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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis jun. 2013

 

Artigo

 

A fotografia como de produção de conhecimento nas ciências humanas e sociais: primeiras aproximações

 

Photography as a knowledge production method in humanities and social sciences: first approaches

 

 

Mardônio MenezesI

IUniversidade Estadual Paulista - Assis

 

 


RESUMO

A epistemologia, em seu lugar de metalinguagem da ciência e em seu estatuto de guarda do rigor científico, tem sido contundentemente colocada a prova na contemporaneidade, frente à diversidade dos saberes. Este artigo critica a forma tradicional de se olhar a epistemologia e tem como objetivo propor a fotografia como forma de produção de conhecimento nas ciências humanas e sociais. É nesse contexto e entendendo que o trabalho do fotógrafo é similar ao do pesquisador, que os autores concluem que a fotografia pode servir como possibilidade metodológica para a ciência contemporânea.

 

Palavras-chave: ciências humanas; ciências sociais; epistemologia; fotografia.


ABSTRACT

Epistemiology, as a metalanguage of science and in its hole of defender of scientific accuracy, has been put to test in contemporaneity face of the present diversity of knowledge. This essay criticizes the traditional view of epistemology and it has the objective to propose photography as a form of knowledge production, especially in the humanities and social sciences. In this context, with this vision and with the understanding that the photographer's work is very similar to the work of research, the authors conclude that photography can serve as a real possibility of method in contemporary science.

 

Keywords: humanities; social sciences; epistemology; photography.


 

 

1.INTRODUÇÃO

Em uma era saturada de imagens, tendemos a conceber a fotografia como simples instrumento de registro do real. As imagens, pela freqüência com que elas nos chegam aos olhos, suscitam em nós, espectadores, uma espécie de silêncio e de apatia que, não raro, transformam-nos em meros receptores passivos desses recortes do mundo. O fotógrafo, em movimento de caça “na floresta densa da cultura” (Flusser, 2002, p. 29), tornou-se uma personagem tão comum e cotidiana que, para olhos menos atentos, sua figura não suscita qualquer questionamento. Tendemos a encará-lo como mero colecionador de recortes da realidade a nossa volta.

Diante da complexidade do real e da impossibilidade de compreendê-lo, o fotógrafo opta por colecionar o mundo (Sontag, 2004). Contudo, tal visão não esgota o sentido do ato de fotografar e nem o sentido da fotografia. Há algo mais por trás desse ofício e os fotógrafos bem sabem disso.

O enquadramento, a velocidade do obturador, a abertura do diafragma, a sensibilidade da película e etc. são só algumas das variáveis que permitem que aquele que se coloca por trás de uma câmera fotográfica expresse uma idéia muito particular dos temas que ele decide captar. Portanto, já a um primeiro olhar e sem ainda nos aprofundarmos no ato fotográfico ou na questão ontológica da imagem fotográfica, podemos supor que a técnica fotográfica permite algo mais que meros decalques do mundo, algo mais que recortes passivos da realidade. Todavia, dizer isso - considerando-se apenas os recursos técnicos à disposição do fotógrafo - é ainda dizer pouco. Há algo na fotografia antes do próprio ato de se fotografar e mais ainda depois dele. Pensemos no processo de elaboração de uma exposição fotográfica. Ao se decidir por determinado tema, o fotógrafo vai a campo coletar suas imagens. É certo que o artista tem uma idéia pré-concebida de seu tema, ainda que por vezes pouco formulada. É a partir dessa espécie de hipótese que ele se aparelha para seu trabalho de campo. Fotografar paisagens, por exemplo, pode requerer a luz de determinada hora do dia, objetivas com distâncias focais específicas, películas de uma certa sensibilidade e etc. que serão, pelo menos em tese, bem diferentes da luz, das objetivas e das películas usadas para se fotografar outros temas.

É possível, contudo, que ao longo desse percurso, o artista note que suas idéias iniciais sobre o tema não se adéquam com precisão àquilo que deseja fotografar e, tarde, irá perceber que se aparelhou de forma insatisfatória para alcançar seus objetivos. Nada lhe resta a não ser voltar para casa, esperar o dia seguinte para sair a campo e torcer para que nada de novo apareça. Provavelmente aparecerá. Contudo, o esforço não terá sido em vão. O artista saberá que essa é uma etapa necessária e esperada de seu processo de trabalho e que é neste percurso que reformulará gradativamente sua hipótese sobre o tema. No dia seguinte, aparelhado das lentes certas, talvez venha a notar que a luz estava melhor uma hora antes ou que as sombras, das quais antes não se dava conta, atrapalhariam menos uma hora depois. Não são à toa as grandíssimas mochilas e malas que, quais pesados ossos do ofício, os fotógrafos levam consigo. Eles guardam a esperança de que nada os surpreenda desarmados. Penoso ofício este de carregar nas costas as possibilidades visuais do mundo.

Por um tempo de sua vida, o fotógrafo ficará cego de tanto ver. Mergulhará tão profundamente em seu propósito e será a tal ponto absorvido por sua atividade que, não raro, surpreender-se-á com os caminhos de seu pensamento: tudo será imagem. Viverá uma dor da qual é impossível se furtar. Aceitando o destino que impôs a si, o fotógrafo seguirá em busca de seus retalhos.

Feitas as imagens, o artista terá o árduo ofício de copiá-las a seu gosto. Não há fotógrafo que se preze que não acompanhe, de perto, a cópia de suas imagens. Ora quererá uma imagem contrastada, ora uma imagem mais suave; aqui precisará fazer um recorte, ali sofrerá por não ter como fazê-lo. Não sossegará o fotógrafo até que veja copiadas, a contento, todas as suas fotos.

A partir daí, conviverá diuturnamente com suas imagens; irá olhá-las tanto e de tantas formas que se sentirá completamente saturado delas. Desenvolverá uma relação difícil com sua própria obra: irá amá-la e odiá-la, tentará subjugá-la, entendê-la, dominá-la, mas tudo será em vão. As imagens já são, de muito, suas senhoras. Precisará decidir que fotos, entre tantas, farão parte de sua exposição. Precisará ser forte para descartar imagens que antes pareciam muito boas, mas que não compõem um conjunto coerente com as demais. Precisará, por outro lado, abrir concessões a imagens que não lhe agradavam tanto já que elas, em meio a um conjunto de outras imagens, funcionam melhor que as outras. Por tudo isso, o artista passará e – só depois - apresentará sua obra. E sua obra - disso terá plena consciência e, talvez, um pouco de vergonha – não será o mundo e nem mesmo, talvez, a sua visão de mundo, mas a forma com que ele quer que o mundo olhe o mundo. Fotografar é fazer opções e assumir uma certa postura ética diante do real.

Há, portanto, no processo de se fotografar, um caminho a se percorrer; há um método, uma forma específica de se pensar, uma maneira determinada de se captar a realidade e de apresentá-la. O presente trabalho tentará analisar, ainda que de forma nada exaustiva e apenas inicial, o método que comporta o ato fotográfico, assim como proporá o uso desse método como uma possibilidade de produção de conhecimento nas ciências humanas e sociais.

 

2. SOBRE A DIVERSIDADE EPISTEMOLÓGICA NAS CIÊNCIAS HUMANAS SOCIAIS

Longe vai a época em que a paz reinava na ciência. A epistemologia, em seus aspectos teórico-metodológicos, com sua rigidez e em seu lugar de metalinguagem da ciência moderna, tem sido contundentemente colocada a prova na contemporaneidade (Lyotard, 1986).

Se essa é uma característica da ciência como um todo – incluindo as áreas mais duras como a física ou a matemática – é sobretudo nas ciências humanas e nas ciências sociais que tal situação se mostra de uma complexidade nunca antes vista ou sequer vislumbrada pelo pensamento moderno. A multiplicidade teórica e metodológica no campo das humanidades tem sido uma característica fundamental desse campo, ora vista de forma ameaçadora, ora vista como constituinte mesma de sua riqueza.

Para exemplificar, podemos tomar o caso da psicologia. Especificamente nessa disciplina, há uma gama tão ampla e diversificada de construtos teóricos que tal fato faz dela um exemplo paradigmático do que aqui se diz. Pensemos, apenas como ilustração, na distância teórica existente entre a neuropsicologia e a psicologia social. Estando a primeira imensamente ligada às ciências biológicas e a segunda avizinhada às ciências sociais, ambas são constituintes legítimas do grande campo da psicologia. Como então lidarmos com tão grande diferença sem que caiamos ora em um dogmatismo epistemológico tirano e anti-democrático, ora em um superficialismo relativista?

Uma análise exaustiva desses embates epistemológicos da contemporaneidade foge do que aqui é proposto como objetivo deste trabalho. O que interessa apontar, neste momento, é que considerando a diversidade teórico-metodológica das ciências (principalmente as humanas e sociais), é temerário sonhar com o dia em que as disciplinas todas falarão uma mesma linguagem, assim como é perigoso pensarmos em uma epistemologia rígida, cuja opinião virá restabelecer a ordem e o rigor da ciência moderna e de cuja aprovação dependerão os variados procedimentos metodológicos para se afirmarem como válidos para a comunidade científica em geral. Essa idéia “de cima para baixo”, que coloca a epistemologia como zeladora e vigilante da boa ciência não parece nem profícua, nem democrática e nem mesmo verossímil, a considerar a realidade atual do campo científico, sua diversidade e a franca crise dos metarrelatos trazida pela contemporaneidade (Lyotard, 1986).

Os mais variados saberes têm dado contribuições valorosas para o processo de produção do conhecimento, mesmo que nem sempre tal variedade seja levada em conta pela ciência hegemônica. Os diversos saberes, principalmente os oriundos de regiões localizadas à margem do mundo do capital, são muitas vezes tidos como não científicos e sofrem, apesar de suas contribuições para o conhecimento, com a cegueira epistemológica da ciência. Não há como se conceber, hoje, uma epistemologia única e que negue sistematicamente a diversidade dos saberes, com implicações desastrosas para a humanidade como um todo, em um processo que o mesmo autor acima citado denominou de “epistemicídio”.

É do próprio campo de atuação das disciplinas, onde o conhecimento tem sido produzido, da própria prática profissional, dos diálogos e das pontes que se estabelecem entre os diversos campos da ciência e da própria diversidade disciplinar, em um processo “de baixo para cima”, que deverá se constituir o novo lugar para a epistemologia ou, ainda melhor, para as diferentes epistemologias.

O que estamos dizendo é que há um processo que torna gradativamente independentes as próprias instâncias epistemológicas de produção do saber (veja que já não se trata de uma, mas de várias), de tal forma que elas passam a retirar a legitimidade de sua própria maneira de atuar. Elas deixam de procurar seus fundamentos em uma instância superior que forneça suas bases e passam a reconhecer na sua prática a capacidade para gerar a própria legitimidade (Silveira & Hunning, 2007, p. 477).

É nesse sentido, em busca de um diálogo entre os diversos campos e práticas profissionais e percebendo que por trás do processo de trabalho de um fotógrafo há um método, que arriscamos propor o método fotográfico como uma possibilidade de aproximação entre a fotografia e as ciências humanas, entre a fotografia e as ciências sociais.

 

3.ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA IMAGEM FOTOGRÁFICA

3.1 – A ilusão imaginária da fotografia:

Não há como se negar o apelo que imagem fotográfica possui para que a consideremos como um registro fiel e acabado do real. Não é à toa a tendência do espectador em considerar esse tipo de imagem como prova documental inquestionável daquilo que ela mostra. Isso se dá, sobretudo, por seu caráter sígnico indicial. Vista desta perspectiva, a fotografia nada mais é do que uma impressão, eletrônica ou físico-química, da luz emanada pelo objeto fotografado. Tal fato é claramente percebido pelos mais diferentes regimes políticos, o que justifica o amplo e disseminado uso político e ideológico da fotografia (Kossoy, 2002).

Contudo, o caráter indicial do documento fotográfico e o próprio caráter documental da fotografia, apesar de inegáveis, devem ser colocados em questão quando levamos em conta o próprio processo de criação da imagem. Desse ponto de vista, a fotografia é um recorte intencionado do mundo, informado pelas posições ideológicas, culturais, políticas, religiosas e etc. do fotógrafo que a faz, configurando-se assim como uma espécie de tomada de posição de seu autor. A serviço disso, está a gama de possibilidades espaciais (que se referem ao enquadramento de determinado tema, a composição e etc.), temporais (o momento da tomada da fotografia), tecnológicas (objetivas usadas, manipulações possíveis da imagem e outras.) e, ainda, o uso que se faz da fotografia em determinado contexto.

Pelo que acima foi colocado, a imagem fotográfica guarda uma ambigüidade fundamental: ao mesmo tempo em que ela é um documento/registro do real, ela também se constitui como uma criação/representação a partir do real. Para Kossoy (2002, pp. 34-35, grifo do autor):

Apesar de sua vinculação documental com o referente, o testemunho que se vê gravado na fotografia se acha fundido ao processo de criação do fotógrafo. O dado do real, registrado fotograficamente, corresponde a um produto documental elaborado cultural, técnica e esteticamente, portanto ideologicamente: registro/criação. Trata-se, como vimos, de um binômio indivisível amalgamado na imagem fotográfica: dualidade ontológica que convive perenemente nos conteúdos fotográficos.

O caráter, por assim dizer, autoral da fotografia irá detreminar, entre outras coisas, o grau de transparência ou opacidade de uma imagem (Wolff, 2005).

Para o autor citado, com a disseminação massiva das imagens, propiciada, sobretudo, pelas novas tecnologias, o que se tem presenciado ultimamente são imagens que querem se configurar como uma espécie de janela para o mundo, de forma a dar uma falsa impressão de que, por trás de cada imagem, não há um propósito, uma idéia, uma intenção ou um autor. Essas imagens, veiculadas amplamente pela televisão, provocam no espectador a ilusão de que o que estaria diante de seus olhos seria o real fielmente documentado. São imagens que mostram sem se mostrar, daí o conceito de transparência, acima citado.

Em oposição a tais imagens, as imagens opacas – aquelas nas quais se vê o autor por trás de sua elaboração e a concepção (política, cultural, estética e etc.) que a sustenta - seriam imagens que mostram o real, mostrando-se elas mesmas. Esse fato levaria o espectador a um movimento de ver o real sem deixar de ver a imagem.

Deparamo-nos, aqui, com algo que será retomado mais tarde: o modo autoral e ideológico de se fazer fotografia mantém uma ligação estreita com o caráter pessoal e ideológico de se fazer ciência, embora, nesta última, a pessoalidade e a ideologia são sistematicamente negadas em nome da ‘boa ciência’.

3.2- Studium e punctum:

As fotografias, como todas as coisas, provocam em nós interesses diversos. Entre as diversas formas de interesse que podemos ter a respeito das coisas, duas são de qualidade fundamentalmente diferentes.

A primeira delas diz respeito a uma espécie de interesse geral, uma curiosidade algo preguiçosa e quase sempre conceitual, baseada em nossa cultura e nosso saber cultivado. Esse seria uma espécie de interesse regrado por nossos conhecimentos prévios e sobre o qual tendemos a uma explicação qualquer. Esse tipo de interesse nos mobiliza em direção à coisa.

A segunda forma de interesse pelo mundo é radicalmente diferente da primeira, já que é a coisa em si que se move em nossa direção e, por mais que procuremos, não conseguimos explicá-las, enquadrá-las ou mesmo conceituá-las. O afeto aqui mobilizado é de uma outra ordem e não há relação, neste caso, em geral, com qualquer saber cultivado.

Barthes, em A câmara clara, desenvolve dois conceitos que serão de extremo interesse para nossa discussão. Tratam-se dos conceitos de punctum e studium. Para o autor, tais conceitos dizem respeito a duas formas de relação que determinado espectador poderá ter com uma imagem fotográfica diante de seus olhos. Como veremos, o studium e o punctum guardam estreita relação com as duas formas de interesse pelo mundo, mencionadas anteriormente.

O autor citado acima formulou o conceito de studium para descrever o interesse genérico, provindo do saber polido e da cultura de quem observa, que determinadas imagens suscitam no espectador. O studium nos remeteria a uma espécie de movimento que o espectador faria em relação a determinada imagem que se lhe apresenta. É assim que Barthes descreve o studium, dando exemplo de fotos da guerrilha da Nicarágua:

[O studium], visivelmente, é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura; esse campo pode ser mais ou menos estilizado, mais ou menos bem sucedido, segundo a arte ou a oportunidade do fotógrafo, mas remete sempre a uma informação clássica: a insurreição, a Nicarágua, e todos os signos de uma e de outra: combatentes pobres, em trajes civis, ruas em ruína, mortos, dores, sol e os pesados olhos índios. Desse campo são feitas milhares de fotos, e por essas fotos posso, certamente, ter uma espécie de interesse geral, às vezes emocionado, mas cuja emoção passa pelo revezamento judicioso de uma cultura moral e política. O que experimento em relação a essas fotos tem a ver com um afeto médio, quase com um amestramento. Eu não via, em francês, palavra que exprimisse simplesmente essa espécie de interesse humano; mas em latim, acho que essa palavra existe: é o studium, que não quer dizer, pelo menos de imediato, “estudo”, mas a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular (Barthes, 1984, p. 44-45, grifo do autor).

Há para o autor ainda um segundo conceito, de importância capital em sua obra citada acima. É o conceito de punctum. Para Barthes, há fotos que guardam um elemento que provocam um interesse muito diverso do interesse suscitado pelo studium e que não está informado pela cultura ou saber do espectador. É algo que vai além das próprias possibilidades de nomeação do espectador e que, ao contrário do studium, refere-se a um movimento da imagem em relação àquele que a olha. Em geral, o punctum de uma imagem é algum detalhe que, de chofre, toma toda a atenção do espectador. Ao invés de um ‘desejo médio’, o que o punctum mobiliza é da ordem do ‘to love’ e não do ‘to like’, para usar expressões de Barthes.

É assim que o autor conceitua o punctum:

O segundo elemento vem quebrar ou escandir o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. [...] A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então de punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte - e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere) (Barthes, 1984, p. 46, grifos do autor).

Guardemos – por ora - os conceitos acima. Mais à frente, retomá-los-emos.

3.3- O dentro e o fora da fotografia:

Toda fotografia pressupõe um recorte espacial e temporal do mundo, feitos a um só tempo, mas com implicações variadas. O ato fotográfico é, entre outras coisas, um recorte, de uma porção específica da realidade. Para os fins de nosso trabalho, iremos nos deter na questão da espacialidade da fotografia e sua ligação com o invisível da imagem.

Para Dubois (1993), na pintura, temos o oposto do que ocorre na fotografia. A questão do espaço pictural é de outra ordem. Enquanto nela o pintor tem uma tela em branco onde irá pôr elementos seus, de forma organizada e gradual, na fotografia haverá uma espécie de subtração em bloco de uma porção da realidade. Não é a toa que designamos, em português, o ato fotográfico como “tirar uma fotografia” (em espanhol: “sacar una foto”), pois é exatamente isso que o fotógrafo faz.

Em outras palavras, bem aquém de qualquer intenção ou de qualquer efeito de composição, em primeiro lugar o fotógrafo sempre recorta, separa, inicia o visível. Cada objetivo, cada tomada é inelutavelmente uma machadada (golpe de machado) que retém um plano do real e exclui, rejeita, renega a ambiência (Dubois, 1993, p. 178).

Dessa forma, toda fotografia implica uma borda, que – a priori - irá delimitar a leitura de determinada imagem. Contudo, aquilo que ficou fora do recorte escolhido, o invisível, o que restou do real, irá fazer parte, tanto quanto o que na imagem se vê, da análise da fotografia.

Em outras palavras, o que uma fotografia não mostra é tão importante quanto o que ela revela. Mais exatamente, existe uma relação – dada como inevitável, existencial, irresistível – do fora com o dentro, que faz com que toda fotografia se leia como portadora de uma “presença virtual”, como ligada consubstancialmente a algo que não está ali, sob nossos olhos, que foi afastado, mas que se assinala ali como excluído. O espaço off, não retido pelo recorte, ao mesmo tempo que ausente do campo da representação, nem por isso deixa de estar sempre marcado originariamente por sua relação de contigüidade com o espaço inscrito no quadro (Dubois, 1993, p. 179, grifos do autor).

A borda é tanto delimitação do espaço visível quanto articulação desse espaço com o fora. Essa sensação propiciada pela fotografia tem uma relação estreita com o fato de que, além de recorte espacial, a fotografia é também recorte temporal. Uma evidência disto é que, no caso do cinema, o espectador pressupõe outros tipos de continuidades, quase sempre referentes a uma certa continuidade cronológica, dependente do processo de narrativa, como se as personagens ali retratadas continuassem suas vidas mesmo fora da tela. Aliás, os diretores quase sempre levam em conta essa sensação do espectador, sem a qual boa parte dos enredos ficaria incompreensível. Tal continuidade não é a mesma pressuposta na fotografia.

Essa espécie “querer ver além do enquadramento” é, muitas vezes, explorada pelo fotógrafo. Tomemos, por exemplo, imagens que mostram apenas parcialmente determinados assuntos: um pé que emerge da borda da imagem nos faz querer ver seu dono, um olhar apavorado para fora do quadro nos faz ansiar ver o motivo de tal espanto.

Esse movimento de articulação com o fora irá ser de grande importância para o método fotográfico, como veremos adiante.

 

4.A FOTOGRAFIA COMO MÉTODO

Poderíamos nos perguntar qual vantagem, enfim, o “pensamento fotográfico” traria para a pesquisa nas ciências humanas e sociais. Essa seria uma pergunta pertinente e extremamente complexa de se responder, mas sua resposta teria minimamente de levar em consideração o momento atual de crise por que passa o paradigma científico moderno.

Fruto de um conhecimento e de uma existência fragmentados e alienados, a humanidade assiste, perplexa, à crise das ciências, à crise do próprio homem. Esse saber especializado, distante da vida, sem proveito, interessa-se por tudo, menos pelo essencial, a essência da vida. (Trindade, 2008, p. 69).

O método – do grego: meta (além) + hodos (caminho), em determinado campo científico, se é um caminho, também é uma espécie de aprisionamento. É como o leito de um rio. Ao mesmo tempo em que conduz a água, levando-a além do que a água - por si – alcançaria, o leito não a deixa seguir um caminho qualquer, senão o que corresponde a seu traçado. O método é uma espécie de linguagem e a realidade responde apenas na língua em que é perguntada (Santos, 2006). Vem daí essa espécie de aprisionamento. Por essa razão, a ousadia metodológica, a aplicação de métodos oriundos de outros campos, a tradução e a metáfora têm um papel de suma importância para a ciência atual. Santos (2006, pp. 77-78) nos fala que o conhecimento contemporâneo é:

. . . um conhecimento sobre as condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica . . . Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora de seu habitat natural.

É nesse sentido de “transgressão metodológica”, conceito cunhado por Santos (2006), que devemos entender a proposta deste trabalho. Para Trindade (2008, p.67):

Vivemos momentos de transição, de questionamentos, uma época em que nossos saberes e nossos poderes parecem estar desvinculados. Mais do que isso, o saber atual fragmentado dispersou-se pelo planeta, e o centro dessa circunferência que antes era ocupado pelo homem se encontra, agora, vazio.

Há muitas coisas mais a dizer da fotografia, além das três características abordadas no tópico anterior. A escolha apenas desses três aspectos se justifica de dois modos. O primeiro deles é que este trabalho se constitui apenas como uma primeira aproximação sobre o uso do que poderíamos chamar de “pensamento fotográfico” como método para as ciências humanas e sociais. Dizer isso é também dizer que serão necessárias análises mais aprofundadas sobre o tema, assim como também é falar que muitas outras características do fotográfico - e, mais genericamente, do visual - podem nortear o uso do método aqui proposto. O segundo modo pelo qual poderá se justificar a escolha específica das três características abordadas é pelo fato de que tais características guardam estreitíssima ligação com a forma com que se faz pesquisa nas ciências sociais e humanas.

A primeira das características mencionadas, referente à ilusão imaginária propiciada pela imagem fotográfica, diz respeito à relação entre realidade e ficção, entre registro e criação, entre o pessoal e o universal.

Essa questão está no cerne do mais avançado pensamento atual sobre o modo de se fazer ciência. Historicamente, a ciência se constituiu através da separação entre o pesquisador e seu(s) objeto(s) de estudo. Essa separação, levada a efeito através de diversos procedimentos metodológicos (como randomização das amostras, análises duplo-cegas, grupos-controle e etc.), visava, e ainda visa, à eliminação do que poderia haver de pessoal e subjetivo tanto na coleta quanto na interpretação dos dados obtidos.

Se por um lado, no campo das ciências ditas mais duras - como física, astronomia e etc. – tal separação propiciou reais avanços no entendimento do mundo (embora, ultimamente, mesmo neste campo, tal separação tem sido questionada), é essa mesma separação que é posta em questão, e mesmo inviabilizada, quando o objeto de pesquisa guarda relação íntima com o próprio pesquisador. Neste último caso, enquadram-se as ciências humanas e sociais, campo em que o homem pesquisa o homem, em sua individualidade ou em sua relação com outros homens, sua historicidade e etc. Nessa situação, guardar o distanciamento preconizado pela ciência moderna positivista, entre pesquisador e objeto de pesquisa, é uma tarefa tão árdua quanto mesmo indesejável. Em relação a isso Santos (2006, p. 83) nos fala

. . . todo conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação.

E mais adiante,

Hoje sabemos ou suspeitamos que nossas trajectórias de vida pessoais e coletivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima de nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não-ditos dos nossos trabalhos científicos.

No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e auto-referencial da ciência é plenamente assumido (Santos, 2006, p.85).

Dessa forma, a condição ambígua da imagem fotográfica, que ocupa um espaço entre o registro e a criação, ou seja, o fato de a imagem fotográfica não ser nem mera fantasia nem mero documento, faz com que ela se constitua como uma representação a partir do real (Kossoy, 2002). O fotógrafo, assim como o pesquisador contemporâneo, ao mesmo tempo em que registra, cria.

Os conceitos de punctum e studium vão reforçar a idéia autoral do método aqui proposto. Como vimos acima, tais conceitos guardam estreita relação com o observador. O punctum parte da fotografia para ferir quem a observa. Mas ele não é universal e nem assim se pretende. Em última instância, é o próprio observador, em sua individualidade, que vai se deixar atravessar pela seta que o punctum representa (embora, neste caso, o observador não tenha a noção do porquê de aquela dada seta lhe atravessar).

Também em relação ao conceito de studium, essa pessoalidade se apresentará. Tal conceito irá remeter o observador a sua bagagem prévia de saber instruído. As articulações entre a imagem e as outras coisas do mundo, feitas pelo observador imbuído do studium, também obedecerão a esse quê autoral. Um outro observador, imbuído também do studium e diante de uma mesma imagem, faria outras tantas articulações diferentes.

O terceiro ponto abordado acima diz respeito ao dentro e ao fora na fotografia. Tais conceitos também serão caros ao pesquisador que venha a usar o método fotográfico. A partir da percepção da borda da fotografia e a partir do momento em que se percebe que determinada imagem não termina no enquadre do fotógrafo, é que podemos nos tornar aptos a articular determinada imagem com aquilo que ela não mostra, ou melhor, com aquilo que ela mostra fora de suas bordas.

Entre outras coisas, a possibilidade de ver além do visível é que fará com que a fotografia não seja mero decalque do real.

 

5.CONCLUSÃO, AINDA QUE PRECÁRIA

Para concluir as discussões aqui iniciadas, ainda sem esgotá-las, poderíamos propor duas outras figuras que, melhor que o decalque, representariam a imagem fotográfica: o holograma e o retalho.

O holograma é uma imagem formada por um imenso número de pequenas imagens que se repetem e que são miniaturas da imagem total, fazendo com que o todo esteja nas partes assim como as partes estejam no todo. Morin (2006) usa a metáfora do holograma para explicitar um dos princípios do pensamento complexo, que leva em conta as relações “de via dupla” entre as partes e o todo, coisa que em muito difere do pensamento analítico da ciência moderna, em que o todo nada mais é que a soma das partes.

Para Morin (2006, p. 74):

Num holograma físico, o menor ponto da imagem do holograma contém a quase totalidade da informação do objeto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico. . . A idéia pois do holograma vai além do reducionismo que só vê as partes e do holismo que só vê o todo. . . Esta idéia aparentemente paradoxal imobiliza o espírito linear. Mas, na lógica recursiva, sabe-se muito bem que o adquirido no conhecimento das partes volta-se para o todo. O que se aprende sobre as qualidades emergentes do todo, tudo que não existe sem organização, volta-se sobre suas partes.

Vista a partir da perspectiva do retalho, a imagem fotográfica também em muito se distancia do simples decalque. Enquanto o decalque nos remete a algo estanque e fechado sobre si mesmo, reprodutível de forma infinita e sem variações, a idéia do retalho, se nos remete ao recorte, remete-nos também a uma necessidade de articulação e criação de novas possibilidades de se compor o todo. Remeteríamo-nos assim, através da idéia do retalho, ao sentido da colagem artística ou à concepção do patchwork.

Tanto a colagem artística quanto o patchwork guardam características fundamentais para pensarmos a ciência hoje. A primeira delas é que, em ambas as técnicas, admite-se que o retalho é parte de um todo e que, por isso mesmo, o retalho, retirado do todo a que antes pertencia, requer necessariamente novas articulações e novas relações com outros retalhos para que novamente volte a fazer parte de um todo. Dessa forma, o retalho jamais fará sentido quando fora de um contexto. A segunda característica diz respeito a esse novo contexto do qual o retalho fará parte. Assume-se que esse novo contexto, ou seja, o trabalho pronto, não está dado de antemão. O novo todo, o trabalho final, será dependente, sobretudo, da capacidade que o artista terá em construir um discurso convincente, esteticamente interessante, através da composição criteriosa de seus retalhos. Seria impossível que dois artistas diferentes construíssem colagens ou patchworks idênticos, mesmo partindo dos mesmos retalhos.

Dessa forma, é a partir dos retalhos obtidos em seu trabalho de campo – retalhos obtidos com ou sem câmera fotográfica – que o pesquisador poderá compor seu texto e trilhar seu caminho. As imagens construídas durante seu trabalho de campo, nas quais procurará o punctum, serão – em última instância – os dados sobre os quais se debruçará sua análise.

O pesquisador jamais conseguirá captar o todo de seu objeto de pesquisa e esse não será seu objetivo, assim como não é objetivo do fotógrafo esgotar visualmente seu tema. Para o fotógrafo, é importante que sejam feitas diversas imagens de um mesmo tema, mas isso não terá outra função que conseguir uma imagem, ou várias, que - em sua opinião – se adéqüe(m) ao que artisticamente se propõe e que consiga fazer parte do discurso que pretende apresentar.

Assim será a postura do pesquisador que use o método fotográfico em sua pesquisa. Mais importantes do que uma tentativa de mostrar todo seu objeto de pesquisa, coisa impossível de se levar a efeito, serão as articulações que o pesquisador será capaz de fazer a partir de seus retalhos. Daí, a extrema necessidade de que o pesquisador tenha apropriação e vivência da área que pretende pesquisar, pois só assim poderá perceber as implicações possíveis dos retalhos que obteve durante seu trabalho de campo e só assim, partindo das diversas características da imagem fotográfica, é que procederá uma análise convincente de seus/suas dados/imagens.

O que aqui se pretende não é a exaustão de um tema ou mesmo a proposta de um método de pesquisa que se imponha como melhor do que qualquer outro.

O que se propõem aqui, ainda que de forma inicial e partindo da percepção de que o trabalho do fotógrafo pressupõe um caminho metodológico, foi o uso do pensamento fotográfico como uma possibilidade a mais para o já tão diverso campo das ciências humanas e sociais.

 

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Recebido: 27 de maio de 2013.
Aprovado: 23 de outubro de 2013.