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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.2 Assis dez. 2013

 

Artigo

 

Saúde mental infantil e atenção primária: relações possíveis

 

Infant mental health and primary attention : possible relations

 

 

Barbara SinibaldiI

I Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP

 

 


RESUMO

A falta de diretrizes políticas para instituir o cuidado de crianças na área da saúde mental foi preenchido por instituições em sua maioria privadas e/ou filantrópicas que durante muito tempo foram as únicas opções, gerando um quadro de desassistência, abandono e exclusão. Apesar das transformações ocorridas, a Reforma Psiquiátrica Brasileira precisa enfrentar muitos problemas e desafios, dentre eles o de implementar políticas e práticas capazes de assegurar os direitos básicos de cidadania de toda a população infantil brasileira, uma vez que a promulgação de textos legais não operam por si as mudanças necessárias. O objetivo do presente estudo é problematizar como tem sido construída a relação entre os serviços de Atenção Primária e os cuidados dispensados a infância no Brasil. Busca-se com essa pesquisa, apoiar à consolidação dos cuidados a saúde mental infantil em serviços de Atenção Primária no paradigma da Atenção Psicossocial.

Palavras-chave: Atenção Primária; Saúde Mental; Infância.


ABSTRACT

The lack of political guidelines for establishing child care in mental health was fulfilled by institutions mostly private and/or charitable which have been the only options for a long time, creating a framework of lack of assistance, neglect and exclusion. Despite the transformations, the Brazilian Psychiatric Reform needs to face many problems and challenges, among them to implement policies and practices to ensure the basic rights of all Brazilian children, since the promulgation of legal texts do not operate themselves the necessary changes. The aim of this study is to discuss how the relationship between the services of Primary Attention and the care provided to children in Brazil has been built. We seek, with this research, to support the consolidation of child's mental health care services in Primary Attention in the paradigm of Psychosocial Attention.

Keywords: Primary Attention; Mental Health; Childhood.


 

 

Introdução

O período da infância é considerado como determinante na vida de qualquer indivíduo e tudo o que acontece nela adquire papel fundamental na formação do futuro adulto, pois é marcada por importante desenvolvimento físico, intelectual e emocional. Nesse trabalho utilizamos o conceito de infância como um período do desenvolvimento humano, no qual envolve seus aspectos físicos, intelectuais e subjetivos da criança até os 12 anos. Entretanto, é necessário ressaltar que o homem é um ser social e como tal a infância precisa ser compreendida como um fenômeno social e dialético construído em conseqüência de uma prática social, em um tempo histórico (Boarini & Borges, 1998).

Para alguns autores, como Áries (1978) e Postman (1999), a atual representação da infância, como estrutura social e condição psicológica, é fruto de uma invenção histórica e social e por essa razão pode vir a assumir outro estatuto ou desaparecer. Essa representação da infância surge no século XVI, junto com os ideais da burguesia e a ascensão do capitalismo.

No Brasil é a partir do século XIX que o conceito de infância adquire novos significados e uma dimensão social, a criança deixa de ser objeto de interesse, preocupação e ação no âmbito privado da família e da igreja para tornar-se uma questão de cunho social, de competência administrativa do Estado. Com o advento da República, o Brasil passa a buscar uma identidade nacional, na tentativa de fundar uma nação. Investir na infância passou a significar "civilizar" o país. Cuidar da criança e vigiar sua formação moral era salvar a nação (Rizzini, 2008).

Segundo ainda a autora naquela época surge um aparato médico-jurídico-assistencial que tem como função: prevenção, educação, recuperação e repressão. A criança torna-se o centro de uma ação disciplinar, tendo em vista o seu papel como "chave para o futuro". A aliança firmada entre justiça e assistência, torna-se politicamente viável ao servir de função regulatória de enquadrar os indivíduos, desde a infância, à disciplina e ao trabalho. Uma nação que precisava ser saneada e civilizada.

Assim no início do século XX, como abordaremos posteriormente, com a propagação da importância da assistência a crianças e adolescentes, gerado por questões demográficas e pela saúde das populações, engendrou-se um conjunto de medidas assistenciais. A criança passou a ser vista como o futuro homem higienizado, sendo fundamental o início de um trabalho educativo, cabendo à higiene mental o papel de orientação científica das famílias.

Essa tendência à institucionalização da infância permanece ainda no século XX. Segundo o documento do Ministério da Saúde, intitulado "Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-juvenil", publicado em 2005, vários estudos demonstram as graves consequências da institucionalização prolongada para o desenvolvimento psicológico, afetivo e cognitivo de crianças e adolescentes. No entanto ainda se mantém o imaginário de que a institucionalização protege as crianças das más influências do seu meio. (Brasil, 2005).

Apenas no final da década de 1980, como resultado de um amplo processo de debate por toda a sociedade brasileira, houve a promulgação da Carta Constitucional de 1988, marco da democracia e dos direitos de cidadania, incluindo os da criança e do adolescente.

A partir desse momento emerge a necessidade de criar políticas e ações de cuidado específicas para essa população que até então tinham os modelos de atenção dos adultos adaptados para eles, sem a elaboração de ações de cuidados especificas de acordo com suas próprias demandas.

Atualmente, um dos maiores desafios para a Saúde Mental é a construção de uma política voltada para a população de crianças e adolescentes que considere suas peculiaridades e necessidades e que siga os princípios estabelecidos pelo SUS. A necessidade de constituição de uma rede ampliada de atenção em Saúde Mental para a criança e o adolescente, pautada na intersetorialidade e co-responsabilidade de todos atores envolvidos na situação.

Assim, faz-se necessário problematizar os cuidados dispensados historicamente à população infanto-juvenil no Brasil, pois essa cultura de institucionalização do cuidado dispensado na área da Saúde Mental ainda está presente nesse campo. Desse modo, o presente trabalho objetiva fazer uma problematização acerca das políticas e ações desenvolvidas para essa demanda, em especial na Atenção Primária de Saúde (APS), buscando encontrar propostas que rompa com a lógica da medicina biológica que cada vez mais patologiza e medicaliza a infância.

 

Atenção Primária à Saúde no Brasil

A Atenção Primária à Saúde tem se sido foco das discussões em saúde em todo o mundo. Várias Conferências e Relatórios internacionais têm apontado o investimento na Atenção Primária como a forma mais eficaz na produção de um sistema de saúde resolutivo (Buss, 2000).

A Conferência Internacional em Alma-Ata (1978), promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), declarou que a APS é fundamental à assistência sanitária. Isto porque a APS coloca a assistência em saúde ao alcance de todos os indivíduos e famílias da comunidade, com sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam suportar. A APS, uma vez que constitui o núcleo do sistema nacional de saúde, faz parte do conjunto do desenvolvimento econômico e social da comunidade.

A Conferência de Alma-Ata afirmou também que a APS é chave para alcançar em todo o mundo um nível aceitável de saúde que fizesse parte do desenvolvimento social e se inspirasse em um espírito de justiça. A meta foi proposta para o ano 2000. A Declaração de Alma-Ata definiu ainda que a APS devesse se orientar de acordo com os principais problemas sanitários da comunidade e prestar atenção preventiva, curativa, de reabilitação e de promoção de saúde. Portanto, a APS não se restringiria a um programa específico ou à prestação de serviços por meio de pacotes básicos. Deveria estar interligado com os outros níveis de atenção (Andrade, Barreto & Bezerra, 2009).

A denominação "Atenção Primária de Saúde " vem sendo empregada para modelos distintos de organização e oferta de serviços de saúde em vários países ao redor do mundo.

De acordo com o Ministério da Saúde, a Atenção Básica:

[...] caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. (Brasil, 2012, p.19).

Sendo assim, APS se constitui como a porta de entrada preferencial do SUS e também para as ações em Saúde Mental. Ao ser considerada a organizadora dos demais pontos contínuos de atenção, a APS imprime o caráter de estratégia, podendo ser capaz de resolver em torno de 90% dos problemas de saúde dos usuários. (Mendes, 2001).

No entanto, não é isso que acontece no país. No cotidiano dos serviços muitos profissionais ainda trabalham pautados no Modelo médico especializado, voltado às doenças e a cura, tentando responder as situações agudas, fragmentada, individual.

Um importante dispositivo para a superação do modelo médico especializado é a Estratégia de Saúde da Família que se propõe justamente a reorganizar o modelo de saúde vigente.

 

Estratégia de Saúde da Família: Redirecionando o modelo em saúde

A Saúde da Família se difere da saúde familiar, não se reduz a simplesmente desenhar um sistema de adscrição de famílias a uma equipe médica que, próxima e humanizadamente, atende-las na mesma lógica especialista. Ao contrário, sem negar as famílias atenção médica de boa qualidade, a saúde da família deveria funcionar sob os ditames da prática sanitária de vigilância à saúde e, portanto, estaria referida pela saúde e não exclusivamente pela medicina.

O dilema de superar a etapa da expansão quantitativa de acesso à ESF e passar por uma discussão mais formuladora da consolidação da qualidade das ações do programa e sua respectiva integração com o restante da rede do SUS marcam o cerne das discussões teóricas atuais. Essas discussões se traduzem como desafios pragmáticos para os gestores de saúde, sobretudo no nível municipal.

A Estratégia Saúde da Família foi criada inicialmente, em 1994, sendo denominado naquela ocasião de Programa de Saúde da Família – PSF. Nasceu da necessidade de se romper com o modelo assistencial em saúde, hegemônico no Brasil, caracterizado por oferecer atenção curativa, medicalizante, verticalizada, individualista, centrada no médico e de pouca resolutividade em termos dos problemas dos usuários do sistema. Desde sua criação foi visto como dispositivo essencial na reorganização da atenção básica à saúde e na reorientação do modelo assistencial, considerado estratégico tanto para a universalização do atendimento a saúde, como para implementar os preceitos da reforma sanitária brasileira. Assim, em 2004, o Programa de Saúde da Família torna-se a Estratégia de Saúde da Família (Camargo-Borges & Cardoso, 2005).

Em 2006 é lançada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) o que objetiva revitalizar a Atenção Básica à saúde no Brasil calcada na atuação da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esse evento teve como participantes segmentos de setores acadêmicos, trabalhadores do SUS, profissionais da saúde, usuários e entidades da sociedade civil organizada.

No ano de 2011 o Ministério da Saúde aprova a Portaria n 2.488 que estabelece "a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)" e revoga a Portaria n 648 de 2006 (Brasil, 2012, p.13). A Estratégia da Saúde da Família (ESF) configura-se como principal modalidade de atuação da atenção básica. Seus princípios são: atuação no território através do diagnóstico situacional, enfrentamento dos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade, buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo; buscar a integração com instituições e organizações sociais e ser espaço de construção da cidadania.

É na Atenção Primária que deveriam chegar todos os tipos de queixa referentes à Saúde Mental Infantil. Desta forma, acentua-se a importância do conhecimento e da atenção que os profissionais dos serviços públicos de saúde dão às queixas e sintomas de Saúde Mental. A escuta cuidadosa das queixas pode possibilitar uma intervenção efetiva por parte da equipe local. Por outro lado, um encaminhamento adequado das crianças com problemas mentais para serviços especializados pode permitir intervenção terapêutica precisa e oportuna. (Brasil, 2005).

De acordo com a pesquisa realizada por Boarini e Borges (1998) a maioria dos casos atendidos nos serviços de saúde mental da rede pública se refere aos problemas de aprendizagem ou escolares, questões estas que não necessariamente necessitam de intervenções especificas de um profissional de saúde mental. Para as autoras, esse dado pode sugerir que

[...] além de não existir suficiente oferta de serviços para atender àquelas crianças que, provavelmente, necessitam de atendimento especializado em saúde mental, a maior parte do tempo do profissional é absorvida em atendimentos, muitas vezes, dispensáveis. (Boarini; Borges, 1998, p.85).

Atenção em saúde mental na atenção básica está distante de ser alcançada, bem como parece que são poucas as diretrizes e políticas voltadas para essa temática, como abordaremos a seguir.

 

Saúde Mental e Infância

As políticas de saúde estão relacionadas, historicamente, com os processos de urbanização e industrialização. É no século XIX, como já citamos anteriormente, com as grandes aglomerações populacionais, que nascem medidas de cunho higienista buscando mudar hábitos alimentares, de moradia, vestimentas que eram, até então, os principais responsáveis pelos altos índices de mortalidade da população, notadamente da população infantil.

As leis de proteção à infância, desenvolvidas nas primeiras décadas do século XX no Brasil, também faziam parte da estratégia de educar o povo e sanear a sociedade. As leis visavam prevenir a desordem, à medida que ofereciam suporte às famílias nos casos em que não conseguissem conter os filhos insubordinados. Esses poderiam ser entregues à tutela do Estado, caso se julgasse necessário, sobretudo quando a pobreza deixava de ser "digna" e a família era definida como sendo contaminada pela imoralidade (Rizzini, 2008).

Essa apropriação pelo Estado da infância no Brasil gera um quadro de institucionalização dessas crianças e adolescentes que influenciam o imaginário social até os dias de hoje.

A Saúde Mental Infantil no Brasil, enquanto campo de intervenção, cuidados e estudos sobre a criança, não teve nada estruturado ou sistematizado até o século XIX, quando surgiram as primeiras teses em psicologia e em psiquiatria, especialmente a partir da criação do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro o Hospício D. Pedro II, em 1852 (Ribeiro, 2006).

No inicio do século XX, o movimento higienista teve significativa influência na psiquiatria infantil brasileira, pois, mesmo não voltando seu olhar para a patologia mental propriamente dita, lançou bases para uma medicina que se preocupava com a criança e seu desenvolvimento.

As crianças consideradas normais eram institucionalizadas através das escolas e internatos. Já as crianças tidas como insanas, eram internadas nos manicômios dividindo espaço com os adultos, pois não havia estudos ou instituições especificas voltadas às crianças nesse período. Dessa maneira, os primeiros estudiosos dos problemas infantis focaram suas investigações nas desordens evidentes buscando remediá-las, investindo-se no aperfeiçoamento da assistência pública em ambientes fechados, visando aos delinquentes, aos retardados e às crianças abandonadas e maltratadas.

Naquela época, o saber médico deslocou sua intervenção também para a prevenção de doenças, aumentando seu papel na sociedade, bem como sua importância como apoio técnico-científico ao exercício de poder do Estado, A legitimação da psiquiatria como uma das instâncias reguladoras do espaço social, extrapolou os limites do asilo clássico, construindo um saber psiquiátrico preventivo ao qual se vincula o surgimento da psiquiatria infantil.

No Brasil, é fato recente o reconhecimento, pelas instâncias governamentais, de que a Saúde Mental de crianças e jovens é uma questão de saúde pública e deve integrar o conjunto de ações do Sistema Único de Saúde (SUS). Historicamente, as ações relacionadas à Saúde Mental da infância e adolescência foram, no país, delegadas aos setores educacional e de assistência social, com quase ausência de proposições pela área da Saúde Mental (Couto, Duarte & Delgado 2008).

Atualmente, o número de especialidades que se ocupam do desenvolvimento infantil é muito grande, a neurologia, a psicologia, a psicanálise, a psicopedagogia, a psicomotricidade, a fonoaudiologia, entre outras tem gerado uma assistência à criança fragmentada, médica e patologizante.

Com a influência das neurociências temos um aumento cada vez maior da patologização infantil tendo o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), caracterizado pelos neurologistas por uma disfunção cerebral, um significativo representante. Podemos verificar que a própria escola e o professor passam a diagnosticar o aluno, tendo cada vez mais presente, parâmetros de normalidade divulgados na mídia: jornais, revistas, televisão, programas de rádios, sites, etc. Assim, a própria escola classifica e encaminha a criança para a neurologia ou psiquiatria. Portanto, faz necessário mudarmos a concepção vigente sobre a infância que predomina atualmente, pautado também na biologização da vida.

O conceito Biologização da Vida se relaciona com outros elaborados a partir da emergência da medicina como saber técnico cientifico voltada para a disciplinarização da força de trabalho, higienização dos espaços e controle das relações sociais, como medicalização do social e biopoder (Bastos, 2013).

Entendemos por medicalização a expansão da ação da medicina para problemas de ordem espiritual e moral ou legal e criminal (Zola, como citado em Bastos, 2013), Ilich (1975) utilizou-se desse mesmo termo para conceituar a utilização de termos médicos para compreender problemas sociais por intermédio da busca de sua origem biológica. Finalmente Foucault (1988) definiu que a biopolítica age na espécie. Ela se preocupa em cuidar de todo o processo de vida desde o nascimento até a morte, enfim com a saúde da população. A biopolítica cria técnicas de gestão da vida, nas quais o biológico é o centro das discussões políticas, com o objetivo de modificá-la, transformá-la, aperfeiçoá-la para melhor manejá-la. Para Foucault (1988), a valorização e o investimento sobre o corpo vivo, bem como a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis para o desenvolvimento do capitalismo.

Na infância esse processo de biologização ou medicalização ocorre na educação, por intermédio, principalmente do diagnostico do Transtorno de Distúrbio de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Esse fenômeno da medicalização do social tão em evidência no mundo contemporâneo não deixa escapar a população infanto-juvenil. Podemos observar um aumento cada vez maior de consumo de psicotrópicos pela infância, principalmente nas crianças em idade escolar.

Se de um lado observamos o avanço do processo da biologização da vida, e em especial da infância. De outro lado, a atual Política Nacional de Saúde Mental tem definido diretrizes importantes para a assistência à criança e adolescente. Entre essas diretrizes destacam-se duas: a implantação pelo SUS de novos serviços de saúde mental para crianças e adolescentes, os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) e a construção de estratégias para articulação intersetorial da saúde mental com setores historicamente envolvidos na assistência à infância e adolescência: saúde geral, educação, assistência social, justiça e direitos, com vistas à integralidade do cuidado.

A saúde geral, particularmente a atenção básica, a educação e a assistência social são consideradas programas estratégicos para acesso de crianças e adolescentes ao cuidado em Saúde Mental, dentre outros fatores, porque são mais acessíveis à população e tendem a gerar menos estigma tanto para os usuários quanto para suas famílias. A noção que embasa a montagem de recursos é a de uma rede pública ampliada de atenção à Saúde Mental infantil e juvenil. Nessa rede devem estar articulados serviços de diferentes setores, com graus diferenciados de complexidade e níveis distintos de intervenção, capazes de responder pelas diferentes problemáticas envolvidas na Saúde Mental de crianças e jovens (Couto et al., 2008).

 

Atenção Psicossocial, Atenção Primária e a infância

O Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira se inicia a partir da década de 1970 durante a ditadura militar, quando movimentos sociais lutam pela redemocratização do país e reivindicam direitos sociais. Seus atores vêm questionar o modelo hospitalocêntrico de assistência, onde prevaleciam as práticas médicas curativo-individualizadas e especializadas. O Movimento considerava esse modelo de assistência ineficaz, pois gerava exclusão social e sequestrava a cidadania das pessoas com sofrimento psíquico, violando os direitos humanos. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) foi um importante ator no processo da Reforma Psiquiátrica, criticava o manicômio e reivindicava melhores condições de assistência às pessoas com sofrimento psíquico e a humanização dos serviços de saúde (Amarante, 2009).

Na década de 1980 com a realização da VIII Conferencia Nacional de Saúde (1986), da I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) e do II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental (1987) e a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987, surgem condições favoráveis às transformações na assistência à saúde no país. Não se trata mais de melhorar as estruturas existentes, mas de criar novos dispositivos e estratégias de cuidado (Yasui, 1999; Luzio, 2003).

Nessa perspectiva, o Movimento da Reforma Psiquiátrica trouxe significativos avanços para o cuidado dos usuários dos serviços de saúde mental. As Conferencias nacionais de Saúde Mental, cada uma a seu modo, também apontaram a necessidade de se definir ações político-assistenciais para que um novo tempo se instaurasse no que diz respeito ao cuidado e tratamento da população infanto-juvenil. Mas é apenas no Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (2010) que aparecem diretrizes específicas para a demanda infanto-juvenil.

O relatório da referida Conferencia destaca a importância do desenvolvimento de ações intersetoriais, transdisciplinares, de assistência e de promoção de Saúde Mental nos três níveis de atenção. Aponta também que as exigências colocadas no processo de consolidação da política de Saúde Mental infanto-juvenil implicam a construção de redes que respondam não apenas aos desafios presentes nos grandes centros urbanos, mas também aqueles existentes em municípios de pequeno porte populacional.

Assim, começa a emergir um novo modelo assistencial em Saúde Mental guiado por pressupostos como a inclusão social e a emancipação das pessoas com sofrimento psíquico, através do processo de desativação dos hospitais psiquiátricos e da criação de uma rede substitutiva de cuidados, territorializada e integrada. Sendo fundamental que essa rede seja pautada na intersetorialidade e na co-responsabilidade.

A promulgação da Carta Constitucional de 1988 afirmou a condição de cidadã de crianças e adolescentes, a Lei nº 8069 de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e Adolescente assegurou seus direitos. Nos últimos anos houve avanços na consolidação de um novo desenho da Política Nacional de Saúde Mental, outras portarias foram publicadas e ajudaram os municípios a organizarem seus serviços e ações de saúde mental no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2001). Como a Portaria 336/02 em que define o CAPS como serviço ambulatorial de atenção diária que deve funcionar segundo a lógica do território e independente de qualquer estrutura hospitalar, contempla a criação do Centro de Atenção Psicossocial infantil (CAPSi), mas foi em 2004, que se criou o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-juvenil constituído pela Portaria GM nº 1.608, de 3.8.2004, para debater e deliberar sobre a questão da institucionalização de crianças e adolescentes, particularmente daquelas portadoras de transtornos psíquicos (Brasil, 2005).

Atualmente podemos observar a ampliação da rede de atenção, com serviços abertos e ações territoriais, diminuição dos leitos psiquiátricos, redução da exclusão social e a tentativa de criar uma cultura contra os manicômios. Apesar das transformações ocorridas, a Reforma Psiquiátrica brasileira precisa enfrentar muitos problemas e desafios, dentre eles o de implementar políticas e práticas capazes de assegurar os direitos básicos de cidadania de toda a população infantil brasileira, uma vez que a promulgação de textos legais não operam por si as mudanças necessárias.

Os CAPSi, serviços públicos de base territorial voltados para a atenção intensiva, embora tenha entre suas prioridades de ação os projetos de desospitalização e desinstitucionalização, ainda são insuficientes em número para atender a demanda de uma clientela mais grave que não recebe um atendimento resolutivo na modalidade ambulatorial. Esses serviços estão localizados em municípios de médio e grande porte. Os municípios de pequeno porte contam com uma rede de saúde composta por serviços de Atenção Primária e, em alguns casos possuem o Ambulatório de Saúde Mental como único serviço especializado, que muitas vezes não contém programas específicos para a demanda infantil.

Dessa maneira, a ESF representa o primeiro contato da população com o serviço de saúde. Como tal, é uma estratégia para reorientação dos sistemas de saúde, auxiliando a operacionalização dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e organizando o sistema numa rede articulada com os outros níveis de ação. A Estratégia de Saúde da Família se destaca entre as estratégias de saúde por ser uma tentativa de transformar as práticas em atenção à saúde e o trabalho dos profissionais que nele atuam. É uma estratégia inerente à atenção primária que tem por objetivo focalizar o individuo como um sujeito integrado à família e a comunidade, além de centrar a atenção na promoção de saúde e dar ênfase à integralidade das ações.

De acordo com a atual Política Nacional de Saúde Mental, as ações de saúde mental devem ser desenvolvidas em articulação com a Atenção Básica pela convergência de princípios entre elas. Mas, para que a saúde mental seja concretizada na Atenção Básica, é preciso que os princípios do SUS se tornem práticas cotidianas. Nesse sentido, ações que envolvam conceitos como acolhimento e vínculo, atuação em equipe e no território, integralidade do cuidado e responsabilização pelas ações, trabalho em rede, desinstitucionalização e reabilitação psicossocial, são condições sine qua non para a construção de cuidados comuns entre estas políticas. (Borges, 2012).

Uma relação harmônica e profícua entre as ações de saúde mental e Atenção Primária se faz essencial para avançarmos nas propostas da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Atualmente já podemos analisar quais têm sido os avanços e desafios nesta relação.

Desde os anos setenta do século XX acompanhando a trajetória da reforma sanitária, o processo da reforma psiquiátrica vem alterando conceitos e práticas na atenção aos transtornos mentais no país. O foco fundamental deste movimento é a desinstitucionalização, sendo sua luta principal a redução do número de leitos nos manicômios e a implementação de ampla rede comunitária de serviços substitutivos. Este direcionamento da reforma psiquiátrica para o cuidado dos pacientes com transtornos severos e persistentes e para a implantação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) deixou em segundo plano a assistência aos transtornos mentais menos graves e mais prevalentes.

Essas medidas tentam diminuir a defasagem na formação dos profissionais da Atenção Primária que não são preparados para atender a demanda de Saúde Mental e, por isso, na maioria das vezes não vêem as questões de Saúde Mental como parte integrante do seu trabalho. Essa situação está relacionada também com a lógica dos especialismos que durante muito tempo creditou aos profissionais como os psicólogos e psiquiatras o saber para lidar com as questões de Saúde Mental:

A integração do PSF [ESF] com as políticas de Saúde Mental, por sua vez, implica também transformações profundas nas práticas de saúde institucionalizadas. A lógica dos 'especialismos', ainda muito arraigada à cultura médico-hospitalocêntrica, encontrada entre os técnicos e mesmo entre a população usuária, dificulta a implementação de novas formas de cuidado. Tal lógica pressupõe relações hierarquizadas de saberes e poderes entre os diferentes membros da equipe e desta com os usuários. Isso quer dizer que é preciso pôr em curso alterações na forma de organização dos serviços, pautadas por mudanças nos saberes instituídos que delimitam quem é competente e quem tem autoridade para lidar com a loucura. Tal perspectiva conduz inevitavelmente a uma discussão a respeito do caráter ideológico do mandato social das profissões envolvidas no campo da saúde e da "vaidade" que atravessa o mundo "psi", que sedimenta a saúde mental como espaço privativo dos profissionais que nele atuam. (DIMENSTEIN ET AL, 2005, p.26-27).

Portanto, faz-se necessário investirmos tanto na formação dos profissionais da Atenção Primária, quanto na mudança de ideologias e práticas ligadas à lógica dos especialismos para que de fato possamos desenvolver ações integrais de cuidado.

 

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Recebido: 10 de maio de 2013
Aprovado: 19 de novembro de 2013.