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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis jun. 2013

 

Artigo

 

A Política Nacional de Humanização como estratégia de produção coletiva das práticas em saúde

 

The National Humanization Policy as a strategy for collective production of health practices

 

 

Luisa Milano NavarroI, Ricardo Sparapan PenaII

I,II Universidade Estadual Paulista - Assis

 

 


RESUMO

Este artigo se insere no âmbito das políticas públicas que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de discutir o campo de conhecimento e práticas de saúde em curso. Discorrendo sobre a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no SUS (PNH), buscamos afirmá-la enquanto estratégia de produção coletiva das práticas em saúde, enfatizando a inseparabilidade entre clínica e gestão. Através de um percurso pela organização da PNH, destacamos seus princípios, diretrizes e método como orientações para o compartilhamento dos modos de produzir saúde, os quais se dão a partir da ação de gestores, trabalhadores, usuários e movimentos sociais. Assim, é focando na articulação entre os atores implicados com as práticas clínicas e de gestão democráticas que buscamos situar a PNH como política de saúde do SUS.

 

Palavras-chave: Política Nacional de Humanização; Saúde Coletiva; Política de Saúde.


ABSTRACT

This article falls within the sphere of public policies that make up the Unified Health System (SUS) in order to discuss the field of knowledge and practice ongoing health. Discussing the National Policy on Humane Care and Management of the SUS (PNH), we seek to affirm it as a strategy of collective production of health practices, emphasizing the inseparability of clinical and management. Through a route for the organization of PNH, we highlight its principles, guidelines and methods as guidelines for the sharing of ways of producing health, which occur from the action of managers, employees, users, and social movements. Thus, focused on articulation between the actors involved with clinical practice and democratic management we seek to situate the PNH as health policy SUS.

 

Keywords: National Policy of Humanization; Collective Health; health policy.


 

 

“O SUS institui uma política pública de saúde que visa à integralidade, à universalidade, à busca da equidade e à incorporação de novas tecnologias, saberes e práticas” (Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS).

 

Um motivo para a existência da PNH?

A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH), lançada em 2003 pelo Ministério da Saúde (MS), está vinculada à Secretaria de Atenção à Saúde, mais especificamente ao Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas (DAPES) desde o início de 2011. Possui um núcleo técnico em Brasília – DF, organizado como equipe executiva da Política e com a finalidade de afirmar os princípios, diretrizes e método da PNH nas estratégias de produção de interfaces entre políticas públicas e áreas técnicas do MS, assim como referenciar os coletivos regionais da PNH pelo Brasil, sendo esta a organização da Política no território. Os coletivos regionais da PNH atuam junto às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde (SES e SMS), assim como estabelecem parcerias de trabalho com coletivos organizados e representativos na construção de saúde em esfera local, a partir da inserção dos apoiadores institucionais nos territórios de atuação da Política.

Desde o final da década de 90, o Ministério da Saúde realizou diversas iniciativas para tentar incluir a humanização da saúde em seus debates, como estratégia de qualificação das áreas técnicas e ações programáticas. Em 1999 é criado o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), dentre outros programas pontuais relacionados à saúde, frutos destas iniciativas (MARTINS, 2010).

Martins (2010) afirma que o movimento oficial da humanização teve seu foco inicialmente nos hospitais por sua centralidade no modelo assistencial brasileiro. O processo de humanização da atenção à saúde nas instituições hospitalares ganhou visibilidade e força, tornando-se tema da 11ª Conferência Nacional de Saúde, no ano 2000. Contudo, a ação do MS mostrou que a fragilidade dos modelos de atenção e gestão não se apresentava apenas nos hospitais, mas se espalhava também pelos demais serviços de administração pública direta, principalmente os da esfera da saúde.

“Por fim, foi no ano de 2003 que a preocupação com a humanização deixou de ser para o Ministério da Saúde uma questão pontual (...) ou de ações programáticas, como as relações na instituição hospitalar, e ascendeu à condição de política do SUS.” (MARTINS, 2010)

A PNH surge, então, no contexto das demandas de reformulação dos discursos e práticas em ação no SUS até o momento em questão. O que nos interessa, neste ponto, é afirmá-la enquanto política pública que, ao mesmo tempo em que dispara efeitos de análise das práticas clínicas e de gestão no SUS, sem dissociá-las, encontra-se também como um efeito da reorganização de movimentos institucionais e populares conectados às transformações em curso na sociedade.

Isto significa dizer que a PNH não é apenas uma iniciativa do MS para forjar um novo ethos na relação entre os atores em cena no campo da saúde, mas se faz presente nos territórios e instâncias de gestão e formulação de ações, estratégias e políticas públicas em saúde porque contagia os atores implicados com o SUS pelo seu modo de fazer, o qual se distancia das práticas prescritivas e fundamentadas em discursos totalizantes, aproximando-se de uma referência ética, política e institucional de transformação dos modos de gerir e cuidar na saúde coletiva.

Tais transformações interferem diretamente no enraizamento das práticas que se desviam da democratização das instituições e da construção coletiva das ações em saúde nos territórios, mostrando-se incoerentes com o SUS enquanto política pública (PASCHE E PASSOS, 2010).

O SUS, através de sua construção social, política e institucional, também aparece como um movimento interpretado como ambíguo. Do mesmo modo em que se apresenta como política pública e avança na universalização e qualidade do acesso à saúde, conserva também as contradições que o fazem ser visto como um dos mais injustos do mundo. É exatamente no reconhecimento desta ambiguidade - de um SUS com experiências bem-sucedidas e que mesmo assim é marcado por problemas e contradições que demandam enfrentamento - que a PNH irá se constituir (PASCHE, 2009), buscando enfatizar os aspectos positivos de um SUS que “dá certo” e utilizando-se da análise dos modos de gerir e cuidar para formular seus princípios, diretrizes, dispositivos e método (BRASIL, 2008).

Deste modo, entendemos que não se faz necessário justificar ou inventar um motivo específico para a existência da PNH enquanto política pública, pois surge como efeito de transformações sociais que nos convocam a repensar modos de vida contemporâneos e produtores de subjetividades (PENA, 2009) que modulam os corpos e os modos de vida em sociedade, os quais estão intimamente relacionados com as variações nas práticas e discursos relativos aos modos de cuidar e fazer gestão em saúde.

“Esta é uma sensível e radical diferença, um importante deslocamento para o enfrentamento das contradições do SUS, pois ali onde se anunciava o problema (os modos de gerir e de cuidar), onde se localizavam as dificuldades mais radicais (ação autônoma dos sujeitos) e a impossibilidade da construção de planos de ação comum (relação entre sujeitos com interesses e necessidades não coincidentes) é que se vai buscar a força e a possibilidade da produção da mudança. Ação de contágio e afecção pelo SUS que dá certo, que “dá certo” como modo de fazer e como direção ético-política. Das experiências concretas nos serviços e práticas do SUS, da análise de sua construção, é que a PNH extrai, então, suas construções discursivas e práticas.” (PASCHE, 2009)

 

Um método é um modo de fazer

A problemática do método da PNH tem sido um importante ativador de discussões e publicações acerca dos modos de produção de saúde no SUS. Os diferentes sujeitos e grupos de interesses conectados a esta discussão defendem múltiplos posicionamentos acerca do “como fazer”, sendo que o ponto em comum das discussões concentra-se nas transformações necessárias para a garantia de acesso ao cuidado integral e equânime.

Porém, há diferentes concepções que convivem no cenário cotidiano de produção de saúde e, antes de nos debruçarmos sobre o método ou o modo de fazer da PNH em si, torna-se necessário discorrer sobre a humanização das práticas em saúde, assim como sobre a Humanização do SUS enquanto política pública.

Sobre o tema da humanização das práticas, temos observado em nível nacional a elaboração de políticas locais com o objetivo de modificar os espaços de trabalho através de alterações nos ambientes e de programas de cuidado à saúde dos trabalhadores. Muitos são os exemplos de melhoria dos serviços de saúde através da reorganização espacial descontraia o ambiente, com o uso de cores e artefatos que busquem desconectar o trabalho da sua dureza. Outra forma de provocar a leveza das condições de trabalho é a utilização de estratégias que valorizem os trabalhadores, desvinculando trabalho e dificuldades cotidianas através das festas de aniversariantes do mês, das estratégias de convivência e do cuidado com o corpo como as ginásticas laborais, assim como a organização de cafés e almoços coletivos nos serviços.

Outras roupagens atribuídas à humanização das práticas em saúde dizem respeito aos modos de acolher. Ofertar a escuta e ser solidário às queixas dos usuários são atitudes vistas como respeito aos usuários que procuram os serviços. E realmente são. Porém, respeito e solidariedade constituem condições prévias para as relações ou técnicas de acolhimento? Podemos inferir, na linha dos investimentos exemplificados acima, que a humanização das práticas em saúde situa-se na tentativa de institucionalizar o resgate da dimensão humana do próprio humano, ou seja, tanto nas práticas que valorizam o cuidado com o usuário como nas que afetam o trabalhador, estão implícitos valores que hoje são transformados em estratégias empresariais de promoção do bem-estar nos ambientes de trabalho.

Nosso objetivo ao inferir sobre tais estratégias consta em afirmar que a humanização das práticas de saúde concentra o ideário dos valores humanitários praticados ou esquecidos no contemporâneo. Tal resgate dá visibilidade a uma atmosfera de transformação de atitudes que, consequentemente, pode significar melhorias nos ambientes de trabalho a partir de uma renovada motivação dos trabalhadores.

E, neste momento, nos é necessário provocar um deslocamento da humanização das práticas em saúde para a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS.

Este deslocamento objetiva esclarecer que a maioria das estratégias utilizadas para humanizar as práticas em saúde encontra-se disponíveis como elementos que compõem a vida em si, e não demandam institucionalização para provocarem rupturas nos estados relacionais vigentes. Comemorar os aniversários, fazer alongamento, almoçar em grupo, assim como tantas outras estratégias de aproximação entre pessoas, são momentos que localizam os sujeitos em conformações grupais e que, certamente, produzem modificações no convívio endurecido com o trabalho em instituições. O grande risco da institucionalização destas estratégias é torná-las opções que sempre estarão à mão das equipes e gestores como artifícios de resolução destes problemas de convívio e inadequação na relação entre a oferta dos serviços e a demanda dos usuários. Afirmamos que a origem destas dificuldades não se encontra entre os diferentes modos de ser e existir no mundo, pois isso é o que a PNH valoriza.

Mas, como arriscamos sustentar aqui, tais problemas decorrem dos modos de fazer clínica e gestão verticalizados, onde a oferta em saúde, ao invés de ser entendida como um produto da relação entre trabalhadores, gestores e usuários, é vista como algo que distancia, neutraliza, e dá uma resposta “segura” para tanto para trabalhadores e gestores, assim como para os usuários. Um dos maiores efeitos desta tal segurança nas práticas de saúde tem sido o crescente índice de medicalização da vida.

Para tanto, nos é necessário agora concretizar o deslocamento do qual falamos acima: da humanização das práticas para uma Política de Humanização do SUS. Deste modo, falar do método da PNH é um exercício que nos convoca a pensá-lo como produção que promove saltos da atenção à saúde individual para uma atenção singular aos sujeitos, da separação à conexão entre as ofertas clínicas e dos modos de gestão, da saúde enquanto ausência de sintoma para uma construção social coletiva, sendo, portanto, agregadora de diferenças, o que define o método da PNH como inclusivo - inclusão dos diferentes sujeitos implicados nos processos de produção de saúde. Este método é conhecido como “Método da Tríplice Inclusão” (BRASIL, 2008).

Partindo das colocações de Pasche (2009) sobre o Método da Tríplice Inclusão, entendemos que ele consiste em três modos de inclusão coexistentes: a) a inclusão dos atores implicados com o processo de produção coletiva da saúde, envolvendo gestores, trabalhadores e usuários, o que dispara a construção de espaços coletivos que provocam estes diferentes sujeitos a construírem ações e discursos em um plano comum - a saúde enquanto política pública adotada pelo Estado; b) na inclusão de coletivos, isto é, entendendo o SUS como uma experiência coletiva onde se expressa a multiplicidade de interesses dos diferentes grupos – movimentos sociais organizados ou não e c) na inclusão dos analisadores sociais, o que talvez seja a forma de incluir mais inovadora da PNH, pois consiste na perturbação dos modos de trabalho em saúde já instituídos e arraigados na ideia de intervenção dos gestores sobre os trabalhadores, dos trabalhadores sobre os usuários, da medicação sobre a doença, o que desconsidera o adoecimento e o cuidado como experiências singulares. Incluir aqui significa uma desestruturação das limitações de poder. Incluir o outro implica em relativizar as construções que pré-existem ao encontro, para que nele possamos se construir uma ação coletiva, uma ação comum.

“Incluir o outro, aquele que não sou eu, que de mim estranha, e que em mim produz estranhamento, provocando tanto o contentamento e a alegria, como mal-estar. A inclusão produz, portanto, a emergência de movimentos ambíguos e contraditórios, os quais devem ser sustentados por práticas de gestão que suportem o convívio da diferença e a partir dela sejam capazes de produzir o comum, que pode ser traduzido como projeto coletivo.” (PASCHE E PASSOS, 2010)

Sendo assim, é importante destacar que quando falamos do método da PNH estamos nos referindo às estratégias de produção coletiva dos modos de gerir e de cuidar, das iniciativas para desconstruir os padrões instituídos das formas de atenção e gestão que não se afetam pela transversalidade dos saberes e práticas no SUS. Isso nos lança a uma política que não se dissocia de seu componente púbico, ou seja, do público enquanto condição de sua afirmação no SUS e que, por isso, deve estar aberto à análise de seu modo de fazer.

Nesta linha, a Política Nacional de Humanização diferencia-se da humanização das práticas em saúde justamente porque transforma os modos de cuidar de e gerir através de ações intensivas e extensivas1 que a caracterizam como política pública, pois sustenta princípios, diretrizes e um modo de operar no público que a coloca sob a constante avaliação enquanto ação do governo e dos grupos e sujeitos de interesse no campo da saúde, isto é, a PNH se avalia no ato de ser avaliada, entendendo que a avaliação é sempre um processo formativo e questionador das formas de avaliar.

Podemos então, avançar agora para os princípios e diretrizes que compõem com o modo de fazer da PNH.

 

Princípios e diretrizes: pistas para um modo inclusivo de fazer saúde

“Por princípio entende-se o que causa ou força a ação, ou que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas.” (BRASIL, 2008)

A Política Nacional de Humanização, em seu modo de fazer, agencia o cuidado e a gestão em saúde fundamentada em três princípios, a partir dos quais se desdobra como política pública de saúde. São estes: a) transversalidade; b) indissociabilidade entre atenção e gestão e c) protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos.

A transversalidade é entendida aqui como a ampliação da comunicação tanto entre políticas, programas e projetos, quanto entre os sujeitos e coletivos. Diz respeito ao aumento da capacidade da troca de saberes, de afetos e de análise e enunciação das formas de exercício de poder no dia-a-dia dos serviços de saúde, desestabilizando as fronteiras entre os diversos conhecimentos e o silêncio instituído nas relações de trabalho, sem, contudo desmerecer as especificidades teórico-técnicas, mas colocando-as em relação. (PASCHE E PASSOS, 2008).

A indissociabilidade entre os modos de cuidar e gerir nos serviços públicos de saúde afirma clínica e gestão como campos distintos, porém inseparáveis em seus modos de atuar, pois se determinam e se influenciam mutuamente (PASCHE, 2009). Esta inseparabilidade é um ato político, pois se refere a um modo de fazer saúde que a que localiza no ponto exato de interferência entre clínica e gestão, isto é, sustentando a ambos como efeitos um do outro. Quando se atua em um destes campos, mexe-se concomitantemente no outro (PASCHE e PASSOS, 2008).

O terceiro e último princípio da PNH pauta-se, então, no protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos. A PNH parte de uma concepção ativa de sujeito, entendendo que trabalhadores gestores e usuários constroem a si mesmos e ao em mundo em um processo incessante e coletivo (MARTINS, 2010). Assim, a PNH aposta na capacidade transformadora dos sujeitos e na construção de redes de corresponsabilização pelo cuidado e o exercício de busca de autonomia.

Quanto às diretrizes, a PNH se orienta através de direções éticas no exercício da produção de saúde, preservando-a também como produção de cidadania. Tais orientações são a) acolhimento; b) clínica ampliada; c) valorização do trabalho e do trabalhador; d) cogestão; e) defesa dos direitos do usuário e f) ambiência (BRASIL, 2008).

“Como diretriz, podemos inscrever o acolhimento como uma tecnologia do encontro, um regime de afetabilidade construído a cada encontro e mediante os encontros, portanto como construção de redes de conversações afirmadoras de relações de potência nos processos de produção de saúde.” (BRASIL, 2006)

O acolhimento aparece como uma das diretrizes de maior relevância da PNH. Acolher é, portanto, nesse sentido, posicionar-se junto ao problema do outro, o qual sempre é legítimo independente de sua natureza e se apresenta como demanda para os trabalhadores da saúde. Demanda esta que deve ser atendida de maneira qualificada e baseada na escuta daquilo que o usuário traz, pois essa atitude valoriza a singularidade dos sujeitos que procuram os serviços, o que confirma que o acolhimento deve ser, para o serviço de saúde, uma “diretriz norteadora de sua forma de funcionamento” (PASCHE, 2009).

A clínica ampliada, por sua vez, é uma diretriz que nos orienta, na teoria e na prática, enfatizando novamente a singularidade dos sujeitos e a complexidade do processo saúde/doença na experiência do adoecer e do sofrer.

“O diagnóstico pressupõe uma certa regularidade, uma repetição em um contexto ideal. Mas, para que se realize uma clínica adequada, é preciso saber, além do que o sujeito apresenta de “igual”, o que ele apresenta de “diferente”, de singular. Inclusive um conjunto de sinais e sintomas que somente nele se expressam de determinado modo.” (BRASIL, 2009)

Sendo assim, a clínica ampliada como diretriz busca então a integração de diversas abordagens que viabilizem complexidade do trabalho em saúde e dos sujeitos implicados neste processo (BRASIL, 2009).

A valorização do trabalhador, como diretriz do SUS, considera os trabalhadores como trabalhador como um sujeito fundamental nas decisões sobre o funcionamento dos serviços e processos de trabalho, o que necessariamente vai na direção das melhorias nas condições de trabalho e da atenção para elementos e fatores que podem interferir na produção de saúde dos mesmos (PASCHE, 2009).

Por cogestão, entende-se a democratização dos serviços de saúde, incluindo novos sujeitos nos processos de decisão, criação de espaços coletivos e geração de corresponsabilidade nos modos de gerir e cuidar (PASCHE, 2009).

A defesa dos direitos dos usuários está no incentivo ao conhecimento dos direitos garantidos aos mesmos por lei. Isso também deve funcionar como parâmetro para os serviços de saúde, assim como garantir o cumprimento destes em todo o processo do cuidado.

A ambiência consiste na criação de espaços acolhedores, bem estruturados e confortáveis. Afinal, o trabalho em saúde ocorre (dentre outros), no espaço físico das organizações da saúde (PASCHE, 2009). Sendo assim, estes espaços devem ser lugares que promovam os encontros entre os sujeitos envolvidos no processo de cuidar para que, como efeito disso, ocorram as transformações necessárias às mudanças nos processos de trabalho. Além dos princípios e diretrizes apresentados, a PNH atua também através de dispositivos, os quais são entendidos como a

“(...) atualização das diretrizes de uma política em arranjos de processos de trabalho. Na PNH, foram desenvolvidos vários dispositivos que são postos a funcionar nas práticas de produção de saúde, envolvendo coletivos e visando promover mudanças nos modelos de atenção e de gestão.” (BRASIL, 2008)

Não nos cabe, neste trabalho, discorrer sobre todos os dispositivos da Política, pois esta tarefa exige que nos debrucemos largamente sobre os modos como os dispositivos operam as transformações nos modos de gerir e de cuidar. Vale ressaltar que a PNH disponibiliza, através do portal do ministério da Saúde na internet (www.saude.gov.br/humanizasus) e da rede HumanizSUS (www.redehumanizasus.net), todas as cartilhas referentes a cada um dos dispositivos da Política, as quais constituem importante material a ser utilizado por trabalhadores, gestores e usuários no dia-a-dia dos serviços e instâncias de gestão.

Dentre os dispositivos da PNH encontram-se: a) Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) e Câmara Técnica de Humanização (CTH); b) Colegiado Gestor; Visita Aberta e Direito à Acompanhante; c) Programa de Formação em Saúde do Trabalhador, d) Equipe de Referência e Apoio Matricial; e) Projetos Cogeridos de Ambiência; f) Acolhimento com Classificação de Riscos, g) Projeto Terapêutico Singular e i) Projeto Memória do SUS que dá certo (BRASIL, 2008).

Cada um dos dispositivos acima citados, nas palavras de Pasche e Passos (2008)

“(...) derivam de princípios, método e diretrizes da Política de Humanização, constituindo-se em um todo coerente. Nesta medida, sua implantação e consolidação impõem crítica constante, devendo-se interrogar sobre os modos de operar e os efeitos dos instrumentos, que por si só não garantem ação transformadora. Riscos de institucionalização e de captura pela lógica instituída impõem a ativação de processos de vigilância pelos coletivos sobre a implementação dos dispositivos e exercício crítico do método da PNH e de seus princípios.” (PASCHE E PASSOS, 2008)

Deste modo, é importante pontuar que a simples implantação de dispositivos nos serviços de saúde não ativa a potência da PNH, pois, assim como os princípios e diretrizes, seus dispositivos funcionam como veículos de atuação de seu método, ou seja, como ferramentas para a produção de discursos e práticas que se desviem de modos verticais e antidemocráticos de fazer clínica e gestão nas instituições de saúde. A PNH, então, se garante enquanto estratégia de coletivização das ações em saúde se o seu modo de fazer estiver inscrito nas ações dos atores implicados com a esfera da saúde.

 

Afirmando uma política de saúde do SUS

A PNH é uma política pública que busca provocar transformações nos modos de cuidar e de fazer gestão. Sendo assim, está em constante processo de reinvenção, seja desestruturando relações de poder dentro do sistema de saúde, ou baseando-se em diferentes experiências do SUS que dá certo. A PNH aposta e acredita na mudança, entendendo que o sujeito constrói o mundo enquanto constrói a si mesmo.

Humanizar as práticas de atenção e gestão no SUS, remonta ao sentido de humanizar que se distancia do ideal de Homem (BENEVIDES E PASSOS, 2005), benevolente e superior. A humanização cabe aqui como um valor à gestão e atenção do SUS, como a inclusão e a aceitação da alteridade capaz de provocar mudanças que podem, enfim, construir um Sistema Único de Saúde que tenha seus princípios realizados em sua plenitude. Não se visa à utopia, não se quer “inventar a roda”, pois a PNH parte de experiências concretas que foram bem-sucedidas, buscando contagiar os diversos espaços do SUS que ainda carecem de grandes mudanças.

Evidentemente, existem diversas dificuldades na implementação da PNH, as quais não elencamos neste momento. No entanto, tendo em vista seu caráter de política pública do SUS, e não apenas uma opção para alguns municípios, serviços de saúde ou uma ação pontual do Ministério da Saúde, buscamos com este trabalho alertar para a sua importância e para a relevância de seu ideário no campo da saúde.

 

Bibliografia

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Recebido: 18 de outubro de 2012.
Aprovado: 14 de maio de 2013.

 

 

Notas

1 As ações intensivas da PNH são de caráter micropolítico e mobilizam transformações nas relações entre trabalhadores, gestores e usuários, o que é necessário para qualificar o acolhimento aos usuários nos serviços de saúde e também as maneiras de construir as ofertas, sempre as entendendo enquanto produto das relações entre os atores envolvidos no cuidado. Já as ações extensivas são as de caráter macropolítico e buscam a firmar a PNH enquanto uma direção para as ações em saúde, se estendendo em nível nacional e a sustentando enquanto política pública do SUS.