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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.19 no.2 Brasília abr./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.17652/rpot/2019.2.16833 

Resenha: a psicologia diante dos desafios do mundo do trabalho

 

 

Nivaldo Alexandre de Freitas

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil

 

 

Palavras-chave: Organizações; Impacto psicossocial; Saúde; Trabalhadores

 

 

Livro: Mandelbaum, B., & Ribeiro, M. (2017). Desemprego: uma abordagem psicossocial.
São Paulo: Blucher. 120p.

O livro reúne as pesquisas e as reflexões provenientes de experiências de prestação de serviço à comunidade realizadas pelos autores, que há tempos se debruçam sobre as questões que circundam o mundo do trabalho.

Os autores têm como foco ouvir os sofrimentos dos trabalhadores desempregados e destacar os efeitos subjetivos das condições do trabalho na atualidade. Tal audição é apurada pelo referencial teórico que também sustenta suas posteriores reflexões sobre as experiências dos sujeitos em cena. Esse referencial é composto por autores que pensam a dinâmica social e suas relações com o indivíduo (como Castel, Ricardo Antunes, Eclea e Alfredo Bosi, Dejours, Gonçalves Filho e outros), e aponta para as raízes sociais de tormentos que, apesar de trazidos pelo trabalho e sua escassez, em geral são sentidos como problemas exclusivamente pessoais. A disposição em considerar as falas dos sujeitos somada a um referencial teórico sólido resulta em uma valiosa contribuição à psicologia social, que ainda não se voltou o suficiente para a reflexão acerca desse fenômeno tão presente na atualidade, principalmente no Brasil, que tem novamente visto as taxas de desemprego ascenderem nos últimos anos.

O livro é composto por seis capítulos, nos quais a relação entre indivíduo e sociedade é destacada. Parte-se de uma reflexão ampla sobre o trabalho e seu papel nas esferas sociais. São fornecidos elementos iniciais para entender os rumos do trabalho como implicações de decisões políticas fiéis às leis do mercado. Os impactos políticos e sociais do desemprego são compreendidos como decorrências de um projeto histórico que retira do emprego sua dimensão transformadora do mundo e do próprio humano, deixando-o exíguo e produtor de adoecimentos, "patologias do desemprego" - tais como isolamento, depressão, transtornos de identidade -, além de violências e conflitos familiares.

Em tempos em que até mesmo parte da produção intelectual tem aderido à meritocracia, são bem-vindas as reflexões que não se concentram apenas nos efeitos do desemprego, mas que o compreendem com referências ao social e ao econômico. A explicação mais recorrente para o desemprego é a culpabilização individual, e é contra essa reflexão empobrecida, embora fomentada ao longo da história, que o livro se apresenta.

Inspirados por Hannah Arendt e Freud, os autores mostram que o trabalho não é apenas o meio para condições materiais necessárias à vida, mas também de manutenção de uma estrutura psíquica mínima. A ausência de trabalho (mas não de qualquer trabalho) pode fazer ruir os alicerces da identidade. Em meio aos conflitos e à competição, o trabalhador busca defesas em nível também afetivo. Uma delas é a indiferença, ou mesmo a frieza, diante de outro trabalhador. A estrutura do trabalho acirra a violência que percorre a sociedade.

Os autores relatam, nos capítulos centrais, um projeto de pesquisa em que ouviam trabalhadores desempregados pobres em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador na cidade de São Paulo. Muitos desses trabalhadores procuravam o centro na tentativa de comprovar sua incapacidade para o trabalho, na busca desesperada por algum direito trabalhista ou por uma aposentadoria que pudesse garantir o sustento de suas famílias. Já os pesquisadores desejavam constituir, com base em seus estudos acerca do mundo do trabalho e em sua experiência na clínica psicanalítica, um espaço de escuta e reflexão sobre as situações de desemprego que afligiam esses trabalhadores.

Porém, havia um descompasso entre tal intenção e a concretude da problemática da ausência de trabalho, e isso gerava dissabores, impedindo qualquer abstração ou reflexão. As entrevistas se iniciavam com a pergunta do trabalhador acerca de algum emprego que os pesquisadores pudessem oferecer. Em vez de conjecturas como "estou pensando que", seguiam-se relatos do cotidiano concreto, agônico, que força a contração da vida e o isolamento social. Na falta do trabalho, o sujeito ausenta-se de uma série de experiências que antes sustentavam sua identidade.

Os trabalhadores ouvidos revelam também conformismo e expõem seu mundo pequeno, ainda menor do que quando imersos em meios produtivos da sociedade. As falas destacadas dos trabalhadores são uma área vasta de reflexão para psicólogos e profissionais da saúde, que logo percebem que a escuta pode ajudar, mas consegue pouco diante de uma situação adversa a ponto de ameaçar a própria vida.

Nesse sentido, os autores questionam se a psicanálise, teoria que os orienta, não seria um insulto aos trabalhadores, mesmo não se tratando da prática tradicional do consultório. Seria preciso considerar em que medida é justo com o próprio trabalhador se seus desesperos em face aos mecanismos excludentes da sociedade fossem aliviados. Sem emprego, se já lhes sombreia o isolamento da vida social, ao menos ainda são capazes de expressar sofrimento. Seria importante que o sofrimento se tornasse ação política, mas isso passa ao largo da alçada do psicólogo. Todavia, a psicanálise fornece um modo de escuta que permite ao desempregado expressar a si mesmo o que sente e pensa sobre a situação em que se encontra.

Ao final da leitura, o profissional interessado nesse campo não saberá como ouvir o desempregado como sujeito genérico, mas terá importantes balizas para reconhecer questões centrais do mundo do trabalho e entenderá o quão inevitável é se situar diante da dimensão singular do desemprego para ouvir o outro. É interessante notar que em um momento são trazidas falas diversificadas que retratam a realidade mais ampla e, no capítulo seguinte, os autores analisam um caso singular. O caso de Pedro (nome fictício) mostra como o desemprego tensiona, por exemplo, as relações conjugais, mas faz isso apresentando as inseguranças e as situações vividas por ele e por quem está à sua volta, no cotidiano, de maneira bastante concreta.

Nos últimos capítulos, os autores mostram que o desemprego é promovido por políticas econômicas de Estado de modo intencional, afirmação sustentada por argumentação teórica de autores da área econômica, como Karl Polanyi, que expõe as raízes da economia de mercado. O autor afirma que na origem do mercado, com a formação das cidades, o sistema econômico era absorvido pelo sistema social, ou seja, o Estado estava a serviço da sociedade, dos seres humanos. A expectativa de obtenção do máximo de ganho monetário cria um tipo de economia baseado na ideia de autorregulação, fundamento do liberalismo. Se o mercado não for inibido por nada (e a política necessita garantir isso), ele se expande de forma a contemplar os interesses de todos. Todavia, não tardou para a política passar a se incluir à economia, que, por sua vez, se tornou política e deixou de se voltar ao bem-estar dos seres vivos. Ao contrário de sofrer a suposta redução, o Estado tornou-se apenas flexível aos interesses do mercado, e a economia passou a ditar o modo como a organização humana deve ocorrer para garantir seu desenvolvimento, o que não atende necessariamente aos seres vivos.

A sociedade subordina-se às exigências do mercado, o que também obriga o trabalhador a sujeitar-se à economia, tornando-o mercadoria, que pode ser usada ou não de acordo com a necessidade do mercado para garantir sua regulação. A lógica do mercado se tornou a ficção que vem dirigindo as vidas humanas.

Em um contexto em que não há mais para onde crescerem os mercados, a força de trabalho que se tornou mercadoria depende da flexibilização da regulação do trabalho, golpeando a balança que busca equilíbrio entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. Como garantir emprego em ambiente de grande competitividade é uma questão que o mercado se exime de responder. As políticas públicas, que deveriam corrigir as desigualdades sociais, como a inexistência de trabalho para todos, são vistas como obstáculos para o mercado crescer, quando, na verdade, ele é o causador de desequilíbrios sociais, visto que sua lógica não apenas se desprende dos interesses humanos, mas também os submete ao seu domínio cego.

Os autores se interessam em saber onde os desempregados se encaixam nessa sociedade baseada na desigualdade. É forte a ideologia de que a responsabilidade pela vida profissional é apenas individual. Os trabalhadores são convencidos disso e adoecem culpados por seu destino nesse âmbito, vítimas de um sistema irracional, ou baseado na racionalidade da dominação. Além de atentarem para essa questão, os autores buscam entender como ser desempregado no Brasil funciona como um elemento identitário. Ressaltam as implicações éticas do sujeito sem fazê-lo vítima ou mero apêndice da sociedade, mas resultado de múltiplas realidades culturais. O objetivo dos autores é formar, com todos esses elementos, um contexto de escuta e reflexão sobre a situação que os desempregados atravessam. Nesse sentido, a moral familiar e a do grupo, somada às imposições da indústria cultural, não são desprezadas, mas entendidas como parte da cultura que atinge o sujeito e o afeta na realidade de algum modo.

Os autores defendem que o trabalho é o elemento que faz a ligação da vida psíquica com a realidade política, econômica e social e, portanto, fundamento para a vida familiar e social do sujeito. Entender a importância dessas relações, bem como os efeitos de seus rompimentos, é fundamental para escutar e entender o sofrimento psíquico envolvido na condição de desempregado, conhecimento que será importante para todo profissional de saúde pensar estratégias de intervenção.

 

Referência

Mandelbaum, B., & Ribeiro, M. (2017). Desemprego: uma abordagem psicossocial. São Paulo: Blucher. 120p.         [ Links ]

 

 

Recebida em: 16/09/2018
Aceita em: 26/11/2018

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