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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.1 Assis jan. 2014

 

Artigo

 

Saúde mental e hospitalização: qual a percepção dos profissionais da saúde?

 

Mental health and hospitalization: what are the perception health's professionals?

 

 

Jusiene Denise LauermannI; Zulmira Newlands BorgesII

I, II Universidade Federal de Santa Maria

 

 


RESUMO

Este artigo tem por finalidade apresentar e problematizar as percepções dos profissionais da saúde sobre as pessoas com transtornos mentais e a sua internação. Trata-se, especificamente, de profissionais que atuam no setor de assistência psiquiátrica de um hospital geral público localizado no sul do Brasil. Dessa forma, busca-se discutir como as percepções deles, acerca da saúde mental, interferem no atendimento oferecido às pessoas que chegam até o setor. Como metodologia, adotou-se a observação participante, utilizando-se o diário de campo e a entrevista semiestruturada. A observação participante foi realizada por três meses, e as entrevistas foram feitas com cinco profissionais da saúde atuantes no local pesquisado. As percepções encontradas sobre a saúde mental, no período da pesquisa, estavam relacionadas a agressividade, imprevisibilidade, falta de controle e sofrimento psíquico intenso, o qual interfere no funcionamento global do paciente e nas suas relações familiares e sociais.

Palavras-chave: Saúde mental; Profissionais da saúde; Pessoas com transtornos mentais.


ABSTRACT

This article aims to present and discuss the perceptions of health's professionals on psychiatric patients and their hospitalization. These are professionals who work in the field of psychiatric care at a public hospital located in southern Brazil. It seeks to discuss how perceptions of professionals in mental health interfere with the care and treatment of patients with a psychiatric disorder. The methodology adopted is participant observation, using the field diary and the semi-structured interview as working tools. The participant observation was carried out for three months and the interviews were conducted with five health's professionals working in the studied site. Between the found perceptions about mental health, they all refer to the idea of aggression, unpredictability, lack of control and an intense psychological distress experienced by the patient, which interfere with their global functioning and their family and social relationships.

Keywords: Mental health; Health`s professionals; Psychiatric patient.


 

 

Introdução

Este artigo visa a apresentar parte de uma pesquisa realizada em um serviço de assistência psiquiátrica de um hospital geral público localizado no sul do Brasil. Como principal objetivo, investigaram-se as percepções dos profissionais da saúde, atuantes neste serviço, sobre a saúde mental, em especial sobre os pacientes internados no local. Desse modo, entende-se que, primeiramente, cabe apresentar, ainda que de forma introdutória e breve, algumas contribuições da obra de Michel Foucault intitulada Doença Mental e Psicologia.

Contudo, antes de prosseguir com tais contribuições, importa destacar que, a partir de uma pesquisa qualitativa, buscou-se compreender e valorizar o entendimento dos profissionais da saúde sobre as pessoas com transtornos mentais. Sendo assim, faz-se necessário delinear alguns termos utilizados por eles, termos estes que circulam e acabam por cristalizar-se no ambiente de trabalho. Por exemplo, a denominação "serviço de psiquiatria" era assim mencionada pelos funcionários e profissionais do local para se referirem a todos os serviços ofertados pelo setor voltado à saúde mental. Portanto essa nomeação envolve, para eles, o pronto atendimento psiquiátrico, o serviço ambulatorial voltado à saúde mental e duas unidades de internação (uma para dependentes químicos e outra para transtornos mentais). Quanto à denominação "paciente psiquiátrico", também utilizada por eles, ela era assim mencionada em relação às pessoas que estavam internadas nas unidades, especialmente as com transtornos mentais.

Dito isso, prossegue-se com as contribuições de Michel Foucault. Para este autor, foi no século XVIII, através da objetividade de um olhar médico e científico, que a loucura adquiriu o status de doença mental. A partir de então, ela deixa de ser ilusão ou erro e passa a ser considerada um desvio da conduta normal. Antes disso, durante a Idade Média e o Renascimento, a psiquiatria mostrava o louco como um doente preso à rede de significações religiosas e mágicas (Foucault, 1988).

Apesar de, mesmo antes do século XIX, a loucura já ter sido nomeada e constituída enquanto categoria social e médica, estando relacionada a noções de patologia e tendo alguns hospitais da Idade Média comportado leitos reservados aos loucos, ela ainda não tinha suporte médico. O que ocorre é que sua nomeação e sua constituição variam com as épocas, podendo permanecer implícitas em alguns momentos e, em outros, aparecer de forma mais explícita (Foucault, 1988).

Em meados do século XVII, por exemplo, a loucura passa a ser indesejada ao convívio social, sendo excluída. Estabelecimentos para a internação são criados a fim de receber não só os loucos, mas também indivíduos considerados diferentes para os parâmetros da sociedade vigente. Assim, foram internados inválidos pobres, mendigos, portadores de doenças venéreas, libertinos, criminosos e outros que apresentassem alterações quanto à ordem da razão e da moral da época. Tais estabelecimentos recebiam as pessoas não para tratá-las, mas porque elas não deveriam mais fazer parte da sociedade. Numa época em que a burguesia estava em ascensão, a ociosidade tornou-se a categoria que agrupava todos aqueles que se encontravam nas casas de internamento (Foucault, 1988).

Passado um século, as antigas casas de internamento foram gradualmente reservadas aos loucos, somente a eles. Há, então, um refinamento da percepção sobre quem deveria ser internado. Nesse momento, os loucos são percebidos como perigosos e, por isso, devem ser contidos e sancionados. Logo, diferentemente do século XVII, o internamento torna-se uma medida de caráter médico, e não mais assistencial (Foucault, 1988).

No século XIX, a doença mental já estava definida conforme os padrões positivistas. Objetivando conseguir a sua cura, era necessário inculcar no louco os sentimentos de dependência, humildade, culpa e reconhecimento. Para isso, foram utilizadas ameaças, castigos, privações alimentares, humilhações e tudo o mais que pudesse infantilizar e culpabilizar o louco, o qual era vigiado nos seus menores gestos e pretensões, bem como contradito no seu delírio e ridicularizado nos seus erros. Por esses motivos, a função da medicina, nesse período, estava muito mais ligada a um controle ético e a uma higienização social, no sentido de "esconder a loucura", do que a uma intervenção terapêutica (Foucault, 1988).

Frente a esse apanhado histórico e social, percebe-se que a loucura foi historicamente "construída" enquanto categoria médica e social. Diferentes épocas produziram distintos saberes sobre ela, o que evidencia a impossibilidade de se pensar a doença mental como naturalizada no corpo, pois ela foi histórica e socialmente produzida por um saber médico psiquiátrico, o qual adquiriu o monopólio sobre a "verdade" da loucura (Foucault, 1988). Nota-se, assim, que ela foi ganhando diferentes dimensões em cada período histórico, sendo tratada e classificada a partir do olhar e do lugar que era dado a ela, tanto pela sociedade como, em seguida, pela ciência.

A partir do século XX, inicia-se um processo de transformação do modelo assistencial em saúde mental, visto que, até então, os hospitais psiquiátricos existentes utilizavam-se do tratamento moral e do isolamento social do internado para tratar da doença mental (Desviat, 1999). No Brasil, o movimento da Reforma Psiquiátrica iniciou ao final da década de 1970, a partir de denúncias de maus tratos e de violências contra os pacientes e da falta de recursos. Tal movimento surgiu para estabelecer novas formas de tratamento e de assistência à pessoa com transtorno mental, criando novos modelos de atendimento (Spadini e Souza, 2006).

Entretanto, foi somente a partir de 2001, com a Lei nº 10.216, também conhecida como Lei Paulo Delgado, que um gradual processo de construção e resgate da cidadania do doente mental foi iniciado no Brasil (Medeiros e Guimarães, 2002). Essa lei federal regulamenta o processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira. Mas, desde 1992, várias leis estaduais, inspiradas no projeto dessa lei, já previam a substituição progressiva da assistência no hospital psiquiátrico por outros serviços e práticas, incentivando os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a utilização de leitos em hospitais gerais, a notificação de internação involuntária e a definição dos direitos das pessoas com transtornos mentais (Berlinck, Magtaz e Teixeira, 2008).

Nesse sentido, pretende-se mostrar como, atualmente, a saúde mental tem sido percebida em um serviço de assistência psiquiátrica de um hospital geral público localizado no sul do Brasil. A proposta de compreender essas percepções considera não só que elas podem permear a prática dos profissionais frente às pessoas com transtornos mentais, mas também que elas possuem atravessamentos históricos, culturais e científicos. E são essas percepções – as quais podem dizer das práticas – que se tentará expor e problematizar ao longo deste artigo. Mas, antes, será exposto o caminho metodológico escolhido e percorrido para o desenvolvimento da pesquisa.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que realizou uma observação participante com inspiração etnográfica (Goffman, 1992; Becker, 1999). Portanto todas as informações coletadas no local onde ela foi realizada – um serviço de assistência psiquiátrica de um hospital geral público localizado no sul do Brasil – foram registradas em um diário de campo. Aliadas à observação participante, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco profissionais da saúde atuantes no serviço, buscando-se compreender as percepções sobre a saúde mental que circulam nesse espaço.

Durante três meses, período em que foi feita a observação participante, foram estabelecidos contatos e diálogos com os profissionais e funcionários do local e acompanhadas algumas das suas atividades diárias. Através da observação participante, foi possível examinar a rotina local, as práticas diárias e as relações entre os profissionais, assim como conversar, de maneira informal e formal (por meio das entrevistas), com eles. Tudo isso foi possibilitando o acesso às percepções sobre a saúde mental compartilhadas nesse serviço.

Quanto às entrevistas formais, optou-se pelo formato semiestruturado, utilizando-se um roteiro temático. Estas foram gravadas com a prévia autorização dos entrevistados, os quais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital e também da universidade onde as autoras estavam vinculadas como discente e docente. Assim, a pesquisa foi aprovada sob o número 0196.0.243.000-08.

No total, foram realizadas cinco entrevistas, todas após a aproximação com o campo de pesquisa, conhecendo-se, primeiro, um pouco da realidade do local. A escolha dos entrevistados se deu, por um lado, tendo em vista o interesse dos profissionais em participar da entrevista e, por outro, levando em consideração a diversidade de profissionais do local, contemplando-se as diferentes áreas do saber. De acordo com Víctora, Knauth e Hassen (2000), é importante respeitar a diversidade interna do local pesquisado. Sendo assim, optou-se por entrevistar grande parte das categorias profissionais da área da saúde que atuavam no serviço. Especificamente, foram entrevistados psiquiatras, residentes em psiquiatria, enfermeiros e psicólogos. Para preservar o anonimato dos participantes, criaram-se as seguintes categorias: profissional A, B, C, D, E.

Dados os trâmites e cuidados éticos pelos quais o estudo passou, importa destacar que alguns dos parâmetros estabelecidos pelos Comitês de Ética em Pesquisa constituíram-se em dificuldades para o desenvolvimento deste trabalho. Para a Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP), o pesquisador deve informar o conteúdo da pesquisa aos investigados. Entretanto faz parte do trabalho antropológico, de acordo com Heilborn (2004), não comunicar todas as questões a serem investigadas em campo. Isso porque os antropólogos esperam que certos itens e associações possam emergir do campo, por isso é fornecido somente um panorama geral da pesquisa aos participantes. Nesta área, dados do campo podem redefinir o curso de uma pesquisa.

Segundo Oliveira (2004), a CONEP, órgão atrelado ao Ministério da Saúde, estabelece uma visão biomédica sobre a ética na prática de pesquisa, o que traz consequências para a antropologia. Para Heilborn (2004), os trabalhos antropológicos que se deparam com a área da saúde são cada vez mais afetados pelas regulamentações da CONEP. Em suas regulamentações, ressalta-se o TCLE, e as orientações são marcadas por um entendimento do que é pesquisa baseado, sobretudo, na área da saúde.

No entanto, para a antropologia, a concepção do consentimento informado impõe limitações à investigação e à compreensão do objeto de pesquisa, além de limitar a negociação da pesquisa que, nesta área, corresponde a uma parte constitutiva do trabalho. Ocorre que, muitas vezes, não é considerado o que distingue a relação com os sujeitos da pesquisa nas ciências sociais e humanas da relação que se estabelece na área biomédica. A distinção está entre as pesquisas em seres humanos (biomedicina) e as pesquisas com seres humanos (ciências sociais). Nas primeiras, a relação está marcada pela intervenção. Nas segundas, os participantes assumem a condição de atores (Oliveira, 2004). Conforme Heilborn (2004), há uma significativa distância entre afetar a integridade física, psíquica ou moral dos sujeitos e realizar uma investigação acerca das representações e práticas sobre a saúde, o que, porém, não retira a dimensão ética das pesquisas.

Em relação ao processo de análise das informações obtidas, este foi feito através da análise de discurso. Orlandi (2007) destaca que tal análise pretende tratar do discurso, ou seja, da palavra em movimento. Por meio dela, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico que constitui o homem e a sua história. Considerando o homem, na sua história, a análise de discurso tem por interesse o processo de produção dos sentidos e a forma como os sujeitos são afetados pela língua e pela história, significando-os.

 

Discussão dos resultados

O serviço de assistência psiquiátrica onde foi realizada a observação participante constitui-se em uma estrutura institucional especialmente voltada ao tratamento ou à contenção de condutas que transgridem normas, valores e regras socialmente estabelecidas. Seu público-alvo são pessoas que apresentam transtornos mentais ou dependência química. Os profissionais do local são acionados para controlar ou neutralizar comportamentos que a sociedade não conseguiu conter, regulamentar ou normatizar. Assim, as pessoas são encaminhadas ao serviço, porque se cogita que ele poderá dar conta dos transtornos os quais a sociedade não encontrou formas de lidar, manejar, controlar ou suportar.

Argumenta-se, aqui, que a forma como os profissionais do serviço em questão percebem as pessoas que chegam até o local pode dizer sobre a maneira como estas têm sido acolhidas e tratadas nesse ambiente. A partir do que surgiu nas entrevistas e no diário de campo, foi possível observar que os profissionais percebem os pacientes internados nas unidades do serviço, principalmente no período em que estão mais graves, como pessoas "diferentes", às vezes "violentas", "sem controle", "impulsivas", que "perderam a razão" e que podem ter algumas limitações em suas vivências. São percebidas como precisando de ajuda, por estarem vivenciando uma experiência de adoecimento psíquico, com as quais é difícil se relacionar devido aos seus comportamentos inesperados. Além disso, são percebidas como pessoas que podem despertar nas "outras pessoas" "medo", "preconceito" e "compaixão".

Apesar dessas percepções, os profissionais afirmam que as pessoas que ali são internadas não representam um risco para a sociedade. No entanto elas devem ser protegidas, pois, em determinados momentos, não possuem senso crítico e podem vir a se autoagredir ou agredir outras pessoas, mas sem se dar conta disso. Tem-se, assim, uma das ideias fundamentais do serviço: a de proteção. Ou seja, as pessoas que apresentam algum transtorno mental devem ser "protegidas" da sociedade ou, então, distanciadas dela por algum tempo, seja por meio da internação, seja por meio da medicação. Portanto compreende-se que o serviço tem por objetivo a proteção da saúde mental das pessoas que são atendidas por ele.

Esse ponto pode ser exemplificado pela fala do profissional B:

"O paciente realmente apresenta um risco pra si ou pra outros e que ele precisa de um ambiente contensor, de medicação, de um cuidado por um período pra que ele possa se reorganizar e não se expor também a situações onde ele vá apresentar risco pra os outros e pra si. Também para ele não ficar exposto a uma situação, por exemplo, moral, que depois mais tarde ele vai ter que lidar com aquilo, e o paciente não precisa ser exposto a muitos riscos se ele tem acesso a uma internação, como o paciente clínico."

Ainda, acerca do que a pessoa com algum transtorno mental pode despertar no outro, desde os primeiros contatos com o serviço, a questão do medo foi mencionada. Inclusive, nas primeiras conversas com a direção do setor, foi falado que muitos médicos se afastam da área da psiquiatria por medo dos pacientes e por receio de serem agredidos. Ao longo da observação, foi possível notar que muitos dos profissionais que trabalham no serviço referem ter receio e medo de alguns pacientes.

Para Antunes e Queiroz (2007), a população, de modo geral, ainda tem muitos preconceitos e temores no que diz respeito à doença mental. Cavalheri, Merighi e Jesus (2007) também comentam que é comum, em nossa sociedade, quando se fala em doença mental, aparecer alguma expressão de medo, pois as pessoas foram constituindo, em seu imaginário, ao longo do tempo, uma ligação entre doença mental e agressividade. Isso se deve ao próprio desenvolvimento histórico da psiquiatria e do modo como se constituiu a assistência em saúde mental.

A questão do "temor" e do "medo" também apareceu quando novos funcionários foram contratados para trabalhar no serviço. Comentava-se, entre os profissionais já atuantes no local, a preocupação com o novo funcionário, caso este ficasse assustado ao se deparar com algum paciente, por exemplo, gritando. Outra preocupação dizia respeito à "falta de seguranças em momentos de agitação entre os pacientes". Os profissionais se referiam à "agitação" como momentos em que algum paciente ficava agressivo ou começava a gritar, tumultuando o ambiente e interrompendo as atividades e grupos-terapia, assim como o descanso de outros pacientes. Como não há seguranças exclusivos para o serviço, muitas vezes os "vigilantes do patrimônio público", apesar de não ser a sua função, são solicitados pelos profissionais a ajudarem na contenção dos pacientes.

No serviço, notou-se a presença tanto de profissionais preocupados em criar um vínculo com o paciente – no sentido de se aproximar dele, saber da sua história e das suas vivências – quanto de profissionais que acreditavam que uma aproximação maior com os pacientes não seria possível, porque os mesmos estavam "atrapalhados". Além disso, muitos profissionais comentavam que deveria ser difícil para os familiares conviverem com um portador de doença mental, isso devido, principalmente, às suas "possíveis atitudes agressivas", à sua "ausência de afeto" e à sua "imprevisibilidade". Verifica-se, aqui, que essas características apresentam-se como estereótipos das pessoas com transtornos mentais.

Carrara (1991) postula que se pode pensar que a transgressão de normas e de valores sociais implica um processo de diferenciação daquele que comete um ato transgressor. Quem transgride fica à margem do círculo de moralidade que rege e organiza o comportamento dos membros de um determinado grupo social. Na nossa sociedade, como propõe o autor, essa diferenciação ou particularização do sujeito pode ser percebida nos rituais que têm por intuito "reincorporar" os desviantes. Dentro dessa perspectiva, o serviço observado pode servir como um indicador dessa pretensão de alterar o comportamento desviante em um comportamento condizente com o que se espera na sociedade atual. Ou seja, uma pessoa é colocada na posição de paciente, como objeto de intervenção, conforme mencionado por um dos profissionais (A): "quando a pessoa tá adoecida, com sintomas, eu tenho que intervir como se fosse uma doença, não adianta, eu não vou mudar a sociedade dela pra ela, vou ter que ajudá-la".

As pessoas que se desviam das normas sociais são, por algum tempo, toleradas em sua irregularidade e rebeldia, desde que isso se restrinja às fronteiras de sua comunidade. Quando um sujeito ultrapassa a barreira de normas sociais referentes à conduta e aos atributos pessoais, deve ser reprimido ou então coagido em suas atitudes, seja pela própria sociedade, seja pelas ciências psiques (Goffman, 1982). Sobre ultrapassar as barreiras sociais e agir sem controle, um dos profissionais (E) frisa:

"Transtornos mentais podem causar situações de agressividade, de confronto, de violência, de tentativas de suicídio ou de comportamentos que não são perigosos pela questão da violência, mas são perigosos por outros motivos. Por exemplo, a pessoa que em meio a um delírio ela cria situações extremamente constrangedoras para a família ou ela gasta dinheiro irresponsavelmente e cria complicações financeiras pra sua família. Enfim, qualquer situação que esteja fora do controle."

A equipe do serviço tem a ideia de que ajuda os pacientes corrigindo distorções, contribuindo para controlar seus impulsos e dando-lhes noções de limite e previsão das consequências. Em muitos casos, costuma-se dizer ao paciente que tudo o que será realizado é para o bem dele. Em situações de agitação psicomotora e violência, os profissionais intervêm com medidas que contenham o comportamento do paciente, controlando a expressão do seu impulso. Entre as contenções utilizadas no serviço, está a contenção química, a física e a mecânica. Em casos de pacientes considerados deprimidos ou autodestrutivos, a equipe se percebe como tendo a função de interferir nessa forma de expressão, alterando-a.

Nesse sentido, o serviço pode ser pensado tendo em vista o que Goffman (1992) escreveu sobre os hospitais psiquiátricos. Para o autor, eles são instituições criadas para tratar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas, e que representam algum risco à sociedade, embora de maneira não intencional. Essas instituições são legitimadas pela sociedade, a qual atribui valor aos discursos médicos e autoriza suas práticas em tais estabelecimentos.

Outra questão relevante acerca da percepção que os profissionais têm do paciente internado no serviço diz respeito a eles esperarem que o enfermo "faça um esforço para melhorar", por isso procuram lembrá-lo de pensar em termos de fracasso e triunfo. Essa expectativa quanto à melhora, a partir de um esforço próprio, é esperada especialmente dos dependentes químicos, os quais, segundo os profissionais, teriam um maior controle sobre o seu estado em comparação com os pacientes com transtornos mentais. Esse ponto pode ser demonstrado pela fala de um dos profissionais (C), dirigida a um paciente internado por motivos de dependência química: "você não é sozinho no mundo. Tem pessoas que precisam de ti". Outro profissional (E) comenta que, quando se fala em dependência química:

"É complicado chamar de doença, porque tem um componente muito grande de responsabilidade do paciente sobre isso... Então, quando a gente fala em doença, parece que a gente tá tirando essa capacidade dele de decidir sobre esse comportamento."

Devido à percepção dos profissionais de que os dependentes químicos teriam um maior controle sobre os seus comportamentos do que os pacientes com transtornos mentais, espera-se que eles aceitem melhor os cuidados que o serviço oferece e se responsabilizem por suas atitudes. Foi possível observar também que, em relação aos dependentes químicos, falava-se em uma dose de culpa por eles estarem em uma situação de internação para desintoxicação, enquanto que, para os pacientes com transtornos mentais, falava-se em vitimização, por acreditar-se, muitas vezes, que eles não têm controle sobre as suas ações. Ao se falar destes últimos, primeiro são recordadas suas qualidades, sobre quanto tempo ficaram sem ser internados (quando a internação é recorrente), e só depois se discorre sobre a sua agressividade e seus delírios.

Portanto, tem-se que muitos dos profissionais que atuam no serviço definem a doença mental como um sofrimento psíquico intenso, o qual passa a interferir na vida das pessoas, nas suas relações e no seu funcionamento global. Ela foi definida também como uma doença multifatorial, pois "a pessoa nasce com essa constituição biológica e entra num contexto que é familiar, social, e que vai marcar também essa pessoa, vai interagir, acho que até há um imbricamento de constituição, criação, contexto social, cultural, socioeconômico" (Profissional A). Ainda foi apontada como "uma perturbação do pensamento, das emoções ou do comportamento, que prejudica a saúde dessa pessoa" (Profissional E).

Compreende-se que essas definições perpassam o atendimento oferecido às pessoas que chegam até o local. A forma como os profissionais entendem a doença mental e como percebem as pessoas que têm algum sofrimento psíquico pode dar indicativos de como elas são acolhidas e atendidas pelo serviço. Como se pôde notar, se elas são percebidas como agressivas, os profissionais entendem que é necessário contê-las fisicamente e/ou através de medicamentos. De outra forma, na medida em que são vistas como responsáveis por seus atos, elas são culpabilizadas, requerendo-se delas maior autocontrole e, consequentemente, ficam mais sujeitas a julgamentos morais por parte da equipe.

 

Considerações Finais

Por meio deste artigo, procurou-se elucidar as percepções sobre a saúde mental que circulam entre os profissionais atuantes em um serviço de assistência psiquiátrica de um hospital geral público. Assim, foi possível notar que a pessoa com transtorno mental é vista, nesse espaço, como alguém que amedronta e que pode despertar a rejeição, o medo e o temor nas demais pessoas. Toda essa ideia de periculosidade, a qual envolve a pessoa com transtorno mental, acaba por servir como justificativa para a sua internação.

As percepções, condutas e ações dos profissionais do serviço refletem e expressam como se lida, atualmente e diariamente, com a saúde mental nesse local. Pretendeu-se, portanto, com este artigo, não fazer generalizações referentes a todos os serviços de assistência e atenção psiquiátrica, mas fazer uma investigação sobre as percepções dos profissionais da saúde em um determinado hospital e em um específico período de tempo, visto que elas estão sempre inseridas em um contexto sociocultural. Elas criam determinados sentidos, significados, valores e atitudes, de acordo com a cultura e as situações sociopolíticas em que estão inseridas.

Cabe frisar que as percepções hoje presentes no serviço podem interagir com novas formas de perceber a saúde mental e dialogar com outros saberes, assim como sofrerem modificações com a vinda de novas tecnologias terapêuticas. A própria Reforma Psiquiátrica, compreendida por Medeiros e Guimarães (2002) como um grande passo na retomada da cidadania, produziu algo nesse sentido. O saber sobre a saúde mental modifica-se e renova-se ao longo do tempo, modelando a relação entre profissional da saúde e paciente, a relação entre profissionais dessa área e a articulação entre os saberes e as práticas. Sendo assim, a discussão aqui empreendida não pretendeu ser conclusiva; ao contrário, considera-se que há muitas questões a serem debatidas.

 

Bibliografia

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Recebido: 27 de maio de 2014.
Aprovado: 01 de junho de 2014.