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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis June 2013

 

Artigo

 

Conversações

 

Conversations

 

 

Sonia Aparecida Moreira FrançaI

I Universidade Estadual Paulista - Assis

 

 


RESUMO

Neste ensaio, realizamos uma leitura crítica de dois textos clássicos da literatura psicológica. Os textos de Maria Luiza Siquier de Ocampo e Maria Esther García Arzeno, que se encontram no livro O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas (1981). Para as autoras, a entrevista é um campo relacional. Logo, o modo como este se realiza depende de como se efetuam as forças que sobrecodificam o encontro, por conseguinte, sua realização depende de como o saber psicológico se oferta. Entretanto, observamos que o campo conceitual exposto pelas autoras, ora está a caminhar no interior da hipótese freudiana, ora na teoria do sujeito da consciência. Afinal, qual conceito de homem estaria a permear as proposições teóricas enfocadas por essas autoras e as práticas delas decorrentes? A partir da leitura do texto de Gilles Deleuze, Una Entrevista, qué es? para qué sirve? – primeiro capítulo de seu livro Diálogos com Claire Parnet, de 1977, vemos que a arte de construir um problema pode durar uma vida inteira e, geralmente, em uma entrevista, quase sempre não se tem esta oportunidade. A leitura crítica destes clássicos respaldada na filosofia da diferença, nos permite concluir que uma conversação é um campo de experimentação dotado de murmúrios, é uma linha de tempo a proporcionar ao pensamento uma corrente de ar fresco para os que nunca puderam ser pensados. Neste sentido, os clássicos modelos de entrevistas psicológicas, pautados em roteiros, pouco acrescentam à compreensão das emoções em um sentido dialógico, mas, ao contrário, não faz outra coisa senão inventar o objeto que se quer diagnosticar, aprisionando-o em um único sentido, o do entrevistador.

 


ABSTRACT

In this essay, we conducted a critical reading of two classic texts of psychological literature. The texts of Maria Luiza Siquier O’campo and Maria Esther Garcia Arzeno, which are in the book The psychodiagnostic process and projective techniques(1981). For these authors, interviews are a relational field. So, the way it is done depends on how you perform the forces of decoding of the meeting, therefore, its realization depends on how psychological knowledge is offered. However, we observed that the conceptual field exposed by these authors, sometimes is inside the Freudian hypothesis, and sometimes in the theory of the subject of consciousness. After all, what concept of human is permeating the theoretical propositions focused by these authors and practices resulting from them? From the reading of the text of Gilles Deleuze, Una entrevista, qué es? Para qué sirve? - first chapter of his book Dialogues with Claire Parnet (1977), we see that the art of building a problem can last a lifetime and usually in an interview, we often do not have this opportunity. A critical reading of these classics based on the philosophy of difference, allows us to conclude that a conversation is a field of experimentation endowed with murmurs, is a timeline to give thought to a current of fresh air for those who never thought they could be. In this sense, the classical models of psychological interviews, guided by scripts, add little to the understanding of emotions in a dialogical sense, but, besides, does nothing but invent the object it wants to diagnose, trapping it in the interviewer’s own meaning.

 


 

 

Durante o concurso de Livre-Docência, em 2004, fora sorteado para a prova escrita o seguinte tema de trabalho: O uso da entrevista: como instrumento diagnóstico, como instrumento terapêutico e de pesquisa.

A princípio, o tema parecera espinhoso e, contudo, estivera presente em diversos momentos de meu percurso acadêmico, desde o concurso de efetivação na Universidade, em 1983, pois fizera parte de uma das provas. Enquanto preparava os pontos do concurso, esse tema era um eixo de inquietação. Recorri aos colegas em busca de bibliografia, andava por corredores da faculdade à procura de um texto. Como um personagem de Pirandello à procura de um autor, vagava na indeterminação.

Assim estava, quando empreendi a escrita do ponto. Iniciei com os textos de Maria Luiza Siquier de Ocampo e Maria Esther García Arzeno, intitulados: A entrevista inicial; Entrevistas para a aplicação de testes; A entrevista de devolução, de informação e O informe psicológico, que encontrara no livro O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas de 1981. Todos eles referenciados como clássicos no trabalho de psicodiagnóstico das práticas da psicologia.

Para as autoras, o processo de psicodiagnóstico configura-se como uma situação com funções definidas, é uma espécie de contrato a partir do qual o paciente e o psicólogo estão implicados em uma demanda que designa um dos vetores constitutivos da entrevista psicológica. Esta se divide em três momentos: o primeiro, denominado entrevista diretiva, objetiva a constituição e esclarecimento do enquadramento clínico, ou seja, as regras que orientam o encontro.

Para o psicólogo, as perguntas que se lhe impõem são: quem são essas pessoas, aqui, agora, comigo, e o que demandam deste lugar em que nos encontramos? Este é o segundo parâmetro: circunscrever o motivo da consulta. Nesse momento, é importante que a entrevista adquira um campo livre e aberto, para o entrevistado poder expressar, como lhe for menos angustiante, o que considera como problema, isto é, que o campo da entrevista se desenhe segundo as estruturas psicológicas particulares de um e de outro.

Conforme as autoras, não se pode esquecer que a entrevista sempre se efetiva como um fenômeno grupal, pois as forças presentes no encontro partem do conjunto psicólogo/cliente, e são elas que constroem o campo de relação o qual definirá os caminhos percorridos na entrevista. Portanto, de início, pode-se observar que os objetivos da entrevista operam em sua própria realização, porque neles estão implicados, segundo as autoras, os níveis de aspirações conscientes ou inconscientes que cada um dos sujeitos encarna.

No que diz respeito ao psicólogo, suas aspirações são engendradas por um domínio de saber que referenda suas intervenções, e tudo depende do tipo de relação estabelecida com o campo de conhecimento que legitima sua especialidade. Ou seja, os contornos da entrevista se efetivam a partir de um modo de circulação que o psicólogo estabelece com os conceitos de saúde e de doença, e com a ação ética e política que esse ato implica. Por conseguinte, a realização da entrevista depende dos modos como esse saber psicológico se oferta.

Para o cliente, suas aspirações são orientadas pelo sintoma, pelo desejo de que este seja solucionado, que esse encontro o liberte do que o faz sofrer. Outro aspecto a ser considerado é como o paciente irá configurar o campo da entrevista, como irá contar sua história, quer dizer, as possíveis articulações do sintoma com seus modos de viver familiar e social. Nesse ponto, pode-se notar que, para as autoras, há uma diferença radical entre os conteúdos ofertados pelo paciente e aqueles trazidos pelo entrevistador para o que irá fundamentar o campo da entrevista: o saber da especialidade e o saber que o paciente traz sobre o que ilustra como sintoma.

Ao evidenciar a entrevista como um campo relacional, o modo como este se efetiva depende de como essas aspirações, essas forças que sobrecodificam o encontro são tomadas em consideração. Mais importante do que obter dados completos da vida do indivíduo é trazer em cena o tipo de saber o qual está em jogo, e que o que se está a dizer é emergente desse campo grupal: o que parte do entrevistado, do entrevistador e da relação entre os dois. Em consequência, a matéria da comunicação é constituída pela própria situação da entrevista, inclusive o contexto em que esta se expressa. A análise deve se dirigir aos modos de aparecer dos comportamentos, aos modos de circulação dos enunciados e das configurações afetivas surgidas no decorrer da própria entrevista.

Comecemos pelo primeiro texto: A entrevista inicial. No entender das autoras, de início, ela deve ser semidirigida. O que isso quer dizer? Que o campo da entrevista deve ser traçado com base em problemas propostos pelo entrevistado, contudo, ao entrevistador fica a tarefa de intervir a partir de alguns parâmetros:

(...) a) assinalar alguns vetores quando o entrevistado não sabe como começar ou continuar. Essas perguntas são feitas, é claro, da maneira mais ampla possível; b) assinalar situações de bloqueio ou paralisação por incremento da angústia para assegurar o cumprimento dos objetivos da entrevista; c) indagar acerca de aspectos da conduta do entrevistado, aos quais este não se referiu espontaneamente, acerca de “lacunas” na informação do paciente e que são consideradas de especial importância, ou acerca de contradições, ambigüidades e verbalizações “obscuras”. (Ocampo, Piccolo, Arzeno & col.,1981, p.23).

Mais ainda, que a técnica de entrevista semidirigida deve levar em conta duas proposições: a primeira é a de que se está a conhecer o paciente; a segunda é a de que há um motivo que o traz à presença de um psicólogo. Um encontro que o inscreve no registro terapêutico, ou seja, uma consulta com um especialista e, principalmente, “(...) a necessidade de extrair da entrevista certos dados que nos permitam formular hipóteses, planejar a bateria de testes e, posteriormente, interpretar com maior precisão os dados dos testes e da entrevista final.” (Ocampo et al.,1981, p.23).

O que seria então esse ato de circunscrever um campo existencial e de interpretar os modos em que ele opera? No entender das autoras, seria o de tomar em consideração o

(...) tipo de vínculo que o paciente estabelece com o psicólogo, a transferência e a contratransferência, a classe de vínculo que estabelece com outros de suas relações interpessoais, as ansiedades predominantes, as condutas defensivas utilizadas habitualmente, os aspectos patológicos e adaptativos, o diagnóstico e o prognóstico. (Ocampo et al.,1981, p. 24).

Todavia, para que esse campo de interpretação seja construído, é necessário seguir alguns padrões, tais como:

1 - considerar a primeira impressão que o psicólogo rascunhou do paciente, quer dizer, prestar atenção às possíveis flutuações dessa percepção que se realizou no primeiro encontro, se esta se mantém ou se modifica, durante o processo de entrevista. Caso aconteça, em que direção de sentido essa primeira impressão se transforma; em que momento o conteúdo que se lhe oferta não mais se sustenta; em relação a qual tema; em função de qual expressão e como esta se dirige ao terapeuta. Conforme as autoras, há alguns aspectos a considerar, a fim de compor a figura do paciente: a linguagem corporal, as roupas, os gestos, os silêncios, o semblante.

2 - para formular o quadro da interpretação, outro aspecto a levar em conta é o de como avaliar o marco condutor das formas da linguagem ali configurado, pois a palavra, o modo de dizer, é a encarnação do sujeito como pensamento, é o que oferece significação humana ao que está a ser dito, mas é também o que disfarça e segreda um enigma, na história do paciente. Assim, na entrevista, é esse tecido da linguagem que é fabricado, é aquele que revela, mas quer ocultar; o que se oculta, mas quer dizer, ou aquele que se oculta na própria revelação.

Em decorrência, para as autoras, é preciso considerar como as mensagens são emolduradas por aquele que chega, isto é, estar atento a: o que o paciente fala e como fala; em que momento da entrevista ele verbaliza e em que ritmo alimenta seus silêncios ou suas palavras; que conjunto de signos utiliza; como ele propõe expressão social aos significados; como utiliza a memória para revelar sua vida ou dela se esquecer; como transita por fatos bons ou ruins de sua existência; se, ao falar, usa termos ambíguos, imprecisos, reticentes, ou expressa com clareza excessiva para imprimir uma visibilidade tal ao entrevistador que lhe cega; o tom de voz; seus cortes ou tartamudeios. Enfim, a quais imagens o paciente recorre, quando solicita ajuda, pois a figura do entrevistador está envolvida na tríade pai-filho-terapeuta nas fantasias de cura e de resolução. Configurado esse campo, a relação do paciente com o terapeuta é quase inteiramente marcada por fantasias inconscientes, estabelecendo uma rede de conflitos, de defesas e de resistências.

3 - uma terceira tarefa se impõe para o entrevistador, qual seja, considerar o conteúdo das verbalizações do paciente, seu traçado: sobre quais aspectos da vida escolhe falar; dentre estes, quais indicam uma preferência; quais provocam bloqueios, ansiedades, lacunas ou desvios. Por fim, se o que se expressa como conteúdo manifesto se mantém, se anula ou se restringe. Como o paciente enuncia a si mesmo, aos outros e às coisas do mundo. Se, ao falar, o paciente se escuta; se, ao se escutar, o paciente dissimula ou distorce o que se revela para ele. O silêncio, o enigma, a máscara, mais do que simulação, constituem uma revelação do que não pode ainda ser dito, um anúncio de uma presença estranha, mas que não se pode ver, porque não se mostra de imediato aos olhos.

4 - outro campo de análise para o entrevistador é precisar o modo como o paciente considera os três tempos de sua vida: o presente, o passado e o futuro. Em qual se detém; como se movimenta nesse tempo; como une seu passado com o presente e o futuro; como experimenta o escoar do tempo para encontrar nele seu lugar e poder se narrar, onde o passado e o futuro se comunicam com o presente, a fim de que este possa mergulhar no tempo e evitar o instante imediato. O importante é ater-se ao presente, para se delinear como o entrevistado está a atualizar seu passado e a alinhavar seu futuro, pois essa tessitura realiza a plasticidade com que o paciente se movimenta entre as sequências temporais, sem angustiar-se demais, indicando também sua capacidade de integração, o que, no entender das autoras, seria um bom prognóstico. Isto é, ter em vista como foi, é e será o paciente é levantar hipóteses sobre

(...) tudo que indica um desvio em relação ao clima reinante anteriormente. Aquilo que expressa como motivo manifesto de sua consulta pode manter-se, anular-se, ampliar-se ou restringir-se durante o resto desta primeira entrevista ou do processo e constitui outro dado importante. (Ocampo et al.,1981, p. 25).

5 - Ainda, para que o trabalho da interpretação seja profícuo, o campo da interpretação deve estabelecer um grau de coerência entre esses planos expostos acima, ou seja, qual o significado da entrevista para o paciente e se ele se refere a estados emocionais, afetivos, motivacionais; que tipo de comunicação decidiu estabelecer e o significado da situação para ele; como converte a situação presente em depositário de objetos internos passados e futuros e como caracteriza o vínculo com o entrevistador. Mais ainda, se o paciente discrimina o motivo manifesto e o latente, quer dizer, se se refere ao conteúdo manifesto como o sintoma que o preocupa e que não saberá resolver sozinho, portanto, reconhece a doença e, por conteúdo latente, o fato de que existe outro não revelado, pois o paciente narra sua história como pode, de maneira que ao psicólogo está dada a tarefa de levantar as hipóteses de trabalho, a fim de orientar sua intervenção.

Para as autoras, antes de se encerrar a entrevista, faz-se necessário que alguns aspectos, os quais não foram explicitados na entrevista aberta, sejam retomados. É o terceiro momento da entrevista que deve ser diretivo. Para esse intento, a anamnese é um roteiro de uso corrente no trabalho do psicólogo e abrange o percurso de uma vida humana, a partir da teoria do desenvolvimento: 1- a concepção, a gestação, o parto, a primeira infância são objetos dessa narrativa, porque se pressupõe que a história desse nascimento e a memória da mãe dizem de uma origem e de um começo que deixa marcas no psiquismo infantil.

Por exemplo: a concepção e a gestação dizem de um enredo familiar, uma espécie de destino que esse filho traz para si mesmo, sua missão no texto familiar, a que veio servir. O circuito de desenvolvimento de um corpo diz várias coisas: da relação que esse estabelece com o que o mundo oferta ou tira, e do que é aceito ou rejeitado por ele, seja por uma decisão, seja por uma defesa. Como o corpo trata, absorve e digere o que vem do exterior, o que não está nele, mas de que se precisa. São linhas que demarcam os limites entre a vida e a morte, a alegria e a tristeza, a construção ou a destruição de territórios existenciais. Essas informações podem tanto confirmar ou eliminar hipóteses neurológicas e médicas, quanto levantar hipóteses psicológicas. Qualquer elemento narrado na queixa deve ser considerado, tanto o que diz respeito ao modo como o indivíduo se faz sujeito de discurso, como na maneira em que ele se inscreve nesse murmúrio anônimo de um enredo que lhe é exterior.

Para as autoras, a investigação da rotina da vida de um paciente permitirá a construção de uma figura ou de uma visão mais abrangente de sua vida. Por exemplo: como se efetivou seu desenvolvimento motor; como narra os riscos que correu ao colocar o corpo em movimento; se permite a si próprio essa aventura de ir e vir sem vivê-la como ameaça, mas de desbravar o seu entorno. Como realizou para si próprio o aparecimento da linguagem e o processo de aprendizagem, pois estes efetivam um encontro com a cultura, com o conhecimento fora do núcleo familiar, quer do ponto de vista do universo das relações humanas, quer do mundo cognitivo e das relações com o conhecimento, ou seja, não apenas a capacidade que o paciente tem de misturar-se com o novo, com o inusitado que o mundo lhe oferta, mas também o que concerne à tradição, ao que lhe é dado.

Outro aspecto a considerar é o desenvolvimento da sociabilidade e da sexualidade, uma vez que é a maneira como o paciente se inscreve no mundo; como institui um campo moral e afetivo para si mesmo e em relação ao outro; como se relaciona com esse outro, que, ao mesmo tempo, lhe é próximo e distante, que o acolhe e o rejeita; como responde ao que está fora dele e lhe é estranho; como responde às hostilidades que o mundo lhe impõe, se elas o instigam a ultrapassar esses limites ou se instauram uma imobilidade social, afetiva e moral.

Quanto à sexualidade, deve-se procurar circunscrever como o paciente se inclui no enredo amoroso e sexual familiar. É permitido a ele participar do grande segredo de sua própria origem, de investigar o fantasma da sexualidade, de conquistar a mentira para revelá-la? Como o paciente expõe as imagens afetivas ou as afinidades eletivas que atravessam as experiências sexuais, se as banaliza ou se as revela.

Dessa maneira, o diário de uma vida é, ao mesmo tempo, o registro dos limites que a vida apresenta em jogo e a condição de organização do espaço/tempo, das expectativas, das responsabilidades e dos circuitos das paixões: a alegria, a tristeza, o amor, o ódio, a ira, a inveja, a gula, a ganância, a preguiça, a luxúria etc.

Esse panorama, ou melhor, essa espécie de paisagem de uma vida lança luz sobre a atualidade da vida do paciente e as atividades em que ele se inscreve; as exigências que se faz; as expectativas que se impõe; como opera as relações de dependência e autonomia frente às coerções externas; como se relaciona com a instabilidade ou estabilidade das regras educacionais e de convivência social.

Assim, a construção do campo da interpretação se tece desde o primeiro encontro, aquele momento no qual se forma a primeira impressão daquele rosto, daquela presença, e essa marca estará a ser atualizada no decorrer de outros encontros: a primeira impressão coincide com o que foi dito? Ela informa se o motivo manifesto da consulta está de acordo com o que se percebeu ou se ouviu posteriormente? Segundo as autoras, a transferência e a contratransferência são partes inerentes das condições produtoras do processo analítico, tanto como fenômeno psicológico, quanto como condição de manejo da técnica e da resistência. O campo transferencial é a forma ordenadora geral do ato interpretativo. Portanto, o psicodiagnóstico está baseado nessas três situações: a primeira entrevista, os testes e a entrevista devolutiva.

Quanto ao segundo texto proposto – Entrevistas para a aplicação de testes –, as autoras começam seus trabalhos com a seguinte diretriz: deve-se

(...) estabelecer uma dosagem adequada da quantidade de entrevistas em geral e, como veremos neste capítulo, das destinadas aos testes em especial. É nesse momento do processo psicodiagnóstico que achamos, mais frequentemente, desvios em relação ao que chamaremos de uma duração usual ou tipo. (Ocampo et al.,1981, p. 47).

Ou seja, esse processo de diagnóstico deve ser amplo para se compreender melhor o paciente, mas não se deve exceder, pois provocaria alterações no tipo de vinculo estabelecido entre psicólogo/paciente e nos elementos positivos ou negativos da transferência e contratransferência nele implicados.

Em decorrência, o planejamento da bateria de testes, no caso os projetivos, é necessário, a fim de que “(...) captem o maior número possível de condutas (verbais, gráficas e lúdicas), de maneira a possibilitar a comparação de um mesmo tipo de conduta, provocada por diferentes estímulos ou instrumentos e diferentes tipos de conduta entre si.” (Ocampo et al.,1981, p. 57). Para as autoras, em uma bateria padrão de testes, o psicólogo deve levar em conta os que promovam a emergência das mais variadas formas de condutas, para que se possa realizar um bom prognóstico e enriquecer a entrevista devolutiva de tal forma que sejam levadas em conta as expectativas do paciente em saber o que lhe acontece e o que lhe recomendam fazer.

O que vem a ser a entrevista devolutiva? Conforme as autoras, a devolução de uma informação é a “(...) comunicação verbal discriminada e dosificada que o psicólogo faz ao paciente, a seus pais e ao grupo familiar, dos resultados obtidos no psicodiagnóstico.” (Ocampo et al.,1981, p.315). Portanto, ela se configura a partir das estruturas psicológicas do entrevistado, e o entrevistador deve se preocupar em tratar os resultados obtidos com clareza e flexibilidade, para que as perspectivas da entrevista possam ser modificadas de acordo com a reação do entrevistado.

A comunicação da informação deve seguir “a lei do fechamento (teoria da Gestalt)” (Ocampo et al.,1981, p.316), deve ser de tipo circular, em que se prezem as características de diálogo, de reintegração, de discriminação de identidades dentro do núcleo familiar, de prova de realidade dos elementos da transferência, pois “(...) a devolução funciona como mecanismo de reintrojeção, sobretudo de sua identidade latente, que, de outra forma ficaria alienada no psicólogo” (Ocampo et al.,1981, p.317).

Assim, a devolução dos resultados de uma entrevista de psicodiagnóstico deve abordar os aspectos positivos e adaptativos, ao passo que os aspectos negativos ou patológicos devem ser apresentados na medida e no ritmo em que o paciente possa tolerá-los e elaborá-los. Desse modo, a entrevista de investigação psicológica deve preocupar-se com o texto familiar construído pelo paciente, como ele produz esse enredo na relação com o terapeuta e tece seu próprio texto, sua constituição enquanto sujeito para além da história familiar.

Entretanto, quanto mais caminhava por entre essas palavras, mais se fazia presente para mim certo estranhamento, e uma questão se desenhava com força diante de mim: o que esse conjunto de enunciados expostos pelas autoras quer dizer? Apesar de interessante o roteiro a considerar em uma situação de entrevista, qual seja, as questões humanas tomadas em sua concretude existencial, a impressão que se afirmava para mim era a de que estava a mover um caleidoscópio de enunciados, nessas proposições apresentadas pelas autoras. Uma variedade de peças a se moverem por entre conceitos que fundamentam a teoria psicanalítica, como as noções de consciente e inconsciente; de conteúdos latentes e manifestos; de transferência/contratransferência; de conflitos internos (resistência, repressão, projeção, introjeção, defesas, fantasias etc.); por conceitos da teoria fenomenológica, como o de intersubjetividade; por conceitos do behaviorismo, como os de observação e codificação de comportamentos; por enunciados da teoria da Gestalt, como o conceito de finalização gestáltica do objeto e a entrevista como um campo de forças constituído na relação entre os participantes e dependente de tudo o que nela acontece – e, finalmente, aos sistemas de pensamento da psicologia da consciência.

Ao mesmo tempo, o campo conceitual exposto se constrói a partir de uma teoria do sujeito da consciência, estruturado pelo conjunto das funções psíquicas da consciência, como os conceitos de motivação, de cognição, de memória, de pensamento e linguagem, de percepção, atenção etc., enquanto a teoria da técnica se baseia na interpretação de conteúdos latentes e manifestos, na transferência e contratransferência. Afinal, qual conceito de homem estaria a permear essas proposições teóricas enfocadas por essas autoras e as práticas delas decorrentes?

Ao percorrer o livro, não conseguia delinear se estava a caminhar no interior da hipótese freudiana, de um homem como um ser de reminiscências e que se realiza nas vicissitudes do desejo inconsciente, ou na teoria do sujeito da consciência. Os textos enunciam, por um lado, a proposição de que o que se diz traz em suas bordas a fala de conteúdos latentes, fantasias, resistências, Por conseguinte, defesas inconscientes e a transferência desses conteúdos ao psicólogo. Por outro lado, o sistema de pensamento da psicologia apresentado se efetua no interior de uma teoria da consciência, o que desfaz o sistema psicanalítico já de início na própria ideia de entrevista psicológica, na medida em que aborda a linguagem como mensagem, informação, um meio de comunicação e uma das funções psíquicas da consciência.

O sistema teórico proposto por essas autoras vincula-se a um conceito de homem como sujeito da consciência, pois o próprio uso de teste de avaliação psicológica, ou melhor, dos modos de funcionar as funções psíquicas, são instrumentos desse paradigma. Nada mais longe da teoria freudiana, apesar de usá-la para fundamentar certos temas e procedimentos. Portanto, a entrevista como técnica, desse lugar exposto pelas autoras, explicita a confusa experiência da psicologia como ciência.

Quase se pode dizer que a entrevista, uma técnica de uso corrente no trabalho do psicólogo, funciona como um vórtice para onde convergem diversos fragmentos dos diferentes sistemas de conhecimento que constituem o corpo conceitual da psicologia como ciência. A rosácea desse caleidoscópio irá depender do uso dos saberes que um entrevistador domina e das forças da contingência e dificuldades que encontra nesse embate.

Se, nos fins do século XIX, a psicologia emerge como uma teoria da consciência, a fim de explicar os enganos da racionalidade humana, Freud e Marx descentraram o homem como sujeito da razão e o inscreveram nas vicissitudes do desejo ou da classe social. Alienado de si mesmo, os enganos são maiores do que poderia dizer a psicologia. Sua resposta ao grande enigma proposto por esses autores ainda está por se realizar, porque, como se vê nessas proposições teóricas expostas, o que se encontra é um tecido teórico retalhado e costurado ao sabor das circunstâncias.

Diante de tal impasse, encontrei, então, o texto de Deleuze – Una Entrevista, qué es? para qué sirve? – primeiro capítulo de seu livro Diálogos com Claire Parnet, de 1977. Nesse ensaio, o autor enfatiza, de início, que explicar-se é muito difícil, que quando lhe fazem uma pergunta, mesmo que seja interessante, ele se dá conta de que nada tem a dizer. As perguntas se fabricam. A arte de construir um problema, de fabricar perguntas é muito importante e pode durar uma vida inteira e, geralmente, em uma entrevista, quase sempre não se tem a oportunidade de inventar um problema. E, se não nos deixarem fabricar nossas perguntas, com elementos tomados vagarosamente aqui e ali, se outros as realizam por nós, pouco se tem a dizer. Nessa perspectiva, o interessante não está em responder as perguntas, mas em escapar delas, desviar e traçar linhas de fuga e inventar uma posição de problema. Em uma entrevista, seja ela aberta, seja semidiretiva ou diretiva, se faz isso?

As perguntas de uma entrevista, como enunciam as autoras, se efetivam nesse presente e sempre giram ao redor de uma história de vida traçada por um passado ou por um futuro; todavia, para Deleuze (1980), não é importante se pensar em sequências temporais, há devires que operam em silêncio, quase imperceptíveis. Sempre se pensa em termos de história, mas uma vida não está restrita à sua história, ela é a cifra de sua própria combinação, de uma espécie de fragilidade física, de um tartamudeio vital a constituir aquele encanto que oferece à vida uma força a qual não se reduz a um sujeito, ela é não pessoal. Os devires pertencem a uma geografia, eles se realizam por meio de orientações, de direções, de entradas e saídas. De acordo com o autor, nas pessoas e nas coisas há toda uma geografia, mais do que uma história. Há relevos e depressões, há sombras e luzes, linhas duras e flexíveis, linhas de fuga etc., que orientam os estados intensivos, os rumores e os humores de um corpo. As pessoas e as coisas estão compostas de linhas muito diversas, de sorte que nem sempre elas sabem em que linhas de si mesmas estão posicionadas, nem mesmo por onde fazer passar as linhas que estão a traçar para si mesmas: não é uma questão de resistência, fantasias.

Uma conversação poderia ser isso: ao invés de uma entrevista a realizar uma figura do paciente, realizar um traçado de um devir, um ainda não realizado, e fazer do encontro um fenômeno de dupla captura de seres que não têm nada a ver um com o outro, um misto antropofágico e contranatura.

Por mais que se queira instituir procedimentos para a realização de uma entrevista, seja de pesquisa, seja de diagnóstico, as coisas não transitam por onde se acredita que irão passar, nem mesmo pelos caminhos em que se espera que elas se desloquem. O movimento se realiza às expensas do pensador, do entrevistador ou do paciente. Encontram-se pessoas, movimentos, ideias, acontecimentos, entidades e, ainda que tenham nomes próprios, estes não designam nem uma pessoa, nem um sujeito. Designam efeitos de um agenciamento coletivo de enunciação, ao mesmo tempo, um deserto e uma tribo. Em uma conversação, um termo não vem do outro, não é causa do outro, cada um encontra no outro um devir que não é comum para os dois, pois o que se expõe nada tem a ver com um ou com o outro. Está entre os dois um bloco de devir a efetuar formas de vida.

Para Deleuze (1980), encontrar é falar, ver, capturar e roubar. Não há um método a seguir, um procedimento instrumental a se realizar, mas tão somente uma longa preparação para uma conversa, porque nela se está a roubar o pensamento do outro, sem direitos autorais, mesmo porque não existe um autor. Algo está ali a se efetuar por entre os dois, um invisível e um indizível a esperar para ser tomado e a murmurar pedidos de passagem: um gesto, uma palavra, uma atmosfera, uma saudade, um amor, uma linha de tempo, a fim de proporcionar ao pensamento uma corrente de ar fresco para os que nunca puderam ser pensados.

Para que esse acontecimento se realize, ou melhor, se atualize e tome de assalto o já dito, de maneira a fazê-lo girar em outras paragens, é preciso perder-se um bom tempo a perguntar-se, a colocar-se em uma posição de problema, mas sem fazer objeções, sem impor-se um método ou uma regra, tão só aquecer-se em uma longa preparação culinária. Cozinhar as palavras, os silêncios, os vazios, as paixões, o dito e o visto, filtrar as representações, desdobrar identidades, deixar o tempo passar pelas palavras e as coisas e abri-las ao meio, para enfim dizer. Mais do que uma revelação, uma exposição de um gesto que não exprime nada, mas está a ensamblar uma emoção, a escriturar uma marca do que ainda não se pode dizer.

Em lugar de resolver um problema ou em reconhecer um sintoma, de interpretar um conteúdo latente, de julgar uma conduta, de enunciar um saber, apenas ensaiar um dizer, encontrar, gargalhar e roubar. Deixar o pensamento deslizar e dançar por entre as formas que se apresentam para que ele enfim possa pensar o que até então ele não pôde, pois está detido pela força do modelo, do hábito e pela força de verdade nele inscrita.

Trata-se de saber não se uma ideia é relevante, se uma história narrada por um sujeito diz quem ele é, se ela é justa, verdadeira ou falsa, mas se ela está a diferir e a trafegar por outros domínios, para que entre os dois termos (psicólogo/paciente) passe algo que não está nem em um nem em outro – e essa ideia, essa história, ou melhor, essa geografia ninguém as tece sozinho.

Uma conversação não é um colóquio entre especialidades ou hierarquias, nem tampouco uma interdisciplinaridade ordenada de acordo com um projeto comum; ela é um campo de experimentação de um si mesmo para si próprio, de uma espécie de ascese dirigida a si mesmo para ir ao encontro desse deserto que somos nós, feito de areias, ventos, oásis, tribos nômades, sem referências, e o que conta são os acasalamentos contranatura, as máquinas de guerra, as línguas menores.

Não se trata de falar em nome de uma universalidade de um sujeito e sua verdade; de um método ou de um juízo; de um reconhecimento ou de uma investigação; do entendimento ou de responder às exigências de uma ordem estabelecida etc., mas de traçar uma linha viva, e fazer o pensamento desprender-se do reconhecido, para roubar da imagem que o prende ao modelo o traçado de uma linha quebrada. Só então se poderá repovoá-lo de cheiros, sons, gestos, risos, perigos, a fim de que ele possa abrir-se aos encontros e se diferir em função de um exterior, de uma força que o dobra sobre si mesmo e exige pensar o impensável. Sem desejar nada, nenhuma forma específica, nenhum poder, nem mesmo uma origem ou um começo, nem um fim último a ser realizado, muito menos uma solução ou uma revelação. Tornar-se atos de pensamento sem imagem, porque esta só quer a verdade.

A experimentação é habitar essa espécie de deambulação, de perambulação por um meio de caminho, um passeio cujo movimento em espiral se lança por entre os vários níveis da experiência, para tomá-los como uma diferença radical de potencial e de intensidades. Nesse sentido, precisa-se tomar o pensamento como se fosse uma máquina de guerra, uma força nômade que o liberta da imagem que pesa sobre ele.

Tendo como posição estratégica de análise essas linhas propostas por Deleuze, a entrevista, ou melhor, uma conversação, seria sempre uma dimensão de trabalho a ser problematizada pelo psicólogo em qualquer uma de suas atividades, pois quase sempre suas tarefas se dirigem a recapitular o passado, o presente e as projeções futuras. Conforme o autor, em uma conversação, o devir não transita por esse bloco duro de sentidos, já que é um sem passado, sem presente e sem futuro e, portanto, sem história. O devir não regressa nem progride, ele age por bolsões de tempo, por intensidades de afectos, por um corpo sem órgãos, sem volume e sem peso, estando a se fiar por entre uma brisa e um estado de leveza bailarina: invisível como o vento, ele move os corpos.

Consideremos algumas proposições que relatamos acima sobre esse procedimento metodológico da psicologia que é a entrevista, seja ela a de diagnóstico, seja de terapia ou de pesquisa. O sistema teórico que a sustenta traz como princípio a regra de que, ao falar, o paciente se narra, ele é o sujeito da enunciação, e a linguagem tem por função cifrar ou decifrar e fazer dizer a verdade contida no discurso. Baseia-se, logo, em uma teoria do sujeito.

Para Deleuze, o ato de interpretar, transformar, enunciar é um marcador de poder, um triunfo da linguística que se efetivou no momento em que a informação se desenvolvia como poder e impunha sua imagem para a língua e para o pensamento. Assim, ressalta o autor, tomara que a linguagem não seja tão somente informativa, que lhe devemos obediência e estar a produzir enunciados corretos e ideias justas, pois essas imagens de pensamento impediriam de pensar, o pensamento ficaria prisioneiro de um tipo de organização que o obriga a se exercer de acordo com as normas de um poder vigente e instala nele mesmo um aparato de poder.

As ideias justas marcam a imagem da boa natureza que possui por direito o verdadeiro, a imagem da boa vontade caracteriza o rosto do pensador que busca a verdade e ratifica um sentido comum para ambas: a harmonia de todas as faculdades de um ser pensante, para que este não tome o falso pelo verdadeiro. Portanto, o saber é tido como lugar de verdade, a qual sanciona as respostas e as soluções às perguntas e aos problemas supostamente dados.

Tomemos agora alguns aspectos sobre os usos da entrevista:

- o primeiro é um procedimento técnico que se encontra em diferentes sistemas de conhecimento da psicologia e cada um deles lhe oferece uma forma diversa; é um instrumento metodológico para a construção do objeto científico. Em consequência, os objetos e os objetivos com os quais ela trabalha estão circunscritos no interior de um sistema de conhecimento, de um tema, de uma visão do que seja o homem, a natureza, a ciência e parte de procedimentos que esse saber legitimaria. Em autores como Bleger e Ocampo, a entrevista, seja ela semiestruturada, seja aberta ou fechada, é um instrumento técnico e metodológico para delinear o objeto de pesquisa ou os futuros procedimentos terapêuticos, quer dizer, ela é um procedimento de construção de uma verdade, mas não é a verdade do homem e da sua natureza.

Em segundo lugar, essa técnica pressupõe que o sujeito traz em seu interior todo um enredo lógico que explicaria, em uma relação direta, sua existência, seu caráter, as formas da sexualidade, a estrutura de sua personalidade e as tramas de suas patologias internas ou de seu lugar social.

Em terceiro, a consciência de que a linguagem tem por função representar a realidade, comunicá-la ou de interpretá-la e, assim, ela teria o poder de fazer verter o não dito que dorme na palavra e revelar a verdade do sujeito. A palavra é tomada como um símbolo de comunicação por excelência das condutas da vida, porque exprime uma realidade objetiva. Em sua função interpretante, a linguagem está sob suspeita: ou porque há coisas que não são linguagem ou porque ela não diz o que quer dizer. O que está em jogo aqui é dizer a verdade, aquela que diz quem somos nós.

O que se está a querer, por exemplo, na entrevista diagnóstica? Saber quem é aquele sujeito, o que se passa com ele que o trouxe até a clínica, quais são seus enredos ou seus enigmas. Todo um enquadre está a ser delineado nesse encontro. O paciente, ao trazer um diagnóstico de si mesmo, confere à sua patologia uma história, uma explicação, um sentido e uma direção: “deve ser porque, quando eu era, criança eu...” Supõe-se que a memória de seu passado lhe oferece um modo de viver o presente e de projetar seu futuro: foi assim, é e sempre o será, esta é a verdade. O terapeuta, por trazer em suas condições de pensar, o sistema teórico em que se inscreveu, tomará tudo o que for dito a partir desse registro discursivo.

Para o paciente, o que o traz à clínica, em seu entender, é uma fatalidade do destino que o separou dos outros homens e já não consegue dizer o que se passa com ele, seja porque sua vida se desviou do bem comum, seja porque ela é sempre igual. Tornou-se um estrangeiro em sua própria língua, em sua própria morada. Pensa, por isso, que precisa de um especialista que tem um saber que irá explicar o que lhe acontece, o que está a atrapalhá-lo, e por que já não combina com o que lhe é exterior.

Segundo o especialista, como vimos anteriormente, o campo teórico em que se inscreve irá delinear as estratégias e táticas para organizar o encontro. Isto é, o encontro entre entrevistador/entrevistado está circunscrito ao discurso expertise e mergulhado em uma função interpretante a qual busca, intrepidamente, o domínio das circunstâncias e como desvelar a verdade e que esta seja justa. Pode usar um roteiro como a anamnese para saber a história daquele homem, de sua origem familiar, e levantar um problema com base nesse roteiro. Pode fazer entrevista semiestruturada a partir de algumas questões que delineiam as problemáticas do paciente, seus pontos de conflito, as formas de organização do cotidiano, os modos de relações que estabelece com o mundo etc. Também pode fazer uma entrevista aberta, a fim de que o entrevistado configure o campo da entrevista, escolha os caminhos que irá percorrer.

De qualquer maneira, o entrevistador está em uma relação assimétrica, tanto por aquilo que o paciente traz, quanto por seu lugar social. A situação da entrevista está afetada por relações desiguais, pois os objetivos de cada elemento são estranhos um ao outro. Uma dimensão científica rubricada por um plano moral age no que ali se diz e se vê, e essas dimensões se atualizam no interior de qualquer tipo de entrevista.

A visão de ciência a orientar esses encontros, mesmo que a tomemos no interior das ciências humanas e sociais, está determinada pela relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto a conhecer, ao supor que o objeto traz em si próprio sua natureza essencial, seu mecanismo interno de funcionamento, que o faz ser o que é, e que aquele que conhece pode apreender, por meio de certos procedimentos científicos – e a entrevista é um deles, a verdade contida do objeto.

Esqueceu-se de que “quem conta um conto aumenta um ponto”, de que, ao narrar uma história, se está a inventar a si mesmo no próprio ato de narrar, e nele se realiza aquilo mesmo em que se está em vias de diferir. Se esse trabalho traz fragmentos de memória, eles não dizem de um passado, pois este se faz em um campo intensivo gerador de materialidades visíveis, e dizem de uma experiência de tempo a se exercer, e o lembrado são figuras de tempo.

Para Deleuze (1980), o procedimento de perguntas e respostas não nos convém por várias razões:

- seja como for, uma situação de entrevista alimenta dualismos que se baseiam em eleições sucessivas, as quais separam um homem de outro homem (entrevistador/entrevistado, branco/negro, criança/adulto, rico/pobre etc.). Uma máquina binária capaz de alimentar a distribuição de funções e faz com que as respostas passem por perguntas já calculadas por um teor das significações dominantes, a aplainar os enunciados do paciente, sejam eles a partir de representantes que falam em nome de uma consciência, sejam por aqueles representantes que falam em nome de um inconsciente.

De acordo com o autor, seria interessante um estado de guerra que pusesse abaixo a informação/rosto, que demolisse essa linguagem que está sempre a produzir consigna, e que traz palavras de ordem, para, enfim, desfazer o rosto, o grito e o silêncio. Logo, seria interessante poder variar o tom das perguntas, um pouco assim como ser um tanto malicioso, servil, pérfido, bondoso, cruel. Ou, por outro lado, se poderia propor ao pensamento fins autônomos, para obrigá-lo a servir a fins pouco confessáveis: opor-se às consignas que ordenam que se tenham somente ideias justas e libertar o pensamento de seu modelo, de sorte que ele possa experimentar aqueles que não procedem de uma boa natureza ou de uma boa vontade, mas que viriam de uma espécie de violência sofrida pelo pensamento.

Ou se poderia propor ao pensamento que ele se exercitasse no interior das faculdades de pensar, como a crítica e o juízo, não para estabelecer um acordo entre elas, mas para levá-las a uma discordância radical.

Ou poderia se produzir tipos de pensamentos que não tomassem o reconhecido como seu lugar natural de se exercer, mas que se o recebessem como um ponto de problema de abertura para os encontros e em função de um exterior.

Ou se poderiam fazer alianças com os pensamentos que não querem lutar contra o erro, os saberes, a boa vontade, mas com aqueles que querem se desprender de um inimigo mais intenso e poderoso – a vontade de verdade – e que se definem no próprio movimento de aprender e não como resultado de um saber.

Fazer divergir essa imagem implica tornar o objeto científico não somente um sujeito que se tece nas tramas de sua própria história, mas como uma grande extensão a fazer aparecer os desenhos de uma geografia. Nesse sentido, a tríade entrevistador/entrevistado e o campo de estudo, se é que ainda se pode chamá-la assim, são linhas de tempo que atualizam no presente as condições de dizer e ver.

Portanto, a entrevista tomada como um instrumento metodológico é uma posição de problema: os conteúdos que levanta não dizem da verdade do homem, mas consistem tão somente em um campo intensivo de encontro e conversação entre linhas de expressão, ou melhor, de exposição de estados de um corpo que estão a ofertar as circunstâncias necessárias para a variação das formas de vida. Uma conversação, dotada de murmúrios, intensidades afetivas, afinidades eletivas, passeios por paisagens existenciais, uma vida a atualizar e a variar suas formas, para tecer moradas nietzscheanas, onde reside o estranho.

 

Bibliografia

Bleger, José. (1980). Temas de Psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]        [ Links ]

Ocampo, M. L. S. de, Piccolo, E. G. de; Arzeno, M. E. G. & col. (1981). O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido: 17 de outubro de 2013.
Aprovado: 27 de outubro de 2013.