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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis June 2013

 

Artigo

 

Considerações sobre a morte e o luto na psicanálise

 

Remarks about death and mourning as understood by psychoanalysis

 

 

Érico Bruno Viana CamposI

I Faculdade de Ciências - UNESP Bauru

 

 


Resumo

O artigo apresenta os caminhos básicos por meio dos quais o pensamento psicanalítico concebe as questões da morte e do luto: a identificação melancólica e a pulsão de morte. As implicações desses conceitos para a compreensão a morte e o luto são discutidas, em especial mostrando que a pulsão de morte, diferentemente de um desejo de morrer, deve ser entendida como uma potencialidade traumática para o aparelho psíquico, necessitando ser ligada e representada. Nesse sentido, argumenta-se que as configurações narcísicas de personalidade em jogo na pós-modernidade favoreçam a explosão da violência no campo da cultura. Um dos reflexos desse processo se dá na carência do trabalho de elaboração psíquica do luto e da morte, o que demonstra a pertinência da definição de “morte escancarada” como uma representação social da morte na atualidade.

 

Palavras-chave: Morte; Luto; Identificação (Psicanálise); Pulsão de Morte.


Abstract

This paper presents the basic trends by which psychoanalytical thought understands the subject of death and mourning: the melancholic identification and the death instinct. The implications of these concepts to the comprehension of death and mourning are discussed, specially showing that the death instinct, differently than a wish to die, must be understood as a traumatic potentiality to the psychic apparatus, which needs to be bound and represented. In this sense, it is argued that the narcissist personality configurations in place on post-modernity lead to violence explosion on the field of culture. One of the results of this process can be traced in the lack of psychic elaboration work of mourning and death, which demonstrate the relevance of the definition of “wide-open death” as a social representation of death nowadays.

 

Keywords: Death; Grief; Identification (Psychoanalysis); Death Instinct.


 

 

Introdução

Quando se fala na questão da morte a partir da teoria psicanalítica, a associação com o conceito de pulsão de morte é inevitável. Entretanto, a relação entre a ideia da morte e a pulsão de morte não é tão direta como às vezes costumamos pensar.

O propósito deste artigo é fazer uma breve revisão dos eixos principais da interpretação psicanalítica das questões da morte, passando em revista dois pontos básicos: o da identificação melancólica e o da pulsão de morte. Procura-se mostrar os desdobramentos dessa questão a partir de Freud e de Klein, avançando na hipótese de que as interpretações psicanalíticas da cultura podem trazer, a partir da teoria da pulsão de morte, esclarecimentos à concepção de morte escancarada como uma representação social da morte na contemporaneidade.

 

Revisando a Teoria Psicanalítica

Pensar a questão da morte na teoria psicanalítica deve partir de sua possibilidade de representação, ou seja, a possibilidade de significação da morte no psiquismo e, mais propriamente, no inconsciente.

Já temos aqui uma complicação, pois Freud (1915/1996) afirma veementemente que o inconsciente não retém representações negativas, ou seja, não seria possível falar de uma representação propriamente direta da morte, uma vez que esta deveria significar ausência da vida. Não tendo a experiência da morte, seria, a princípio, impossível ter uma memória dela. Além disso, como a oposição entre representações é um atributo do processo secundário e, portanto, do sistema pré-consciente ou do ego, não poderia haver, no inconsciente, uma representação da morte.

Isso quer dizer que todos os impulsos fundamentais de desejo do homem são positivos. Em outras palavras, as fantasias possuem objetos determinados para sua realização. Assim, a ideia de um desejo de morrer não poderia ser pensada como uma fantasia inconsciente por si só. Veremos, mais adiante, que as fantasias de morte são mais complexas que o mero desejo de morte por parte de um investimento da pulsão de morte.

Por outro lado, Freud (1920/1996) também afirma que a pulsão de morte é o princípio conservador por excelência e a compulsão à repetição expressa aquilo que é o mais pulsional da pulsão. Nesse sentido, podemos afirmar que a pulsão de morte é a pulsão por excelência e, nesse sentido, a problemática da pulsão de morte está no cerne da constituição do psiquismo. Como podemos equacionar essa aparente contradição: a morte não encontra representação no psiquismo e, porém, está no cerne de seu funcionamento?

Para boa parte da Psicanálise desde Freud o psiquismo é entendido como um modelo energético-representacional, ou seja, um conjunto de representações ideativas e afetivas organizadas entre si e alimentadas por uma energia endógena. Na segunda teoria pulsional, Freud faz da oposição entre as pulsões de vida e de morte o motor essencial da Psicanálise.

As pulsões de vida constituiriam a força de ligação em jogo no aparelho psíquico, em oposição à pulsão de morte, que seria a força de desligamento. Tudo que é representação e tentativa de organização é expressão da pulsão de vida, enquanto toda ruptura e traumatismo à organização do psiquismo é expressão da pulsão de morte. Essa idéia leva a um pequeno paradoxo, pois chegamos facilmente à conclusão de que a pulsão de morte é contra toda a possibilidade de representação no psiquismo, uma vez que ela é a tendência de descarga absoluta da energia psíquica, o que levaria, em última instância a um esvaziamento e destruição do próprio psiquismo. Assim, a pulsão de morte age de forma muda no psiquismo, sabotando-o na surdina. Sua expressão só pode ser deduzida de forma indireta, por meio dos fenômenos da compulsão à repetição, da reação terapêutica negativa, do sentimento inconsciente de culpa e da agressividade.

Esse é um ponto importante, pois se depreende da teoria freudiana que a pulsão de morte nunca pode se expressar sozinha. Ela está sempre combinada em maior ou menor grau com as pulsões de vida, de onde extraímos a ideia de que a libido será sempre uma fusão de componentes eróticos e tanáticos.

Embora possamos afirmar que haja um componente de pulsão de morte em jogo nos desejos destrutivos e, principalmente, na agressividade auto-dirigida, a pulsão de morte não é suficiente para compreender a dinâmica de fantasias envolvida no desejo de morrer.

 

Luto, Identificação, Melancolia e Mania

Para entender os estados maníaco-depressivos, bem como as tendências suicidas e os humores melancólicos, é preciso levar em consideração a dinâmica de identificações que leva ao psiquismo se estruturar em torno de determinada forma de sofrer pelo desejo. Dessa forma, não basta tomar em consideração a dinâmica da pulsão de morte, mas tomá-la em relação ao jogo de identificações que constitui o sujeito.

O humor depressivo, o luto e a melancolia, são expressões afetivas que foram pouco estudadas por Freud. O grande protótipo dos afetos em Psicanálise foi a angústia, entendida quer seja como uma expressão afetiva desprovida de uma ligação simbólica original, quer seja como uma sinalização do ego com relação ao perigo da castração. De qualquer forma, o desprazer sempre esteve ligado a uma intensidade afetiva exagerada e sem conteúdo consciente determinado. Enfim, não havia lugar para a falta de intensidade afetiva tão característica dos quadros depressivos.

Foi preciso esperar Melanie Klein para que os afetos desprazerosos ganhassem conotações variadas, para além da angústia de castração, que permanecera o alicerce da Psicanálise freudiana. Os avanços de Klein, contudo, se deram a partir de alguns caminhos abertos por Freud; caminhos estes que o levaram à pulsão de morte.

Um desses caminhos é justamente o da identificação melancólica, que aborda o problema do luto e da melancolia. Em seu texto clássico, Freud (1917/1996) lança alguma luz sobre a psicogênese dos estados melancólicos – aquilo que na terminologia de hoje tenderíamos a chamar de depressão.

Partindo de uma descrição dos quadros melancólicos, Freud assinala que dois aspectos chamam a atenção nesse tipo de patologia: os afetos depressivos e a auto-recriminação do ego. Estabelece, então, uma analogia entre a patologia e a normalidade ao comparar a fantasia melancólica com o trabalho do luto. A idéia é que o trabalho normal do luto envolve a redistribuição da libido antes investida no objeto de amor perdido.

O trabalho de simbolizar e elaborar a perda, reencontrando novos caminhos para o desejo, leva certo tempo e envolve algum pesar. É por meio desse percurso que esses objetos de amor podem ser desinvestidos e o sujeito passa a encontrar novos substitutos. Evidentemente, esse processo não é tão simples, pois envolve não apenas encontrar um objeto substituto, mas elaborar as fantasias conscientes e inconscientes que são ativadas com a perda de objeto. O processo de luto é, portanto, um redimensionamento das fantasias e defesas do psiquismo, em busca de um novo equilíbrio de forças.

O trabalho de luto, contudo, nem sempre é satisfatoriamente elaborado. Além do luto patológico, em que esse trabalho se cronifica e cristaliza, temos, também, um paralelo com a patologia melancólica. No caso da melancolia, o que há é uma identificação com o objeto perdido de amor. Esse é o conceito de identificação melancólica: o objeto perdido é internalizado e identificado com o ego, de tal forma que o amor antes investido no objeto retorna ao ego invertido em seu oposto, ou seja, o ódio pelo abandono do objeto recai sobre o próprio ego do sujeito, daí a famosa frase de Freud (1917/1996) de que a sombra do objeto recai sobre o ego. Esse ideal de ego inatingível e mortífero é o que causa a auto-recriminação do ego, característica distintiva da melancolia em relação ao trabalho normal de luto.

É por meio desse caminho tortuoso que combina aspectos amorosos e agressivos da libido por meio de mecanismos de identificação que podemos entender o afeto depressivo e o luto pelo objeto em Psicanálise. Não basta, portanto, apontar a pulsão de morte, mas entender como a história de identificações e sua elaboração na relação com o objeto desencadeiam regressões e fixações da libido, que podem levar a novos remanejamentos da dinâmica entre pulsões de vida e pulsões de morte. A ideia de uma identificação melancólica, na qual o objeto é identificado como ideal do ego e sua libido é defusionada em agressão auto-dirigida é um modelo interessante para compreender as potencialidades suicidas, as estruturas melancólicas e os lutos patológicos.

Do ponto de vista psicanalítico, os lutos patológicos e as tendências suicidas que se desenvolvem ao longo da vida só podem ser entendidos como um reflexo da estruturação mais básica de personalidade, que se constitui por meio das identificações narcísicas e edípicas ao longo da infância. Essa história de simbolizações é que irá ressignificar os eventos traumáticos da vida do sujeito. Desse modo, uma perda poderá trazer uma nova significação para um conjunto de fantasias e afetos inconscientes do sujeito.

Isso explicaria porque para algumas pessoas a perda de alguém é tão disruptiva e para outras não. A ideia é que essa perda atual se liga a um complexo de fantasias inconscientes, reavivando os impulsos e defesas, desestabilizando a estrutura dinâmica da personalidade. A perda de um ente querido pode ser o desencadeador de uma série de patologias, em especial os quadros depressivos, uma vez que em ambos é a angústia de perda de objeto que se coloca mais evidentemente. Dessa forma, poderíamos descrever uma série de fantasias conscientes e inconscientes que estão mais comumente presentes em relação à morte ou na elaboração desta, como o faz Cassorla (1992), mas o mais importante é saber que significado essas fantasias possuem na estrutura simbólica do sujeito singular.

Como afirmado anteriormente, Freud não explorou em profundidade as angústias para além da angústia de castração, preferindo marcar a centralidade da fase fálica como ponto estruturante e convergente da dinâmica da personalidade (Freud, 1926/1996). Foram necessários alguns desenvolvimentos pós-freudianos para que outras dimensões de angústia ganhassem relevo. No tocante a presente discussão, gostaria de destacar duas delas mais especificamente: (1) a angústia originária e (2) a angústia depressiva pela perda do objeto.

A angústia originária diz respeito à angústia da irrupção da pulsão de morte em um aparelho psíquico que perde as possibilidades de ligá-la em representações. Seria a pulsão em seu estado mais puro, buscando a descarga a qualquer custo e destruindo as associações entre as representações do psiquismo. Esse seria, portanto, o momento mais propriamente traumático contra o qual o aparelho psíquico se defende constantemente: o desamparo diante do inominável da pulsão. O trauma, portanto, não tem representação. É puro excesso demandando sentido. A pura pulsão de morte é, portanto, um sinal de morte psíquica e não morte do corpo ou do organismo. Um sujeito invadido pela pulsão de morte não deseja a morte, ele simplesmente não deseja, sendo invadido pela angústia de perda de sua personalidade. Quando a trama de representações que constitui nossa identidade se estilhaça, estamos à beira do colapso mental.

Em outras palavras, poderíamos dizer que a pura pulsão de morte está longe da fantasia melancólica ou depressiva e muito mais próxima da violência psíquica em estado bruto. Não se trata, portanto, de uma angústia de perda do objeto, mas a desintegração do Eu. Estamos, nesse caso, gravitando no campo das psicoses e não das patologias de cunho melancólico ou depressivo.

Para entendermos, portanto, a especificidade dos quadros depressivos e dos lutos patológicos, devemos voltar nossa atenção para a idéia de uma angústia de perda de objeto e não para a pura pulsão de morte, tal como expressa na angústia originária ou de desintegração. Sem entrarmos em muitos detalhes psicopatológicos, pois não é esse o intuito do presente artigo, podemos dizer que essa problemática transita ao redor desse tipo de angústia e das defesas por elas mobilizadas.

A tradição kleiniana é responsável por um grande avanço na elucidação dessas angústias primitivas em relação ao objeto. Basicamente, podemos dizer que Klein focou a problemática da estruturação da personalidade para o momento das identificações pré-edípicas com os objetos, ou seja, as relações duais com o objeto e não as triangulares. Nesse percurso, que configurou toda a sua obra, chegou a duas constelações de relações de objeto, modalidades de angústia e mecanismos de defesa que chamou de posições esquizo-paranóide e depressiva (Klein, 1935/1996, 1940/1996, 1946/1991).

A posição depressiva seria aquela em que o bebê chega à constituição do objeto total, por meio da integração dos objetos parciais prototípicos que são o seio bom e o seio mau. Nessa integração, o bebê sente a angústia de ter feito mal ao objeto, uma vez que percebe que a mãe boa e a mãe má são uma única pessoa. Emerge daí o afeto depressivo como expressão da fantasia de culpa por destruição do objeto de amor, mobilizando novas defesas e ressignificando as fantasias precedentes.

A idéia é que uma internalização satisfatória do bom objeto possa garantir sua sobrevivência à integração, possibilitando ao bebê reparar em fantasia o objeto destruído e perdido. Isso fará com que ele possa vivenciar o afeto depressivo de forma positiva, elaborando esse luto primordial pelo objeto.

É interessante notar algumas nuances acrescentadas pela perspectiva kleiniana ao modelo freudiano. Se em Freud a tônica era dada à angústia de perda do objeto, com Klein essa perda do objeto está associada a uma fantasia primitiva de destruição do objeto, o que quer dizer que, inconscientemente, o sujeito não só se ressente do objeto que o abandonou, mais se culpa pela destruição do objeto de amor. Essas considerações trazem, portanto, uma compreensão renovada para a questão da auto-recriminação melancólica descrita por Freud.

Vê-se, portanto, que um destino possível para esse complexo de fantasias e defesas é a identificação melancólica anteriormente descrita, ou seja, o sujeito identifica-se com esse objeto perdido/destruído, perdendo com isso seu próprio investimento egóico, daí a diminuição da “auto-estima”.

Outro destino patológico também é possível. Trata-se da defesa maníaca contra a perda do objeto. Se o objeto bom não está assegurado, a experiência da integração pode levar à seguinte defesa: recria-se a cisão isolando-se e idealizando-se o bom objeto, só que agora percebido como total. Em outras palavras, há uma negação radical da perda e do luto como forma de evitar entrar em contato com essa angústia. Porém essa idealização leva, também, a um esvaziamento do ego, pois a internalização desse objeto fica comprometida. A idealização também não pode ser mantida por muito tempo, a não ser que haja uma regressão para o nível da psicose, no qual a própria realidade é substituída por outra delirante, mas normalmente não é esse o caso. O depressivo já deu um passo fundamental em direção à integração do objeto, não sendo fácil abandoná-lo. Decorre dessa dinâmica o fato de que para a Psicanálise, principalmente a kleiniana, estados maníacos e depressivos são, muitas vezes, faces de um mesmo complexo de fantasias estruturantes do sujeito. Vemos também, como podem ser explicadas algumas reações típicas do luto, como a persistência da negação (Kübler-Ross, 1969) para além do momento traumático inicial.

Embora não tenha sido exaustivo nas considerações psicopatológicas envolvidas na elaboração do luto e na fixação das patologias depressivas, este percurso possibilitou um esboço suficientemente abrangente do caminho por meio do qual se articula a questão na Psicanálise, mostrando a pertinência do conceito de identificação melancólica em Freud e da posição depressiva em Melanie Klein para compreender a fantasia de morte do objeto como elemento estruturante da personalidade.

Argumentou-se, também, como o conceito de pulsão de morte se liga apenas indiretamente a essa problemática, uma vez que a pulsão de morte não significa desejo de morrer, mas algo que está além do princípio de prazer, sendo, portanto, uma ameaça potencial de desintegração do psiquismo por meio do trauma do desamparo originário. Isso, contudo, não quer dizer que a questão da pulsão de morte não se coloque para compreender os processos envolvidos na morte e no luto. O problema, contudo, se coloca em outro lugar. Procuraremos, a seguir, mostrar como ela emerge no campo da cultura.

 

Morte, Narcisismo e Cultura

Quando se fala da articulação entre Psicanálise e cultura, chegamos facilmente a uma série de afirmações consagradas, como as frases de que para a Psicanálise toda a Psicologia seria, antes de tudo, uma Psicologia social (Freud, 1921/1996) ou afirmações sobre o vínculo inalienável entre clínica, teoria e cultura na construção do conhecimento psicanalítico (Mezan, 1988). Embora esse reconhecimento seja importante para nos precavermos do excesso da visão intrapsíquica em Psicanálise, entendemos que esta discussão tenha perdido importância na atualidade, ou seja, é praticamente um fato reconhecido que a Psicanálise seja um discurso sobre o social.

Gostaríamos agora de avançar nesse ponto, trazendo de volta a questão da pulsão de morte para a compreensão de nosso problema. A hipótese é que é no campo do social que a teoria da pulsão de morte mostra sua pertinência para a compreensão do problema da morte e do luto.

Pode-se afirmar que parte do interesse de Freud pela cultura tenha se dado como forma de traçar os efeitos da pulsão morte (Mezan, 1990). A idéia é que a pulsão de morte age silenciosamente no psiquismo, expressando-se apenas fusionada à pulsão de vida na forma de libido. Em sua elaboração do tema, Freud percebeu que além do potencial traumático da pulsão de morte, que se expressaria pelas sabotagens internas ao prazer, por meio da compulsão à repetição, apenas outra expressão parecia corroborar a hipótese da pulsão de morte: a agressividade e a destruição. Seria então no campo da cultura que essa agressividade, expressão libidinal da pulsão de morte, ganharia a espessura de um conflito. A hipótese do grande texto social de Freud (1929/1996) é de que o sentimento inconsciente de culpa, reflexo da frustração da pulsão de morte, seria a fonte do mal-estar na cultura, uma espécie de avesso do processo civilizatório. A idéia que se consolida nesse momento final da obra freudiana é que a agressão auto-dirigida precisa ser projetada em direção aos outros como forma de resguardar o ego da destruição da pulsão de morte, criando dinâmicas grupais como o narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1921/1996; 1929/1996).

Assim, é no seio da cultura que a pulsão de morte ganha suas contenções, por meio dos ideais culturais que fornecem um contraponto à sabotagem da pulsão de morte. Nesse sentido, é fundamental a instauração do superego e a sublimação das pulsões por meio dos ideais fornecidos pela cultura, como a ciência, a religião, as artes e demais instituições.

O problema é que a cultura que serviu de objeto de reflexão para Freud não é exatamente a de hoje. Sabemos, a partir das demais ciências humanas, que a cultura da modernidade está passando por alterações fundamentais, o que configura para alguns a dita pós-modernidade e, para outros, uma modernidade tardia (Birman, 2006). Não entraremos no mérito da questão, mas é importante sinalizar que a estrutura sócio-cultural na atualidade não responde mais aos padrões ditados pela modernidade. Há um certo consenso na denúncia do declínio das instituições, dos ideais coletivos e das diretrizes morais, além de um aumento do relativismo e do individualismo, sem falar na transitoriedade dos valores, na fugacidade das experiências e na escalada da violência.

Alguns autores procuram interpretar essa mudança na relação constitutiva entre indivíduo e cultura por meio do referencial psicanalítico (Costa, 1988; Costa, 2003; Birman, 2000; Birman, 2006). Em geral essas interpretações utilizam algumas concepções oriundas das ciências sociais, como cultura do narcisismo, sociedade do espetáculo e de consumo, para sustentar um declínio das relações triangulares e Edípicas na estruturação dos modos de subjetivação da atualidade. Haveria, portanto, um declínio da função paterna na pós-modernidade, que seria visível tanto no campo da cultura como no campo das relações familiares. Assim, é a formação do superego que está comprometida nas estruturações contemporâneas, cada vez mais articuladas e sedimentadas em torno das relações duais e, portanto, narcísicas (Birman, 2000).

O narcisismo diz respeito à relação de complementaridade entre o eu e o outro, em que o eu e o outro estão presos em uma alienação especular do desejo: o outro me completa e eu completo o outro. Não há reconhecimento da falta e, portanto, não há separação do objeto. A separação definitiva do objeto, sua interdição, só se conclui com a dissolução do complexo de Édipo. É a interdição do pleno desejo, criando o tabu ao incesto e ao parricídio, que fundaria a ordem da cultura. A cultura, portanto, seria o receptáculo dos ideais na formação do superego do indivíduo. Instituições sociais fortes e consolidadas, emanando uma lei rígida e universal, seriam a condição para a constituição do sujeito, uma vez que dariam o sentido das identificações ao qual o indivíduo poderia se apegar na constituição do seu eu e sublimação de seu desejo. A idéia, portanto, era de que o indivíduo poderia verticalizar seu desejo investindo os ideais culturais como meta de sua identificação.

Em termos práticos, isso quer dizer que leis e simbologias culturais consagradas garantiriam uma descriminação dos lugares sociais e da economia do desejo dos indivíduos: o sujeito abriria mão do incesto e do parricídio mais ganharia o mundo da cultura, bastando para isso tornar-se um bom neurótico.

Mas eis que a pós-modernidade trouxe uma desmontagem das instituições sociais e culturais, pregando o relativismo e a inexistência do sujeito e de qualquer ideal utópico de construção de uma sociedade melhor. A implosão dos ideais coletivos relegou os sujeitos as suas individualidades. O problema, contudo, é que a implosão dos ideais culturais levou consigo a estruturação vertical do sujeito: sem ideais em que se espelhar, que eu poderá se constituir? A cultura da falta de limites, da violência e da predação do outro remete, portanto, a uma regressão narcísica dos modos de subjetivação contemporâneos. Diferentemente de um narcisismo constitutivo, ponte necessária para a estruturação da personalidade, tem-se um narcisismo reativo, forma de defesa contra o trauma eminente de uma cultura sem amarras sociais. Podemos, portanto, falar de um narcisismo negativo, fruto da explosão da violência no campo social (Costa, 2003).

Por esse longo desvio é que podemos voltar à questão da pulsão de morte. Se na modernidade as amarras sociais representadas pelos ideais culturais garantiam uma certa contenção, ligação e simbolização da pulsão de morte, parece que a configuração social da pós-modernidade favorece uma explosão dessa pulsão da forma de violência, levando a um narcisismo extremamente danoso aos sujeitos. O narcisismo pós-moderno pode ser entendido como uma tentativa de ligação do excesso traumático da pulsão de morte por meio de um vínculo social com ou outro que não se cristaliza. É isso que explica o paradoxo dessa sociedade do espetáculo, em que a individualidade necessita incessantemente do olhar do outro para se manter. Nesse sentido, pode-se entender porque esse narcisismo é marcado pela expressão e tentativa de ligação da pulsão de morte.

Birman (2000) tece uma série de considerações a partir dessa interpretação dos modos de subjetivação na pós-modernidade, chegando à conclusão de que estamos sob o signo do ideal performático. Isso quer dizer que o ideal ilusório e narcísico propalado pela cultura na atualidade sustenta uma posição impossível de performance contínua em que a felicidade, a beleza e a perfeição são metas constantes. Isso quer dizer que não há lugar para a falta e para a incompletude na cultura contemporânea.

Havendo mostrado como a pulsão de morte emerge com toda a força no seio do social em nossa sociedade, cabe agora discutir especificamente os desdobramentos desse percurso para a questão da morte na sociedade ocidental.

Retomando alguns estudos sobre a história social da morte (Ariés, 1977a, 1977b), notamos uma progressiva mudança na forma com que a morte é significada socialmente no ocidente. A concepção de uma morte domada, em que havia toda uma rede de símbolos e ritos que determinavam um lugar social para a morte, facilitando a sua simbolização pelos indivíduos relacionados ao morto e para o próprio moribundo, progressivamente foi perdendo espaço para práticas que tendiam a isolar a morte do processo vital. Inicialmente representando a marca da falência do sujeito da modernidade em sua autodeterminação e libertação do jugo divino e passando a significar a ocultação da própria finitude frente aos avanços da grande empreitada científica humana, cada vez mais a morte foi perdendo sua inserção social e sua faceta humana para ser silenciada e apartada do círculo das relações sociais, dificultando a elaboração do luto e da morte. (Kóvacs, 2003a, 2003b).

Nesse contexto, duas representações sociais passam a configurar a relação com a morte e o morrer na modernidade tardia: a morte silenciada e a morte escancarada. A primeira diz respeito a toda exclusão da problemática da morte da circulação social, ficando confinada aos hospitais e instituições de saúde e ganhando conotações de isolamento afetivo, assepsia e negação. Já a segunda, mais recente, diz respeito à banalização da morte e da violência na cultura, já que a mesma se torna uma espécie de objeto de consumo e também uma fonte de persecutoreidade. Embora “escancarada” essa relação com a morte é também marcada por embotamentos afetivos, já que ela aparece como fetiche, como uma imagem distanciada que não nos diz respeito. Nesse sentido, implica em uma banalização da morte, que passa a bombardear o cotidiano por meio da mídia, criando uma situação de terror constante que parece já não nos afetar mais. Cabe ressaltar que a presença simultânea dessas duas representações sociais da morte na contemporaneidade criam um verdadeiro paradoxo, já que a morte própria não encontra lugar para ser elaborada, enquanto a morte do outro nos seduz cada vez mais.

Entende-se que essa descrição proposta por Kóvacs a partir dos estudos de Ariés encontra respaldo nas interpretações psicanalíticas sobre a passagem da cultura moderna para uma cultura pós-moderna narcísica, marcada pela impossibilidade de reconhecimento da falta constitutiva de todos nós, cujo maior emblema é a morte.

Isso, contudo, não responde toda a questão. É preciso entender como em uma sociedade tão marcada pela impossibilidade de reconhecimento da falta e da finitude essa mesma finitude não canse de se mostrar e de causar fascínio nas pessoas. Testar os limites da própria vida é uma das grandes fantasias de vencer a morte em evidência em nossa cultura contemporânea. Além disso, o mais interessante é notar que cada vez mais é no corpo que precisa se inscrever essa vivência, quer seja na imagem, quer seja na sensação, como se houvesse uma impossibilidade de elaboração simbólica desse conflito.

Ora, mais uma vez é a ideia do narcisismo como modelo de estruturação egóica que vem lançar luz sobre essa questão. A violência da imagem ou da experiência que se repete freneticamente, aliada a uma impossibilidade de simbolização nada mais é do que aquilo que conhecemos em Psicanálise como compulsão à repetição. Na impossibilidade de elaborar a fantasia, o indivíduo a repete; na impossibilidade de representar um afeto, ele o atua compulsivamente até a exaustão. Assim, é o corpo que toma as dores do psiquismo traumatizado e paralisado. Parece-me que talvez essa seja uma interpretação possível para a compreensão do fenômeno da morte escancarada (Kóvacs, 2003a, 2003b). A morte violentamente traumatiza o nosso narcisismo, ao qual só podemos nos defender maniacamente, ignorando nossa falta e suplantando nosso próprio psiquismo. Dessa forma, temos o corpo cada vez mais como um campo de batalhas entre a vida e a morte, como se a excomunhão do espírito levasse consigo a subjetividade, deixando apenas o organismo para lidar com a responsabilidade de existir.

 

Conclusão

Ao fim dessas considerações, acreditamos ter minimamente desenvolvido os pontos que se propôs abordar. Pretendeu-se, por um lado, desmistificar algumas questões em torno da pulsão de morte na Psicanálise e mostrar por que caminhos essa disciplina pode ajudar a compreender a estruturação psíquica do indivíduo que vive um luto patológico ou um processo depressivo com ideações suicidas. Por outro lado, apontou-se como a teoria da pulsão de morte, pensada em articulação com os modos de subjetivação contemporâneos, poderia lançar uma certa luz para a compreensão do lugar da morte na sociedade globalizada da atualidade.

Defendemos que a hipótese de um narcisismo mortífero como modo de estruturação da cultura performática permite entender não só a ideia de uma morte silenciada, mas o seu próprio paradoxo, a saber, a simultaneidade da morte escancarada. Conclui-se afirmando que o referencial psicanalítico, embasado nas interpretações sociais da cultura, pode ser um instrumento interessante para compreender a problemática inerente ao luto e ao morrer tanto no nível individual quanto no social.

 

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Recebido: 20 de março de 2012.
Aprovado: 14 de maio de 2013.