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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

On-line version ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.14 no.4 Florianópolis Dec. 2014

 

SEÇÃO PONTO E CONTRAPONTO

 

Devemos ser contrários ou favoráveis às empresas juniores na psicologia?

 

Should we be for or against the junior enterprises in psychology?

 

 

Livia de Oliveira Borges

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

O texto analisa as posições contrárias e favoráveis às empresas juniores (EJs) como instrumento pedagógico das universidades. Trata-se, portanto, de um texto de reflexão sobre pontos de vista antagônicos que parte da importância dos debates acadêmicos para revigorar e alimentar as atividades de produção de conhecimento e de crítica social nas universidades. É reconhecido o interesse de contribuir para a melhoria do ensino superior em psicologia de ambos os pontos de vista e os argumentos que compõem as duas visões são sintetizados, descortinando os temas centrais das divergências. Propõe-se pensar as empresas juniores como outras atividades universitárias, bem como sua contribuição para a aplicação concreta dos valores defendidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a adoção de sistemas de avaliação dos serviços prestados pelas EJs e maior divulgação sobre o que são as EJs. Assim, assume-se um posicionamento favorável às EJs como alternativa de ação, mas diferenciando a qualidade da atuação de cada uma.

Palavras-chave: campo profissional, empresas juniores, ensino superior, prática profissional, formação crítica, ética.


ABSTRACT

The text analyzes the positions against and in favor of junior enterprises (JEs) as pedagogical tools for universities. Thus, it is a discussion paper on opposing viewpoints. It begins with the importance of academic debate to strengthen and sustain the activities of knowledge production and social criticism at universities. Both viewpoints have a recognized interest in improving the quality of higher education in Psychology. The augments for these viewpoints were considered according to the central themes of the differences. Finally, the text presents some proposals for consideration regarding JEs, such as: what might they contribute to the concrete application of values upheld in the Universal Declaration of Human Rights; the adoption of evaluation systems for services provided by the JEs; more complete information about what the JEs really are; and taking a position not to oppose the JEs as an alternative activity, but differentiating the quality of the actions of each one.

Keywords: Professional field, junior enterprises, superior education, professional practice, critic formation, ethic.


 

 

Nós, professores, pesquisadores, estudantes e cidadãos, de maneira geral, tendemos a querer contribuir para a construção de uma universidade cada vez melhor e que ofereça oportunidades de formação de excelência aos profissionais de nível superior, produção de conhecimento inovador e reflexivo e novas formas de intervenção na sociedade capazes e implicadas na transformação da sociedade em que vivemos.

Apesar de existir intenções amplas como essas, compartilhadas por todos, há muitas discordâncias sobre o que de fato elas significam. Podem ser compreendidas como enunciados amplos e, ao mesmo tempo, ambíguos. A título de exemplo podemos nos indagar: Que características fazem uma universidade cada vez melhor? Que sociedade queremos no futuro? Que características a farão melhor do que a sociedade atual? Para que queremos transformar a sociedade? As respostas são complexas e difíceis porque, entre outras razões, são atravessadas pelas diversas visões de mundo e/ou ideologias (Politzer, Besse, & Caveing, 1946/1970; Marx & Engels, 1983). Por consequência, os diferentes grupos passam a ter dificuldades para perceber aquelas intenções mais amplas nas ações dos demais porque, entre outros aspectos, se embasam em diferentes respostas a perguntas como as exemplificadas.

Como as intenções mais amplas são compartilhadas, as divergências tendem a aparentar estarem adormecidas por muito tempo, mas há os momentos em que elas se manifestam e, não raramente, com vigor que parece ter "explodido" rapidamente. Uma divergência do momento gira em torno da adequação da implantação, da manutenção e do funcionamento das EJs, com tendência a formarem-se grupos favoráveis e contrários a elas, criando um contexto que dá sentido à pergunta do título deste texto.

As EJs na psicologia têm atuado de forma predominante na subárea da Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT). Por isso, a rPOT focalizou tal debate, convidando o colega Adriano Peixoto para defender o ponto de vista favorável e os colegas Allan Kanji Seki e Caio Ragazzi Pauli Simão para defender o contrário, bem como comentarem sobre tal diálogo. Cumpre reconhecer esse espaço como uma oportunidade democrática ao debate acadêmico.

Exercer esse papel é desafiante, visto que na minha trajetória tenho assumido a posição sartriana de rejeição à ideia de neutralidade. Sartre e Ferreira (1961) afirmam que o impossível é não escolher, pois quem decide não escolher, já escolheu. Assim, não compreendo minha tarefa como uma busca do ponto mediano entre as duas posições, de exercer uma moderação ou de comentar ambas de um lugar neutro, nem como o desafio de apresentar uma terceira posição diante da possibilidade de considerar as duas primeiras. Além de a pluralidade das visões de mundo e de concepção do campo da POT ser mais compatível com as variadas posições sobre o assunto do que com a polarização.

Diante da iniciativa da rPOT, o objetivo deste texto é confrontar as posições favoráveis e contrárias à constituição das EJs, conforme defendido favoravelmente por Adriano Peixoto (UFBA) e desfavoravelmente por Allan Seki e Caio Simão (UFSC), desenvolvendo uma reflexão crítica sobre os pontos de vista dos autores e, indo além delas, fundamentar uma terceira posição. Por isso, parto de perguntas como: O que a leitura dos dois pontos de vista revelou? Levam a pensar o quê sobre o papel das EJs? Em que os pontos de vista são efetivamente divergentes? Quais são os fundamentos de cada uma das posições? Depois, irei propor uma análise da questão a partir de uma visão ético-política fundada nos direitos humanos.

Antes de passar para os argumentos de cada texto, é interessante registrar que, em ambos, os autores remetem a dificuldades de diálogo com o grupo do outro. Peixoto, por exemplo, argumenta que o diálogo entre as duas posições só é possível se há um reconhecimento da pluralidade na psicologia com um valor a ser preservado. Enquanto isso, Seki e Simão relatam que o grupo ao qual se opõem tenta silenciar sua posição pela "deslegitimação" do debate.

A dificuldade de diálogo corrobora a importância da iniciativa da revista que certamente auxiliará os grupos a considerar as opiniões alheias, à medida que lerem os argumentos opostos aos seus, tendo tempo para refletir sobre os pontos de vista, o que dificilmente ocorreria no calor do diálogo presencial.

 

Os argumentos dos debatedores

O leitor certamente é capaz de reconhecer, em ambos os textos, as intenções de contribuir para a qualidade dos cursos de graduação em psicologia. Os autores recorrem às suas próprias experiências nas EJs para apresentar evidências que sustentem suas posições e, elegantemente, explicitam as emoções mobilizadas pelo tema. Observada tal convergência, a pergunta pode inclusive ser refeita, pois revela que a discussão não é exatamente se somos contra ou a favor das EJs, mas que razões levam as pessoas a acreditarem ou não que elas são instrumentos de melhoria dos cursos.

Para facilitar a compreensão do leitor acerca da análise desenvolvida, resumi os argumentos dos autores na Tabela 1, organizando-os por temas. Esses tentam também ajudar a perceber quais são as divergências de fundo e evidenciam que os autores dos textos de fato partem de pressupostos distintos, sendo marcante que enquanto a Visão A toma as EJs como um instrumento pedagógico e educativo, a Visão B, como um instrumento de empresariamento da educação superior.

Essa diferença marcante deve ser pensada na constelação de divergências entre os dois textos. Em outras palavras, o desacordo sobre o papel institucional deve ser considerado articulado àqueles referentes ao domínio dos marcos regulatórios, ao papel técnico, às estratégias de aprendizagem, à percepção das EJs no cotidiano acadêmico e ao compromisso com a pluralidade.

A função de produzir conhecimento e de fundamentar a crítica social da universidade pressupõe a existência do debate, pois este tem um papel epistêmico de fonte de transformação e criatividade. A visão B, representada pelo pensamento de Seki e Simão, deve ser a base de ações no meio universitário, tentando impedir a instalação de novas EJs. Caracteriza-se por negar na totalidade a adequação das EJs como instrumento pedagógico e, por isso, acaba alimentando uma compreensão de que está defendendo uma homogeneização de ações e concepções. A visão A, em contrapartida, menciona o compromisso com a pluralidade de ideias e que as características das EJs facilitam a aprendizagem em termos interdisciplinares.

Entretanto, Peixoto nega haver polêmica sobre o que seja uma EJ com base nos seus marcos regulatórios. Ora, se não houvesse dúvidas, não estaríamos debatendo. Precisamos identificar os sentidos das dúvidas e conviver com elas para aprofundar a reflexão e/ou a ressignificação. A existência de dúvidas sinaliza a necessidade de divulgação mais ampla dos marcos regulatórios. E tudo o que Peixoto elucida e sintetiza sobre tais marcos deixa a pergunta: Até que ponto as prescrições regulatórias das EJs realmente orientam e se aproximam de suas práticas sociais cotidianas? Por isso, o processo de "descongelamento" do assunto é importante para chamar a atenção aos meios utilizados pelas universidades para fazer tais marcos valerem na prática.

Acredito que as forças de controle mais efetivas são o desejo estudantil de aprender e o engajamento de professores comprometidos com o processo de ensino-aprendizagem. De qualquer forma, considero que já foi um ganho este debate chamar a atenção para a necessidade de verificar quão sistêmica e efetiva tem sido a avaliação das ações. E essa atitude de reconhecer a necessidade de avaliar é tão aplicável às EJs como tem sido às diversas ações universitárias. Entretanto, as queixas contra os excessos de controles e de burocracias são comuns nas universidades, considerando que elas descaracterizam o ambiente acadêmico que deveria ser de permanente debate e/ou de confronto de ideias. Assim, a efetividade de mecanismos de avaliação não deve ser buscada pelo simples aumento de controles burocráticos, mas na estimulação de estudantes e professores segundo princípios éticos e morais, bem como segundo as interdependências entre as funções universitárias (ensino, pesquisa e extensão).

Em relação ao papel técnico, os textos referiram-se à ênfase no empreendedorismo. No entanto, em nenhum deles o objetivo dos autores era elaborar e/ou apresentar sistematicamente concepções de empreendedorismo. Mas, quando Peixoto menciona empreendedorismo, parte do pressuposto de que esse fenômeno é virtuoso e que desenvolver as competências envolvidas é formativo e contribui para preparar o jovem para lidar com o ambiente turbulento de uma economia capitalista. Na visão B, defendida por Seki e Simão, empreendedorismo implica submissão ao sistema capitalista.

Empreendedorismo não tem sido objeto privilegiado de minhas pesquisas e incursões intelectuais. Por isso, assumo mais o papel de levantar dúvidas sobre tal fenômeno do que de defender qualquer ponto de vista sobre o assunto. Dedico, então, perguntas ao leitor: A que setores da nossa sociedade interessam o desenvolvimento de competências de empreendedorismo? Nas grandes organizações, quem são os empreendedores? Todos os trabalhadores? Aqueles que executam atividades rotineiras e repetitivas? Ou os poucos que ocupam postos que centralizam o poder decisório?

De fato, o empreendedorismo tem a ver com a noção de livre concorrência, princípio básico do capitalismo (ao menos em teoria) (Lima, 2010). Duvido, no entanto, que as grandes organizações privadas aproveitem plenamente as competências empreendedoras de seus empregados. Mesmo com os novos estilos de gestão e da introdução das tecnologias da informação e comunicação (ver p. ex., Borges & Yamamoto, 2014; Castells, 1999; Leite, 1994; Souza & Peixoto, 2013), que tentam valorizar a participação, o comprometimento e a criatividade do empregado, duvido que isso seja realizado de forma plena. Pesquisadores têm reiteradamente encontrado evidências que trabalhadores percebem a execução do trabalho sob maior controle que no passado (p. ex., Brusiquese & Ferreira, 2013; Cossalter & Venco, 2012).

Seja em um contexto eminentemente neoliberal, seja em um contexto de uma economia capitalista matizada pela proteção social, o empreendedorismo poderia ser compreendido como um fenômeno coletivo e de resistência às consequências de um sistema capitalista (Lima, 2010)? O caráter de coletividade e resistência do fenômeno pode ser apreendido no contexto de pequenos e micronegócios, em que não são possíveis, nem aplicáveis os modelos de gestão baseados em divisões verticais e horizontais rigorosas de poder decisórios, responsabilidades e atividades concretas?

Já é comum destacar que pequenos e micronegócios tendem a apresentar pequena sobrevivência no sistema capitalista porque não conseguem concorrer com empresas maiores, especialmente em períodos de crise. Além disso, também é um processo observável que as táticas utilizadas pelos micro e pequenos negócios, quando bem-sucedidas, rapidamente são absorvidas pelos maiores negócios, fazendo os primeiros perderem rapidamente a vantagem competitiva.

Por razões como essas, considero legítimo combater o estímulo à criação de micro e pequenos negócios como uma panaceia de solução de entrada no mercado ou como sinônimo de mérito individual. Em outras palavras, considero legítimo não mistificar os micro e pequenos negócios, pois eles não mudam o sistema econômico como um todo. Entretanto, também é comum registrar que tais negócios representam a forma de inserção no mercado para um número acentuado de trabalhadores, sejam como empresários, sejam como empregados.

Segundo a Associação Nacional de Presidentes de Juntas Comerciais (ANPREJ), 52% dos empregos no Brasil estão em micro e pequenas empresas. O sistema capitalista é fluente em criar exclusões (Miguel, 2014) e, no Brasil, vivemos variadas situações de desigualdade e exclusão, como na educação, no acesso à saúde, à arte, etc. É impossível, por tais exclusões, pela diversidade de demandas sociais, pelas dimensões populacionais, entre outras razões, que todos os brasileiros trabalhem no setor público e em grandes organizações. Parte dos universitários não consegue colocações no mercado de trabalho em instituições tradicionais e em grandes empresas. Assim, além de suas competências técnicas, típicas da área de formação - por exemplo, a psicologia - precisam ser competentes para empreender um "negócio", como uma clínica, um serviço de psicologia, uma consultoria, uma ONG, uma escola, coordenação de cursos, chefias de setores, etc.

Além disso, lembro também todo o segmento da economia solidária. Um bom exemplo são os catadores de material reciclável que, pouco a pouco, (Lima, 2010; Arantes & Borges, 2013), estimulados ou não pelas políticas públicas, têm se organizado em um sistema de cooperativas para viabilizar a comercialização de seus produtos. Competências empreendedoras não são demandadas dos coletivos de catadores?

Nem os micro e pequenos negócios, nem a economia solidária vão mudar de modo revolucionário o sistema econômico em que vivemos. Os chamados "movimentos populares de rua", como os de junho de 2013, também não, mas, da mesma maneira, servem para denunciar e demonstrar as insatisfações e o sofrimento de todos nós na contemporaneidade. Esses movimentos podem ser interpretados como modos de resistência e de busca de redução de danos de um sistema econômico que tem como um de seus fundamentos a exploração de quase toda a população (Marx, 1975).

Os autores divergem intensamente quanto às estratégias de aprendizagem implicadas na atuação estudantil nas EJs. Minha compreensão é que tais divergências são, na realidade, a superfície das divergências anteriores, especialmente sobre as concepções de empreendedorismo e do papel institucional das EJs.

Em referência ao cotidiano das EJs no ensino superior, Seki e Simão destacaram que a presença das EJs naturalizou-se nas universidades. O conceito de naturalização é usado na psicologia social (ver Bock, 2004; Moscovici, 1978; Viana, 2013) para se referir ao processo psicossocial em que construções sociais (decorrentes da ação humana) tornam-se tão incorporadas culturalmente que passam a ser tomadas como algo natural, de forma que escondem ou dissimulam relações de poder/dominação, valores e o contexto socioeconômico que lhe dão sentido social.

Destacar tal processo é, portanto, uma contribuição à vida acadêmica na linha que vínhamos abordando (de uma universidade revigorada pelo debate acadêmico). Mas, também reconheço que, se há um movimento de oposição e se houve o ato de o destacar, já ocorreu um descongelamento ou um rompimento com o processo de naturalização. Passou-se para o processo de questionamento com mobilização coletiva, situando a questão deste debate.

Além disso, uso meu direito de duvidar que tenha de fato ocorrido naturalização. Já presenciei em minha vida acadêmica, durante o período de divergências "adormecidas" sobre as EJs, relatos de alunos que se sentem discriminados em sala de aula por fazerem parte de alguma EJ a ponto de esconderem símbolos de tal participação. O fato parece-me representar mais um debate que silenciosamente se constrói do que a naturalização instalada.

Por fim, a última divergência de fundo que enumerei refere-se ao tema do compromisso com a pluralidade de ideias. Peixoto discorreu sobre a potencialidade das atividades nas EJs de apoiarem os estudantes na articulação entre teoria, ensinamentos em sala de aula e prática profissional. As atividades das EJs não são iguais às intervenções profissionais porque, entre outras razões, quem contrata os serviços de uma EJ sabe que os prestadores do serviço são aprendizes. Mas há uma potencialidade maior de aproximação da realidade do que atividades em sala de aula. Tal aproximação é típica das atividades de extensão e de pesquisa, principalmente quando esta última adota uma perspectiva e/ou um design de pesquisa. As EJs, descrita segundo os marcos regulatórios citados por Peixoto, são projetos de extensão que se diferenciam da maioria pelo papel protagonista esperado do aluno. Dessa forma, as EJs constituem-se em mais um instrumento pedagógico com características que devemos refletir acerca de se as queremos ou não. Elas são uma alternativa viável. Seiki e Simão não vêm com um dos instrumentos, mas substituindo instrumentos que eles consideram mais compatíveis. A discussão poderia se aprofundar mais se os dois autores descrevessem e informassem a que instrumentos mais compatíveis se referem. Pergunto, então, como as EJs podem impedir outros instrumentos de serem aplicados? Não seria o caos de implementar vários instrumentos causando um enriquecimento da vida acadêmica estudantil?

Portanto, nesse contexto situa-se a divergência sobre se as EJs são ou não instrumentos pedagógicos e educativos adequados ao ensino universitário. Ouso, então, apresentar novas indagações: Será que a pergunta que realmente devemos fazer é se somos favoráveis ou contrários a isso? Ou deveríamos perguntar-nos o que fazer para que as empresas juniores ponham em prática os princípios que prezamos vinculados à nossa concepção de universidade?

 

Pela aplicação de uma atuação ética e moral

Pensando nas últimas perguntas, retomo o que assinalei inicialmente no sentido de que, seguramente, todos nós convergimos na intenção de contribuir para a construção de uma universidade cada vez melhor perguntando: Que formação esperamos que alunos e professores construam nos cursos de psicologia? As EJs podem contribuir em tal projeto? Definir que formação queremos vincula-se à definição de um projeto de atuação profissional? Podemos ter um projeto de atuação compartilhado e/ou coletivo para a psicologia?

Essas perguntas estão no campo da ética, da moral e da filosofia e fazem jus a respostas elaboradas coletivamente. Por isso, recorrerei a visões já elaboradas e que aqui apenas assumo. Utilizarei principalmente a Declaração Universal dos Direitos humanos (ONU, 1948) e autores (e.g., Bastos, Yamamoto, & Rodrigues, 2010; Yamamoto, 2012) que trataram anteriormente sobre o compromisso social na atuação do psicólogo.

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, levantei valores segundo minha interpretação. Assim, considero que nossas vidas e nossos papéis profissionais devem guiar-se pelos seguintes valores: liberdade, igualdade de direitos, fraternidade, vida e saúde, segurança pessoal e social, direito de defender-se frente a acusações e julgamentos alheios, privacidade, circulação (ir e vir), residir, casar-se ou não, constituir família, liberdade para opinar e expressar-se, acesso às funções públicas do país, associar-se e acesso à educação e à arte.

Nessa lista, talvez o leitor sinta falta do valor da responsabilidade, o qual representa o outro lado da concepção de liberdade humana em Sartre e Ferreira (1961). De fato, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não apela explicitamente à responsabilidade, embora esse valor esteja implícito em todo o documento. No entanto, minha omissão evita apenas a redundância, já que estou assumindo que não há liberdade sem responsabilidade.

Também pode se destacar aos olhos dos psicólogos do trabalho e das organizações a falta de valores como competência, efetividade, resolutividade, autonomia, dedicação ao trabalho, salários dignos e equitativos, entre outros. O que quero dizer é que na perspectiva abordada aqui, todos esses valores vinculados às características da produção são de outra ordem de prioridade. Eles são importantes e têm um vínculo direto com o exercício da responsabilidade e da liberdade, mas são meios e importam na medida em que podem concretizar os primeiros.

Para evitar mal entendidos, esclareço que não estou dizendo que a competência, a resolutividade, a dignidade e a equidade salarial, a autonomia e as boas condições de trabalho só devam ser buscadas quando concretizados os primeiros valores citados. Quero dizer que estes valores devem ser perseguidos tendo os primeiros como alvos terminais.

Talvez algum leitor considere que estou falando sobre algo que não corresponda à realidade, já que vivemos em um país onde não faltam evidências e denúncias de desrespeito e rupturas com os Direitos do Homem. No entanto, acredito que a Declaração deve funcionar como uma referência. Isso significa que quando refletimos ou avaliamos qualquer forma de atuação profissional, devemos considerar se ela contribui para caminharmos em direção à concretização daqueles valores e/ou reduzir danos humanos por falta do respeito a eles. Entendo que, se assim fazemos, a atuação profissional resultará no que na psicologia tem chamado de compromisso social do profissional.

Esse conceito, entretanto, é muito complexo. Essa exigência de reflexão é, sem dúvida, um desafio pesado, embora ajude a vincular aqueles valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos a nossas práticas profissionais. Uma publicação recente de autoria de Bastos et al. (2010) trata do assunto destacando tal complexidade em função da polissemia dos termos que compõem a expressão compromisso social. Indo além, tal complexidade se problematiza mais ainda se considerarmos a concepção sartriana de homem. Pois, se o homem primeiro existe, toma consciência da sua existência e age, toda ação é comprometida e inserida socialmente independente de nortearem-se ou não pelos valores que concordamos.

Mas é a diferenciação de Yamamoto (2012) sobre o compromisso social como cidadãos e/ou na militância política versus o compromisso social como profissionais que mais ajuda a pensar de forma viável a atuação profissional e, de certa forma, a lidar com a angústia permanente, derivada da responsabilidade existencial. A primeira modalidade remete diretamente à implicação, ou não, em um projeto de transformação da sociedade e/ou perseguir um modelo de sociedade. Não compete a nenhuma profissão desenvolver a revolução social diretamente, mas a segunda modalidade de compromisso remete à dimensão política de uma profissão exercida com responsabilidade.

Entretanto, não há regras, normas, ou manual de procedimentos para garantirmos agir em conformidade com aqueles valores. Tal conformidade é dinâmica e historicamente situada. Exige, portanto, desenvolvermos uma prática reflexiva em que possamos sempre fazer nossas previsões das consequências de nossos atos e/ou decisões profissionais. Refletir, criticar, autocriticar-se e abrir-se para as críticas dos demais é, talvez, a única regra substancial. As demais são negociar e dialogar sempre. Sempre temos alternativas limitadas, apenas nos cabe buscar novas alternativas de atuação e avaliar, entre as alternativas factíveis, quais as que melhor contribuem para construir o mundo que projetamos.

Em outras palavras, defendo pensar a formação do psicólogo para que ele possa atuar ajudando a sociedade a respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se as EJs podem ser instrumentos pedagógicos adequados a uma universidade, ela precisa contribuir em tal direção.

Assim, defenderei as EJs que procederem desta forma, o que significa dizer que não podemos simplificar o problema condenando ou absorvendo todas as EJs conjuntamente, da mesma forma que não podemos contribuir para legitimar qualquer outra ação de extensão ou de pesquisa indiscriminadamente. Elas não são essencialmente boas ou más. A adequação de cada EJ depende da visão de mundo daqueles que nelas atuam, seja protagonizando como os estudantes, seja orientando-os, como no caso dos docentes, bem como da adequação historicamente situada de cada ação. Por isso, deixo aqui o convite para todos aqueles implicados com as EJs:

• Divulguem as EJs e seus marcos regulatórios desde o começo do curso;

• Divulguem aos demais estudantes e aos docentes as ações de prestação de serviço realizadas e o tipo de cliente que utilizam os serviços das EJs;

• Discutam os significados das ações para pôr em prática os valores abrangidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos;

• Adotem estratégias de planejamento e avaliação das ações de prestação de serviço claras e transparentes;

• Respeitem, apreciem e apoiem outras ações pedagógicas que possam surgir, abrindo espaço para articular teoria e prática, compartilhando a experiência das EJs, lidando com as divergências.

Nesses termos, longe de pôr um ponto final nas divergências, espero que estas frutifiquem no sentido de aperfeiçoar as EJs na valorização da condição humana, ou seja, no engajamento no processo civilizatório.

 

REFERÊNCIAS

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