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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.18 no.2 Brasília abr./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.17652/rpot/2018.2.14246 

Futuro e aposentadoria: evidências de validade para uma medida de perspectiva temporal

 

Future and retirement: evidence of validity for a measure of temporal perspective

 

Futuro y jubilación: evidencias de validad para una medida de perspectiva provisional

 

 

Cristineide Leandro-França; Fábio Iglesias; Sheila Giardini Murta

Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Planejar o futuro com clareza de objetivos pode facilitar o ajustamento à aposentadoria. Este estudo examinou evidências de validade de um instrumento adaptado para o Brasil que investiga a perspectiva de tempo futuro relativa à aposentadoria, no contexto do planejamento da aposentadoria. O instrumento foi respondido de forma on-line por 141 trabalhadores, homens e mulheres, de 25 a 66 anos (M = 44,01; DP = 10,87). Análises fatoriais exploratórias revelaram uma estrutura unidimensional, as cargas fatoriais permaneceram estáveis e com evidências de fidedignidade do instrumento. Escores da escala revelaram um aumento linear, conforme a faixa etária dos respondentes. Aplicações do instrumento e seus desdobramentos para intervenções são discutidos, considerando-se a pirâmide demográfica de envelhecimento da população e o cenário socioeconômico brasileiro.

Palavras-chave: aposentadoria; perspectiva de tempo; clareza de objetivos.


ABSTRACT

Planning the future with clarity of goals can make it easier to adjust to retirement. This study examined evidence of validity of an instrument adapted for Brazil that investigates the future time perspective related to retirement, in the context of retirement planning. The instrument was answered online by 141 male and female workers, ages 25 to 66 years (M = 44.01, SD = 10.87). Exploratory factor analyses revealed a one-dimensional structure, factor loadings remained stable and with evidence of reliability of the instrument. Scale scores revealed a linear increase according to the age group of the respondents. Applications of the instrument and its contributions for interventions are discussed, considering the demographic pyramid of aging of the population and the Brazilian socioeconomic scenario.

Keywords: retirement; perspective of time; clarity of goals.


RESUMEN

Tener objetivos claros al planear el futuro puede facilitar el ajuste a la jubilación. Este estudio examinó las evidencias de validez de un instrumento adaptado para Brasil que investiga la perspectiva de tiempo futuro referente a la jubilación en el contexto de su planificación. 141 trabajadores hombres y mujeres, con edades entre 25 y 66 años (M = 44,01; DP = 10,87) contestaron el instrumento por internet. Análisis factoriales exploratorios revelaron una estructura unidimensional. Las cargas factoriales permanecieron estables en el instrumento y con evidencias de confiabilidad. La puntuación de la escala reveló un aumento linear según el grupo de edad de los respondientes. Aplicaciones del instrumento y sus consecuencias para intervenciones son discutidas teniendo en cuenta la pirámide demográfica de la vejez de la población y el escenario socioeconómico brasileño.

Palabras-clave: jubilación; perspectiva de tiempo; claridad de los objetivos.


 

 

O aumento da expectativa de vida da população tem estimulado estudos na área de envelhecimento em todo o mundo, especialmente em relação a um fenômeno marcante nessa fase da vida: a aposentadoria. A aposentadoria pressupõe um processo de adaptação a uma nova etapa da vida que engloba dois períodos: (a) transição para aposentadoria (fase de empregado para aposentado) e (b) trajetória pós-aposentadoria (fase do desenvolvimento da vida na aposentadoria). Com base nesse conceito, a aposentadoria é amplamente reconhecida pela ciência social e psicológica como uma transição desenvolvimental, que requer planejamento ao longo do curso da vida para que haja uma boa adaptação (Noone, Sthepens, & Alpass, 2010; Wang & Shi, 2014).

Um planejamento adequado para a aposentadoria requer o investimento em atividades ocupacionais, lazer, arranjos financeiros, manutenção de relacionamentos afetivos e engajamento em grupos na comunidade (Leandro-França, Seidl, & Murta, 2015; Wang, Henkens, & Van Solinge, 2011). Entretanto, transformar o planejamento em ação nem sempre é possível para os trabalhadores que se encontram nesse processo de transição, especialmente os que têm resistência em pensar sobre o futuro (Leandro-França et al., 2015) e não têm metas claras para essa fase da vida (Hershey & Mowen, 2000).

Para concretizar planos e, consequentemente, vivenciar níveis mais altos de satisfação pessoal nesse período da vida, é necessário que o indivíduo tenha clareza de objetivos para a aposentadoria. Isso demanda a elaboração de metas claras e específicas (p. ex., definir como ocupará o tempo livre na aposentadoria, decidir onde morar, com quem morar e como se manterá ), que proporcionam o estabelecimento de intenções futuras e orientam a realização de comportamentos desejados (Stawski, Hershey, & Jacobs-Lawson, 2007).

Nas últimas três décadas, pesquisadores investigaram os fatores psicológicos, socioeconômicos e pessoais dos indivíduos que planejam e não planejam a aposentadoria (Noone et al., 2010). Na esfera psicológica, ter metas claras, compreender e avaliar a perspectiva de tempo futuro (FTP, do inglês future time perspective) mostram-se especialmente úteis na elaboração de planos sobre o que fazer na aposentadoria.

 

O conceito de perspectiva de tempo futuro

A perspectiva de tempo futuro integra o construto psicológico perspectiva temporal (TP), que pode ser conceituado como processos cognitivos direcionados ao passado, ao presente e ao futuro (Zimbardo & Boyd, 1999). Estudos iniciais sobre TP foram realizados em meados do século XX (1951/1967) por Kurt Lewin, com a teoria do espaço vital, dando ênfase ao estudo do tempo como dimensão psicológica (Leite & Pasquali, 2008). Já os estudos atuais destacam os achados de Philip Zimbardo e John Boyd (1999), pioneiros no desenvolvimento de um instrumento de avaliação da perspectiva de tempo. O instrumento é composto por cinco construtos que integram a TP: passado-negativo, passado-positivo, presente-fatalista, presente-hedonista e futuro (Leite & Pasquali, 2008; Zimbardo & Boyd, 1999).

O foco no passado-negativo está vinculado a uma percepção pessimista e aversiva em relação a eventos já ocorridos que pode estar associada à vivência de experiências desagradáveis, como traumas, frustrações e arrependimentos sobre oportunidades perdidas. Ao contrário, o passado-positivo está relacionado a lembranças boas dos velhos tempos, como as que envolvem a convivência positiva com amigos e familiares. No presente-fatalista predomina o sentimento de desespero e desamparo com a vida e o futuro. Já no presente-hedonista o foco é o prazer do momento, a tomada de risco e a busca de sensações, sem pensar nas consequências futuras (Zimbardo & Boyd, 2008).

Assim, a FTP é um componente da vida pessoal e envolve a forma como os indivíduos olham para o futuro, comparando-o com as vivências do presente ou do passado. Evidências apontam que indivíduos orientados para o futuro são mais otimistas e dinâmicos na tomada de decisão e na realização de ações (Zimbardo & Boyd, 1999). Adquirir tais competências é importante para os indivíduos que planejam se aposentar, ao se considerar a relevância de se preparar para o futuro, com clareza de objetivos, possibilitando a concretização desses projetos e uma aposentadoria bem-sucedida (Leandro-França et al., 2015; Stawski et al., 2007).

Ainda se conceitua a FTP como uma dimensão cognitiva motivacional da personalidade, que resulta em estabelecimento de objetivos e de metas (clareza de objetivos), mas também depende de atitudes motivacionais e emocionais. Além disso, pode ser definida como o grau e a maneira pelos quais o futuro é antecipado e integrado na vida psicológica atual do indivíduo (Lens, Paixão, Herrera, & Grobler, 2012; Nuttin & Lens, 1985). Para esses autores, a FTP pode ser explicada em dois níveis: FTP restrita (elaboração de objetivos a serem alcançados em um futuro próximo) e FTP extensa ou aprofundada (elaboração de objetivos a serem alcançados em um futuro distante). Indivíduos com FTP extensa ou aprofundada que têm objetivos claros para o futuro em longo prazo (p. ex., cinco anos a partir do presente) demonstram mais motivação e perseverança para alcançar seus objetivos e elaboram planos ou projetos com estruturas comportamentais sólidas, duradouras e equilibradas. Pode-se dizer que pessoas com FTP extensa têm mais clareza de objetivos e são mais capazes de transformar seus objetivos ou intenções comportamentais em ações do que aquelas com FTP restrita (Lens et al., 2012).

A FTP também é parte integrante da teoria da seletividade socioemocional. De acordo com essa teoria, quando o tempo é percebido como extenso, os objetivos relacionados à aquisição de novos conhecimentos e a busca do saber são priorizados (p. ex., educação para a carreira). Por outro lado, à medida que a idade avança e a perspectiva de tempo diminui (FTP restrita), o indivíduo prioriza objetivos emocionais significativos e gratificantes para a sua vida (p. ex., investimento nas relações de amizade). Logo, pessoas com FTP restrita focam mais o presente do que o futuro (Grühn, Sharifian, & Chu, 2016; Stahl & Patrick, 2012).

Apesar de não existir um consenso sobre as dimensões que compõem a FTP, a maioria das pesquisas a considera um construto multidimensional (Río-González & Herrera, 2006). Entretanto, a literatura também indica evidências de sua unidimensionalidade (Daltrey & Langer, 1984). Ao desenvolverem um instrumento para avaliar esse construto, Daltrey e Langer (1984) propuseram inicialmente uma estrutura multidimensional para a FTP. Para esses autores, ela é composta por um conjunto de cinco dimensões: extensão (o quão longe uma pessoa é capaz de planejar seus pensamentos para o futuro), coerência (o quão organizado é o planejamento do futuro de uma pessoa), direcionalidade (o quão rápido uma pessoa se percebe progredindo ao longo do tempo), densidade (o quão densamente marcado por eventos o futuro parece ser) e atitude (sentimentos de uma pessoa sobre seu futuro).

Resultados desse estudo apoiam a hipótese da unidimensionalidade, ao revelar que a matriz de correlação dessas cinco subescalas mostrou que elas não são tão ortogonais como esperado. Isso levou os pesquisadores à hipótese de que, embora a FTP seja conceituada em termos de dimensões discretas, elas estão psicometricamente relacionadas. Assim, concluíram que, "apesar da utilidade de uma construção multifatorial em termos de aplicação e de diagnóstico para certas áreas, pesquisadores devem considerar a unifatorialidade como forma de explicar esse construto" (Río-González & Herrera, 2006, p. 49).

Considerando a hipótese da multifatorialidade para a FTP, três dimensões são utilizadas com maior frequência em pesquisas com esse construto: extensão temporal, atitude em relação ao tempo e preferência de tempo. A primeira se refere à capacidade de projeção no futuro, que pode ser relativamente baixa quando relacionada ao futuro próximo, ou elevada quando direcionada ao futuro distante. A segunda é uma dimensão mais afetiva e motivacional e diz respeito a um sentimento otimista e promissor ou a um sentimento pessimista e ameaçador em relação ao futuro. Por fim, a terceira dimensão se refere à orientação ou propensão que uma pessoa tem em valorizar e preferir um determinado período de tempo (passado, presente ou futuro). Uma orientação temporal equilibrada e consciente sobre o tempo motiva o indivíduo a enfrentar os desafios do presente, a valorizar as experiências vividas no passado e a ter expectativas e objetivos em relação ao seu futuro (Lens et al., 2012; Río-González & Herrera, 2006).

Medidas sobre perspectiva de tempo futuro e planejamento da aposentadoria

Ao examinar a literatura, nota-se que o construto FTP é amplamente analisado em amostras de público jovem, como no ambiente escolar, para examinar a valorização que estudantes universitários atribuem às diversas áreas da formação acadêmica (Schmitt, 2010). Também é usado para entender a motivação dos estudantes na elaboração de planos para prática de exercício físico (Vansteenkiste, Simons, Soenens, & Lens, 2004) e para explicar o engajamento das pessoas em comportamentos de promoção à saúde ao longo da vida (Stahl & Patrick, 2012).

Instrumentos que investigam esse construto são escassos, predominando o uso de técnicas projetivas e métodos qualitativos, como a entrevista (Río-González & Herrera, 2006). Um instrumento que impulsionou o desenvolvimento de pesquisas relacionadas à perspectiva temporal foi o Zimbardo Time Perspective Inventory (ZTPI). Trata-se de uma medida robusta, já submetida a adaptações em diversas línguas e culturas (Leite & Pasquali, 2008). Observa-se, entretanto, que avaliações sobre FTP são pouco exploradas na área de envelhecimento e planejamento da aposentadoria. Exceções a isso são os trabalhos de França e Hershey (2010), Hershey, Jacobs-Lawson, McArdle e Hamagami (2007), Hershey, Henkens e van Dalen (2010) e Rafalski e Andrade (2017).

Os conceitos de FTP e clareza de objetivos para a aposentadoria têm sido utilizados por França e Hershey (2010), Hershey et al. (2007) e Hershey et al. (2010) em medidas que avaliam os determinantes que influenciam o comportamento de poupar e planejar o futuro financeiro. O modelo interdisciplinar de planejamento financeiro é a base teórica adotada nesses estudos. Testado originalmente na Holanda e nos Estados Unidos e desenvolvido por Hershey e colaboradores (2000, 2007; 2010), esse modelo é composto por um conjunto de dimensões (psicológica, econômica, financeira, sociodemográfica e planejamento social), apontadas como fundamentais nas práticas de planejamento para aposentadoria e percepção da adequação de poupar para o futuro (França, 2012).

No estudo de o modelo interdisciplinar de planejamento financeiro foi testado em 265 trabalhadores estadunidenses (115 homens e 150 mulheres), com idades entre 25 a 45 anos. Investigaram-se as dimensões psicológicas perspectiva de tempo futuro, clareza de objetivos para a aposentadoria, autoavaliação de conhecimento financeiro, mediação entre indicadores demográficos (p. ex., idade, gênero, renda) e poupança. O alfa de Cronbach para o fator "Clareza de objetivos para a aposentadoria" foi 0,87, com 25% da variância explicada. Já o fator "Perspectiva de tempo futuro" teve um alfa de 0,76 e, embora considerado um índice de consistência interna aceitável, a variância explicada foi pouco expressiva (8%).

França e Hershey (2010) replicaram o modelo interdisciplinar de planejamento financeiro utilizado no estudo de Hershey et al. (2010) numa amostra de trabalhadores brasileiros (n = 167), casados ou em união estável, com idades entre 21 e 69 anos (M = 51). Os resultados apontaram que a perspectiva de tempo futuro e a clareza de objetivos para aposentadoria agem como principais preditores de percepção da adequação de poupar para o futuro (França, 2012).

O estudo de Rafalski e Andrade (2017) teve como objetivo desenvolver e apresentar evidências de validade da Escala de Percepção de Futuro da Aposentadoria (EPFA) e correlatos psicossociais, aplicada em trabalhadores brasileiros (N = 982), de ambos os sexos, com uma média de 40,1 anos de idade. Cinco dimensões foram reveladas: percepções de saúde, desligamento do trabalho, finanças, relacionamentos interpessoais e perdas na aposentadoria. A escala mostrou-se útil para investigar as impressões dos participantes quanto à transição para aposentadoria nos aspectos saúde, centralidade do trabalho e motivos para se aposentar.

Considerando a lacuna na literatura brasileira sobre instrumentos que investigam o construto FTP relativo à aposentadoria com foco em dimensões cognitivas e motivacionais, decidiu-se por adaptar itens de um instrumento desenvolvido por Hershey e Mowen (2000) e Hershey et al. (2007; 2010) e verificar evidências de validade dessa medida. Para tanto, foram utilizados itens que compõem os fatores "Clareza de objetivos para a aposentadoria" e "Perspectiva de tempo futuro". O instrumento adaptado e avaliado neste estudo difere de outros métodos de avaliação citados na literatura brasileira em planejamento para aposentadoria, como a Escala de Mudança de Comportamento em Planejamento para Aposentadoria (EMCPA; Leandro-França, Murta, & Iglesias, 2014), a Escala de Fatores-Chave no Planejamento da Aposentadoria (KFRP - Key Factors for Retirement Planning) (França & Carneiro, 2009), a Escala de Percepção de Futuro da Aposentadoria (EPFA - Rafalski & Andrade, 2017) e a Escala de Planejamento da Aposentadoria: Adaptação Brasileira da PRePS (Rafalski & Andrade, 2017). De modo geral, essas escalas buscam investigar a influência de fatores ou domínios no planejamento da aposentadoria (saúde, finanças, ocupação, relacionamentos sociais, familiares e fatores de risco) e mudanças de comportamento favoráveis à adaptação à aposentadoria. Ademais, são averiguadas as percepções sobre o futuro, com foco nos preditores de adaptação a esse período da vida, e os estilos de tomada de decisão no planejamento da aposentadoria.

Por outro lado, a proposta deste instrumento é focar em dimensões cognitivas e motivacionais de FTP, como: reflexão sobre o futuro e qualidade de vida na aposentadoria; clareza de objetivos para aposentadoria; capacidade de projeção para o futuro; e estabelecimento de metas para o futuro. Nesta investigação, adotam-se os conceitos de FTP restrita e aprofundada (Lens et al., 2012) para analisar a perspectiva de tempo futuro relativa à aposentadoria dos participantes. Em suma, o objetivo principal deste estudo é investigar evidências de validade desse instrumento.

 

Método

Participantes

O estudo consistiu em uma amostra final de 141 respondentes das regiões brasileiras Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste, todos servidores públicos do Poder Executivo que participaram de um treinamento a distância sobre planejamento, implementação e avaliação de programas de preparação para aposentadoria. Desses, 12% eram homens e 88% mulheres, de 25 a 66 anos (M = 44 anos; DP = 10,87). Quanto à escolaridade, 2% tinham ensino superior incompleto, 20% ensino superior completo, 8% pós-graduação incompleta e 70% pós-graduação completa. Além disso, 55% eram casados, 26% eram solteiros, 9% eram separados, 8% tinham união estável e 2% eram viúvos.

Instrumento

A elaboração da Escala foi realizada em três etapas: (1) adaptação do instrumento, (2) análise semântica dos itens e (3) validação por juízes. Primeiro, o instrumento original (Hershey et al., 2007) foi traduzido para a língua portuguesa e adaptado ao contexto brasileiro. Após a tradução dos itens escolhidos, o instrumento foi finalizado e iniciou-se a segunda etapa: análise semântica dos itens. A proposta dessa etapa foi identificar e corrigir as possíveis ambiguidades quanto à clareza e objetividade dos itens. Para essa finalidade, a escala foi aplicada de forma individual com oito servidores da administração pública federal, de órgãos distintos, com escolaridade entre ensino médio e pós-graduação. Por ser uma medida curta, com poucos itens de avaliação, ela foi considerada de fácil compreensão pelos respondentes. A terceira etapa, de validação por juízes, ocorreu por meio da análise independente de dois pesquisadores da área de planejamento para aposentadoria.

Na montagem do instrumento para este estudo optou-se por uma seleção de sete itens dos estudos de Hershey e Mowen (2000) e Hershey et al. (2007; 2010) referentes a dois fatores psicológicos: (1) "Clareza de objetivos para a aposentadoria" (três itens) e (2) "Perspectiva de tempo futuro" (quatro itens). Os itens escolhidos para o fator "Clareza de objetivos para a aposentadoria" foram: "Eu tenho pensado muito sobre a qualidade de vida na aposentadoria"; "Eu tenho estabelecido metas de quanto economizar para a aposentadoria"; "Eu tenho uma visão clara de como será a minha vida na aposentadoria".

O fator "Perspectiva de tempo futuro" é composto pelos itens: "O futuro distante me parece vago e incerto"; "Eu gosto de pensar sobre como eu viverei de hoje em diante"; "Eu vivo muito mais para o presente do que para o futuro"; "Eu sigo as orientações de economizar para os momentos difíceis". Esses itens foram apresentados em formato de cinco categorias de resposta, de 1 - total discordância a 5 - total concordância.

Procedimentos de coleta e cuidados éticos

Após a análise semântica e a realizada pelos juízes, foram enviados convites, por e-mail, a aproximadamente 350 servidores públicos federais de todas as regiões do Brasil, que participaram de um curso a distância sobre planejamento, implementação e avaliação de programas de preparação para aposentadoria, provido pela plataforma Moodle (um ambiente virtual de aprendizagem e suporte da educação a distância). O e-mail continha um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participação no estudo, explicações sobre o anonimato dos dados coletados, os objetivos e os procedimentos da pesquisa. Os servidores que concordaram em participar responderam ao instrumento, indicado em link específico.

Procedimentos de análise dos dados

Os dados coletados foram submetidos a análises fatoriais exploratórias com o objetivo de avaliar a validade de construto da escala. Os procedimentos adotados seguiram as recomendações de Tabachnick e Fidell (2001). A fatorabilidade da matriz foi avaliada pelo índice Kaiser-Meyer-Olson (KMO) e pelo teste de esfericidade de Bartlett. Para definição da quantidade de fatores que poderiam ser extraídos foi utilizada a análise de componentes principais. Tal análise obedeceu ao critério dos eigenvalues (valores próprios) para a retenção do fator que tivesse maior variância do que um item isolado (Autovalor [ɣ] > 1,0), e que sua variância não pudesse ser explicada pela aleatoriedade (análise paralela de Horn). Para extração e rotação dos fatores foi empregado o método dos eixos principais, mantidos apenas os itens que tinham cargas fatoriais iguais ou superiores a 0,40. Para avaliar a fidedignidade e precisão da escala foi utilizado o coeficiente Alfa de Cronbach.

 

Resultados

Depois de executar procedimentos de análise exploratória do banco de dados, os índices de fatorabilidade mostraram que sua matriz é favorável e que as correlações foram relativamente bem concentradas (KMO = 0,74; teste de esfericidade de Bartlett, χ2 = 213,44; gl = 21; p < 0,01). Por meio da análise dos componentes principais (PAC) e mediante o critério de autovalores (ɣ< 1,00), poderiam ser retidos até dois fatores, explicando 56,75% da variância da matriz de correlação. Porém, a análise paralela demonstrou que apenas um fator atendia o critério de não aleatoriedade. Embora se tenha testado uma solução bifatorial, a consistência interna do segundo fator foi relativamente baixa (α = 0,64).

Dessa forma, para solução fatorial foi mantido apenas um fator, que explica 40,10 % de variância (ɣ = 2,08). Além disso, decidiu-se por uma solução unifatorial pela sua robustez e adequação a critérios teórico-conceituais. A extração do fator se deu por meio da análise fatorial dos eixos principais. Todos os itens foram mantidos, pois suas cargas variaram entre 0,43 e 0,66 (Tabela 1), e não houve itens cuja retirada melhoraria a consistência interna do fator.

 

 

Os itens 6 "O futuro distante me parece vago e incerto" e 7 "Vivo muito mais para o presente do que para o futuro" apresentaram cargas negativas, por isso foram invertidos para manter o escore da escala positivo. O índice de consistência interna foi de 0,74. Para nomear o fator extraído foi mantido o nome da escala de perspectiva de tempo futuro relativo à aposentadoria (PTFA).

Como as idades se distribuíram de forma relativamente equilibrada ao se considerar distintos momentos de carreira profissional que correspondem a início, meio e final, foram recodificadas em três faixas etárias (até 35; 36 a 50; acima de 51). Embora a diferença entre elas tenha sido marginal, F (2, 140) = 2,68; p = 0,72, d = 0,14, uma análise de tendências revelou uma relação linear positiva, com aumentos de escores conforme a faixa etária, F (1, 140) = 5,28; p = 0,23, d = 0,19.

 

Discussão

O objetivo central deste estudo foi adaptar e examinar propriedades psicométricas, reunindo evidências de validade da escala PTFA. Embora não representando grande tamanho amostral, os participantes permitiram a investigação de relações com idade que não parecem ter sido examinadas ainda na literatura. Os resultados revelaram que a estrutura unifatorial é adequada para investigar a FTP não somente em jovens, como frequentemente investigado na literatura especializada (Schmitt, 2010; Vansteenkiste et al., 2004), mas também em trabalhadores de meia-idade e mais velhos.

A estrutura unifatorial para o construto corrobora achados de Daltrey e Langer (1984). Esses pesquisadores consideraram a unifatorialidade como melhor forma de explicar a FTP. Ademais, ao comparar os dados desse estudo com os encontrados no estudo de Hershey et al. (2007), observam-se características psicométricas equivalentes no que se refere ao índice de consistência interna dos itens "Clareza de objetivos para a aposentadoria" e "Perspectiva de tempo futuro".

As cargas fatoriais elevadas para os itens "Gosto de pensar sobre como eu viverei de hoje em diante" e "Tenho pensado muito sobre a minha qualidade de vida na aposentadoria" e a menor carga fatorial para o item "Vivo muito mais para o presente do que para o futuro" indicam a possibilidade de grande parte dos participantes possuir uma extensão temporal elevada (capacidade de fazer projeções para o futuro), atitude otimista em relação ao futuro e orientação temporal (visão equilibrada e consciente sobre o futuro). Logo, ao demonstrarem interesse sobre o futuro e sobre a qualidade de vida na aposentadoria, é provável que os participantes possuam uma FTP extensa ou aprofundada. Tais pensamentos evidenciam a capacidade de transformar seus objetivos ou intenções comportamentais em ações (Lens et al., 2012), podendo resultar em uma aposentadoria bem-sucedida. Porém, para que seja possível fazer inferências e/ou discussões mais precisas sobre isso, são necessários estudos longitudinais que acompanhem os participantes antes e durante a aposentadoria.

Uma limitação deste estudo é a sua baixa validade externa, o que restringe a generalização dos resultados. Embora a amostra represente trabalhadores de várias regiões brasileiras, o público avaliado se restringe à população de servidores do Poder Executivo e com alto nível de escolaridade. Pessoas com maior escolaridade têm mais acesso à informação e maior propensão a fazer planos para o futuro, viabilizando uma melhor preparação para o pós-carreira (Leandro-França & Murta, 2014). Assim, para verificar se a consistência do instrumento é mantida, sugere-se a aplicação da escala em contexto de iniciativa privada, em outros poderes da administração pública e em amostras com níveis de escolaridade mais diversificados.

Numa perspectiva aplicada, os resultados deste estudo indicam que programas, cursos, oficinas e workshops de preparação para aposentadoria podem utilizar este instrumento e o conceito de FTP para elaborar ou aprimorar estratégias e materiais para intervenção, como também para conhecer e avaliar a perspectiva de tempo futuro relativa à aposentadoria dos participantes. Tal proposta visa a potencializar os programas e promover a aquisição de uma FTP elevada. Isso ganha relevo no planejamento para a aposentadoria, dado que diversos dos fatores protetivos para adaptação a essa etapa da vida devem ser construídos com antecipação, como investimentos financeiros, saúde física e mental e vínculos afetivos e sociais (Leandro-França & Murta, 2014).

Além disso, por se tratar de um instrumento com poucos itens, mas com boas cargas fatoriais e rápida aplicação, sua utilização pode ser profícua se aliada a outros instrumentos que avaliam, por exemplo, fatores-chave no planejamento da aposentadoria (França & Carneiro, 2009), percepção de futuro da aposentadoria (Rafalski & Andrade, 2017) e comportamentos e preditores de planejamento para aposentadoria (Leandro-França et al., 2014).

Neste estudo, optou-se por incluir na amostra trabalhadores de diversas idades e não apenas aqueles próximos à aposentadoria, haja vista que o planejamento para aposentadoria é percebido como um processo permanente de aprendizagem e desenvolvimento ao longo da vida profissional (Seidl, Leandro-França, & Murta, 2014). Contudo, como proposta para estudos futuros, sugere-se a aplicação deste instrumento em amostras com participantes mais próximos da aposentadoria, com idade e tempo de contribuição para se aposentar, com o intuito de investigar especificamente os trabalhadores nessa fase da vida. Estudos futuros poderão ainda examinar a FTP e associá -la a variáveis como idade, sexo, renda, tipo e condições de trabalho, como realizado por Hershey et al. (2007; 2010), maximizando seu uso potencial no Brasil.

 

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Endereço para correspondência:
Cristineide Leandro-França
Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Campus Darcy Ribeiro
70910-900, Brasília, DF - Brasil
E-mail: cristineide@unb.br

Recebido em: 24/08/2017
Primeira decisão editorial em: 02/11/2017
Versão final em: 04/12/2017
Aceito em: 04/12/2017

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