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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis jun. 2013

 

Artigo

 

Significados de atos infracionais praticados por adolescentes em conflito com a lei

 

Meanings of infractions committed by adolescents in conflict with the law

 

 

Daniel Massayuki Ikuma*,I Sergio Kodato**, II Nilton Antonio Sanches***, III

I,II Universidade de São Paulo

III Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

Este estudo buscou investigar os significados e as explicações sobre os atos infracionais praticados por adolescentes em conflito com a lei, por eles próprios. Referenciando-se no método de análise das representações sociais, procurou-se investigar nas práticas discursivas, as interpretações dos atos delituosos cometidos. Os dados foram colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas, contextualizadas através da observação participante do cotidiano da instituição de internamento. A análise temática dos vários discursos indicou que os atos infracionais são representados como instrumentos de intimidação, poder e sobrevivência. No imaginário dos adolescentes infratores, o vínculo com a cultura do crime organizado é alternativa existencial e possibilidade instrumental de acesso ao consumo, pertinência grupal e inclusão social.

 

Palavras-chave: Atos infracionais; Representações sociais; Internação; Violência; Pertinência Social.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the meanings and explanations of infractional acts committed by adolescents in conflict with the law. Through the method of analysis of social representations, we sought to investigate in the discursive practices, interpretations of criminal acts committed by the adolescents deprived of freedom. Data were collected using semi-structured interviews, contextualized through participant observation of the quotidian upon internment institution. A thematic analysis of several speeches indicated that the acts are represented as instruments of intimidation, power and survival. In the imagination of young offenders, the bond with the culture of organized crime is a existential alternative and possibility of access to consumption, pertinence group and social inclusion.

 

Keywords: Infractional acts; Social representations; Internment; Violence, Social Pertinence.


 

 

1 Introdução

A desigualdade econômica, a marginalização e a expansão da miséria vêm provocando mudanças significativas nas formas de subjetivação e constituição da violência, atingindo especialmente adolescentes das camadas pauperizadas da população. Estão ocorrendo inúmeras transformações geopolíticas, tecnológicas e o estabelecimento hegemônico de uma cultura consumista, que serve como modelo de sucesso e fracasso, empurrando milhares de marginalizados para a criminalidade.

Para Lipovetsky (1989), estaríamos vivendo no “império do efêmero”, ou seja, tempos de extrapolação, excesso e aceleração da modernidade, do consumismo e da frustração, pelo não acesso aos símbolos do sucesso social. O segmento social marginalizado e excluído desse modo de vida, de “felicidade paradoxal”, reage, muitas vezes, de forma agressiva e violenta interferindo nos padrões de interação social, segurança pública e contribuindo para disseminar o imaginário do medo.

Para se tentar compreender os conflitos que permeiam a adolescência pobre e marginalizada, essa pesquisa buscou mapear as mudanças ocorridas nos processos de construção da identidade juvenil, principalmente quanto ao uso da agressividade, utilização de drogas e conduta sexual promíscua. As formas de sociabilidade vêm se construindo em meio às transformações políticas e econômicas, que não investem nas trocas inter-humanas, mas apenas reafirmam os paradigmas do “mínimo Eu” (Lasch, 1983) e do “exibicionismo” (Debord, 2000).

As instituições de internamento para adolescentes infratores têm se configurado como um “termômetro”, daquilo que está se construindo na sociedade, ou seja, a perspectiva de futuro, a subjetividade e as novas formas de relacionamento e cidadania. As revoltas juvenis, muitas vezes inauditas e invisíveis, simbolizam o abatimento e frustração com a sociedade pós-industrial, decadente e em crise de emprego, trabalho e valores.

Renfrew (1997) postula que diversos fatores podem contribuir para instigar as condutas de agressividade e violência, de tal modo que se corre o risco das formas incivilizadas passarem a se tornar hábito na sociedade, legitimando a banalização do mal. O castigo e a punição sistemática na infância pelos familiares, somados aos estressores relacionados à pobreza nos bairros periféricos, a violência exibida nos meios de comunicação, as moradias em cômodos pequenos, o desemprego, a drogadição e a sensação de abandono e vazio existencial estimulam as condutas delituosas.

Segundo Sinclair (1985), a violência doméstica sofrida por crianças e adolescentes pode promover condutas antissociais, pois a frustração facilita o desencadear de processos de agressividade e delinquência. O impacto do sofrimento imposto pela miséria, nas camadas marginalizadas, dependerá de várias circunstâncias, ou seja, do processo histórico e situação de vida das vítimas, após o evento agressivo (Gonçalves, 2005).

Nos bairros periféricos impera uma ausência de sentidos e de oportunidades reais, pela falta de políticas públicas que poderiam favorecer a população infantojuvenil, direcionando-a para o estudo, os esportes, o lazer saudável e a profissionalização. Christiansen e Knussmann (1987) postulam que os fatores ambientais exercem forte determinação nas ações agressivas dos seres humanos e colocam, em segundo plano, os fatores biológicos inerentes.

Estudos atuais indicam que residir em comunidades pobres pode ser um fator de risco e de possibilidade para a prática de atos infracionais. Nos Estados Unidos, segundo Kamradt (2000), parcela de 53% dos adolescentes, em conflito com a lei, vive abaixo da linha da pobreza. Por outro lado, se para eles, das classes pobres, a transgressão pode ser um meio para satisfazer suas necessidades básicas de consumo, para os provenientes de famílias abastadas, as infrações são favorecidas e estimuladas pela crença na impunidade.

Em alguns municípios, nota-se o incremento da prática de mecanismos repressivos, no estilo “vigiar e punir”, para conter as desordens sociais protagonizadas por adolescentes insatisfeitos. Importado de países do primeiro mundo, esse modelo de segurança pautado na “tolerância zero”, apresenta-se como uma alternativa para camuflar os problemas gerados pelo desemprego e o recuo da proteção social (Wacquant, 2001). Observa-se assim, o fortalecimento de um estado policial e penal, que objetiva prioritariamente reprimir segmentos populacionais considerados indisciplinados ou infratores.

Kodato e Silva (2000), analisando a conduta de jovens infratores residentes numa cidade paulista de médio porte, detectaram que as condições financeiras insuficientes e a carência de figuras parentais representativas, capazes de exercer um papel de identificação e suporte emocional, podem empurrá-los para ações alternativas antissociais. Frente ao descrédito de sua inclusão no consumo e às perspectivas obscuras de ascensão social, restar-lhes-ia apenas o ato infracional e o uso da violência, como exercício de poder e sentido para a existência.

Expostos diretamente a vários fatores de risco, muitos adolescentes podem reagir de forma negativa à participação no mercado de trabalho. Os atos de violência contra a sociedade podem ser representados como uma resposta aos medos e sentimentos de ódio provocados pela não inserção e reconhecimento social. A desfiliação comunitária, gerada pela situação de vulnerabilidade e a identidade estigmatizada no decorrer de suas histórias de vida, implica na real possibilidade de serem seduzidos e capturados pelo crime organizado (Brasil, Louzada & Almeida, 2010).

Castro e Guareschi (2007) apontam que a necessidade de pertença social e o desejo de alcançar valores, bens materiais valorizados pela sociedade de consumo mostram-se mais eficientes do que a simples imposição de padrões morais de direitos e respeito aos outros. Assim, a prática de infrações e as ações violentas cometidas, podem muitas vezes serem justificadas, no sentido de que os ganhos financeiros e materiais implicam sensação ilusória de importância e reconhecimento social.

Brodeur (2002), por meio de um estudo sobre as organizações criminosas, refere que elas são estruturas de tipo comercial que realizam lavagem de dinheiro, corrupções, infiltração na economia legal e, além disso, recorrem à possibilidade de ganhos financeiros e amparo grupal para atrair adolescentes marginalizados. Se, por um lado, são excluídos de todos os aparatos que deveriam oferecer as condições sociais mínimas dos direitos garantidos pela constituição, por outro acabam sendo incluídos numa comunidade alternativa que os ampara, e lhes atribuem um papel e uma identidade social. Mesmo se correndo o risco de “parar na cadeia ou na morte”.

O adolescente que é flagrado descumprindo as normas sociais submete-se a um acompanhamento mais rigoroso, previsto no artigo 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, 1990), que pode implicar a privação de liberdade. As medidas reparadoras e socioeducativas iniciam-se com a advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.

O último Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, realizado no ano de 2009, indicou que o número total de adolescentes que cumpria a medida socioeducativa de internação, no Brasil, naquele ano, era de 11.901. O Estado de São Paulo respondia por 40% desses internados (Ministério da Justiça, 2010).

Gonçalves (2005) refere que a internação endossa silenciosamente, a prática repressora e continua negando a cidadania por meio da exclusão. As instituições de clausura não criam violência, mas configuram-se como um local privilegiado para sua reprodução (Guirado, 2004).

Para equacionar essa problemática, da explicação e justificativa sobre os atos infracionais cometidos, entende-se que o método de análise das representações sociais constitui-se enquanto ferramenta intelectual, para a análise dos fenômenos que envolvem a conduta dos infratores, seus sentidos existenciais e de como encaram a realidade social. De acordo com Thornberg (2010), as representações sociais de atos delituosos estão relacionadas a vários processos que envolvem o abandono, maus tratos, a discriminação, a marginalização ocasionando um não comprometimento com as normas morais e instituições sociais.

Portanto, movidos pela interrogação sobre os significados que os sujeitos atribuem às práticas delituosas e infracionais, guiados por uma metodologia que procura entender os meios de obtenção de conhecimento de segmentos marginalizados, mergulhados na instituição de internamento, conduzimos esse estudo que ora relatamos.

 

2 Objetivos

Buscou-se investigar os significados e as representações sociais de atos delituosos cometidos por adolescentes em conflito com a lei, que cumprem medida socioeducativa de internação, por eles próprios. Procurou-se compreender os significados que atribuem às suas práticas antissociais de violência e agressividade e como justificam o fato de estarem cumprindo medida socioeducativa de internação. Pretende-se subsidiar as políticas públicas voltadas para a humanização dos processos de subjetivação, educação e reinserção social de adolescentes prestes a ingressar no mundo da criminalidade organizada.

 

3 Método

Como referencial metodológico, a escolha pela teoria das representações sociais está diretamente relacionada ao problema: Quais significados os adolescentes, em conflito com a lei, atribuem às suas vivências cotidianas no meio social, relacionadas com a prática da violência e a atividade delituosa. Nesse sentido, se entende que as representações sociais expressam os processos por meio dos quais um segmento social específico produz um sistema de saberes e atribui sentidos para o seu ser e estar no mundo.

As representações são produzidas e circulam nas comunicações intersubjetivas, sendo, elas próprias, um dos elementos que possibilitam tais fenômenos. Por meio delas, os seres humanos constroem e revelam suas singularidades no espaço político e social. A socialização resultante da interação entre os indivíduos e o grupo de pertença ocasiona um conjunto de representações a respeito de si, da sociedade, dos outros, do mundo e, também, de uma organização específica desse conhecimento (Moscovici, 1978).

A utilização desse método, proposto pelo autor citado, possibilita compreender que “os processos que engendram as representações sociais estão embebidos na comunicação e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais, padrões de trabalho e produção, arte, em suma, cultura” (Jovchelovitch, 1994, p. 79).

3.1 Procedimento

A pesquisa foi realizada através da observação participante do contexto institucional e realização de entrevistas semiestruturadas com os adolescentes que se encontravam cumprindo medida socioeducativa de internação.

As entrevistas foram baseadas em um roteiro formulado em torno da trajetória de vida bem como suas conexões com as instituições sociais (família, escola, polícia, sistema de saúde, judiciário, etc.). Optou-se por esse instrumento, entrevista semiestruturada, buscando uma forma flexível cuja sequência acompanha o fluxo do discurso dos sujeitos e o processo de atribuição de significados. As questões, neste caso, foram abertas visando estimular verbalizações que expressassem o modo de pensar e agir dos entrevistados em relação aos temas focados.

Para esta pesquisa, realizaram-se 7 (sete) entrevistas com adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação. A escolha desses sujeitos ocorreu de forma dirigida dentro daqueles que se dispuseram a participar, e buscou-se constituir um conjunto diversificado, levando-se em conta a população total da instituição, em relação à idade (15-18), tempo de privação de liberdade (3 meses-17 meses) e atos infracionais praticados (roubo, tráfico, formação de quadrilha, receptação e homicídio)

O estudo desenvolveu-se obedecendo às normas propostas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Resolução 196/96 do CNS1), que dispõe sobre a necessidade do consentimento livre e esclarecido para toda pesquisa que envolve seres humanos. Por se tratar de uma pesquisa desenvolvida numa instituição de custódia do Estado, foi solicitado o consentimento prévio do diretor e também do Juiz Corregedor responsável pela Unidade.

Para o processamento dos dados, utilizou-se da técnica descrita por Bardin (1994), a análise de conteúdo, uma das metodologias que melhor corresponde ao estudo das representações sociais. Tal análise se deu por intermédio de três etapas: análise prévia, descrição analítica, tratamento dos resultados obtidos e interpretação (Triviños, 1998). Ela proporcionou a designação de unidades temáticas e categorias, contribuindo assim para a decomposição das marcas discursivas em unidades de significados.

 

4 Resultados e discussão

4.1 Contexto institucional

Este estudo foi realizado em uma unidade de internação localizada no interior do estado de São Paulo, num município de médio porte (600.000 habitantes), entre os anos de 2004 e 2008. A instituição abrigava adolescentes do sexo masculino, com idades entre 12 e 21 anos, que cometeram atos infracionais graves e receberam como sentença judicial a medida socioeducativa de internação.

Quanto à faixa etária dos adolescentes na unidade, 41,1% tinham 17 anos; 25,8%, 16; 8,6%, 15; 21,5% chegaram à maioridade. Em relação à escolarização, 11,8% estavam matriculados entre a 1ª e a 4ª série do ensino fundamental; 59,1% cursavam o ensino fundamental de 5ª a 8ª série; 22,6% estavam matriculados no 1º ano do ensino médio; 6,5% assistiam a aulas no 2º ano do ensino médio.

Durante o período em que foi realizada a coleta de dados sobre a instituição, observou-se que o maior número de internos que cumpria a medida socioeducativa era pelo ato infracional equiparado a roubo (39,8%). Em ordem decrescente, havia: tráfico (27,9%), homicídio (21,5%), latrocínio (3,2%) e outros atos infracionais (14%).

Quanto as entrevistas, as mesmas foram realizadas na sala de atendimento técnico, situada num grande corredor que dava acesso aos 4 módulos da Unidade. Estão nesta galeria; o setor médico, pedagógico e a sala de atendimento odontológico.

Optou-se pela sala por ser de fácil acesso para os internos. Além disso, tratava-se de um local privativo, onde o sujeito poderia se manifestar espontaneamente sem que funcionários e/ou demais internos pudessem atrapalhar e constranger o andamento da entrevista.

4.2 Análise das Entrevistas

Adotou-se para o processamento dos dados o método da análise do conteúdo. Esta nos serviu para que fossem construídas as categorias de análise em relação às práticas discursivas dos entrevistados.

Coletaram-se as seguintes categorias de análise: a) origem social, econômica e familiar; b) dinâmica familiar; c) vida escolar e sociabilidade; d) ruptura e vulnerabilidade social; e) poder e inclusão social; f) atos infracionais; g) diferenciação na questão dos atos infracionais; h) princípios, valores e influência ética do crime organizado; i) estigmas, estereótipos e preconceitos; j) rotina institucional; k) projeto de vida e o futuro; l) reflexões sobre a morte.

O objetivo deste procedimento foi compreender as diversas construções representativas sobre a prática de atos infracionais, em termos de posicionamentos assumidos, por meio de processos, que são chamados por Moscovici (2004), de processos de ancoragem e objetivação. Nesse sentido, se assumiu o discurso dos entrevistados como um sistema representacional de seus processos subjetivos em relação com a realidade objetiva e concreta.

Provindos de famílias pobres, em situação de miserabilidade, muitos deles inseriram-se no mercado de trabalho ainda na infância: “[...] eu vendia verdura... já vendi velas em porta de cemitério [...]” (F.). De acordo com a história de vida, foram incentivados pelos familiares a se iniciarem precocemente em atividades laborais no setor terciário. Assim, fatores culturais, econômicos e de organização social fomentaram a necessidade de começarem a trabalhar precocemente.

Todos os adolescentes, participantes desta pesquisa, presenciaram situações de violência doméstica, de maneira ativa ou passiva: “[...] muitas vezes chegava até nos agredir onde nós nos revoltava... ele queria que a gente aprendesse para ter um mundo melhor e ter alguma coisa mais pra frente [...]” (A.). As relações de duplo vínculo, aceitação e rejeição, permeavam a dinâmica familiar, ocasionando distúrbios na comunicação entre os membros e contribuindo para manifestações de violência. Para alguns desses sujeitos, o sentido da prática infracional está pautado numa tentativa de vingança ou reparação de episódios familiares de agressividade.

A evasão escolar coincide com o momento de iniciação da prática infracional e o uso de substâncias entorpecentes. Os sujeitos relataram cenas de violência escolar em que se envolveram em situações de confronto com educadores e alunos, como forma de extravasar suas insatisfações frente ao sistema escolar “excludente”: “[...] tacava bomba dentro do banheiro, quebrava tudo a escola: carteira, atentava professora, muita bagunça!” (G).

A escolarização, por motivos culturais, não é incentivada pela família e muitos sujeitos buscam, na inserção no mercado de trabalho, complementar a renda mensal domiciliar. A sociabilidade dos adolescentes em conflito com a lei está relacionada a outros sujeitos que estão envolvidos em práticas infracionais: "[...] os outros eram tudo trabalhador... mas depois comecei a me envolver com o pessoal [...]" (R.).

Argumentaram que, conforme vão se envolvendo em situações delitivas, simultaneamente, distanciaram-se dos outros colegas e permaneceram cada vez mais com os colegas infratores. Tal e qual num ritual de passagem, se inserem no grupo desenvolvendo pequenos delitos, procurando ganhar a confiança e o reconhecimento de seus pares: “[...] aí tipo, comecei ir lá nos manos... comecei a roubar mototáxi, bar, padaria... comecei a firmar na banca mesmo, total!” (F.).

Nota-se que os primeiros atos infracionais se deram na transição entre a infância e a adolescência, num momento importante do desenvolvimento social, físico e intelectual dos sujeitos. O ato infracional configura-se como uma ação afirmativa num mundo da falta e da negação de seus direitos sociais.

Dentre as principais infrações iniciais, constatam-se o consumo de drogas e pequenos furtos. No entanto, gradativamente e de acordo com o perfil de cada adolescente, vão se envolvendo em atos infracionais mais graves, como o tráfico de entorpecentes, os roubos e alguns chegam até à prática de homicídios. “Na hora que eu vi, já não tinha mais possibilidade pra estar voltando atrás... já estava muito envolvido, já não tinha como estar sarando mais [...]” (A.).

Os adolescentes são influenciados por uma sociedade cujo valor prioritário é ter controle sobre os objetos, coisas e pessoas. Sob a égide da posse desses itens, percebe-se que ter é ser, ou seja, tornou-se o valor necessário para existir na sociedade de consumo:“[...] Ter as coisas caras, entendeu! Aí você quer ter também, né. Sabe aquela vontade e coisa e tal?[...]". (R.).

O poder é representado pelo dinheiro, pela possibilidade de aquisição de bens de consumo e pela conquista de mulheres: “[...] de bom... dinheiro, mulher, roupa, sair [...]” (G.). Os atos infracionais praticados são significados como demonstração de poder e possibilidade de inclusão social: “[...] vixi, eu acho que tirava uns 3.000 reais. Eu gastava tudo, era coisa de semanas [...]” (C.).

Os sujeitos parecem valorizar os delitos que exigem a frieza e a coragem no momento em que cometem os atos, ou seja, quando usam a violência física contra as vítimas (latrocínio, homicídio, roubos qualificados), pois, geralmente os meios de comunicação espetacularizam tais atos diante da opinião pública: “[...] com uma arma na mão nós pegamos a vítima, ela ficou em choque, abatida... foi uma beleza!” (A.).

Compõe-se um quadro de banalização da violência por parte dos adolescentes ao cometerem os atos infracionais. Percebe-se que ancoram suas representações sociais em preceitos ditados pela ideologia do crime organizado. F., que não tolera comportamentos ditos covardes ou pervertidos, assassinou um homem que supostamente era um estuprador: “Cometi um homicídio... ‘Jack’ gostava de fazer coisas obscenas para mulheres e crianças... resolvi matar ele, só isso só!”.

Há uma hierarquização das práticas delitivas, os atos infracionais que envolvem violência sexual e delação de pares são condenados pelo grupo. O equilíbrio funcional grupal necessita da criação de bodes expiatórios para a catarse dos sentimentos hostis (desprezo e/ou ódio) projetados para o exterior, contra os fora da lei, dentre os “fora da lei” (Enriquez, 1999).

Uma vez capturados pela ideologia marginal, a glorificação do mal é um mecanismo para serem reconhecidos pelos outros colegas e para não perderem as vantagens de pertencer à comunidade de “homens viris” (Dejours, 2000).

Em relação às infrações praticadas contra uma parcela da população que eles consideram “ricos”, justificam as ações por meio da minimização do sofrimento provocado nas vítimas e, como consequência, do ato praticado. Há, assim, a representação do ato infracional como justiça dos pobres: “O cara nasceu no berço de ouro. Tem dinheiro. Roubar não dá nada, não, faz nem cosquinha no cofre deles [...]”. (G).

De acordo com os resultados, os adolescentes se representam como estigmatizados pela sociedade e entendem que os principais responsáveis pelo processo de exclusão são os alcaguetes, a polícia e a opinião pública. A polícia, por sua vez, é representada como: “corrupta, violenta e injusta”. Segundo eles, a opinião pública, por meio dos preconceitos e prejulgamentos, estigmatiza o adolescente infrator como “menor”, ou seja, cidadão com características físicas, psíquicas e culturais inferiores.

A internação é representada como reclusão, significação ancorada no sistema prisional, porém os sujeitos têm consciência de que estão submetidos a uma medida socioeducativa preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, 1990): "[...] pretendo melhorar, tá ajudando meu filho aí, né? Minha mãe... tá dando uma força pra ele. Vou voltar pra minha família porque... não tá tudo acabado, não [...]”. (R).

Por um lado, a restrição espacial e temporal impõe uma perda da autonomia pessoal, fomentando, assim, a revolta; por outro, reconhecem que o cumprimento da medida representa um momento para se submeterem a um conjunto de valores (escolarização, atividades pedagógico-esportivas, resgate do relacionamento familiar, etc.), buscando proporcionar-lhes mudanças quanto às suas condições existenciais após o período de internação: “[...] terminar o estudo. Arrumar um serviço registrado. Comprar minha casa, minha carta e ter minha família. Pensar na minha família [...]”. (G.).

Nota-se, ainda, que os discursos indicaram um modo de subjetivação influenciado pela sociedade de consumo, que estimula desejos que reclamam satisfações em curto prazo. Também manifestaram o desejo de viver harmoniosamente com seus familiares, respeitando as orientações de seus pais e buscando melhores perspectivas de relacionamento social. No entanto, demonstram consciência que encontrarão dificuldades ao retornar à comunidade devido aos estigmas e preconceitos.

A proteção comunitária, encontrada no grupo religioso, pode amenizar a dor causada pelo desamparo e pela possibilidade de morrer durante os atos cometidos. Observa-se que o vínculo com o sagrado contribui para que muitos adolescentes se afastem da vida infracional, conforme relata F.: “[...] se a pessoa pegar firme... pessoas viraram evangélicos, crente, saiu dessa vida”.

 

5 Considerações Finais

De acordo com as marcas discursivas, os principais fatores que impulsionaram os entrevistados à prática infracional, durante a transição entre a infância e a adolescência, foram a situação financeira precária, o desejo de aquisição de bens de consumo, a drogadição, a evasão escolar, a influência do grupo de pares, o sentimento de pertença oferecido pela organização delituosa, a violência doméstica e o histórico de exclusão social. Nessa perspectiva, a ação delituosa configura-se como conduta afirmativa num mundo da falta e da negação, tendo em vista que se deram nesse intervalo de risco para o desenvolvimento social, físico e intelectual desses sujeitos.

A falta de incentivo dos familiares em relação à escolarização contribuiu para que esses adolescentes se iniciassem precocemente em atividades laborais que exigiam baixa qualificação profissional. Para contribuir financeiramente, muitos deles começaram a trabalhar na infância, sendo que as intervenções realizadas pelos atores sociais não foram capazes de interromper o ciclo cultural postergado pela família.

Todos os sujeitos presenciaram situações constrangedoras de violência doméstica. A figura materna é idealizada como: “protetora, conselheira e amorosa”, enquanto que a figura paterna é representada como o agente de ações violentas contra a família. Verifica-se que o sentido da prática infracional está pautado numa tentativa de vingança ou reparação de episódios familiares de violência.

As insatisfações frente ao sistema escolar excludente coincidem com as primeiras tentativas delitivas e, também, com o uso de substâncias entorpecentes. O abandono escolar deve-se a múltiplos fatores, inclusive, percebe-se a importância do sentimento de pertença a um grupo viril, mesmo que em conflito com a lei.

Os vários processos, de exclusões sociais ocorridos durante a trajetória existencial, culminaram com a possível inclusão numa comunidade marginal e delituosa. As organizações criminosas apresentam-se como opção existencial e de iniciação ocupacional. O sentimento de pertença é potencializado pelo poder e pelo respeito que o grupo infrator proporciona.

Logo a remuneração obtida por meio das ações infracionais possibilita que construam sua identidade comparativamente ao trabalho considerado “formal”, pois não se submetem à exploração da sua força de trabalho. Bourdieu (1983) ressalta que adolescentes das classes populares tendem a buscar inserir-se rapidamente no estatuto de adulto e nas capacidades econômicas associadas.

Como integrantes de um grupo marginal, ressignificam o poder repressor da autoridade e iludem-se numa representação onipotente de tudo poder e de tudo ter. Essa violência é, portanto, uma conduta reativa em face dos dispositivos sociais, incapazes de reconhecê-los como indivíduos de direitos. Percebe-se que o abandono e o desamparo vivido na sociedade podem ser interrompidos por meio da inserção em algum grupo que simbolize a pertença.

O ato infracional, uma ação agressiva contra a sociedade, talvez seja uma demanda por atenção para suprir algo que está além da materialidade dos objetos ofertados pelo consumismo. De acordo com Diógenes (1998), a experiência de ser integrante de uma gangue é fazer-se ver e existir, ou seja, conquistar uma “inclusão às avessas”, por meio da ação violenta.

Pode-se concluir que, de alguma forma, adolescentes que se inserem em grupos antissociais percorreram várias trajetórias institucionais e não foram sensibilizados para que pudessem exercer as potencialidades de maneira pró-social. Houve falha das políticas públicas, que deveriam inseri-los e não excluí-los da rede de atendimento de suas comunidades. Assim, observa-se que todo o aparato do sistema de garantia de direitos – assistência social, saúde, justiça/segurança pública e educação – fracassou parcialmente.

Portanto, a partir de uma perspectiva qualitativa de pesquisa, pode-se afirmar que as representações sociais de conduta delituosa formulada por adolescentes em conflito com a lei estão ancoradas na compreensão do fenômeno da violência como potência. Estas representações apontam para sentidos paradoxais de poder e crime, de acesso ao paraíso de consumo e, ao mesmo tempo, como possibilidade de privação de liberdade e de morte.

 

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Recebido: 13 de março de 2013.
Aprovado: 03 de julho de 2013.

 

 

1 Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996. (1996, 10 de outubro). Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF: Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde.
* Possui mestrado em Psicologia pela Universidade deSão Paulo (2007) e graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Assis (1998). Atualmente é aluno pós-graduado da Universidade de São Paulo, Psicólogo no Instituto Federal de São Paulo - Campus Barretos e docente da União das Faculdades dos Grandes Lagos, nos cursos de Psicologia e Serviço Social.
** Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1978), mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Processos Grupais e de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: representações sociais, violência, escolas públicas, instituição e criminalização.
*** Formação de Psicólogos pela Universidade Metodista de Piracicaba (1977), mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1985) e doutorado em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999). Tem experiência na área de Psicologia Clínica, com ênfase em Psicanálise, docência em psicologia da personalidade e teorias e técnicas psicoterápicas, bem como, supervisão de estágios em psicoterapia analítica de adolescentes e adultos. Tem interesse por pesquisas qualitativas na área de Psicologia Social (comportamento eleitoral) e Clínica. É membro do Observatório de Violência e PráticasExemplares de Ribeirão Preto, que congrega três linhas de pesquisa: a) sentidos de violência simbólica e crueldade entre pares em instituições públicas. b) assédio moral e violência institucional na situaçãode trabalho. c) segurança organizacional e cenários prospectivos.