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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

On-line version ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.19 no.3 Brasília July/Sept. 2019

http://dx.doi.org/10.17652/rpot/2019.3.13214 

A profissão do policial militar: vivências de prazer e sofrimento no trabalho

 

Police Officer Profession: experiences of pleasure and suffering at work

 

La profesión del policía militar: vivencias de placer y sufrimiento en el trabajo

 

 

Lilian Ester WinterI, Alexandra Machado AlfII

IFaculdade Integrada de Santa Maria - FISMA, Santa Maria, Brasil
IISociedade Educacional Três de Maio - SETREM, Três de Maio, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo contempla pesquisa realizada com profissionais da Polícia Militar lotados no interior do Estado Rio Grande do Sul, no ano de 2016, com abordagem da Psicodinâmica do Trabalho. Foram investigados fatores que determinam vivências de prazer e sofrimento no cotidiano de trabalho. Este estudo avaliou dez profissionais, por meio de questionário sociodemográfico e entrevista semiestruturada. Os discursos foram analisados por meio da análise de conteúdo. Os resultados indicam que o trabalho desses profissionais é gerador tanto de prazer como de sofrimento. O fardamento desconfortável e o descontentamento com o quadro de funcionários são causas de sofrimento, já os sentimentos de prazer são apontados pela autonomia no atendimento às ocorrências. Desta forma, foram identificadas estratégias de defesas utilizadas pelos policiais militares para amenizar o sofrimento ocasionado pelo trabalho, destacando-se: a resiliência, a sublimação e a não verbalização do sofrimento, sustentado pelo recurso simbólico da virilidade reforçada pela cultura gaúcha.

Palavras-chaves: Policiais militares; Prazer: Sofrimento; Trabalho.


ABSTRACT

This article examines research conducted with Military Police professionals in a remote area of Rio Grande do Sul State, in the year 2016. Based on the theory of Psychodynamics of Work, some factors that create experiences of pleasure and suffering in the daily work of the Military Police were investigated. This study evaluated ten professionals, using a sociodemographic questionnaire and an individual semi-structured interview. The discourse was analyzed using content analysis. The results showed that Military Police work creates both pleasure and suffering. The uncomfortable uniform and the discontent with employees' situations were linked with suffering, while the feelings of pleasure were indicated for the opportunity to work with autonomy in responding to incidents. Thus, some defense strategies used by the Military Police to ease the suffering at work were identified, highlighting: resilience, sublimation, and nonverbalization of suffering, supported by the virility reinforced by the gaucho culture.

Keywords: Policemen; Pleasure; Suffering; Labor.


RESUMEN

Este artículo comprende una investigación realizada con profesionales de la Policía Militar en el interior de Río Grande del Sur, en el año 2016, con abordaje teórico de la Psicodinámica del Trabajo. Se investigaron factores que determinan vivencias de placer y sufrimiento en su trabajo diario. En estudio fue evaluado diez profesionales con un cuestionario sociodemográfico y una entrevista semiestructurada, cuyos discursos fueron analizados por medio del análisis de contenido. Los resultados revelaron que el trabajo genera tanto placer como sufrimiento. El uniforme incómodo y lo desagrado con el cuerpo de funcionarios causan sufrimiento, ya los sentimientos de placer se apuntan con la posibilidad del policía actuar con autonomía. Así, se identificaron estrategias de defesas utilizadas para ablandar el sufrimiento, en que se destacan: el elasticidad, la sublimación y la no verbalización del sufrimiento sostenida por la función simbólica de la virilidade y reforzado por la cultura gaucha.

Palabras-clave: Policiales Militares; Placer; Sufrimiento; Trabajo.


 

 

O policial militar desempenha uma importante função na sociedade, é ele quem zela pela segurança e bem-estar de todos os cidadãos, podendo ser considerado o representante da lei que se mantem mais próximo da comunidade. Ao policial compete oferecer segurança e ordem, de um lado, por inibir os atentados à ordem social; de outro, por propiciar aos cidadãos a liberdade, para os que vivem em conformidade com os princípios da lei.

A Polícia Militar do Rio Grande do Sul passou por uma série de transformações decorrentes da evolução socioeconômica e política do Estado. Recebeu diversas denominações, tais como Força Policial, Corpo Policial, Guarda Cívica, Brigada Policial, até que, em outubro de 1892, passou a se chamar Brigada Militar, denominação utilizada somente no Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, a Instituição conta com cerca de 26.000 homens e mulheres em seu quadro de servidores, constituindo a maior instituição pública do Estado, com mais de 170 anos de história (Brigada Militar Rio Grande do Sul, 2016; Ribeiro, 2011).

Os integrantes da Brigada Militar são servidores militares e estão regulados nos artigos 46, 47 e 48 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 3 de outubro de 1989. A Brigada Militar foi instituída para a preservação da ordem pública no Estado e é considerada força auxiliar para o Exército Brasileiro, sendo uma Instituição permanente, organizada com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Governador do Estado (Lei Complementar RS 10.990, de 1997).

Atualmente, com o crescente índice de violência e criminalidade no País, há o fomento de pesquisas no campo da segurança pública com foco no trabalho do policial militar, considerando sua exposição diária a situações de risco e o contexto profissional ao qual estão inseridos (Ferreira, 2009). Os estudos evidenciam os policiais militares como um dos profissionais mais vulneráveis a acidentes, agressões e mortes no exercício de sua função (Souza & Minayo, 2005; Souza, Franco, Meireles, Ferreira, & Santos, 2007). Em nível internacional, pode-se encontrar estudos que investigam o trabalho do policial associado a patologias, como estresse ocupacional, disfunções físicas, transtornos mentais e até mesmo suicídio (Hartley, Knox, Fekedulegn, Barbosa-Leiker, Violanti, Andrew & Burchfiel, 2012; Who, 2010; Stuart, 2008). No Brasil, levando em consideração os inúmeros batalhões de polícia existentes, ainda há um número reduzido de pesquisas que procuram investigar a relação sujeito-trabalho desses profissionais.

Destacam-se autores como Machado, Traesel, e Merlo (2015) e Spode e Merlo (2006), que estudam essa categoria pelo viés da psicodinâmica do trabalho. Suas pesquisas apontam que os policiais estão expostos a um alto nível de tensão, visto que a constante violência a que estão submetidos, somada à organização da atividade, tempos e ritmos instáveis, exigem dos profissionais um estado de vigilância contínuo, próprio desse segmento. Esta organização do trabalho acaba demandando comprometimento físico e psicológico muito grande, o que pode influenciar diretamente na saúde física e psicológica desses trabalhadores.

Além disso, salienta-se que as relações sociais desse grupo profissional estão pautadas em círculos e níveis hierárquicos, condicionando os trabalhadores ao cumprimento estrito da ordem de um superior, havendo pouca mobilidade para tomar decisões (Oliveira & Santos, 2010). Essa estrutura engessada característica das instituições militares, bem como a natureza da atividade policial, revelam uma categoria com índices de estresse superiores a outros profissionais (Souza, Minayo, Silva, & Pires, 2012).

Outra particularidade a ser mencionada é a falta de reconhecimento social e o preconceito da população sobre esse segmento profissional, o que justifica a escassa literatura sobre o tema. Esse preconceito pode ser considerado algo naturalizado na sociedade, possivelmente originado no período da Ditadura Militar no Brasil, quando a figura do policial era associada ao abuso de autoridade e uso excessivo (Ferreira, 2009; Souza & Minayo, 2005).

Autores como Holloway (1997), Mesquita Neto (1999) e Souza e Minayo (2005) afirmam que a desconfiança da população em relação aos militares permanece até hoje. A classe média alta frequentemente critica a segurança pública por sentir-se prejudicada pela ineficiência do combate à criminalidade, enquanto os moradores de áreas periféricas e violentas, julgam a conduta policial como duvidosa e, por vezes, discriminatória (L. A. M. Silva & Leite, 2007; Souza & Minayo, 2005). A atuação do policial militar, frequentemente em evidência pela mídia, deixa uma lacuna não conhecida pela sociedade: a do policial trabalhador, cuja função é conter a violência, mas que, ao mesmo tempo, corre o risco de reproduzi-la para manter a ordem (Spode & Merlo, 2006).

A constante exposição ao perigo inerente ao exercício do policial, somada à violência que permeia a sociedade, ocasionam sentimentos como medo de ser agredido, ou até morto no desempenho de sua função, e de ser reconhecido como agente de segurança mesmo em seu horário de descanso e na companhia da família (Minayo, Souza, & Constantino, 2008). Todos os dias, o policial militar coloca sua vida em rrisco em favor da vida do outro (Souza et al., 2012). Desse modo, a morte acaba sendo realidade no cotidiano desse profissional, que precisa estar preparado para enfrentá-la a qualquer momento, seja no horário de trabalho ou fora dele (Oliveira & Santos, 2010).

No entanto, é notório que esses profissionais passam por formações específicas para se tornarem policiais, participam de cursos e treinamentos em que se especializam no combate à criminalidade e se apropriam da cultura militar. Nesses momentos, também reafirmam-se ideais como a virilidade, a força, a rudeza, a superação e a coragem, atributos que compõem o enredo cultural e histórico do militar (França & Gomes, 2015). Sobretudo na cultura gaúcha, esse estereótipo machista ganha ainda mais destaque, pois valores como "povo guerreiro, orgulhoso, viril e bravo" (estão presentes....) estão presentes no imaginário regional. A identidade do sujeito gaúcho se caracteriza por sempre estar disposto para batalha e nunca fugir de suas obrigações (Henriques & Lisboa Filho, 2015; Lisboa Filho, 2009). Essas características intrínsecas do universo militar, acrescidas do estereótipo e cultura gaúcha, exigem ainda mais dos policiais lotados nesta região do país.

De fato, não é difícil identificar que se trata de uma categoria profissional bastante vulnerável à produção de sofrimento psíquico e que merece atenção, não só da academia, mas também da sociedade. Mediante a busca de estudos realizados, observou-se que existem pesquisas com profissionais da Policia Militar (Ferreira, 2009; Machado et al., 2015; Oliveira & Santos, 2010; Souza & Minayo, 2005; Souza et al, 2012; Spode & Merlo, 2006); porém, ainda são escassas as que investigam a relação sujeito-trabalho a partir da psicodinâmica do trabalho. Assim, almeja-se que este estudo possa contribuir para uma reflexão sobre o policial militar e seu contexto de trabalho, considerando a sua influência na saúde psíquica dos policiais. A seguir, serão apresentados os procedimentos metodológicos que guiaram o estudo.

 

Método

Tipo de Estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que busca compreender as questões a partir das narrativas dos sujeitos. O referencial teórico que sustenta o estudo está pautado na psicodinâmica do trabalho, teoria que estuda a relação sujeito-trabalho desde a década de 80, usando como base os fundamentos da Psicanálise, da Ergonomia e da Sociologia do trabalho (Merlo, 2002; Merlo & Mendes, 2009). Quanto aos procedimentos, realizou-se um estudo de caso múltiplo com foco em um grupo de policiais militares, objetivando conhecer a sua realidade profissional e sua influência para vivências de prazer-sofrimento no trabalho (Yin, 2015).

Local de Estudo

A coleta de dados ocorreu no período de fevereiro e março de 2016, em uma corporação da Polícia Militar, no interior do Estado do Rio Grande do Sul.

Participantes

A população do estudo foi composta por dez profissionais da Brigada Militar, lotados em um município localizado no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. A seleção dos participantes ocorreu de forma voluntária, partindo do interesse do profissional em participar do estudo.

Na tabela 1, pode-se constatar que os sujeitos da pesquisa são 90% do gênero masculino e 10% do gênero feminino. A faixa etária que compõe a amostra concentra-se entre 28 e 59 anos de idade. Quanto ao estado civil dos participantes, 90% são casados e 10% solteiros, sendo que 100% da amostra possui filhos. O grau de escolaridade varia entre ensino médio e ensino superior completo, sendo que, da amostra, 30% possui ensino superior completo, 20% ensino superior incompleto e 50% possui o ensino médio completo. O tempo de serviço dos participantes apresenta alternância entre menos de 10 anos de serviço até 32 anos, sendo que, destes, 20% têm até 10 anos de serviço, 40% têm até 20 anos, 30% têm até 30 anos e 10% até 32 anos de atividade laboral. Em relação às patentes dos militares, 20% ocupam o posto de tenente, 50% de sargento e 30% de soldado.

Instrumentos

Os instrumentos utilizados como técnica de coleta de dados foram: um questionário sociodemográfico, que possibilitou a caracterização do perfil dos entrevistados, e uma entrevista semiestruturada, com questões abertas, que teve como prioridade a escuta do trabalhador. O roteiro das questões foi elaborado a partir de revisão de literatura na área, considerando aspectos do contexto de trabalho, cooperação, espaço de discussão, autonomia no trabalho e dinâmica prazer-sofrimento.

Procedimento de Coleta de Dados e Cuidados Éticos

Para a realização da pesquisa, contatou-se com a corporação da Brigada Militar do município no qual foi apresentado o projeto de pesquisa ao responsável pela Corporação, que concordou com a realização do estudo. Da mesma forma, a proposta foi apresentada para os demais integrantes do Batalhão, sendo neste momento identificados os profissionais com interesse em participar do estudo.

Previamente, foi realizada a busca por um local sigiloso e reservado para realização das entrevistas, que que ocorreram individualmente conforme disponibilidade de cada profissional. Embora a psicodinâmica do trabalho preconize que o levantamento de informações ocorra em pequenos grupos (espaços de discussão), a realização de entrevistas individuais se justifica pelas especificidades do público-alvo, como a preservação da identidade dos sujeitos (Mendes, 2007).

Os participantes receberam esclarecimentos acerca do caráter acadêmico da pesquisa, realizando a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, do qual mantiveram uma cópia para si. A coleta de dados foi realizada em março de 2016. Todas as entrevistas foram gravadas, tendo duração média de 30 minutos cada, e posteriormente foram transcritas na íntegra.

Todos os cuidados éticos foram tomados, estando este estudo respaldado pelas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde 466, de 2012, e 510, de 2016, que regulamentam, respectivamente, as questões éticas com pesquisas envolvendo seres humanos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Passo Fundo, através do Parecer 1.390.693.

Procedimento de Análise dos Dados

Os dados coletados nas entrevistas foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo categorial temática. Desse modo, após a transcrição das entrevistas, foi realizada uma pré-análise do material, bem como a codificação e sistematização dos dados em categorias, ou seja, o processamento dos dados em estado bruto para possível compreensão e interpretação (Bardin, 2011).

Neste estudo, foram estabelecidas duas unidades de análise, selecionadas previamente a partir do roteiro de entrevista utilizado: a primeira, denominada Categoria Contexto de Trabalho, que contempla as subcategorias: Relações Socioprofissionais e Hierarquia; Condições de Trabalho: Equipamentos, Fardamentos e Trabalhadores; e a segunda categoria Prazer e Sofrimento no Trabalho, com três subcategorias: Autonomia no Atendimento às Ocorrências, Espaço de Discussão e Cooperação, Sofrimento e Estratégias Defensivas.

 

Resultados e Discussão

A análise dos resultados está embasada na teoria da psicodinâmica do trabalho, sob a díade prazer-sofrimento. A apresentação dos resultados será iniciada com reflexões acerca da Categoria Contexto de Trabalho, seguida da segunda Categoria Prazer e Sofrimento no Trabalho e suas subdivisões. Para sustentar a análise realizada, foram utilizados trechos emblemáticos narrados pelos participantes, identificados por códigos para preservar a identidade.

 

Categoria Contexto de Trabalho

Relações Socioprofissionais e Hierarquia

As Relações Socioprofissionais (RS) compreendem uma dimensão social, como a interação e o relacionamento socioprofissional no locus de trabalho. Compõem essa categoria as interações hierárquicas, entre chefias e empregados, a interação dos grupos e as interações externas ao ambiente de produção (Mendes & Ferreira, 2008).

Em relação à interação entre os diferentes níveis hierárquicos, os participantes relatam não existir dificuldade no relacionamento com os colegas e superiores. Pode ser constatado também que muitos participantes consideram a hierarquia uma possibilidade de crescimento dentro da profissão, o que pode servir como estímulo para o profissional; outros mencionam a hierarquia como algo necessário e fundamental para o funcionamento da Instituição, o que é relatado nas falas a seguir:

Não tenho atrito com ninguém, me dou muito bem com todos eles, gosto de trabalhar com todos eles, é boa a relação. E com a chefia também, com a chefia da mesma forma. Eu acho que a hierarquia é bom, eu gosto, todos tem que ter hierarquia até em uma empresa particular, se não tiver não vai funcionar né, eu gosto. Para mim é tranquilo (E7);

Em relação a hierarquia não tenho dificuldades, nem problema nenhum, se é superior é superior, eu vejo a hierarquia como uma escala de crescimento (E1).

Em relação à questão da hierarquia, cabe ressaltar que a Brigada Militar segue o regime militar hierárquico, sendo este classificado por graduações, ou seja, nível de responsabilidade e qualificação profissional. Assim, constatou-se como característico da Instituição uma cadeia de comando conservadora e rígida, estabelecendo unidades de comando demarcadas, determinando a qual autoridade cada subordinado deve-se dirigir (Leiner, 1997; Silva & Vieira, 2008). No entanto, dois entrevistados manifestaram desconforto e mal-estar que muitas vezes essa diferenciação hierárquica pode promover, pois, associada a ela, vem a ausência de diálogo e troca de ideias, dificultando a abertura de um espaço de trabalho mais cooperativo. Segue a narrativa dos entrevistados:

Tu não consegue expor a tua opinião e nem fazer com que teu superior tente enxergar de outra maneira, você tem que cumprir o que ele ta dizendo porque você pode ser punido. É claro que alguns superiores abrem esse espaço para o subordinado, mas tem alguns que cumprem à risca e estes são a maioria (E3);

A questão da hierarquia desde curso a gente aprende, desde curso, tem certas coisas que tu tem autonomia, por isso né tu vive no mundo militar, tem coisas que pode ser contrário a tua forma de pensar, mas se teu superior disse que tem que agir daquela forma, tem que agir (E5).

A partir da análise das falas é possível identificar que as decisões centralizadas ocasionam insatisfação em alguns policiais, tanto pela falta de espaço de discussão quanto pela im-possibilidade do uso da inteligência prática. As decisões são tomadas pelos superiores hierárquicos e todos os que se encontram abaixo desta posição; simplesmente cumprem as ordens, estabelecendo distância entre quem dá as ordens e quem as cumpre (Mendes & Araújo, 2012).

Neste estudo, cabe advertir que as falas que relatam desconforto com a hierarquia e sua interferência direta nas relações socioprofissionais são de patentes e postos da base da escala hierárquica. Esses entrevistados ocupam um lugar de execução e não de comando, o que os coloca em posição de obediência, não tendo espaço e nem voz para confrontar o prescrito. Leirner (1997) enfatiza que essa relação perpassa a cadeia de comando, ou seja, mesmo fora do trabalho os militares estão submetidos a padrões preestabelecidos de comportamento. Em arrimo a essa constatação, serão mencionadas a seguir as condições de trabalho às quais os profissionais são expostos.

Condições de trabalho: equipamentos, fardamento e trabalhadores

A categoria Condições de Trabalho (CT) tem como foco os elementos básicos estruturais para o trabalho como ambiente de produção, infraestrutura e apoio organizacional. Os fatores analisados são o ambiente físico, os instrumentos e equipamentos disponíveis para a realização da tarefa, a matéria-prima e o suporte fornecido pela Instituição (Mendes & Ferreira, 2008).

Ao serem questionados sobre as condições de trabalho aos quais são submetidos, os participantes afirmaram que, em relação aos equipamentos disponíveis para o desempenho das atividades, estão bem amparados. Foi por meio do apoio e da assistência da Comunidade que os policias conquistaram melhorias para seu cotidiano de trabalho. Como segue nas narrativas:

Nosso contexto de trabalho hoje melhorou bastante em relação a equipamentos, armamentos e proteção individual nós estamos muito bem (E1);

De material está melhor com certeza, desde equipamento, colete, arma cada um tem a sua, e viatura também está bem melhor (E10).

Outro aspecto importante ressaltado pelos policiais foi a insatisfação em relação ao uniforme de trabalho, ou seja, seu fardamento, sendo este um aspecto que interfere de forma negativa no desempenho das atividades habituais, como pode ser visto nas falas a seguir:

No verão é muito quente, nossa farda não teve uma evolução, nossa farda eu uso o mesmo tecido há praticamente 27 anos, então a gente passa muito calor e no inverno passa frio porque é uma coisa que não esquenta (...) Se você quer um conforto melhor no fardamento você tem que tirar do bolso, no fim a Brigada gasta e eu gasto (E2);

Até teriam que rever esse nosso fardamento por que chega a ser desumano num calor desse e a gente trabalhando dessa forma, acaba que a gente fica sem ânimo de trabalhar (E5).

Estas falas ilustram a importância de desvelar aspectos que passam desapercebidos pelo Estado, que é o órgão responsável. O fardamento inapropriado um fator desfavorável às atividades laborais, interferindo, inclusive, no ânimo dos policiais, como mencionado em uma das narrativas. Este aspecto faz compreender que o trabalho do policial militar tem nuances que, muitas vezes, não são vistas e nem consideradas na prática cotidiana do policial militar e que interferem em sua motivação para desempenhar seu trabalho.

No que se refere ao quadro de funcionários, ou seja, trabalhadores disponíveis, há evidências de descontentamento. Os policiais se referem ao número reduzido de funcionários como sendo o principal problema existente no momento, o que sobrecarrega os profissionais que estão disponíveis e prejudica a qualidade do serviço prestado à Comunidade.

O nosso problema de hoje que a gente tem enfrentado é material humano (E1);

Falta efetivo, número baixo de funcionários o que prejudica desenvolver um bom trabalho (E3);

(...) certas atitudes que você deveria tomar que seria a correta, você acaba não tomando por que está em menor número, até por que se é para tu apanhar em uma ocorrência é melhor tu recuar, recuar momentaneamente e chamar um reforço de fora (E5).

Quanto ao contexto de trabalho do policial militar, deve-se destacar que a Brigada Militar é uma Instituição com mais de 170 anos de existência e que possui normas e regulamentos específicos, pautados no modelo militar e permeados por uma cultura que determina seu funcionamento. Esse modelo de gestão burocrático pode ocasionar desconforto entre os trabalhadores por não concordarem (ou estarem insatisfeitos) com determinados aspectos do trabalho e não possuírem viabilidade de manifestação. Segundo M. B. Silva & Vieira (2008) a dicotomia entre o pensar e o executar pode contribuir para ações arbitrarias e para o desconforto no contexto de trabalho.

 

Categoria Prazer e Sofrimento no Trabalho

Autonomia no atendimento às ocorrências

Para Dejours (2007) os espaços coletivos de fala, a possibilidade de agir com autonomia frente às dificuldades encontradas no real do trabalho, assim como o uso da inteligência prática para completar as tarefas permitem ao trabalhador o sentimento de prazer no trabalho. Questionados se possuem autonomia no desempenho de suas atividades, os entrevistados responderam que possuem autonomia para tomar decisões e conduzir situações, no atendimento às ocorrências ou na prática do policiamento ostensivo, quando não dispõem de tempo para consultar seus superiores. Como pode ser identificado nas falas abaixo:

Tenho autonomia, nós temos os nossos superiores como qualquer outra condição, porém quando você está na rua você passa por cima deles muitas vezes, tem que passar por que as decisões são tomadas muito rápido (E3);

Sim, nas ocorrências, o que está dentro da lei a gente tem autonomia para fazer sem nenhum tipo de restrição. Tu chega e resolve (E10).

As narrativas ilustram que o contexto de trabalho dos policiais é feito de imprevistos e pode ser considerado uma "caixinha de surpresas"; isso exige que esse profissional esteja preparado para enfrentar as mais diversas situações, devendo conhecer as normativas legais e os procedimentos prescritos a serem seguidos (Spode & Merlo, 2006). Entretanto, é indispensável que o policial militar possua autonomia na sua prática de trabalho, pois, diariamente, enfrenta situações inesperadas e não previstas pela organização. Como pode ser observado na fala do participante E10 e E8:

Todo dia que a gente começa a trabalhar a gente não sabe o que vai ser o serviço, se vai dar acidente, se vai dar roubo, furto, briga, como é, de que jeito é, sempre diferente, todo dia é diferente isso que é o melhor do trabalho, nunca vai ser igual de um dia para o outro, as vezes não dá nada, as vezes dá um monte de problema (E10)

Deste modo, pode-se constatar que cada dia de trabalho é diferente, assim como todas as ocorrências são distintas, não podendo estas serem solucionadas somente a partir dos procedimentos prescritos. A autonomia permite ao policial acessar suas experiências passadas para solucionar os imprevistos do real do trabalho nas ocorrências das ruas, possibilitando a mobilização da inteligência prática, atribuindo sentido ao trabalho e gerando prazer (Lancman & Sznelman, 2011).

Entretanto, para ser reconhecido, o trabalhador precisa compartilhar seus segredos no coletivo de trabalho, transformando sua inteligência prática em sabedoria prática, através dos espaços de fala (Dejours, 2007; Vasconcelos, 2013).

Espaço de discussão e cooperação

É através dos espaços coletivos que os trabalhadores realizam as trocas de informações, tornam visível o oculto, compreendendo os investimentos pessoais empregados na realização de cada tarefa, possibilitando ao trabalhador se colocar no lugar do outro. Esses espaços são perfeitos para a expressão da fala e do sofrimento (Mendes & Araújo, 2012). Dessa forma, na Instituição estudada, identificou-se a existência de espaço de fala formal e informal, como pode ser verificado nas falas dos entrevistados a seguir:

Normalmente sim, no início do serviço e no término do serviço, e até mesmo na viatura mesmo a gente conversa sobre as ocorrências troca informações. E também, tem as instruções mensais que a gente se reúne, é na realidade é dado espaço de fala, mas nem todo mundo fala, é mais na informalidade que o pessoal fala, mas assim quando é um momento formal nessas reuniões mensais o pessoal não fala muito (E5)

Frente ao exposto, é possível constatar que existe um espaço de fala formal organizado pela Instituição, no qual os policiais têm a possibilidade de falar e de refletir sobre situações de seu cotidiano de trabalho. Entretanto, pode-se perceber que nesse espaço formal os policiais se mantêm mais retraídos, optando por realizarem suas trocas nos momentos informais, legitimados pelo coletivo.

Depois da ocorrência a gente conversa entre a gente, analisa a situação, vê o que que foi, o que aconteceu, o que pode ter acontecido, a gente conversa mais ou menos tenta deduzir com a experiência e tenta juntar as peças (E10);

Nas preleções que é na troca dos turnos de serviço, o pessoal senta, se reúne a gente faz uma meia hora de chimarrão e conversa um pouco, e ali acontece as trocas de informações (E5).

De acordo com Gernet e Dejours (2011), Ghizoni (2013) e Mendes (1995), o espaço público de fala deve ser construído pelos próprios trabalhadores, não sendo prescrito; deve ser natural e espontâneo, pautado na confiança, promovendo a cooperação e a construção das regras comuns. Os policiais, em suas narrativas, revelam que as trocas, as dúvidas e as possibilidades de realização do real do trabalho acontecem em espaços legitimados por eles e não pela Instituição, ocorrendo sempre em espaços informais oportunizados pelo coletivo de trabalhadores.

A cooperação é outro aspecto importante a ser investigado e está diretamente ligada à existência dos espaços de discussão que viabilizam as práticas do trabalho real. Também está vinculada à interdependência dos artifícios de cada trabalhador, como a engenhosidade e a inteligência astuciosa na busca de um objetivo comum, fundamentados na confiança e na solidariedade (Dejours, 2011 citado em Ghizoni, 2013).

Nos depoimentos, os policiais demonstram a interdependência e a relação de confiança que se instaura entre os policiais militares, na tentativa de juntos, solucionarem os imprevistos que enfrentam diariamente em seu cotidiano de trabalho:

A gente se adapta, as vezes a gente tem segundos para resolver, é transmitido a ocorrência para nós e a gente tem segundos para resolver. As vezes tem só dois ou três de serviço e nem tem como se planejar muito, a gente conversa o que vamos fazer, vai ser assim e as vezes nem dá tempo de conversar e ver o que fazer, é automático, cada um já sabe mais ou menos o que faz né. A gente trabalha sempre com colegas diferentes, mas a gente sabe o jeito de trabalhar de cada um (E10).

No trabalho do policial militar, a cooperação aparece como fundamental, sendo que conhecer o colega revigora as relações socioprofissionais que são fonte de prazer e fortalecimento desse trabalhador (Ghizoni, 2013; Martins & Mendes, 2012). Fazendo uso da cooperação é possível minimizar erros e falhas, tornando o desempenho coletivo mais eficaz do que a soma dos desempenhos individuais. Os coletivos de trabalho constituem espaços de resistência para o sujeito, combatem a individualização e a servidão, permitindo ao sofrimento destinos menos patológicos.

Sofrimento e estratégias defensivas

Neste tema, estão presentes as questões referentes às estratégias de defesa utilizadas pelos policiais militares. As estratégias defensivas são dispositivos utilizados pelos trabalhadores, de modo individual ou coletivo, para amenizar o sofrimento ocasionado pelo trabalho (Dejours, 1992; Mendes, 2007; Moraes, 2013). Neste estudo, pode-se observar a sublimação e a resiliência como formas de "proteção" frente às situações mobilizadoras enfrentadas no cotidiano de trabalho:

Tu pega uma criança quebrada em um acidente, ou um indivíduo com tiro na cabeça sei lá, várias situações, colegas feridos que é uma coisa que mexe muito com a pessoa (...) na hora a gente fica meio atônico, e tem que parar um pouco sair daquilo ali para ver o que faz né, tudo muito rápido, são situações que levam a gente ao extremo né, mas tem que tentar na hora ver o que se faz de melhor, e não meter os pés pelas mãos (E8).

Por meio da narrativa pode-se constatar que a sublimação se faz presente, pois o policial canaliza seus impulsos para cumprir as exigências da realidade da profissão, como tomar decisões e prestar socorro em situações em que a vida de pessoas está em risco. Além disso, identificou-se a resiliência como estratégia do ego, que se manifesta quando os policiais mencionam as adversidades do trabalho, características da profissão, sendo esta uma defesa importante para proteger a integridade do mesmo. O relato do participante E5 evidencia esse aspecto:

Às vezes tu fica até assustado, mas tu tem que dar um jeito de resolver aquilo ali né, tu é o responsável por aquilo ali, tu é responsável pela segurança pública, e tu tem que dar um jeito de resolver né, engole seco e vai (E5).

Na Brigada Militar, ainda se constatou a instauração do silêncio como estratégia defensiva coletiva. As estratégias defensivas coletivas representam acordos firmados no coletivo de trabalho, que podem ser consideradas mais eficazes que as estratégias de defesa individuais, já que se fundamentam na força do coletivo de trabalho (Mendes, 2007; Moraes 2013). Os entrevistados discorrem:

(...) quando acontece essas coisas não é discutido nem conversado, não a nível de trabalho, as vezes só a nível familiar. Não acontece porque é até uma cultura do policial militar, não discutimos essas situações, atendemos a ocorrências e evitamos os pensamentos, é o que me parece (E1);

Tu se abala, claro que tu se abala, mas a instituição nos cobra assim, não é que nos cobra, mas é uma mentalidade assim que a gente tem né, que tu tem que ser durão que tu não pode deixar transparecer (E5).

Assim, percebe-se que, por serem representantes da ordem e da lei, os policiais precisam sustentar uma postura viril, rígida e até mesmo inabalável. Principalmente na cultura gaúcha, essas características machistas intrínsecas ao universo militar, ganham ainda mais destaque (França & Gomes, 2015; Henriques & Lisboa Filho, 2014). Com isso, não é permitido falar nem mesmo expressar medos e desconfortos, não há válvula de escape para as angústias, e isso repercute diretamente na saúde mental do trabalhador. Nesse sentido, no momento em que um dos policias manifesta seus medos e desconfortos, viola a estratégia coletiva e, em consequência, não é bem visto pelo grupo (Moraes, 2013; Gernet, 2012; Rego, 2013), sendo rechaçado ou deixado de ser bem conceituado pelo coletivo, como constatado na fala do participante E5:

Teve um colega nosso que até apresentou né atestado médico e foi para a psiquiatra e ficou alguns dias afastado, mas não é encarado assim com bons olhos né, porque se têm essa mentalidade que tu tem que ser durão, que tu não pode mostrar, demostrar o que tu sente (...) Esse colega que apresentou o atestado médico não foi visto com bons olhos assim né, porque ficou alguns dias afastado do serviço, não só por parte da instituição, mas também por parte dos colegas. E até tipo assim, tem aquela visão de "haa... pegou atestado para ficar em casa "sabe "moitiando" como a gente diz, como se aquilo não fosse nada (E5).

A resposta do coletivo à fragilidade e a outros comportamentos fora do padrão acordado que desencadeiam adoecimento está na contramão do ideal militar e da cultura gaúcha regional que enaltecem o machismo e a virilidade. A banalização do sofrimento do outro, a falta de reconhecimento das necessidades e da dor estão presentes no universo militar para enaltecer as habilidades e ignorar os riscos e o sofrimento psíquico advindo da organização do trabalho (Rego, 2013).

De acordo com Dejours (1992), o desenvolvimento de estratégias de defesa pode ser considerado positivo, já que tem como função principal proteger o trabalhador do sofrimento originado pelo trabalho, possibilitando uma relativa estabilidade psíquica, evitando o adoecimento. Entretanto, as mesmas estratégias podem também ser negativas, na medida em que alienam o sujeito, paralisam-no, não permitindo a mobilização subjetiva. Desse modo, verificou-se, a partir das entrevistas realizadas, que os policiais utilizam diversas estratégias defensivas individuais e coletivas para manter seu equilíbrio psíquico, evitando que tomem consciência de seu próprio sofrimento.

A pesquisa aponta aspectos fundantes da Brigada Militar que continuam vigentes e intactos, depois de mais 170 de anos de existência. Entre eles se destacam a disciplina e a hierarquia que norteiam as relações socioprofissionais. Nesse contexto, a subordinação e o atendimento expresso a ordens são uma das marcas presentes, que, na sua maioria, não são questionadas e nem tão pouco contestadas, causando muitas vezes mal-estar entre as patentes subordinadas. Esta característica revela uma cisão entre quem dá ordens e quem as cumpre, o que pode ser considerado um obstáculo para um trabalho mais cooperativo e um impeditivo para a autonomia do policial. Contudo, observou-se a existência de espaços de fala legitimados pelos próprios policiais, como na troca dos plantões e dentro das viaturas, possibilitando o estreitamento de vínculos e fortalecimento do coletivo. Nas atividades externas que envolvem o trabalho de policiamento na rua, mostraram-se fundamentais a confiança e a cooperação entre os trabalhadores, assim legitimados nos espaços de discussão e relacionamento, ocasionando o fortalecimento dos vínculos e relações pautadas na confiança e autenticidade, sendo um fator de prazer no trabalho (Gernet & Dejours, 2011; Mendes, 1995; Mendes & Araújo, 2012; Mendes & Ferreira, 2008).

Cabe ressaltar que, nas atividades de policiamento ostensivo e no atendimento às ocorrências, ou seja, situações em que o prescrito não contempla o real do trabalho, o policial possui autonomia e pode fazer uso de sua inteligência prática para concretizar suas tarefas. Desse modo, o trabalho externo, na rua, pode ser caracterizado como fonte de prazer e reconhecimento, tanto entre pares, como dos superiores e da própria comunidade (Judge, Robbins, & Sobral, 2010; Mendes & Araújo, 2012). Portanto, o aspecto do processo decisório centralizado restringe o profissional ao cumprimento estrito de ordens quando determinado; no entanto as atividades externas proporcionam uma maior autonomia em sua atuação.

Nas falas dos participantes, é relevante mencionar sobre a estratégia de defesa coletiva utilizada pelos trabalhadores para evitar o adoecimento. O acordo em relação ao silêncio e o recurso simbólico de virilidade relacionam-se a um discurso muitas vezes subliminar vinculado à Brigada Militar como lugar de força e poder somando ao estereótipo machista reforçado pela cultura gaúcha. Por consequência, quem faz parte da Instituição não pode sofrer e nem adoecer para sustentar essa imagem. Quem viola a estratégia coletiva e manifesta descontentamento, desconforto e até adoecimento em relação as situações vivenciadas no trabalho não é bem visto pelo grupo e acaba por ser excluído. Assim, o trabalhador se sente pressionado até o último momento a não mostrar sofrimento, pois não há acolhimento no coletivo do trabalho, onde os pares não aceitam que é possível sofrer e adoecer em função do trabalho, por isso a utilização de estratégias defensivas é fundamental para essa categoria de trabalho (Gernet, 2012; Moraes, 2013).

Em relação às estratégias defensivas, destacam-se a sublimação e a resiliência, que se caracterizam como recurso do ego, como uma proteção ao sujeito em relação ao sofrimento frente às adversidades diárias, e como um modo para resistir e lidar com as contradições do trabalho. Este estudo vai ao encontro das pesquisas já realizadas por Souza e Minayo (2005) e Machado et al. (2015), que salientam que as situações enfrentadas pelo Policial Militar em seu cotidiano de trabalho não se iguala à rotina de trabalho de qualquer outro profissional, por isso se justifica a atenção a ser dada a essa categoria profissional, que, antes de ser policial sinônimo de ordem, socorro e combate, é um trabalhador comum, que sente, sofre e precisa ressignificar seu trabalho, para que este seja fonte de prazer, saúde e bem estar.

A profissão de policial militar foi descrita pelos participantes como enraizada em sua identidade; eles afirmamque ser policial é estar preparado e disponível 24 horas para servir. Independentemente de estar no horário de folga, momento em que o indivíduo tira a farda e assume outros papéis, ele continua sendo policial militar, constantemente responsabilizado por sustentar tal função. Salientando o quanto essa função exige preparo físico e psicológico dos seus servidores.

Cabe frisar, ainda, que esta pesquisa possibilitou ao policial militar desvendar vivências subjetivas com relação a organização do trabalho, podendo manifestar sentimentos de insatisfação e frustração que geravam sofrimento; Também, identificaram aspectos positivos no trabalho, fatores que são fonte de prazer. Essa ação reflexiva entre sujeito-trabalho é a proposta central da psicodinâmica do trabalho, possibilitando ao trabalhador tomar consciência de sua realidade de trabalho e ir em busca de soluções na intenção de transformar os fatores geradores de sofrimento (Mendes, 2007).

Sobre as limitações deste trabalho, relata-se que uma delas foi a escassa literatura sobre a categoria associada a psicodinâmica do trabalho, o que dificultou a discussão teórica. Além disso, durante a coleta de dados, observou-se resistência dos policiais em participar do estudo, principalmente pelo medo de exposição frente à Instituição. Por se tratar de um estudo de caso, salienta-se que os dados obtidos nos resultados não podem ser generalizados, já que esta pesquisa foi realizada no Rio Grande do Sul, sendo influenciada pela cultura local. Outra realidade pode gerar outros pontos de reflexão, situação que também pode ser considerado um limitador do estudo.

Diante dessa realidade, é importante ressaltar a necessidade de promoverem-se ações preventivas em saúde mental para o trabalhador da Brigada Militar, como, por exemplo, a contratação de profissionais de psicologia, que não atuem somente na seleção de pessoal, mas que possam agir junto aos batalhões de polícia, próximos à realidade desses servidores, tornando o acesso ao acompanhamento psicológico mais facilitado e desmistificado. Almeja-se que este estudo, bem como os resultados alcançados, possa contribuir para uma reflexão sobre o policial militar e seu contexto de trabalho, dando visibilidade a essa categoria profissional a partir da relação sujeito-trabalho, para assim propiciar diálogos em prol da humanização da segurança pública. Salienta-se, por fim, a importância de mais pesquisas em nível nacional serem realizadas, a fim de se conhecer a realidade de trabalho de profissionais lotados em outras regiões do País e sua realidade de trabalho.

 

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Endereço para correspondência:
Lilian Ester Winter
R. José do Patrocínio, 26 - Centro
Santa Maria - RS, 97010-260
E-mail: lwinter10@gmail.com

Recebido em: 15/12/2016
Primeira decisão editorial em: 15/04/2017
Versão final em: 14/04/2019
Aceito em: 20/04/2019

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