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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versión On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.21 no.3 Brasília jul./set. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/rpot/2021.3.editorial 

Ciência e conflitos éticos na gestão da pandemia da COVID-19

 

Science and ethical conflicts in the management of the COVID-19 Pandemic

 

Ciencia y conflictos éticos en el manejo de la pandemia COVID-19

 

 

Roberto Moraes CruzI; Jairo Eduardo Borges-AndradeII; Alexsandro Luiz De AndradeIII; Daniela Campos Bahia MosconIV; João ViseuV; Marcos Ricardo Datti MichelettoVI; María Elisa Ansoleaga MorenoVII; Mª Inmaculada López NúñezVIII; Mussa AbacarIX; Nádia KienenX; Janete KnapikXI; Simone CassianoXII; Maria Nivalda de Carvalho-FreitasXIII

IEditor-Chefe. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
IIEditor Sênior. Universidade de Brasília (UnB), Brasil
IIIEditor Associado. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil
IVEditora Associada. Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil
VEditor Associado - Universidade do Algarve (UAlg), Portugal
VIEditor Associado. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Brasil
VIIEditora Associada. Universidad Diego Portales (UDP), Chile
VIIIEditora Associada. Universidad Complutense de Madrid (UCM), Espanha
IXEditor Associado. Universidade Rovuma (UniRovuma), Moçambique
XEditora Associada. Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil
XIEditora Júnior. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
XIIEditora Júnior. Universidade de Brasília (UnB), Brasil
XIIIPresidente. Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT), Brasil

 

 

A compreensão dos impactos da pandemia da COVID-19 na saúde das pessoas e nos processos produtivos, em função da sua extensão, ainda é provisória. Admite-se, porém, que haverá um legado significativo da pandemia na vida das pessoas: menor crescimento econômico, crises na empregabilidade, esforços por manutenção da renda, mudanças nos desenhos e rotinas de trabalho, agravos à saúde persistentes, dentre outros aspectos (Cruz et al., 2020).

Ondas sucessivas de aumento de infecções, ao longo dos últimos meses, provocaram limitações nas demandas produtivas e prolongado a crise econômica em diferentes países. Além disso, observou-se a acentuação de riscos psicossociais, ambientais e econômicos, com reflexos importantes na saúde e na integridade das pessoas, tis como sentimentos negativos ou depreciativos (p. ex.: culpa, raiva, vergonha), sintomas de estresse, de ansiedade e de transtornos de humor (Čartolovni, Stolt, Scott, & Suhonen, 2021). Na verdade, já havia a expectativa de alterações significativas na saúde física e psicológica frente à ameaça biológica e a crise na disponibilização de atendimentos emergenciais (HInes, Chin, Glick, & Wickwire, 2021).

Felizmente o desenvolvimento e a disseminação de vacinas contra a COVID-19 na população tem apontado perspectivas de saída da crise sanitária e do mundo do trabalho, assim como têm proporcionado um alento à superação do legado de problemas sociais e educacionais decorrentes da pandemia (International Labour Organization, 2020). Nesse contexto, se acentua a necessidade de retorno às atividades presenciais, especialmente em determinadas ocupações, ainda que tenha se verificado que o teletrabalho e todas as variações de teleatendimento tenham sido intensificados com as medidas de restrição de mobilidade e de distanciamento social (Figueiredo, Ribeiro, Pereira, & Passos, 2021).

Diante de todos os processos adaptativos e de gerenciamento do legado da pandemia da COVID-19, rever as adversidades enfrentadas em situações análogas no passado e refletir sobre as lições a serem extraídas para o futuro são aspectos importantes a serem considerados para avanço do processo civilizatório e para o alinhamento de perspectivas sobre o que e como fazer pós-pandemia. Em um mundo globalmente conectado, particularmente neste século 21, e diante da emergência de uma grave crise na saúde pública, vislumbra-se, ainda, incertezas e inseguranças no processo de conhecer a natureza da crise e dos seus desdobramentos, assim como em construir argumentos consensuais e promover soluções para querer mudá-la.

Dois aspectos têm chamado a atenção na gestão da atual crise pandêmica. O primeiro deles se refere ao papel da ciência, da pesquisa científica e das tecnologias delas derivadas na geração de diretrizes e soluções para o controle da pandemia e dos seus efeitos na saúde das pessoas. O segundo, relaciona-se à emergência de conflitos éticos tanto na administração de recursos econômicos e humanos para o atendimento das necessidades da população, quanto na disseminação de informações e de soluções para o enfrentamento dos problemas gerados pela pandemia, muitas vezes frágeis ou incompatíveis com as suas reais possibilidades de operacionalização.

A pandemia da COVID-19 fez emergir um conjunto de conhecimentos científicos especializados, métodos de gestão e tecnologias úteis ao controle da pandemia, a fim de reduzir a velocidade de contaminação das pessoas e os efeitos da infeção pelo vírus Sars-CoV-2 e suas variações. A ciência, e os seus cientistas, têm sido testados à exaustão nessa crise sanitária e, considerando a história recente, observa-se uma das situações mais críticas de confronto com o conhecimento científico, submetido cotidianamente aos limites da credibilidade e da validade de seus pressupostos e conclusões. Alguns estudos técnicos e científicos, especialmente os embrionários e controversos, podem ser refutados em estudos sequenciados. Isso faz parte do modus operandi do mundo científico. Entretanto, sua ampla divulgação durante a pandemia contribuiu para gerar a desconfiança nas instituições que produzem e executam diretrizes científicas, dificultando o consenso e a adesão aos protocolos de combate à pandemia.

A credibilidade científica vale-se da capacidade da ciência e dos conhecimentos produzidos por seus pesquisadores de serem reconhecidos como úteis à sociedade. Embora possam ser falíveis, é possível confiar na produção e nos produtos científicos, tendo em vista o amplo espectro de suas contribuições históricas à saúde e ao bem-estar das pessoas. Por outro lado, o conhecimento científico deve ser também reconhecido como válido. A validade científica é, geralmente, conquistada em rigorosos estudos, em que são testadas as hipóteses e verificadas os seus efeitos em situações reais, e confrontadas ao longo do tempo.

Os esforços produzidos pela comunidade científica e seus profissionais, de fato, contribuíram decisivamente no controle da pandemia e na redução dos desfechos negativos da COVID-19. O legado da pandemia permite afirmar que esses esforços continuarão, provavelmente de forma mais planejada e orientada por novas perspectivas de inovações tecnológicas para o enfrentamento de crises similares. É esperado que a credibilidade e a validade da ciência permaneçam em evidência e em discussão por muito tempo após a pandemia.

Do ponto de vista da gestão da pandemia cabe destacar o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e de todo o aparato estatal de atendimento à saúde da população. Os resultados do processo de imunização coletiva no Brasil indicam a necessidade de fortalecimento da rede pública assistencial. Mas, ao mesmo tempo, mostra a importância do SUS na sua capacidade distributiva de atendimento, especialmente aos mais vulneráveis socioeconomicamente e nas regiões com maior dificuldade de acesso. Por outro lado, há um papel desempenhado pelas organizações do setor produtivo e de serviços, das instituições de saúde suplementar, assim como das escolas e universidades, na criação de diretrizes e planos de contingência para o enfrentamento da COVID-19.

Por outro lado, a crise ampliada e os recursos limitados ao longo da pandemia do COVID-19 fizeram emergir conflitos éticos: a) na gestão da estrutura física e financeira das instituições do Estado e de suas relações com entes privados e; b) nos procedimentos nacionais e locais de disseminação de medidas de contenção do avanço da pandemia e de atenção à população. Conflitos éticos surgem quando, em determinadas situações, deve ser feita uma escolha ou tomada uma decisão entre seguir princípios ou valores pessoais e assumir interesses coletivos ou normas sociais vigentes. Ou seja, conflitos éticos se situam entre o direito e o dever de agir, julgados do ponto de vista moral (Rainer, Schneider, & Lorenz, 2018).

A emergência de conflitos éticos na gestão da pandemia da COVID-19 foi observada em diferentes níveis de abrangência. Uma parte deles centrados na alocação de recursos para o enfrentamento da pandemia e seus efeitos, tendo em vista a necessidade de aquisição e disponibilização de um volume expressivo de materiais e equipamentos, prioritariamente voltados ao tratamento das pessoas, e a necessidade de financiamento para a aquisição ou produção de vacinas. Foi possível observar, ainda, conflitos éticos na definição das diretrizes principais para contenção da disseminação do Sars-CoV-2, na comunicação institucional ou midiática de medidas com maior ou menor eficácia no controle da infecção, na realocação de profissionais de saúde, conforme a urgência ou interesses regionais, e na priorização no atendimento a populações e pacientes específicos.

Os resultados desses conflitos éticos geraram a falta de infraestrutura de atendimento público e privado e de leitos hospitalares, o racionamento de equipamentos e medicamentos para tratamento de infectados, a carência de testes para detectar o agente patógeno, a insuficiência de recursos para produzir ou adquirir vacinas. Todos esses aspectos acentuaram as condições de vulnerabilidade social e os impactos da COVID-19 na saúde e no trabalho das pessoas (Freitas, Napimoga, & Donalisio, 2020)

Diante de conflitos éticos entre o interesse ou valor pessoal e o interesse ou normas coletivas, é importante refletir sobre a qualidade da atuação de autoridades, gestores e profissionais, especialmente em situações de crise, como a pandemia da COVID-19. É essencial vincular os processos de decisão aos princípios centrais da Bioética, quais sejam: autonomia (capacidade de deliberar sobre suas escolhas de acordo com os recursos disponíveis); beneficência (maximizar o benefício e minimizar o prejuízo, tendo em vista as decisões tomadas); não maleficência (não causar ou causar o menor prejuízo possível às pessoas) e justiça (proporcionar a cada pessoa o que lhe é devido, tendo em vista as normas consensuadas) (Lee, 2017; Smith & Upshur, 2020).

A emergência de tais conflitos éticos e, portanto, também morais, promoveram uma intensa discussão sobre o papel da ciência e a capacidade das intuições públicas e privadas em gerarem informações e soluções úteis que favoreçam o bem comum, em detrimento de interesses privados. Certamente, dentre as consequências da gestão da COVID-19, é possível destacar a necessidade de colocar na ordem do dia a discussão sobre as relações de compromissos entre Estado e sociedade e o enfrentamento dos problemas éticos gerados pela valorização dos interesses pessoais em detrimento do interesse público.

A pandemia da COVID-19 revelou-se um momento importante para reflexão sobre mudanças autoimpostas e aquelas que precisam ser gerenciadas, seja no âmbito pessoal, familiar ou organizacional. Tem se revelado, certamente, um período de manifestações efusivas de crenças e argumentos, incertezas e deliberações, ações e conflitos, interesses e compromissos. Mas, também, de avanços científicos e discussão sobre o presente e o futuro.

A rPOT, ao longo dessa pandemia, tem incentivado a produção científica sobre as repercussões da epidemia no mundo do trabalho e das organizações, seus desafios e perspectivas. Algumas desses trabalhos podem identificados em recentes publicações sobre riscos ocupacionais, estressores no trabalho, suporte e saúde mental no trabalho (Cortez, Cordeiro Júnior, & Medeiros-Costa, 2021; Freitas & Mourão, 2020; Tomasi, Rissi, & Pauli, 2020). A rPOT segue a sua diretriz principal de divulgar, por meio das suas publicações, contribuições científicas e práticas profissionais sobre o mundo do trabalho e das organizações, notadamente as que envolvem processos psicológicos e psicossociais, tais como as que se encontram neste número.

Por fim, temos a grata satisfação de anunciar que a rPOT, considerada a mais importante revista cientifica, em sua área, na América Latina, foi citada no Historical Perspectives in Industrial and Organizational Psychology (Feitosa & Sim, 2021) como um dos mais importantes periódicos do mundo no campo da Psicologia das Organizações e do Trabalho. A rPOT, vinculada à Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT), ganha, definitivamente, reconhecimento internacional por seu histórico de contribuições científicas e profissionais.

 

Referências

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Cortez, B. R., Cordeiro Júnior, J. C. M., & Medeiros Costa, M. E. (2021). Contexto de Trabalho e Riscos Psicossociais na Residência Médica em Ortopedia. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 21(1),1379-1386 https://doi.org/10.5935/rpot/2021.1.20105        [ Links ]

Cruz, R. M., Borges-Andrade, J. E., Andrade, A. L. D., Moscon, D. C. B., Viseu, J., Micheletto, M. R. D., ... & Carvalho-Freitas, M. N. D. (2021). O legado da pandemia da COVID-19 para a psicologia das organizações e do trabalho. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 21(2),1-2. https://doi.org/10.5935/rpot/2021.2.editorial        [ Links ]

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Figueiredo, E., Ribeiro, C., Pereira, P., & Passos, C. (2021). Teletrabalho: contributos e desafios para as organizações. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 21(2),1427-1438. http://doi.org/10.5935/rpot/2021.2.21642        [ Links ]

Freitas, A. F. S., & Mourão, L. (2020). Evidências de validade psicométricas do inventário de estressores no trabalho em oncologia. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 20(2),974-983. https://doi.org/10.17652/rpot/2020.2.17451        [ Links ]

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