmica do trabalho em tipos diferenciados de condução, envolvendo um processo particular de negociação previsto, por Dejours, na fase de análise da demanda. Emergindo das práticas analisadas por esses autores: a clínica da cooperação; a clínica das patologias e a clínica da inclusão.

A primeira, clínica da cooperação, cujos participantes do coletivo estão imersos no mesmo cotidiano de trabalho (Dejours, 2009b), procura analisar e potencializar a mobilização subjetiva, a construção de regras coletivas de ofício e de convivência. A segunda, a clínica das patologias (Dejours, 2010), está focada no resgate do sujeito ao reconstruir a história do adoecimento e ou de violência a que foi exposto. Tem sido realizada com grupos heterogêneos em relação à organização do trabalho e homogêneos em relação à categoria profissional ou à situação vivida. Na prática desta segunda clínica, perde-se espaço para mobilização subjetiva do coletivo que convive junto cotidianamente, mas ganha recursos coletivos para enfrentar a doença, pensar o futuro do trabalho e subsidiar a luta de categorias profissionais por melhores condições de trabalho e de saúde dentro de uma perspectiva preventiva. E a terceira, a clínica da inclusão, tem o foco no sentido do trabalho como constituinte do sujeito em situação de não trabalho (tais como aposentados e desempregados). Apesar dessas variações, observa os autores, na prática clínica se faz necessário promovera análise do desejo (falta) do coletivo (demanda) para que o espaço de discussão oriente-se para a mudança da situação vivida e para significação dos sintomas, entre trabalhadores com ou sem adoecimento ou com ou sem emprego.

Neste contexto, este trabalho tem por objetivo apresentar alguns aspectos teóricos e metodológicos relacionados a práticas de intervenção em clínica do trabalho, tendo como referência central as ideias da psicodinâmica do trabalho e outras contribuições de abordagens clínicas no campo social. Parte do pressuposto de que esta clínica permite a construção de um espaço coletivo de discussão, responsável pelo processo de elaboração e per-elaboração das situações de trabalho vivenciadas, contribuindo, assim, para criar modos de resistência dos trabalhadores à dominação estabelecida nos processo de gestão da organização do trabalho, constituindo-se num modo de manter e garantir a saúde mental no trabalho.

 

MÉTODO

Com uso do método clínico, apresentamos e discutimos alguns aspectos teóricos metodológicos relacionados a práticas de pesquisa-intervenção grupal na clínica do trabalho, apoiadas em pesquisas em psicodinâmica do trabalho realizadas no Brasil nos últimos anos (Martins, 2009, 2010b, Mendes, 2007, Mendes & Araújo, 2011), na escuta clínica e em fragmentos (vinheta) de registros clínicos referentes a um processo de intervenção grupal. Tem como referência central as ideias da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2004a; Martins, 2009 & Mendes, 2007) e outras contribuições do trabalho em grupo de abordagens clínicas no campo social apoiadas na psicanálise, em especial as contribuições sobre grupo operativo (Pichon Rivière, 1988, Bleger, 1980,1984, Baremblitt, 1992).

A apresentação e discussão dos aspectos teóricos metodológicos de pesquisa e intervenção em grupo estão fundamentadas em pesquisas em psicodinâmica do trabalho realizadas no Brasil nos últimos anos (Martins, 2009, 2010b; Mendes & Araujo, 2011; Mendes, 2007, 2008) e em registros clínicos (vinheta clínica) parte de um processo de intervenção grupal, junto ao Sistema Único de Saúde - SUS, com pessoas portadoras de patologias relacionadas ao trabalho.

A vinheta clínica foi selecionada entre os registros clínicos de intervenção grupal realizados junto ao Programa Multiprofissional de Atenção à Saúde do Trabalhador no Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (PMAST/HU-UFSC)1.Essa modalidade de intervenção grupal foi realizada em encontros quinzenais com duas horas de duração no período de maio de 2002 a dezembro de 2005. As pessoas de diferentes profissões com adoecimento relacionado ao trabalho podiam participar do grupo após etapa de avaliação multiprofissional, com o compromisso de permanecer no grupo pelo período mínimo de três meses.

O grupo, da vinheta clínica selecionada, é heterogêneo em relação à organização do trabalho e homogêneo na situação vivida -oito mulheres de diferentes categorias profissionais que tinham em comum: estar em licença de saúde junto à previdência social por adoecimento relacionado ao trabalho. Essas trabalhadoras eram portadoras de distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho e transtornos mentais, tais como, depressão, fobia e ansiedade. De acordo com Mendes e Araujo (2011) entre as práticas brasileiras em psicodinâmica do trabalho, esta atividade está caracterizada como uma clínica das patologias.

O método clínico e a importância da escuta na clínica do trabalho.

Há certo consenso entre os pesquisadores ao dizerem que para realizar atenção à saúde do trabalhador faz-se necessário ouvir as pessoas que trabalham. Outros irão dizer: não basta ouvir, tem que escutar.

A psicanálise, ainda em suas origens, caracterizou a "escuta" como método clínico de investigação e intervenção. A escuta psicanalítica procura articular fragmentos de um discurso em cadeias livres associativas, cujo sentido é conquistado a posteriori, retornando ao discurso na forma de pontuações e interpretações. A construção de sentido dá-se pela palavra, pela compreensão dos processos inconscientes, que produzem as formações inconscientes - tais como sintomas, chistes, sonhos -, sendo o desejo considerado a força capaz de motivar o inconsciente.

O sentido é uma construção no espaço intersubjetivo, supõe a existência do outro, pelo qual pessoas constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com os fenômenos e as situações à sua volta.

As organizações mais ou menos estáveis podem ser entendidas por meio de processos que estão presentes nas relações interpessoais. Assim, categorias descritas pela psicanálise - como a articulação do desejo, projeção, introjeção, identificação, imaginário e repressão -, são essenciais na escuta para tornar inteligível a cena organizacional.

Em nossa experiência na clínica do trabalho nos últimos dez anos (Martins, 2007, 2008, 2009, 2010a, 2010b, Mendes 2007, Mendes & Araujo,2011), o uso da escuta psicanalítica no trabalho em grupo, na promoção dos espaços públicos de discussão, constitui uma importante ferramenta, que pode ser usada. Porém, esta escuta tem que estar apoiada, não apenas na literatura clássica da psicanálise, mas principalmente em referências teóricas, que visem à compreensão do mundo do trabalho, bem como à compreensão dos processos grupais. Além disso, como destaca a psicodinâmica do trabalho, para ocorrer produção de sentido e a elaboração das vivências subjetivas relacionadas ao trabalho, não basta o pesquisador ouvir os trabalhadores, é necessário escutar, ou seja, compreender algo inédito no discurso.

Nesta perspectiva, o artigo pretende relatar práticas em clínica do trabalho que articulam a pesquisa e ação, buscando, assim, construir junto com os trabalhadores caminhos de resistência ao sofrimento e à doença. Para tal, está dividido em três áreas e as considerações finais. A primeira trata da clínica do trabalho na abordagem da psicodinâmica do trabalho; a segunda é sobre o trabalho em grupo como forma de criação de um espaço público; e por fim, a clínica do trabalho: estratégias de intervenção. Procura mostrar como funciona a clínica do trabalho e os conceitos fundamentais que auxiliam o modo de "escuta" desta clínica.

Clínica do trabalho na abordagem da psicodinâmica do trabalho

Na clínica do trabalho, com abordagem da psicodinâmica do trabalho, são as concepções de Dejours (2004a) sobre sofrimento no trabalho que permitem a construção de uma visão clínica dos processos de subjetivação relacionados ao trabalho, a partir do conceito de trabalho real, da posição do desejo articulado à organização do trabalho, inteligência prática, coletivos de trabalho e ao uso de estratégias defensivas individuais e coletivamente construídas para mediação, enfrentamento e negação do sofrimento.

Nesse cenário, a organização do trabalho representa (decifra) a vontade do Outro.

Os estudos em psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2007) divide a organização do trabalho em duas dimensões: a divisão do trabalho- forma como são concebidas e prescritas as tarefas, cadências e seu modo operatório, e a divisão dos homens-o modo pelo qual as tarefas são definidas, divididas e distribuídas entre os trabalhadores (responsabilidades), bem como a forma na qual operam a fiscalização, o controle, a ordem, a direção e a hierarquia (relações de poder e sistema hierárquico). A organização do trabalho também se diferencia em "organização prescrita" e "organização real". Essa última evidencia o fracasso da normatização e da prescrição diante da modificação contínua da realidade, refletindo as situações imprevistas, que ultrapassam o domínio técnico e científico.

O real do trabalho sempre se manifesta afetivamente para o sujeito pelo sofrimento frente ao fracasso da prescrição, envolvendo sua personalidade- o engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações inesperadas (Dejours, 1994/2004b).O que é convocado no trabalho é o corpo erógeno, descrito pela psicanálise, resultante da experiência mais íntima do sujeito na relação com o outro. O trabalho também é uma forma de relação social, caracterizada por relações de desigualdade, poder e dominação, envolvendo o real do mundo social.

A escuta arriscada versus a obscuridade do trabalho

Como já afirmamos anteriormente, para ocorrer produção de sentido e a elaboração das vivências subjetivas relacionadas ao trabalho, não basta o pesquisador ouvir os trabalhadores, é necessário escutar, ou seja, compreender algo inédito no discurso.

Dejours (1993/2004a) ressalta que a escuta na clínica do trabalho só produz efeitos se envolver riscos ao pesquisador - risco de compreender algo inédito, riscos pessoais ao escutar o drama de sofrimento de alguém, risco ao estabelecer relações com o referencial teórico, risco da tomada de posição frente à demanda e ao testemunho, denominando-a "escuta arriscada".

Nessa escuta arriscada, uma das questões a ser analisada são os vínculos que unem os indivíduos à organização. Vínculos que não podem ser vistos apenas como materiais, socioeconômicos ou políticos, mas também como psicológicos - subjetivamente mobilizados. Enfim, é o lugar do sujeito em sua relação com o trabalho (Martins, 2009).

Segundo Freud (1930),a organização modela os impulsos e os sistemas de defesa individuais, tornando-se fonte de angústia e prazer. Esse é um dos aspectos mais evidentes do poder das organizações, o de influenciar o inconsciente.

A escuta na clínica do trabalho inclui a difícil tarefa de dar visibilidade à voz daqueles que habitualmente não possuem outra forma de escrita senão a da história concreta do cotidiano de trabalho. Envolve o desafio de possibilitar a produção de sentido, de criar significações, de dar nome ao não dito, ao inominável.

A obscuridade do trabalho versus espaço público

A obscuridade do trabalho, tanto para os gestores quanto para os trabalhadores, está associada a vários fatores, entre os quais se destacam: a eficácia, a natureza dos recursos mobilizados pelos trabalhadores (mobilização subjetiva) e as condições organizacionais e sociais.

Pelo fato do trabalho existir, justamente onde ocorre a falta da organização prescrita, conduz paradoxo de quanto maior for a eficácia do trabalho realizado menor a possibilidade de visualização. Esse paradoxo fica evidente na proliferação de gestão de pessoas, que apagam a experiência de trabalho e postulam a rotatividade dos homens nas organizações contemporâneas (Martins, 2009).

A experiência de trabalho, ao se localizar na fronteira entre o discurso e a resistência ao mundo (real), torna-se obscura na própria consciência de quem trabalha. A arte do ofício, o saber-fazer é um saber que ignora a si mesmo, necessitando de um processo de elaboração com o outro, para se constituir numa experiência reconhecida e reutilizável (aprendizagem). Porém, a possibilidade de ocorrer esse processo de elaboração depende de uma dinâmica de reconhecimento, em que as relações sociais no contexto organizacional desempenham um papel fundamental ( Martins, 2009).

O processo de elaboração da contribuição pessoal na ação de trabalhar, no sentido de uma formalização, que se realiza pela apropriação,por meio da fala compartilhada, permite a rememoração a posteriori dessa experiência como uma solução para novas situações de confronto com o real do trabalho.

Por outro lado, a cooperação, as construções de confiança e das regras de ofício supõem a existência de espaços de debate. Esses espaços públicos são caracterizados pela convivência e pela confrontação das opiniões. Nesses espaços as pessoas contam histórias sobre sua vida, sobre o trabalho, sobre a articulação do profissional e do extraprofissional. Contam histórias que permitem pôr à prova o que cada um faz e como faz, as dificuldades que enfrentam, podendo obter reconhecimento dos colegas pelo que faz.

O trabalho coletivo é construído em torno das regras de trabalho comuns, cuja construção deriva do próprio coletivo. Essas regras, além de ter uma perspectiva técnica, contêm regras sociais que organizam o viver junto. Trabalhar não é somente produzir, e também viver junto. Gernet e Dejours (2011) alertam que, na ausência disso, há apenas um grupo de pessoas que podem compartilhar interesses em comum e não um coletivo de trabalho.

É graças às contribuições singulares, compartilhadas em espaço público, que o patrimônio (história) coletivo de um determinado grupo pode ser constituído e enriquecido.Na falta desse espaço, que fornece a base da confiança e da cooperação entre os pares, o risco no trabalho pode multiplicar-se entre os diferentes grupos na empresa, ou mesmo entre os indivíduos, conduzindo a uma fragmentação do tecido social (Martins, 2009).

Os coletivos de trabalho constituem espaços de resistência para o sujeito e preservação da sua saúde mental. O compartilhamento de regras, a possibilidade de construção e reconstrução da história do sujeito no trabalho, permite ao sofrimento destinos menos patológicos. O processo de elaboração e per-elaboração destas histórias confronta o sujeito com os caminhos da resistência à dominação simbólica. A cooperação e a solidariedade cria certa imunidade, facilmente corroída pela perversão da organização do trabalho, quando encontra este sujeito sozinho, vulnerável, distante do coletivo e da possibilidade do espaço fala-escuta. A clínica do trabalho assume,assim, um papel fundamental no sentido de mobilizar as resistências e as ações para o deslocamento do sujeito, da posição de assujeitado para a de emancipado.

Estratégias coletivas de defesa

Os estudos em psicodinâmica do trabalho demonstram que as estratégias coletivas de defesa constituem uma forma específica de cooperação entre os trabalhadores, para lutarem juntos contra o sofrimento no trabalho. Organizam os coletivos de trabalho, mas funcionam, ao mesmo tempo, como uma armadilha psicológica, incrementando a aceitação e a tolerância do sofrimento, gerando uma paralisia no trabalhador frente ao fracasso do real. O sofrimento, que não pode ser ressignificado nem transformado, imperando sua negação e racionalização, mantêm-se como sofrimento patogênico, de maneira inevitável e patrocinador do adoecimento, uma vez que as defesas falham na luta contra a patogênese.

A clínica do trabalho permite a fala e a escuta do sofrimento, o espaço público de discussão e a construção do coletivo. Como pesquisa e ação, busca compreender a dinâmica, que envolve a organização do trabalho, a subjetividade, o prazer-sofrimento e a saúde mental. No entanto, alguns questionamentos nos conduzem a uma reflexão mais aprofundada sobre esta clínica articulada às práticas de intervenção profissional, seu papel institucional e político, as condições de aplicação e seu funcionamento. Questões essas que ainda não têm respostas, embora alguns caminhos possam ser trilhados. A interlocução com outras abordagens traz possibilidades para construção da prática em clínica psicodinâmica do trabalho na realidade brasileira.

A seguir, busca-se este diálogo na tentativa de encontrar caminhos para fortalecer os diferentes modos de resistência que o trabalhador pode utilizar frente à realidade de trabalho, muitas vezes, massacrante.

O trabalho em grupo como forma de criação de um espaço público

A atividade em grupo nas organizações de trabalho exige uma leitura e manejo do grupo como uma unidade (totalidade) e não apenas de aspectos intersubjetivos e organizacionais. Os conhecimentos sobre processo grupal são fundamentais para uma leitura e escuta mais refinada.

A psicanálise apresenta uma vasta literatura a esse respeito, em que se destacam as contribuições de Freud, Bion, Elliot Jaques, Pichon-Rivière, Bleger, Baramblitt, Enriquez, D.Anzie, R.Kaës. Com interfaces com a psicanálise, temos ainda as contribuições da socioanálise (Lapassed e Laurau), da esquizoanálise (Deleuze e Guattari) e da sociopsicanálise (Mendel).

A análise de instituições começou a fazer parte do referencial brasileiro após a década de 1970, a partir de duas vertentes: 1) Psicologia Institucional, advinda da linha de psicanalistas argentinos, que articularam psicanálise, política e psicologia social (Bleger e Pichon-Rivière); 2)Análise Institucional francesa ou sociologia clínica, que utilizava o referencial da Sociologia, da Psicanálise e da Política (Lapassade e Lourau). A partir dessas duas abordagens, muitas práticas se instalaram, sendo difícil denominar um único movimento institucionalista.

De acordo com Baremblitt (1992), as diferentes contribuições caracterizam o movimento que tem sido denominado movimento grupalista e/ou movimento institucionalista. Esse movimento, que se estende para além da psicologia, caracteriza-se,de forma geral, pela busca de compreensão sobre as relações instituídas entre os atores de um mesmo cenário organizacional.

Para o movimento institucionalista, o grupo é concebido como uma instituição viva, uma unidade da organização social. Os sujeitos são percebidos como constituídos e constitutivos das relações institucionais.

Essa concepção privilegia a posição do sujeito na estrutura. Assim, os conflitos são considerados expressões dessa articulação de posições e não o sintoma de um indivíduo que está na instituição.

O grupo é concebido em processo. Ressaltando os aspectos históricos, econômicos, sociais e culturais nos quais é constituído e constituinte (sujeito sociohistórico). O processo grupal divide-se em dois movimentos históricos da sociedade: o Instituído, que diz respeito aos parâmetros de convivência, conservadorismo, resistência à mudança, e o Instituinte - o processo, movimento de transformação permanente (sujeito/desejo).

Nessa mesma perspectiva, a organização apresenta dois movimentos básicos: 1) Organizante, caracterizado pela busca permanente de maior pertinência nas organizações, e 2) Organizado, relacionado à estrutura, que solidifica as organizações. Este último corresponde à tendência para a burocracia e responde ao desejo humano de segurança, procurado nas instituições. O objetivo da Análise Institucional é verificar em cada instituição, cada organização, uma forma de intervir, para propiciar-lhes a ação do instituinte e do organizante.

Grupo operativo

De acordo com a proposta de grupo operativo de Pichon-Rivière (1988), o sujeito, ao enunciar algo no grupo, ele fala por si mesmo e ao mesmo tempo é porta-voz de algum movimento consciente ou inconsciente da dinâmica grupal. E o grupo, assim como no teatro grego, é porta-voz de situações sociais. A técnica de grupo operativo parte do pressuposto que o sujeito se constitui e está implicado por inteiro naquilo que faz. Integra a teoria do sujeito com a teoria da ação. Sua inserção no cotidiano ocorre por meio de histórias de vínculos individuais, grupais, institucionais e comunitário que se expressam no aqui e agora naquilo a que o grupo se propõe (tarefa).

No processo grupal, a análise do cotidiano é feita por meio de uma fala que veicula conhecimento/desconhecimento sobre ele, com intuito de estabelecer, na validação do vivido, um corte para pensar. O grupo protagoniza seus problemas e suas demandas. Seus membros podem compreender e adquirir um vocabulário próprio que lhes permita construir um saber acerca de seu trabalho, de sua vida.

No momento denominado de pré-tarefa (Pichon-Rivière, 1988), a integralidade do homem em situação costuma trazer ao processo grupal condutas, sentimentos, pensamentos e ações, implícitos e explícitos, formando obstáculos aos propósitos do grupo(tarefa). Essas condutas estão ancoradas em dois sentimentos básicos: medo de perda do já estabelecido (instituído) e o medo de ataque frente ao novo (representado pela tarefa) diante da fragilidade e desamparo do homem. Esses medos básicos se expressam de diversas formas, por meio de conflitos, bloqueios, rigidez de papéis, problemas de liderança, apatia, desconfiança, fragmentação, etc.

Com esta perspectiva teórica, relembrando, este trabalho, apoiado em registros clínicos (vinheta) pretende discutir e avaliar algumas contribuições de práticas da Clínica do trabalho, com a realização de estratégias de pesquisa, diagnóstico e intervenção, visando à promoção da saúde, focalizando em especial a modalidade de intervenção em grupos, propiciando um espaço público de discussão.

Com base nestes princípios, e buscando um diálogo que viabilize a prática da clínica psicodinâmica nas instituições e organizações de trabalho, apresentam-se algumas articulações teóricas e um relato de experiência na tentativa de construir caminhos para a intervenção.

Clínica do trabalho ou clínica psicodinâmica do trabalho: estratégias de intervenção

Como ilustra a vinheta clínica a seguir, a estratégia de intervenção em grupo propicia, mediante a fala compartilhada dos trabalhadores no espaço público: a pesquisa, a investigação e a ação. Promove, junto aos trabalhadores, a ampliação da percepção e da consciência sobre si mesmos, na relação com o trabalho (processos de trabalho) e com a saúde e bem-estar.

A intervenção grupal, com uso da técnica de grupo operativo (Bleger, 1980, 1984; Pichon-Rivière, 1988), atuou a partir da fala compartilhada das vivências de sofrimento psíquico e do processo de adoecimento relacionado ao trabalho, enquanto temas privilegiados sobre os quais foram delimitadas as tarefas no grupo.

Ao mesmo tempo, a escuta da psicóloga, marcada pela constante indagação operativa, esteve apoiada na compreensão psicodinâmica dos processos saúde-doença associados ao trabalho. Isso significa que a escuta esteve focada na importância do trabalho na construção de identidade e no trabalho como operador nos processos de saúde e doença - ambos os aspectos mediados pela dinâmica do reconhecimento do outro e pela cooperação entre os pares.

Vinheta clínica

Para análise e discussão clínica-metodológica dessa modalidade de trabalho, apresentamos como vinheta clínica, a transcrição do sonho de uma das mulheres trabalhadoras usuária do SUS, acometida por DORTs, que participou de um grupo de intervenção terapêutica multiprofissional dentro da perspectiva da clínica do trabalho.

"Essa noite eu tive um sonho, muito estranho. Eu estava num lugar, tinha umas cadeiras e eu estava aguardando para ser atendida. Estava eu, a minha irmã e também tinha outras pessoas, inclusive uma pessoa com LER que foi pedir informações lá na APLER. Eu estava aguardando para falar com Deus [ri], a minha irmã estava com muito medo, não deixou ir sozinha. Eu fui chamada, quando entrei na sala, Deus falava na voz de Cid Moreira [ri]. Ele falou algo terrível que eu não consigo me lembrar. É estranho o Cid Moreira, apresentador da Globo (emissora de TV) com aquele vozeirão estava como Deus. [...] As pessoas tinham medo, aquela portadora de LER que eu orientei, também estava com medo" (Marlene) 2.

O sonho apresentado por Marlene repercutiu em todos os integrantes do grupo, que prontamente associaram a fala do deus do sonho com a fala do médico, relatando experiências pessoais de isolamento e desamparo frente aos inúmeros atendimentos na rede SUS, em busca de diagnóstico e tratamento. Por outro lado, depois de escutar as vivências de seus pares no grupo, Marlene lembrou-se do atendimento médico que tinha recebido na semana anterior.

Contou que, como de costume, passara pela perícia do INSS. Após mostrar os exames para o médico-perito, acompanhado de um indicativo de cirurgia para seu braço direito, ele proferiu um diagnóstico semelhante a uma sentença: "(...) você vai ficar aleijada, seu braço não tem mais solução, não adianta fazer cirurgia". Marlene, com a experiência de várias perícias e atendimentos desastrosos, retrucou prontamente: "(...) por acaso o senhor tem bola de cristal?"

A vivência de Marlene repercutiu em todos os integrantes do grupo. Até ela - que na história do grupo sempre representara apoio e orientação aos demais - acabou sucumbindo ao sentimento de desamparo. Dessa forma, ela e as demais mulheres do grupo criaram um espaço dinâmico de convivência, que possibilitou resgatar as singularidades e as alteridades nesse processo comum a todas: o adoecimento relacionado ao trabalho e suas relações com os profissionais de saúde, mediante uma experiência simbólica compartilhada.

A experiência com esta intervenção grupal relacionada à vinheta clínica levou a concluir que a "alienação de si" poderia estar associada ao poder habitualmente outorgado, pelos participantes, aos profissionais das redes de saúde.

Apresentação e discussão da dinâmica grupal

A atividade teve início com o estabelecimento de contrato, que inclui o compromisso do trabalhador como participante ativo no grupo, conforme proposto por Pichon-Rivière (1988): delimitou-se uma situação-problema a partir de um emergente grupal, no caso, manifestado pelo porta-voz do grupo na referida situação. Neste contexto específico, tratou-se de desenvolver um pensamento crítico que pudesse abranger, em relação à tarefa (ou demanda), a responsabilidade sobre si mesmo e sobre as relações que foram se estabelecendo em função da convivência grupal. Este envolvimento consciente entre os participantes permitiu tornar visíveis e manifestos: a dor e o sofrimento relacionados ao trabalho e ao processo de adoecimento.Permitiu também tratar dos obstáculos frente às mudanças, cuidar das ansiedades emergentes em relação aos propósitos do grupo, além de abrir espaços para elaboração e per-elaboração de outras ansiedades, medos e perdas associadas.

No grupo operativo, o psicólogo assumiu uma função de caráter social, possibilitando a promoção da saúde e o bem-estar dos participantes, mediante um trabalho sistemático de reflexão, conscientização e mudança em torno dos emergentes do grupo. A intervenção foi desenvolvida a partir de uma escuta profissional, marcada pela constante indagação operativa.

Os elementos da indagação operativa, de acordo com Pichon-Rivière (1988) caracterizam-se: pela observação dos acontecimentos na ordem em que eles se dão (tais como a delimitação dos emergentes e da situação-problema); pela compreensão do significado e das relações entre eles; pelos assinalamentos e reflexão, no momento oportuno, e pela consideração de que a hipótese interpretativa adequada ao ser proferida produzirá efeitos operativos dentro de um movimento grupal de espiral dialética, de acordo com os esquemas do conceitual referencial operativo.

A compreensão desse processo grupal na clínica do trabalho procurou, de acordo com Bleger (1984) e Pichon-Rivière (1988), contemplar: a) o processo atual que ocorre aqui e agora com a totalidade dos membros (horizontalidade), b) as múltiplas determinações sociais, políticas, econômicas e culturais (transversalidade) e c) a história pessoal do sujeito (verticalidade). Acrescentando-se aqui na indagação operativa, dentro da perspectiva da psicodinâmica do trabalho: a história do coletivo de trabalho.

Na modalidade de intervenção apresentada, o psicólogo, por meio de assinalamentos, pontuações e interpretações das defesas, fantasias e ideologias presentes no grupo, possibilitou a explicitação do não dito, num movimento de conscientização, discriminação e integração dos aspectos institucionalizados do grupo que impediam o agir e a mudança.

O grupo foi concebido como uma instituição viva (organização social). Durante a condução do processo grupal procurou-se manter a relação dialética entre o movimento instituinte (ação do sujeito, transformação) e o movimento instituído (parâmetros de convivência, conservadorismo, resistência à mudança) de forma permeável, fluída e elástica, para que pudesse ocorrer um processo de transformação da vida social,com a promoção da saúde e bem-estar de todos os seus membros.

As falas compartilhadas entre os participantes, ao confrontarem suas vivências, afetos, formas de pensar, ideologias e experiências pessoais, permitiram a construção de referências comuns, propícias à comunicação e à aprendizagem com significação individual e coletiva.

Com a referência da psicodinâmica do trabalho, nas atividades em grupo, procurou-se delinear, mediante a fala compartilhada, os movimentos temáticos recorrentes que delimitaram:

I. Alguns aspectos psicossociais presentes nos processos de saúde-adoecimento relacionados ao trabalho.

Na análise dos movimentos temáticos deste processo grupal foi destacado: a) as pressões e transformações organizacionais; b) o aumento do ritmo de trabalho; c) a dificuldade de estabelecer limites frente às pressões internas (responsabilidade, desempenho) e externas (chefia metas, ritmo, etc.);d) o déficit perceptivo dos limites impostos pelo corpo na relação com o trabalho; e) o nãoreconhecimento do trabalho/do sofrimento/da dor pela organização, colegas, chefias, familiares, profissionais de saúde; f) a quebra entre os pares de pactos de reconhecimento/reciprocidade/solidariedade; g) a ameaça de desemprego; h) a dor e as limitações decorrentes do adoecimento e do afastamento do trabalho; e) o isolamento pela empresa/serviços de saúde/sindicato/sistema judiciário, levando ao sentimento de desamparo.

II. A presença de estratégias coletivas de defesa,promotoras tanto da saúde quanto do adoecimento.

Entre as estratégias promotoras do adoecimento, foi destacado: a) o aumento do ritmo de trabalho exigido pela organização do trabalho,sendo a prática da autoaceleração,incitada pela organização e sustentada por ideais culturais;b)a medicalização do sofrimento, sustentada e promovida por agentes da saúde, que não reconhecem o sofrimento (adoecimento) relacionado ao trabalho.

Cabe destacar que esses dados delimitados a partir dos movimentos recorrentes durante o processo grupal descrito confirmam resultados de outras pesquisas em psicodinâmica do trabalho (Martins, 2007, Mendes, 2007, Mendes & Araujo, 2011).

Um indicativo de fracasso dos recursos defensivos para proteção da saúde pode ser caracterizado quando a defesa, construída inicialmente para proteção, passa a ser percebida pelo sujeito como desejo. Como, por exemplo, o desejo em atender ao ideal de metas exigido pela organização, aliado ao desejo de ser reconhecido como bom funcionário por isso. A prática da autoaceleração no setor de serviços, ao ser percebida pelo sujeito como desejo (meta da organização do aumento do ritmo de trabalho = desejo do sujeito), promovem a alienação e a exploração do sofrimento pelas metas organizacionais.

Por meio desses recursos, as organizações do trabalho frequentemente exploram o sofrimento, apoiadas em ideais culturais do culto ao desempenho. Por meio de ideologias defensivas, estimulam a cooperação em proveito da produção comum, minando a qualidade das relações entre os pares, usurpando o saber-fazer.

Neste cenário, revelam-se questões éticas da maior importância. O sofrimento pode gerar processo de alienação (e mais-alienação). O infortúnio desse sofrimento explorado é mais sofrimento, crise de identidade e desestabilização do equilíbrio dinâmico entre saúde e doença, podendo levar o sujeito ao uso de processos defensivos com características ainda mais regressivas ou desorganizadoras (como doenças somáticas e psicose).E, ainda assim, os trabalhadores, para manterem seus empregos, para não adoecerem, acabam 'cometendo' atos que julgariam reprováveis em outras condições, tornando-se coniventes com a perversão de um sistema que ataca o próprio sentido de suas existências.

O ritmo e a própria organização do trabalho alteram a forma dos laços sociais e do funcionamento psíquico das pessoas. Nesse sentido, é bom lembrar que, nas últimas décadas, as novas tecnologias provocaram uma redefinição na repartição das tarefas e uma menor flexibilidade na autogestão da organização do trabalho. Aliado diretamente a esse fato é que se tem conhecimento de um aumento vertiginoso das doenças relacionadas ao trabalho.

Nesta forma de pesquisa e intervenção utilizando a técnica de grupo operativo em dialogo com a psicodinâmica do trabalho, as estratégias de promoção à saúde foram construídas, pelos participantes, com o novo conhecimento, decorrente do conjunto de vivências e experiências mobilizadas e compartilhadas pelos integrantes do grupo, ao pensarem, sentirem, agirem tanto individual como coletivamente sobre a tarefa proposta. Por meio desse processo de aprendizagem, a mudança na realidade social e no próprio sujeito pôde ser construída, ao tornar possível o rompimento com pactos, laços sociais, ideologias, formas de pensar e de sentir, que vinham funcionando como obstáculos à promoção da saúde.

O processo de aprendizagem e mudança pelo fazer proposto pelo grupo operativo aproxima-se do conceito de coletivo de trabalho, proposto por Dejours, que pressupõe a deliberação e construção de regras de ofício construídas coletivamente a partir do saber fazer do sujeito frente ao que não está prescrito (real), reconhecido pelos pares de trabalho.

Essa intervenção, desta forma configurada, pretendeu contribuir para o fortalecimento da mobilização subjetiva em direção à saúde, incluindo o enfrentamento das vivências de sofrimento e dos transtornos psíquicos, decorrentes do adoecimento e da perda da capacidade laborativa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O relato clínico e apresentação da dinâmica grupal demonstram uma intervenção grupal, fundamentada nos princípios da psicodinâmica do trabalho, da psicanálise e na técnica dos grupos operativos. É uma clínica psicodinâmica pelo seu objeto. Ao incluir os princípios do grupo operativo amplifica seus procedimentos e, deste modo, viabiliza um tipo de intervenção. Esta intervenção envolve a pesquisa e a ação descrita na perspectiva teórico-metodológica da psicodinâmica do trabalho e propõe-se a construir e a articular modos particulares que fortaleçam a ação, por meio da prática de intervenção grupal.

Também vale, de acordo com as perspectivas aqui apresentadas, o valor da dinâmica do grupo como técnica de intervenção. É uma técnica dentro de um projeto de diagnóstico e intervenção organizacional /institucional. A psicanálise, a psicodinâmica do trabalho, a psicologia institucional e a sociologia clínica contribuem para compreensão da dinâmica inconsciente das relações intersubjetivas, grupais e institucionais, bem como para o entendimento dos conflitos, defesas (individuais e coletivas) e ansiedades nessas relações.

A dinâmica de grupo em organizações refere-se de forma geral à análise das implicações psicológicas das tarefas que realizam e da forma pela qual os objetivos são cumpridos, juntando a dimensão humana ou psicológica ao trabalho (subjetividade) que realizam e à forma pela qual realizam.

O lugar do psicólogo/analista neste contexto é aquele que se reveste da capacidade de escutar, assinalar, pontuar e interpretar as defesas, as fantasias e as ideologias do grupo, no sentido de sua discriminação e de promover sua integração aos aspectos institucionalizados desses grupos.

Para finalizar esta discussão, cumpre destacar um ponto central nesta experiência com grupo operativo. A escuta do saber, contido na fala compartilhada entre os participantes, sobre o adoecimento, foi um elemento prioritário para a melhor compreensão desse processo, ainda que o participante, a princípio, não estivesse consciente de que ele próprio trazia um conhecimento ímpar sobre seu trabalhar e sobre o seu sofrimento.

Diante das atuais formas de gestão - com ênfase exclusiva na produtividade, com metas cada vez mais ambiciosas, avaliação individual apoiada na performance, busca de qualidade total, terceirização, uso crescente de trabalhadores free-lancers em vez de trabalho assalariado - os trabalhadores, para manterem seus empregos, para não adoecerem, acabam cometendo atos que reprovam em si mesmos, reforçando a perversão de um sistema organizacional, que ataca sua integridade física e psíquica, além da imagem que têm de si mesmos (Eu).

Por outro lado, estes processos de construção e adoção de estratégias individuais e coletivas de defesa, paradoxalmente, funcionam como uma armadilha psicológica, incrementando a aceitação e a tolerância do sofrimento no trabalho, promovendo, desta forma, o adoecimento.

O uso de estratégias defensivas, que negam e rejeitam o sofrimento no trabalho, mais do que permitir que os trabalhadores nele se mantenham, terminam por promover uma contínua precarização do trabalho e do emprego, e o adoecimento do trabalhador, além de levá-lo a uma condição social e existencial insustentável (Dejours, 1999a, 2009a; Mendes, 2007; Martins, 2009).Portanto, o conhecimento das condições que norteiam o mundo contemporâneo do trabalho - incluindo as relações correspondentes em toda sua complexidade - é fundamento, a priori, das atividades do psicólogo do trabalho como agente de saúde. A experiência de intervenção grupal na clínica do trabalho vem confirmando que não se pode perder de vista a centralidade do trabalho no que concerne à construção da identidade e à saúde mental (Dejours, 2009a), entendendo-se que esse processo não ocorre no isolamento, dadas as circunstâncias históricas e sociais que o caracterizam como fenômeno coletivo.

Por outro lado, desde que a Psicologia contribua, retomando a problemática do sujeito, poderá o psicólogo ocupar um papel importante na redefinição e humanização das práticas em saúde, em especial daquelas pertinentes à Saúde do Trabalhador.

A articulação entre o mundo do trabalho, contexto, condições e relações de trabalho e suas repercussões na saúde dos trabalhadores deve evitar as explicações individualistas e culpabilizantes para fenômenos que se apresentam coletivos e de cunho social. Pensar "a pessoa em contexto" constitui-se um desafio para o psicólogo da saúde em sua prática clínica.

A construção da prática clínica no campo social é um caminho ainda a ser delineado e aprofundado. A proposta do nosso capítulo não é oferecer respostas conclusivas para estes desafios. A intenção é contribuir com a reflexão e o debate, abrindo espaço para novas possibilidades teóricas e metodológicas para a clínica psicodinâmica do trabalho, sem perder de vista o seu papel político na mobilização de modos de resistências mais saudáveis para os trabalhadores.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 20.12.2011
Aprovado em: 01.03.2012

 

 

1 O PMAST, promovido pelo laboratório de psicologia do trabalho e ergonomia da UFSC, está caracterizado dentro da clínica do trabalho com base teórica e metodológica interdisciplinar: psicodinâmica do trabalho, psicanálise, psicologia clínica, fisioterapia, ergonomia e psicologia do trabalho. As pessoas que participaram deste programa assinaram um Termo de Livre Consentimento, sendo esse projeto de pesquisa e intervenção aprovado pelo comitê de ética da UFSC.
2 Marlene é um nome fictício. Esta usuária prestava serviço voluntário de orientação junto à APLER - Associação de Portadores de Lesões por Esforço Repetitivo (LER), antiga denominação para DORTs.