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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.19 no.3 Brasília jul./set. 2019

http://dx.doi.org/10.17652/rpot/2019.3.16744 

Contexto de Trabalho e Transtornos Mentais Comuns em Trabalhadores do Judiciário Federal no Rio Grande do Sul, Brasil

 

Occupational Context and Common Mental Disorders in Workers from the Federal Judiciary in Rio Grande do Sul, Brazil

 

Contexto de Trabajo y Trastornos Mentales Comunes en Trabajadores del Poder Judicial Federal en Rio Grande del Sur, Brasil

 

 

Mayte Raya AmazarrayI; Gabrielle Farias OliveiraI; Fernando Ribas FeijóII

IUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil
IIUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia , Cruz das Almas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os servidores do Judiciário têm sido expostos a modelos de gestão que colocam sua saúde mental em vulnerabilidade. Analisou-se a associação entre contexto de trabalho no Judiciário Federal do Rio Grande do Sul e Transtornos Mentais Comuns (TMC). Participaram 2.063 servidores, que responderam: questionário sociodemográfico e laboral, Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT) e Self-Reporting Questionnaire. Realizaram-se análises bivariadas e regressão de Poisson. A prevalência de TMC foi de 27,2%. Constatou-se forte associação positiva entre contexto de trabalho e TMC. Servidores expostos à Organização do Trabalho (OT) e Relações Socioprofissionais (RS) graves apresentaram prevalências de TMC 3,95 vezes maior, comparados aos com OT e RS satisfatórias. Ao analisar a relação independente entre dimensões do contexto de trabalho e TMC, as associações permaneceram fortes, com prevalências até 2,5 vezes maiores, indicando que o contexto laboral do Judiciário, quando em situações críticas e/ou graves, é potencializador de sofrimento psíquico.

Palavras-chave: saúde do trabalhador; condições de trabalho; transtornos mentais


ABSTRACT

Civil servants from the Judiciary have been exposed to management models that bring risks to their mental health. Associations between the occupational context of workers from the Federal Judiciary of Rio Grande do Sul and Common Mental Disorders (CMD) were analyzed. Participants included 2,063 workers who responded to: sociodemographic and labor questionnaire, Work Context Assessment Scale, and Self-Reporting Questionnaire. We ran bivariate analyses and multivariate Poisson Regression. General prevalence of CMD was 27.2%. There was strong, positive association between work context and CMD. Workers exposed to severe work organization (WO) and severe socio-professional relations (SR) presented 3.95-fold higher prevalence of CMD, compared to those with satisfactory WO and SR. Regarding the independent relationship between work context dimensions and CMD, associations remained strong, with prevalence up to 2.5 times higher, suggesting that the Judiciary's work context, in critical or severe situations, can generate psychological suffering.

Keywords: occupational health; working conditions; mental disorders.


RESUMEN

Los servidores del Poder Judicial vienen siendo expuestos a modelos de gestión que ponen su salud mental en riesgo. Se analizó la asociación entre contexto de trabajo en el Judiciario Federal de Rio Grande del Sur y Trastornos Mentales Comunes (TMC). Participaron 2.063 servidores que respondieron: cuestionario sociodemográfico y laboral, Escala de Evaluación del Contexto de Trabajo y Self-Reporting Questionnaire. Se realizaron análisis bivariados y regresión (Poisson). La prevalencia general de TMC fue 27,2%. Se constató fuerte asociación positiva entre contexto de trabajo y TMC. Trabajadores expuestos a Organización del Trabajo (OT) y Relaciones Socioprofesionales graves (RS) presentaron prevalencias de TMC 3,95 veces mayor, comparativamente a los con OT y RS satisfactorios. Analizando la relación independiente entre dimensiones del contexto de trabajo y TMC, las asociaciones permanecieron fuertes (prevalencias hasta 2,5 veces mayores), indicando que el contexto laboral del Poder Judicial, cuando en situaciones críticas/graves, es potencializador de sufrimiento psíquico.

Palabras clave: salud laboral; condiciones de trabajo; trastornos mentales.


 

 

O trabalho corresponde a um importante eixo da vida humana, sendo elemento central nos processos de subjetivação e de reconhecimento social (Dejours & Abdoucheli, 1990; Ferreira, 2012). Em cenário de globalização, crises e recessões econômicas, aumento da terceirização e desmantelamento de sindicatos, surgem cada vez mais situações que comprometem a saúde dos trabalhadores e que originam diferentes tipos de sofrimento psíquico. Embora cada pessoa tenha uma história singular, oriunda de vivências pessoais e profissionais, ao se inserir em um ambiente de trabalho, com regras fixadas independentes de sua vontade, o sujeito trabalhador tende a se sentir impotente em relação às demandas de seu serviço sobre as quais não tem controle (Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 1994).

À luz da Teoria Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1992), o prazer e o sofrimento de trabalhadores guardam íntima relação com a organização do trabalho, a qual se refere não apenas à forma como as atividades são divididas, mas também ao conteúdo das tarefas, ao sistema hierárquico, às relações socioprofissionais estabelecidas, às relações de poder e às questões envolvendo responsabilidade, entre outras. As pressões decorrentes da organização do trabalho são potencialmente danosas à saúde mental dos trabalhadores, em especial quando se observam discrepâncias entre a história individual - que engloba os sonhos e desejos dos trabalhadores - e o trabalho realizado. A organização do trabalho comumente ignora tais aspectos, fato que gera um sofrimento de natureza psíquica. Também existem as pressões ligadas às condições de trabalho, que são aquelas constituídas pelos elementos de infraestrutura (mobiliário, ambiente físico, ferramentas de execução do trabalho), tendo por alvo principal o corpo dos trabalhadores, e podendo causar desgaste, doenças somáticas e envelhecimento (Dejours, 1992).

Sendo assim, o trabalho pode ser tanto fonte de prazer como de sofrimento, o que vai depender da realidade concreta de trabalho, bem das estratégias que esse indivíduo lançará mão, individual ou coletivamente, para enfrentar o sofrimento e transformá-lo em situações geradoras de prazer. Para Dejours (2007), trabalhar implica estabelecer uma relação com o real. Nessa relação, o sofrimento é inevitável, visto que coloca o sujeito diante do inesperado, o que pode conduzi-lo, inicialmente, a uma experiência de fracasso e impotência. Nessa situação, o importante é atentar para os destinos possíveis do sofrimento, isto é, no ato de trabalhar, condições como orgulho do produto do trabalho e estabelecimento de bons vínculos podem possibilitar a transformação desse sofrimento em criatividade e prazer. Porém, quando condições que dificultam a expressão subjetiva no trabalho são identificadas, em um processo de frustração, isolamento e solidão, pode ocorrer o adoecimento (Dejours, 2007; Giongo, Monteiro, & Sobrosa, 2015).

Fatores sociais importantes para as experiências de prazer e sofrimento no trabalho são as relações interpessoais e o reconhecimento social. Para Dejours (1992), as relações de trabalho representam os laços humanos criados pela organização (hierarquia, chefias, supervisão, outros trabalhadores) e podem tanto ser benéficas e potencializadoras de prazer quanto desagradáveis e insuportáveis, causando efeitos negativos na relação saúde-trabalho. Já o reconhecimento está intimamente atrelado à construção da identidade do sujeito, a qual se dá pelo olhar do outro. A obtenção do reconhecimento, por sua vez, advém da experiência do real no trabalho (Merlo, 2014). Para Dejours e Abdoucheli (1990), existem dois tipos de reconhecimento, o estético, feito pelos pares, referente ao trabalho bem realizado; e o de utilidade, pelas contribuições pessoais (singulares e coletiva) na elaboração da organização do trabalho. Essa segunda forma de reconhecimento costuma ser importante na conquista de identidade, pela aspiração em contribuir com a organização e a sociedade (Merlo, 2014). Estudos recentes revelam como determinadas características da organização do trabalho têm acarretado o desenvolvimento de uma série de patologias (Giongo et al., 2015; Mendes, 2008; Merlo, Dornelles, Bottega, & Trentini, 2012; Gaviraghi, Antoni, Amazarray, & Schaefer, 2016)

Nesse contexto, os transtornos mentais têm ganhado importância, devido à sua incidência e impacto socioeconômico (Carlotto, Barcinski, & Fonseca, 2015). E são os Transtornos Mentais Comuns (TMC), também conhecidos como Transtornos Mentais Menores (TMM) ou Distúrbios Psiquiátricos Menores (DPM), que configuram a expressão clínica do sofrimento psíquico. Goldberg e Huxley (1992) descrevem a sintomatologia desses transtornos, constituída por insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas, além de sintomas depressivos e ansiosos. A Organização Mundial de Saúde (2001) também descreve os TMC como condições clinicamente importantes, a partir da presença de sintomas de alteração do humor, do comportamento e do modo de pensar, gerando angústia e/ou deterioração do funcionamento. Este quadro clínico pode trazer diferentes graus de incapacidade funcional. Ainda que os TMC não caracterizem diagnósticos de transtornos mentais consolidados, como Ansiedade Generalizada e Depressão Maior, referem-se a uma condição que pode evoluir para quadros mais graves e incapacitantes. Ressalte-se, contudo, que a presença de TMC não exclui a existência concomitante de outros transtornos ou problemas de saúde mental.

Dentro das atuais exigências do mercado de trabalho, salientam-se a tendência de intensificação do ritmo laboral, o aumento de empregos altamente qualificados e o maior uso da informação e da tecnologia de comunicação, o que acaba exigindo cada vez mais das funções mentais dos trabalhadores (Carlotto et al., 2015). A realidade do trabalho no Judiciário Federal insere-se nesse contexto.

Quanto a sua estrutura, o Judiciário Federal é dividido em quatro órgãos, sendo eles a Justiça do Trabalho, a Justiça Federal (dividida entre primeira instância e Tribunal Regional Federal - que consiste na segunda instância), a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar. As carreiras do Judiciário são as de Analista Judiciário, Técnico Judiciário e Auxiliar Judiciário, as quais são divididas em funções (ou especialidades), de acordo com as características e atribuições de cada servidor (Brasil, 2006). Servidores da área judiciária têm como atribuição principal prestar assistência em questões que envolvam matéria de natureza jurídica, emitindo informações e pareceres, realizar estudos e pesquisas na legislação, na jurisprudência e na doutrina para fundamentar análise de processo e tomada de decisão. Já as atividades da área administrativa compreendem prestar assistência em questões que envolvam matéria de natureza administrativa, emitindo informações e pareceres, examinando e elaborando fluxogramas, organogramas e demais esquemas ou gráficos de informações. Ainda, efetuam pesquisas visando ao aperfeiçoamento do serviço, elaborando projetos de estruturação e reorganização do mesmo, dentre outras tarefas com elevado grau de complexidade. Grande parte das atividades é desenvolvida com o uso de computador, com a utilização de programas e novas tecnologias virtuais.

De uma forma geral, a implantação de novas tecnologias e práticas gerenciais com o intuito de aumento da produtividade já é uma realidade - o que se reflete, também, no cenário brasileiro - gerando profundas transformações no contexto e dinâmica de trabalho (Balassiano, Tavares, & Pimenta, 2011). É exigido que o trabalhador se adapte às inovações tecnológicas e às novas formas de gestão, com consequências relevantes para a sua saúde mental. Como exemplo deste processo, evidencia-se a realidade de alguns grupos de trabalhadores, dentre os quais os servidores de uma universidade, trabalhadores da saúde, bancários e um grupo de servidores do judiciário. Em São Paulo, os servidores da universidade com piores índices nas relações socioprofissionais, que representa uma parte da organização do trabalho, apresentam maior risco de afastamento por doença (Alcantara, 2018). Em trabalhadores da saúde da atenção básica de um município do Rio Grande do Sul, um pior contexto de trabalho esteve fortemente correlacionado ao esgotamento profissional (Maissiat, Lautert, Dal Pai, & Tavares, 2015). Entre bancários no Rio Grande do Sul, piores escores do contexto de trabalho também estiveram associados a maior utilização de medicamentos, especialmente psicofármacos (Gaviraghi et al., 2016). Já em servidores do judiciário do Distrito Federal, a organização do trabalho foi classificada como crítica, embora não se tenha aprofundado a relação do contexto de trabalho com problemas de saúde nestes trabalhadores (Antloga, Maia, Cunha, & Peixoto, 2013).

O serviço público tem seus objetivos, normas, produtos, usuários, recursos de origem, operação sistemática, legal e técnica em benefício da coletividade, que diferem da iniciativa privada. O servidor público, apesar de ter menor risco de perda do emprego, enfrenta diferentes formas de instabilidade relacionadas à precarização do trabalho, na medida em que está sujeito à terceirização de funções do trabalho, à responsabilização pela deficiência do serviço, ao acúmulo de funções, bem como aos cortes e redução de vantagens de seu plano de carreira, entre outros fatores (Lancman, Sznelwar, Uchida, & Tuacek, 2007). Ademais, deste contexto, surge um estigma do servidor público, com sua imagem atrelada à inoperância, à lassidão, à morosidade e à falta de competência (Oliveira, Baldaçara, & Maia, 2015). Isso configura um cenário no qual os problemas de saúde mental tornam-se recorrentes (Merlo et al., 2012; Oliveira et al., 2015).

Essas mudanças econômicas também têm impactado o Judiciário brasileiro. Isso fica evidenciado pelas Reformas do Poder Judiciário, que vêm sendo implantadas sob orientação do Banco Mundial, partindo-se da publicação do Documento Técnico (n° 319/96), intitulado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe - Elementos para reforma. Esse documento trata da necessidade de transformações no Poder Judiciário para dar conta dos interesses da economia de mercado (Dakolias, 1996). As transformações nos processos de trabalho dos servidores do Judiciário Federal ilustram os paradigmas da reestruturação produtiva, na medida em que são introduzidas cada vez mais ferramentas tecnológicas (como a mudança de todos os processos físicos para processos virtuais - Processo Judicial Eletrônico - PJe), além dos mecanismos de gestão que pressionam o trabalhador a exercer sua atividade em função do cumprimento de metas.

As diversas transformações que vêm ocorrendo no trabalho dos servidores do Judiciário Federal, como as novas formas de gestão, o aumento das demandas laborais e a própria forma de implantação do PJe, têm incidido, ao longo dos últimos anos, sobre a sua saúde. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo analisar as associações entre o contexto de trabalho no Judiciário Federal do Rio Grande do Sul e a ocorrência de Transtornos Mentais Comuns entre os servidores desta instituição.

 

Método

Participantes

O presente estudo, de delineamento transversal, foi realizado a partir de um recorte da pesquisa "A Saúde dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Rio Grande do Sul (RS) e as Relações com seu Contexto de Trabalho". Tal projeto resultou de uma parceria entre a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal do Rio Grande do Sul (Sintrajufe/RS). A população alvo do estudo compreendeu todos os servidores do Judiciário Federal no RS, correspondendo a aproximadamente 6.700 trabalhadores. Foram incluídos nas análises deste estudo 2.063 servidores, configurando uma taxa de resposta de 30,7%.

Instrumentos

Foram utilizados três instrumentos autoaplicáveis: um questionário sociodemográfico e de dados ocupacionais, Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT) e o Self Reporting Questionnaire (SRQ-20).

Questionário sociodemográfico e de dados ocupacionais. Elaborado pelos pesquisadores, com o objetivo de descrever características sociodemográficas e ocupacionais da amostra, contendo perguntas sobre idade, sexo, estado civil, cor/etnia, justiça/órgão que trabalha, área de trabalho (administrativa/judiciária), escolaridade atual, tempo de serviço, cargo, especialidade do cargo (área administrativa, judiciária, informática, segurança, oficial de justiça), atividade preponderante (atendimento ao público, atividade não judiciária, processos físicos e ou virtuais).

Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT). A escala foi formulada por Mendes e Ferreira (Ferreira, 2008, Mendes, 2008) avalia a forma como os trabalhadores percebem seu contexto de trabalho a partir de três dimensões: Condições de Trabalho (CT; α = 0,89), Organização do Trabalho (OT; α = 0,72) e Relações Socioprofissionais (RS; α = 0,87). A CT avalia a qualidade do ambiente físico do local de trabalho, equipamentos e material disponibilizados para a execução das atividades; a OT avalia a divisão e conteúdo das tarefas, normas, controles e ritmos de trabalho. As RS podem ser conceituadas como os modos de gestão do trabalho, comunicação e interação profissional. O instrumento é composto por 30 itens, respondidos através de uma escala tipo Likert de cinco pontos. Os resultados são classificados nos parâmetros: Satisfatório (escores entre 1 e 2,2), indicando resultado positivo e produtor de bem-estar no trabalho; Crítico (escores entre 2,3 e 3,7), resultado mediano, indicador de "situação-limite", potencializando mal-estar no trabalho e risco de adoecimento; e Grave (escores entre 3,8 e 5), resultado negativo e produtor de mal-estar no trabalho, com forte risco de adoecimento.

Self Reporting Questionnaire (SRQ-20). Esse instrumento foi desenvolvido por Harding et al. (1980) em estudo conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com o objetivo de avaliar os Transtornos Mentais Comuns (TMC) da população em países em desenvolvimento (K. O. B. Santos, Araújo, & Oliveira, 2009). Trata-se de instrumento para rastreamento de sintomas, não possuindo fins diagnósticos. Diversos estudos com categorias profissionais têm utilizado o SRQ-20, o qual tem se mostrado eficaz para rastreamento da saúde mental no âmbito ocupacional (Guirado & Pereira, 2016). A consistência interna analisada em pesquisas no contexto brasileiro apresentou-se satisfatória - 0,80 (K. O. B. Santos et al., 2009). Composto por 20 questões com respostas do tipo sim ou não; cada item é pontuado com zero ou um (se houver a existência do sintoma). O ponto de corte para a identificação de TMC é discutido na literatura, conforme o grupo de pessoas investigado. Em pesquisa realizada por K. O. B. Santos et al. (2009), pontos de corte mais baixos apresentaram melhor sensibilidade e especificidade em indivíduos do sexo masculino. Dessa forma, para esta pesquisa, utilizou-se ponto de corte 5/6 para o sexo masculino e 7/8 para o sexo feminino.

Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos

Os dados foram coletados a partir de questionários em papel preenchidos individualmente e identificados por número, resguardando-se o nome dos participantes. Os servidores foram convidados a participar do estudo mediante carta informativa, convite pessoal e exibição de vídeos explicativos. Foram distribuídos 6.000 questionários, os quais foram entregues de duas formas: pelo correio (no interior do estado) ou presencialmente (nas unidades de trabalho na capital), tendo sido enviados, juntamente, envelopes, instruções, e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) destacável. Após respondidos, os questionários foram remetidos em envelopes lacrados e previamente selados para a sede do Sintrajufe/RS. Estabeleceu-se o prazo máximo de 60 dias para devolução. Após o período de dois meses, 2.144 questionários (35,7% de taxa de resposta) retornaram preenchidos e foram utilizados para construção do banco de dados e análise. Entretanto, 81 indivíduos foram excluídos desta análise devido à falta de informação nos questionários. A coleta de dados foi realizada no segundo semestre de 2015.

O projeto de pesquisa foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFCSPA pelo parecer de número 1151210. A participação dos indivíduos que responderam aos questionários foi totalmente voluntária. Foram utilizados os dados dos participantes que entregaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) devidamente assinado. O TCLE garantiu a participação livre de cada sujeito, oferecendo também todas as informações pertinentes sobre a pesquisa.

Os questionários foram preenchidos individualmente pelos participantes e identificados por número, não contendo o nome dos participantes. Os pesquisadores envolvidos no estudo não tiveram acesso à identificação dos sujeitos. Os questionários foram arquivados na sede do Sintrajufe/RS, em local seguro, onde ficarão armazenados durante 10 anos, sendo destruídos após esse período. O sigilo dos dados foi garantido pelos procedimentos da pesquisa e pelos pesquisadores.

Procedimentos de Análise de Dados

As análises estatísticas foram realizadas utilizando o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 20. Para a descrição da amostra, das exposições ocupacionais e dos desfechos de saúde, foi utilizada estatística descritiva (com apresentação de médias, desvios-padrão e frequências absolutas e relativas). Nas análises bivariadas, utilizou-se o Teste do Qui-quadrado. A mínima significância estatística foi definida em 5% (p < 0,05). Para verificar a associação entre contexto de trabalho e TMC, realizaram-se análises de regressão múltipla através de regressão de Poisson com estimativa robusta da variância. As variáveis de controle foram incluídas nos modelos de regressão por nível hierárquico, com base no modelo conceitual de análise.

Consideraram-se como covariáveis demográficas: idade, sexo, escolaridade atual, cor/etnia, estado civil; e covariáveis ocupacionais: justiça/órgão que trabalha, tempo de serviço, cargo, especialidade do cargo (área administrativa, judiciária, informática, segurança, oficial de justiça), atividade preponderante (atendimento ao público, atividade não judiciária, processos físicos e ou virtuais) e as dimensões do contexto de trabalho (OT, CT e RS).

 

Resultados

A amostra contou com 2.063 trabalhadores, sendo 1.101 mulheres (53,4%) e 962 homens (46,6%), com média de idade 42,67 anos (DP=9,05). A maioria (1.439; 67,5%) dos participantes são casados ou têm uma união estável. Sobre a escolaridade, 1.244 (58,5%) possuem especialização, mestrado ou doutorado (Tabela 1).

 

 

Quanto às variáveis laborais, a média de tempo em que os participantes trabalham no Judiciário foi de 13,52 anos (DP=8,02). Já a média de tempo em que estão no cargo foi de 12,08 (DP=7,74). Conforme pode ser observado na tabela 2, os trabalhadores da Justiça do Trabalho constituem a maior parte dos participantes da pesquisa, seguidos, respectivamente, pelos trabalhadores da Justiça Federal, da Justiça Eleitoral, do Tribunal Regional Federal, e por último, da Justiça Militar.

 

 

Em relação à área de atuação, 71% da amostra exerce suas atividades na área judiciária, enquanto 29% dos participantes atuam na área administrativa. Referente aos cargos, 1367 (64,1%) dos trabalhadores são técnicos judiciários. A atividade predominante para 59,8% dos servidores é o trabalho com processos virtuais; apenas 13,2% trabalham predominantemente com processos físicos. O tempo de serviço médio foi 13,52 anos.

Quanto às percepções relativas ao contexto de trabalho, mensuradas pela Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT), a dimensão da organização de trabalho mostrou-se como a mais precária, na visão dos participantes, conforme a Tabela 2. A maioria (91%) dos participantes referiram estar em situação crítica ou grave. As condições de trabalho representaram a dimensão com maior índice de satisfação.

No que diz respeito à saúde mental, constatou-se uma prevalência de 27,2% de TMC na população estudada. Foram realizadas análises para verificar a associação entre presença de TMC e variáveis sociodemográficas (idade, sexo, escolaridade e estado civil), sendo que em nenhum dos casos foram encontradas diferenças significativas (p>0,05). Quanto às variáveis laborais, o tempo de trabalho no Judiciário e o órgão do Judiciário onde atua tampouco mostraram relação significativa com TMC (p>0,05).

Entretanto, as variáveis relacionadas especificamente à atividade laboral evidenciaram diferenças de prevalência entre as diferentes especialidades do cargo e atividades predominantes (Tabela 3). No que se refere à especialidade do cargo, os oficiais de justiça apresentaram as maiores prevalências de transtorno mental comum (37,5%) entre os servidores do Judiciário Federal no RS. Já em relação à atividade predominante, a prevalência de TMC foi maior entre os servidores cuja atividade principal é o trabalho com processos (tanto físicos quanto virtuais; 31,8% e 27,6%, respectivamente), comparados aos que exercem atividades meio ou de apoio (15,6% a 24%).

 

 

Nas três dimensões do contexto de trabalho, constatou-se maior prevalência de TMC para os parâmetros crítico e grave, quando comparados ao parâmetro satisfatório, mesmo após controle para fatores de confusão (modelos 1 e 2, Tabela 4). No modelo 1, a organização do trabalho e as relações socioprofissionais graves aumentaram cerca de 4 vezes a prevalência de TMC. Já no modelo 2, na análise isolada de cada dimensão da organização do trabalho, os trabalhadores expostos a um contexto classificado como grave apresentaram prevalência de TMC 2,5 vezes maior. Para as relações socioprofissionais, o resultado foi semelhante, com prevalência 2,4 vezes maior entre os servidores em contexto grave. Nas condições de trabalho graves, a prevalência também foi maior (razão de prevalência de 1,9) (Tabela 4).

 

Discussão

A partir desses achados, é necessário fazer uma avaliação do contexto de trabalho e das condições às quais os trabalhadores estão expostos durante suas atividades laborais, a fim de compreender as possíveis associações entre o contexto laboral e o adoecimento dos servidores do Judiciário Federal do RS. No que se refere à prevalência de TMC (27,1%), os resultados se assemelham aos da população geral, na qual se encontrou prevalências de 22,7% a 36% com a utilização do SRQ-20 (E. G. Santos & Siqueira, 2010). Comparativamente, esta prevalência foi 37,7% entre trabalhadores da saúde (Knuth et al., 2015). Mesmo assim, tal achado é significativo, já que aproximadamente um terço da amostra apresenta sintomas de sofrimento mental.

Na análise do contexto de trabalho geral, a organização do trabalho revelou-se como o principal fator de risco à saúde dos servidores, visto que 91% a identificou como em condição crítica ou grave. Ademais, a imagem que a sociedade tem de descrédito do Judiciário, tendo este órgão como distante, lento e ineficaz, faz com que a população se torne mais crítica e exigente em relação ao seu desempenho (I. B. Silva, 2004). Sendo assim, essas pressões decorrentes do trabalho, modernização acelerada e imagem de descrédito perante a sociedade representam ameaça à saúde dos servidores.

As condições de trabalho mostraram-se como a dimensão com maior índice de satisfação, com 71% da amostra identificando-as satisfatoriamente. Nos anos 2000, o documento Gestão Pública para um Brasil de todos (Brasil, 2003), trouxe critérios de reestruturação do serviço público, a fim de melhorar as condições e relações de trabalho, buscando atender às demandas sociais e tornar o Estado mais eficiente, inclusivo e equitativo. Se por um lado este tipo de política para o setor público pode ter preservado o ambiente de trabalho no Judiciário, no que se refere a sua infraestrutura, por ou lado, trouxe também mudanças na gestão que podem estar relacionadas à preocupante situação em que a organização do trabalho no Judiciário se encontra.

Os dados referentes às condições de trabalho e de qualidade de vida no Poder Judiciário são investigados por algumas pesquisas (Andrade, 2011; Pacheco, 2011). Dentre as três dimensões da EACT, a das condições de trabalho foi a que apresentou menor magnitude de associação com os transtornos mentais (razão de prevalência de 1,9). Já as relações socioprofissionais apareceram em situação de alerta, visto que 44,9% dos participantes classificaram-nas como críticas e graves. Essa dimensão social consiste na comunicação e interação entre os sujeitos e expressam as relações interpessoais presentes no trabalho (Augusto, Freitas, & Mendes, 2014; Campos & David, 2011). Segundo Ferreira (2012), quando as interações socioprofissionais são profícuas e benfazejas, tornam-se benéficas para a saúde e, portanto, são produtoras de bem-estar no trabalho.

Por vezes, as relações socioprofissionais podem desempenhar função compensadora nas situações de trabalho, sobretudo nas quais a organização do trabalho é considerada crítica ou grave. Nessas situações, as redes de cooperação e os pactos de solidariedade são fundamentais para viabilizar os objetivos das tarefas e os desempenhos esperados, de forma a evitar os impactos negativos para a saúde individual e coletiva dos trabalhadores (Ferreira, 2012). Entretanto, no momento em que aproximadamente metade da amostra identifica essa interação social como crítica e grave, tal situação deve ser considerada como importante risco para a saúde dos indivíduos. Também, a gravidade das relações socioprofissionais dentro do ambiente laboral pode estar relacionada à forma de gestão e à própria organização do trabalho no Judiciário. Nessa conjuntura, outros riscos psicossociais, como o assédio moral, podem ser desenvolvidos na instituição, o que já foi apontado por Pooli e Monteiro (2018) na realidade do judiciário, e acabar se sobrepondo ao próprio contexto de trabalho.

As relações hierárquicas configuram-se como fontes de ansiedade que se sobrepõem àquelas originadas pelo ritmo de trabalho ou pela busca aos prêmios e bonificações (Dejours & Abdoucheli, 1990). Nesse contexto, constitui-se a íntima relação entre organização do trabalho e relações socioprofissionais, na medida em que a organização do trabalho resulta das relações intersubjetivas e sociais dos trabalhadores com as instituições (Dejours & Abdoucheli, 1990). Conforme encontrado neste estudo, os trabalhadores expostos tanto a OT quando RS graves têm prevalência de TMC aproximadamente 4 vezes maior que os expostos a uma OT, satisfatória. Ao ajustar-se a análise para os fatores demográficos, ocupacionais e do próprio contexto de trabalho, a OT e as RS graves permanecem fortemente associadas aos TMC, com uma razão de prevalência de cerca 2,5 para ambas dimensões. Isso demonstra o efeito independente de cada dimensão da organização do trabalho no processo de adoecimento psíquico dos servidores do Judiciário Federal. Além disso, os dados corroboram a relação próxima entre organização do trabalho e relações socioprofissionais, que apresentam medidas de efeito com magnitude semelhantes. Estudos em outras categorias profissionais também constataram associação entre TMC e riscos da organização do trabalho, como exposição maior carga horária, trabalho noturno, altas demandas psicológicas e ritmo de trabalho acelerado (Araújo, Mattos, Almeira, & Santos, 2016; Feijó, Câmara, & Luiz, 2014; Fonseca & Araújo, 2014; Knuth et al., 2015; Romero, Akiba, Dias, & Serafim, 2016).

O processo de modernização do Poder Judiciário no Brasil, impulsionado em 2004, visou a solucionar a lentidão dos processos judiciais, aumentar a eficácia de suas decisões e reduzir a discrepância existente entre a estrutura do Judiciário e os avanços sociais. Ainda de acordo com esses autores, inovações tecnológicas, determinação de metas e mudanças na organização do trabalho, envolvidas no processo de modernização, impuseram novas exigências ao trabalhador. Alguns estudos apontaram que essas exigências acometem os trabalhadores (Andrade, 2011; I. B. Silva, 2004), uma vez que estes são submetidos à pressão social, à falta de reconhecimento, à intensificação e sobrecarga do ritmo de trabalho, ao volume cumulativo, à alta exigência por produtividade e à priorização da quantidade de julgados em detrimento da qualidade, fatores que comprometem a organização do trabalho e potencializam vivências de mal-estar no trabalho. Os trabalhadores que têm como atividade predominante lidar com processos (físicos ou virtuais) foram os que apresentaram a maior prevalência de TMC, o que, neste contexto de "modernização", pode estar relacionado a um aumento das demandas e da sobrecarga de trabalho.

Todos esses achados apontam para alguns possíveis focos de intervenção, de modo a prevenir os transtornos mentais entre os servidores do Judiciário Federal. No que tange à organização do trabalho, podemos dividir as propostas de intervenção em duas modalidades: características da tarefa e gestão do trabalho. Intervenções que propiciem o desenvolvimento de atividades que requerem autonomia, inciativa, tomada de decisão, capacidade de argumentação e comunicação verbal, trabalho dinâmico e visualização dos seus resultados, favorecem as vivências de prazer no contexto laboral (Mendes & Morrone, 2010). Quanto à gestão do trabalho, intervenções que propiciem a realização de atividades com começo, meio e fim, flexibilização das decisões e processos de trabalho, comunicação formal e uma gestão mais participativa e democrática, favorece um ambiente produtor de bem-estar (Mendes & Morrone, 2010).

Quanto às condições de trabalho, que foram as que obtiveram os resultados mais satisfatórios no estudo, cabe ao órgão manter e aprimorar essas condições, sempre atentando para as especificidades de cada setor. No que diz respeito às relações socioprofissionais, é preciso fazer intervenções que estimulem a coesão e integração da equipe, propiciar ambiente que permita espaços de discussão e de possibilidades de adoção de novas estratégias, estimular atitudes de cooperação na equipe (Mendes & Morrone, 2010). Diferentes estudos têm apontado o papel chave das relações de trabalho (Araújo et al., 2016; Suadicani, Olesen, Bonde, & Gyntelberg, 2014), demonstrando, empiricamente, a importância da dimensão do apoio social no trabalho e da qualidade dessa colaboração entre colegas, podendo atenuar os riscos do comprometimento excessivo com o trabalho ou até mesmo a intenção de abandonar o trabalho. Além disso, ações voltadas para o conhecimento e reconhecimento da atividade desempenhada pelos trabalhadores dentro da própria instituição podem fazer com que essas relações de trabalho se tornem mais benéficas.

Quanto às características ocupacionais, a especialidade do cargo foi significativamente associada aos TMC, sendo os oficiais de justiça os trabalhadores com a maior prevalência (37,5%), um dado preocupante para o serviço público do Judiciário Federal. Em um estudo de Merlo et al. (2012), verificou-se que 50,7% dos oficiais de justiça federais de Porto Alegre tinham Distúrbios Psíquicos Menores em 2011, prevalência maior que a dos servidores dos Juizados Especiais Federais (31,7%) ou dos Gabinetes do TRT (30,9%). Esses dados indicam o profundo adoecimento psíquico deste grupo de indivíduos, o que pode estar relacionado às características peculiares de seu trabalho, que se constitui pela tarefa de intermediação entre a Justiça e a população. A principal atribuição do oficial de justiça é "realizar trabalho de campo, cumprindo na forma da lei, a citação, intimação, notificação, prisão, penhora e apreensão, certificando no mandado o ocorrido, com menção do lugar e hora da diligência, devolvendo o respectivo mandado ao setor próprio, dentro do prazo legal" (Resolução nº 367/2001, Tribunal de Justiça de Minas Gerais). Nesse contexto de trabalho, faz parte da missão do oficial de justiça enfrentar os efeitos de emoções contraditórias geradas e mobilizadas nas situações reais de trabalho, visto que participar de uma situação de conflito, implica deparar-se com emoções negativas, significando, muitas vezes, ocupar um lugar de "algoz" no imaginário social (Pereira & Assunção, 2007). Caberia à instituição fornecer apoio, visando atenuar os efeitos negativos gerados pelo trabalho real, não só para os trabalhadores, como também para o serviço prestado (Pereira & Assunção, 2007).

Um dos principais pontos citados pelos oficiais de justiça no estudo de Merlo et al. (2012) foi a falta de reconhecimento pelo trabalho realizado por parte da instituição, pois tanto as outras instituições públicas, como também a sociedade em geral desconhece o seu trabalho e, portanto, não os reconhecem. Outrossim, os oficiais ressentem-se por ser desconsiderados pela população por quem esperavam que os reconhecessem e colocam que a falta de respaldo e a desautorização para a realização de seu trabalho está intimamente relacionada à falta de reconhecimento (Merlo et al., 2012). O reconhecimento pelo trabalho, pelo saber-fazer proporciona a oportunidade do encontro entre a identidade e o real, através do olhar do outro. Nesse sentido, para o sofrimento ser transformado em prazer, a partir do trabalho, é necessária a presença do reconhecimento (Martins, 2010).

Outro grupo de trabalhadores que apresentou alta prevalência de TMC (30,7%) foi o da Informática. Esses profissionais são responsáveis por dar sustentação à complexa infraestrutura tecnológica e de sistemas de informação (Servino, Neiva, & Campos, 2013). Com o processo de modernização do judiciário e com a implantação do processo judicial eletrônico, criaram-se não só novas demandas, como também o desenvolvimento e gerenciamento dos sistemas, transformando os processos de trabalho desses servidores. A sobrecarga, que se materializa pela intensificação do trabalho, relacionada às pressões e exigências organizacionais, pode levar ao agravamento do sofrimento e contribuir no processo de adoecimento (Carvalho & Moraes, 2011).

Algumas limitações do artigo devem ser consideradas para a interpretação dos resultados, sendo uma delas inerente ao desenho do estudo, que tem corte transversal. Os estudos transversais não permitem verificar de modo mais adequado a temporalidade entre o contexto de trabalho e os transtornos mentais, o que poderia incorrer em viés de causalidade reserva. Entretanto, é possível inferir que a organização do trabalho no judiciário tende a manter-se ao longo dos anos, dadas as características do serviço público. Além disso, a taxa de resposta de 30,7% poderia trazer vieses de seleção, na medida em que o perfil dos participantes poderia diferir dos que não responderam. No entanto, a distribuição dos participantes foi similar à da população alvo. Além disso, as análises de regressão ajustaram para diversos fatores que poderiam confundir as associações de interesse. Considera-se pouco plausível que a associação entre contexto de trabalho e TMC, com as magnitudes de efeito apresentadas, devam-se ao acaso ou a algum viés.

A partir dos resultados, foi possível identificar que o contexto de trabalho, quando em situações críticas e graves, submete os servidores do Judiciário Federal a um risco elevado de sofrimento mental e adoecimento psíquico. Dessa forma, é necessário que se desenvolvam estratégias de prevenção e de promoção à saúde mental dos trabalhadores do judiciário com foco na organização do trabalho, pela qual o trabalho não seja mensurado apenas pelos índices de produtividade. É necessário dar significado ao conteúdo real da atividade laboral, como medida de proteção à saúde mental dos servidores. Como o contexto de trabalho e os riscos psicossociais guardam íntima relação com os processos de gestão do trabalho, é necessário que a instituição busque compreender a gestão do trabalho à luz da saúde do trabalhador, implementando suas ações com a participação de todos os atores envolvidos nos processos laborais. Além disso, é tarefa fundamental aos diretores e chefias estarem atentos aos processos laborais e ao adoecimento psíquico dos servidores, dando suporte às pessoas quando necessário. Por fim, faz-se necessário o acompanhamento longitudinal desse grupo de trabalhadores, de modo a avaliar temporalmente os efeitos do contexto de trabalho, fortalecendo a discussão sobre a causalidade das relações entre trabalho e saúde mental.

 

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Endereço para correspondência:
Mayte Raya Amazarray
R. Sarmento Leite, 245 - Centro Histórico de Porto Alegre
Porto Alegre - RS, CEP 90050-170
E-mail: maytepsi@gmail.com

Recebido em: 03/09/2018
Primeira decisão editorial em: 18/03/2019
Versão final em: 23/04/2019
Aceito em: 31/05/2019

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