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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.1 Assis jan. 2014

 

Artigos

 

Os efeitos da Matriz Bioparental nos processos de adoção de crianças e adolescentes

 

The effects of the Bio-parental Matrix during children and teenagers' adoptions processes

 

 

Larissa Bergamo ZanardoI; Fernando Silva Teixeira-FilhoII; Elisa Mariana Carvalho RibeiroIII

I,II,III Universidade Estadual Paulista – Assis

 

 


RESUMO

O presente artigo é resultante da pesquisa de iniciação científica homônima, financiada pelo PIBIC, onde compreendemos a adoção enquanto um processo de construção familiar dissidente de uma matriz bioparental. Esta, a partir de um referente apoiado na matriz heteronormativa - que pressupõe uma organização continua entre sexo/gênero/desejo -, estabelece a relação binária de distinção entre filhos/as legítimos/as e ilegítimos/as conforme sua origem advinda ou não de "laços de sangue". A partir de nossa experiência no "Projeto Laços de Amor: Adoção, Gênero, Cidadania e Direitos", desenvolvido junto ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP, Assis, SP, efetuamos a análise de conteúdo conforme proposto por Bardin (1977), de transcrições de atendimentos que foram realizados no período de 2005 a 2012 no "Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada Dra. Betti Katzenstein", por alunos do quarto e quinto ano do curso de Psicologia. O período de tempo determinado para seleção do material pesquisado deve-se à data de início do projeto (2005) e ao ano em que a pesquisa foi realizada (2013). Dessa maneira optamos por não utilizar casos que ainda estivessem em atendimento, para garantir que não haveria nenhuma interferência da pesquisa sobre estes. Nosso objetivo principal foi analisar os efeitos da matriz bioparental e sua incidência sobre as crianças/adolescentes da amostra e seus familiares, bem como perceber as possibilidades de escape aos assujeitamentos dessa matriz. Os resultados obtidos apontaram-nos vários aspectos que podem ser significativos para a compreensão dos atravessamentos discursivos relacionados à prática da adoção. Observou-se a existência de uma grande ambivalência ainda permeando o tema, revelando que há uma discrepância entre o que diz e o que se faz relativamente às práticas de cuidados junto às crianças adotadas. Se, de um lado, percebeu-se que os familiares buscam racionalmente valorizar os laços afetivos, de outro, suas práticas e crenças, ainda estão respaldadas em modos de subjetivação que priorizam o discurso biológico. Tal fato denuncia um campo tensionado e conflitivo que provavelmente vulnerabiliza as famílias que buscam priorizar os laços de afeto, entretanto, é reconfortante e motivador perceber o poder de resistência dos indivíduos às verdades absolutas que regem suas formas de sentir, filiar-se e/ou exercer sua parentalidade, como também demonstrado em alguns casos do estudo.

Palavras-chave: Adoção; Matriz Bioparental; Psicologia; Família.


ABSTRACT

This paper is the result of a homonymous scientific research, funded by CNPq-PIBIC where we understand the adoption process as a process of dissidence in relation to the bio-parental matrix. Founded on a heteronormative naturalization of human sexuality - which presupposes a continuum and naturalized organization among sex / gender / desire – this bioparental matrix sets the binary relation of distinction between the legitimate/illegitimate child as their origin or not arising from "blood ties". Considering our experience in the Project developed at the Department of Clinical Psychology at UNESP, Assis, SP called "Ties of love: Adoption, Gender, Citizenship and Rights", we prepared a content analysis - as proposed by Bardin (1977) -, of transcripts of psychological sessions that were made from 2005 to 2012 in the "Center for Research and Applied Psychology "Dra. Betti Katzenstein. Our general objective was to analyze the effects of the bioparental matrix and its impact on children/adolescents and their families as well as estimate the possibilities of escape to the subjection to this bioparental matrix. The results showed us several aspects that may be significant for understanding the discursive crossings related to the practice of adoption. It was observed that there is still a great ambivalence pervading this theme, revealing that there is a discrepancy between what we say and what we do in relation to practices of caring among the adopted children. On the one hand, it was noticed that relatives rationally seek to enhance the bonding of the "emotional ties", but their practices and beliefs, are still supported in modes of subjectivation that prioritize the biological discourse. This fact reveals a strained and conflictive field that probably weaknesses those families seeking to prioritize the ties of affection. However, as can be seen in this study, it is comforting and motivating to realize the power of resistance of individuals to absolute truths that govern their ways of feeling, affiliating and/ or exert their parenting.

Keywords: Adoption; Bioparental Matrix; Psychology; Family.


 

 

A construção familiar dissidente da matriz bioparental e as práticas discursivas

Em nossa cultura contemporânea, a adoção é uma forma de dar uma família às crianças/adolescentes que não puderam, por qualquer motivo, ser criadas por seus/suas genitores(as). Essa família tem o papel de satisfazer as necessidades do desenvolvimento dessa criança/adolescente, possuindo legalmente a responsabilidade parental sobre ela(e). Assim, a adoção, enquanto prática de formação de uma família a partir da perfiliação de filhos(as) não gerados(as) biologicamente, nem sempre recebeu os mesmos significados na história. Segundo Weber (2007):

A infância e a adoção tiveram interpretações bastante diversas ao longo dos tempos, sendo que os códigos morais, as leis e as religiões ora eram coerentes, ora divergiam entre si. Cada cultura vem assumindo, ao longo dos períodos históricos, posturas diferenciadas em relação à adoção, que sempre estão relacionadas ao contexto sócio-político, econômico e religioso da época (p. 23-24).

Ainda que as leis atuais sobre adoção assegurem os mesmos direitos aos(as) filhos(as) adotados(as) que aqueles reservados aos(as) filhos(as) biológicos(as), elas geralmente permitiram acentuada discriminação entre estes(as), chegando os(as) primeiros(as) a serem chamados(as) de "filho(a) bastardo(a)", "filho(a) ilegítimo(a)", "filho(a) postiço(a)", "filho(a) do coração" enquanto que os(as) gerados(as) biologicamente são sempre reconhecidos como "filhos(as) legítimos(as)".

Quanto à família e aos processos de constituição desta, nota-se a forte presença de discursos que validam, reforçam e constituem uma matriz bioparental (Teixeira-Filho, 2010) que afirma a parentalidade como algo legítimo quando assegurado sua relação direta com o orgânico, isto é, com a consanguinidade. Assim, estes discursos foram se naturalizando e adquirindo valor de "verdade", obtendo, inclusive, respaldo jurídico para tal. Entretanto, embora o modelo de família nuclear constituída a partir dos laços biológicos seja o predominante, não podemos considerá-lo como único, pois diferentes modalidades de agrupamentos familiares surgidos nos últimos tempos expressam transformações muito significativas na relação indivíduo, família e sociedade, e alcançam solidez afetiva considerável, legitimando-se, por exemplo, a partir dos processos de adoção.

A matriz bioparental regula as formas e modos de procriação, filiação e parentalidade pautadas na heteronormatividade, constituindo-se em uma matriz que preconiza a linearidade heterossexual do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais. Essa linearidade não apenas naturaliza e essencializa estes elementos do sistema, mas torna a própria relação entre eles um fato da natureza quando, na verdade, se trata de uma arbitrariedade discursiva nutrida por tecnologias sociais que reforçam sua suposta verdade (Butler, 2003b).

Nota-se nos discursos que permeiam o tema da adoção, que o parentesco é sempre visto como heterossexual (Butler, 2003a) apoiando-se na crença de que a sexualidade serve somente para fins procriativos, como se houvesse uma continuidade entre o sexo, o gênero, o desejo e as práticas sexuais (Butler, 2003b). Assim, poderíamos dizer que a matriz bioparental, baseada em referentes heteronormativos, está implicada num projeto de uma nação, numa operação de poder, num plano eugênico e heteronormativo de linhagem familiar e cuidado das crianças. Dessa forma, a parentalidade só seria legitimada pelo Estado e pela sociedade, segundo os "laços de sangue", dando um "estatuto biologizante a algo que é do registro do simbólico" (Teixeira-Filho, 2010, p. 248). Essa priorização dos laços de sangue em detrimentos de outros na constituição da família, foi mais reforçado no Ocidente a partir do século XIX. Foucault, com seus estudos sobre a História da Sexualidade, demonstrou que o sexo, a sexualidade, tal qual o entendemos hoje, são construções discursivas organizadas em dispositivos, que ele denominou de dispositivo da sexualidade. Por dispositivo, entende-se um rede, um fluxo de discursos que tem por princípio atribuir verdades e naturalizar eventos que são contingentes. Assim foi que, por exemplo, as relações homoeróticas passaram, no século XIX a serem consideradas uma doença merecedora de tratamento. Anteriormente eram vistas como pecados nefandos (a sodomia), crimes. Majoritamente, a religião e o Estado organizavam as formas de se relacionar com o sexo, de modo que, ainda hoje, em Estados Islâmicos, as políticas de conjugalidade e práticas sexuais, condenam à morte, prisão perpétua ou multas as práticas homoeróticas e, proíbem as adoções de crianças. Tal proibição, evidentemente, não impossibilita que as famílias cuidem de crianças órfãs (mediante guarda definitiva), mas as impede de dar a elas o direito à herança (apenas por doação) e uma certidão de nascimento com o nome dos familiares adotantes, posto que, a criança tem o direito de "conhecer seus pais legítimos" e não podem, por isso serem "enganadas" acreditando viverem uma realidade que não seja a sua.

Em seu livro, "O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil", o sociólogo Richard Miskolci defende a tese de que no século XIX, insurgiu no país uma elite dominante, branca, burguesa que, por meio do dispositivo da sexualidade, une séries discursivas contingentes em um único discurso apresentando-o como verdade. Como sabemos, em fins do século XIX e início do XX houve um grande fluxo migratório, sobretudo de europeus, para o Brasil. Junto com eles vieram os princípios biopolíticos de moralização e disciplinarização dos corpos que se alastraram para todas as áreas da vida em sociedade: educação, saúde, bem-estar social, direito, apenas para citarmos alguns. Tais medidas tinham como objetivo o progressivo embranquecimento da população1 (Miskolci, 2012, p. 50), e levaram os poderosos da época a construir um projeto político autoritário, patriarcal que visionou uma nação branca e "superior" à da época, pautando-se em um ideal caracterizado pelo autor de reprodutivo, branco e heterossexual.

Pode-se acompanhar as mudanças nos discursos que compõem o dispositivo da sexualidade, acompanhando, por exemplo, as modificações relativas às leis que regem a certidão de nascimento, a adoção, a filiação. Por exemplo, no que diz respeito ao registro de nascimento, temos que apenas a partir de 31.12.1973, pela lei nº 6.015, foi possível no Brasil, Capítulo XI, da legitimação adotiva:

Art. 95. Serão registradas no registro de nascimentos as sentenças de legitimação adotiva, consignando-se nele os nomes dos pais adotivos como pais legítimos e os dos ascendentes dos mesmos se já falecidos, ou sendo vivos, se houverem, em qualquer tempo, manifestada por escrito sua adesão ao ato (Lei nº 4.655, de 2 de junho de 1965, art. 6º). (Renumerado do art. 96 pela Lei nº 6.216, de 1975).

Parágrafo único. O mandado será arquivado, dele não podendo o oficial fornecer certidão, a não ser por determinação judicial e em segredo de justiça, para salvaguarda de direitos (Lei n. 4.655, de 2-6-65, art. 8°, parágrafo único).

Art. 96. Feito o registro, será cancelado o assento de nascimento original do menor. (Renumerado do art. 97 pela Lei nº 6.216, de 1975).

Outro exemplo é que, anteriormente, uma criança não concebida no contexto do casamento, poderia ser registrada como "filho/filha ilegítimo", ou seja, que não tinha sido reconhecida pelo pai. Tal fato, entretanto, também mudará a partir de 1º de janeiro de 2010, por força do Decreto nº 6.828, de 27 de abril de 2009, passou a vigorar, em todo o país, um modelo padronizado de certidão de nascimento, a saber:

O modo como tal modelo foi construído, apesar de espelhar uma ótica familiar heterossexual, não impede a formalização do vínculo de filiação entre uma criança/um adolescente e duas pessoas do mesmo sexo. Com efeito, o referido modelo apresenta (para efeito de visualização do vínculo de paternidade/maternidade) um campo denominado "filiação", no qual deve constar o nome do pai, da mãe ou dos pais conjuntamente (pai e mãe ou pais/mães). A expressão utilizada no modelo oficial (filiação), deixando o campo para livre preenchimento, permite, portanto, que sejam lavradas certidões de nascimento tanto nos casos de adoções deferidas a uma só pessoa (independente de orientação afetivo-sexual), quanto nos casos de deferimentos a casais homossexuais. A padronização promovida pelo governo, neste particular, não pode prejudicar a constituição do vínculo da dupla paternidade/maternidade homoafetiva, porque essa não é vedada pelo ordenamento jurídico e se conforma, inclusive, com os princípios constitucionais da igualdade e, especialmente, da dignidade da pessoa humana. E, neste particular, será relevante contar com a sensibilidade dos(as) magistrados(as) e dos servidores da seara notarial para que constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres, para efeito da lavratura da certidão, em caso de adoção por casal homoafetivo2.

Acreditamos, portanto, que a matriz bioparental apoiada na matriz heteronormativa valida, a partir de sua repetibilidade, a performatividade (Butler, 2003b) a distinção binária entre filhos(as) adotivos(as) e filhos(as) biológicos(as), fazendo com que as pessoas adotadas sofram por causa do estigma advindo desses discursos que se instalam subjetivamente seja na família que adota seja na pessoa adotada.

"Aqui temos indicativos de como a biopolítica incide sobre as famílias determinando suas relações de parentesco. Acreditamos que essa valorização e prioridade dada à família de origem das crianças/adolescentes possam ser compreendidas a luz do que Butler apresenta como "performance". A autora usa esse termo referindo-se as questões de gênero, e aqui podemos ampliar sua abrangência para exemplificar como o mesmo mecanismo pode alcançar outras áreas da vida dos indivíduos. Teixeira-Filho (2013) contribui ao lembrar que

Butler lançará a tese de que o gênero é um ato performativo. Segundo a tese butleriana, os sujeitos são incitados a identificarem-se com os modelos de conduta destinados a seu sexo biológico, ou seja, as pessoas são incitadas a performarem os gêneros, adequando seu comportamento ao seu sexo biológico. Tal performance, todavia, não se dá conscientemente, por vontade própria, como um ato da consciência, mas a partir de atos performativos tornados naturalizados pelas práticas regulatórias de manutenção do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (p.67, 68).

Pensando nas relações de parentesco e sua formação, podemos inferir que também nesse âmbito as pessoas são incitadas a se identificarem com modelos de família. A matriz bioparental, com seus discursos e atravessamentos, vai afirmando e reafirmando repetitivamente a legitimidade do fator biológico como definidor das relações familiares e, dessa maneira, assegura que se mantenha uma valorização dos laços consanguíneos levando à sua naturalização por meio da repetibilidade de uma forma de constituição familiar e detrimento de outras.

Pautada nas teorias do filósofo John Langshaw Austin sobre a performatividade dos atos de fala, e do desconstrucionismo proposto pelo filósofo Jacques Derrida, Judith Butler irá dizer que um ato de fala só adquire "valor de realidade" por conta de dois processos: iterabilidade e citacionalidade. Isto é, são constantemente repetidos e reificados historicamente pelo falante que os enuncia. Pautada nestes pressupostos, Butler afirmará que o gênero processa-se a partir das performances em equivalência ao que afirma Austin sobre os atos de fala. Desse modo,

A forma como se usa a linguagem, criando um discurso coercitivo em relação ao gênero, é performática porque produz uma realidade, criando limites e regras para sua expressão. Simultaneamente, garante o caráter performático do próprio gênero, pois este se cria ao mesmo tempo em que é normatizado. Referindo-se ao conceito de interpelação de Louis Althusser, Butler afirma que o gênero começa a ser regulado desde que se anuncia que um bebê é "menino"ou "menina". Afinal, esse anúncio determina uma cadeia de atos que visam a moldar o gênero e a forma como o indivíduo viverá sua sexualidade. Haverá controle sobre o tipo de roupas que a criança poderá usar, as cores, os brinquedos, etc. (Bento, s/d, p. 2)

Sendo assim, a performance é a linguagem posta em ato e por ela engendra-se corpos, construindo neles o gênero, o sexo e, ousariamos dizer, a crença nos laços biológicos como a via natural de constituição familiar. O problema aqui, não reside apenas em dizer se uma família é ou não verdadeiramente constituída a partir deste ou daquele laço. Mas, antes, reside na naturalização de um ou outro. Logo, os atos performativos, que naturalizam as relações humanas, devem ser compreendidos como práticas regulatórias de materialização de corpos, existências, vidas.

Aqui é perceptível o atravessamento do biopoder contribuindo com o reforço da matriz bioparental ao determinar, inclusive a nível subjetivo dos indivíduos, quem pode ser pai/mãe e quem não o pode, pautado na reprodução e na heteronormatividade.

Como vemos em Foucault (1996), os discursos são efeitos de relação de poder entre regimes de produção de verdade sobre diferentes práticas cotidianas que são transmitidas transgeracionalmente. Sendo a adoção uma prática, acreditamos que a mesma também esteja fundada em regimes de verdade e saber/poder. Tratou-se, portanto, neste estudo, de analisarmos as práticas de adoção como produção discursiva e verificarmos as bases desta produção que afirma ser a adoção uma dissidência das formas "naturais" de constituição familiar. Ou seja, considerou-se a íntima ligação existente entre cultura, linguagem, discurso e poder na formação subjetiva desta prática, de tal modo a averiguar os efeitos da matriz bioparental e sua incidência sobre as crianças/adolescentes da amostra e seus familiares, bem como perceber as possibilidades de escape aos assujeitamentos dessa matriz.

 

Metodologia da pesquisa

O material utilizado para análise nessa pesquisa são transcrições de atendimentos realizados no período de 2005 a 2012 no projeto de extensão, na época intitulado "Laços de Amor: Adoção, Gênero, Cidadania e Direitos", financiado pela PROEX e pela PIBIC, que vinculado ao Departamento de Psicologia Clínica é desenvolvido como estágio no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada "Dra. Betti Katizenstein" da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis. Tais atendimentos foram realizados por alunos(as) do quarto e quinto ano do curso de Psicologia.

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, por envolver seres humanos, e aprovado pelo mesmo com número CAAE 02847312.4.0000.5401. Por tratar-se de uma Clínica-Escola, onde os(as) responsáveis pelas crianças/adolescentes atendidos(as), no início do atendimento, assinam um termo de aceitação de que esse material possa vir a ser utilizado, tendo mantidas suas identidades, assim como a de seus/suas filhos(as), a pesquisa foi realizada mediante autorização da coordenação do CPPA quanto ao acesso aos arquivos, registros, prontuários e similares referentes a tais atendimentos.

O período de tempo estabelecido para análise deve-se ao início do projeto/estágio (2005) e ao ano em que a presente pesquisa foi realizada (2013). Dessa maneira optamos por não utilizar casos que ainda estivessem em atendimento, para garantir que não houvesse nenhuma interferência sobre estes.

O material teve seu conteúdo analisado conforme proposto por Bardin (1977) por meio da metodologia de Análise de Conteúdo, que é definida por ela como:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (p.44).

Assim, em uma primeira etapa do manejo desse material, fizemos uma pré-análise de toda a documentação disponível relativa aos atendimentos realizados, que somaram sessenta, para em um segundo momento lançarmos mão dos seguintes critérios para a seleção dos casos utilizados na pesquisa: a pessoa deveria ter permanecido em atendimento no CPPA por pelo menos um ano e o relatório dos atendimentos desta deveria conter, no mínimo, 40 sessões realizadas acompanhadas por suas respectivas transcrições, onde o(a) estagiário(a) deveria ter descrito os diálogos, acontecimentos e intervenções ocorridos durante as sessões. Após a observação de cada um desses aspectos, sete casos estavam em acordo.

Os casos selecionados serão aqui apresentados por meio de nomes fictícios, para a manutenção do sigilo de identidade dos(as) atendidos(as). São eles: Felipe, que iniciou seu atendimento quando tinha oito anos de idade e permaneceu até treze; Bruna que esteve em atendimento de seus cinco anos até aos onze; Vivian dos seis aos doze; Gabriela, de seus cinco anos até completar dez; Lucas, atendido entre seus cinco e oito anos; e Aline, bem como André, dos oito aos doze anos.

Feita essa seleção, as transcrições dos atendimentos desses casos foram lidas e tiveram seu conteúdo categorizado, também em acordo com o proposto por Bardin (1977). Após uma primeira leitura do material e separação dos temas encontrados nas transcrições, chegamos ao total de sessenta e oito categorias temáticas, reorganizamo-las agrupando aquelas que possuíam proximidade de sentido, reduzindo assim seu número para trinta e seis, e por meio de novos reagrupamentos chegamos à organização destas em cinco blocos gerais com subcategorias.

Após a observação da frequência de aparecimento de cada categoria temática, e da montagem dos blocos, passamos à nova análise dos dados, tendo em vista que "(...) fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido" (BARDIN 1977, p.131). Deste modo contabilizamos o número de vezes em que a mesma categoria apareceu, e em quantos casos ela se repetiu.

 

Resultados e Discussão

A seguir, apresentaremos as análises e discussões dos blocos de categorias, que foram organizados da seguinte forma:

 

Bloco A: Referências às origens anteriores à adoção

 

Percebemos que em quase todos os casos está latente o desejo das crianças/ adolescentes de se aproximarem de seus(as) genitores(as). Esse fato pode decorrer de diversos fatores, que podem variar, por exemplo, conforme a história pessoal dos(as) envolvidos(as) no processo de entrega e adoção, da maneira como esse processo se deu, da forma como a família se posiciona em relação à abordagem do assunto, assim como das vivências atuais do(a) adotado(a) e como consegue relacioná-las à história de sua origem.

Uma possibilidade percebida quanto a esse desejo de aproximação dos(as) genitores(as) foi a intenção ou curiosidade de descobrir quais vínculos, sejam eles sanguíneos, afetivos, ou familiares, poderiam vir a ser criados, aprofundados, ou não com estes(as). A criança/adolescente pode também, por exemplo, acreditar e fantasiar que por meio da relação com o(a) genitor(a), possa explicar características físicas e emocionais suas. André, por exemplo, em determinada sessão, desenhou um pato triste que, segundo ele, estava sozinho, sem família. É neste contexto que surge o seguinte diálogo:

Estagiário: Você já ficou longe da sua família? André: Da família que cuida de mim não, mas da outra sim, pelo menos eu acho, porque nem sei onde eles estão. Estagiário: E queria saber? André: Sim Estagiário: Você pensa bastante neles? André: Penso mais quando estou aqui... Em como eles são, a idade deles... Penso que minha mãe é loira e meu pai moreno... Meu pai (genitor) poderia ser igual meu pai, fisicamente e no jeito, minha mãe eu não sei... Acho que ela é diferente de todo mundo, que é legal e dorminhoca. Estagiário: Acha que é muito parecido com eles? André: É.

Este trecho aponta para uma busca de identificação com a figura dos genitores. Diante disto, o que parece é que há uma dificuldade em considerar a identificação como possível de ser encontrada/mantida integralmente pelas figuras (paterna e materna) adotivas, o que indica um atravessamento do discurso bioparental, que reforça que os traços pessoais são assegurados e transmitidos geneticamente.

Outra hipótese para essa vontade de contato com os(as) genitores(as) é a de que a criança/adolescente, em uma situação de impasse com os pais, pode fantasiar, por exemplo, que com os(as) genitores poderia ser/estar melhor, usando-os como uma alternativa. Esse fato parece muito próximo ao que acontece com uma criança que criada por sua família biológica, em situações conflitantes com os pais imagina, e em muitos casos verbaliza, por exemplo, que morar com uma avó, um tio, tia, professor(a), família de um(a) amigo(a), ou no caso de pais separados que com um(a) deles(as), seria melhor, a livraria do conflito atual. Ou seja, não se trata de uma fantasia específica das crianças adotadas, mas pode ser um uso que a criança faz da situação como um recurso para sua fantasia. Freud traz contribuições para a compreensão desses aspectos quando teoriza a respeito do que chamou de "romance familiar".

Quanto aos sentimentos positivos direcionados a figura desses(as) genitores(as), utilizamos o seguinte trecho da transcrição feita pelo estagiário que atendeu Felipe para exemplificar:

(...) durante a partida (jogo) perguntei (estagiário) se ele ia passar as férias com o pai (genitor) dele. Ele disse que ia passar alguns dias com ele, mas não soube dizer o que fariam. Perguntei quanto tempo ele queria ficar lá. Ele disse: 'mil anos'. (Estagiário): 'nossa, mil anos'. Mas logo disse que não seriam mil anos. Perguntei por que, mas ele desconversou. (Acréscimo nosso).

Em sua fala Felipe demonstra que gostaria de passar mais tempo com seu genitor o que parece sugerir que tem sentimentos positivos quanto a este.

A adoção pareceu ser vista por algumas crianças (três) como algo de caráter somatório e não substitutivo. Isso foi verificado diante da constatação da tentativa, por parte da(o) adotada(o) de unir o(a) genitor(a) à sua família com o intuito de que todos(as) pudessem conviver juntos e bem. Isso é percebido no seguinte trecho da transcrição do atendimento de Felipe:

Ele (Felipe) quis desenhar um carro. Falou que ia ser uma limusine. Disse (estagiário) a ele que a limusine era um carro grande. Ele concordou e disse que a limusine tem seis portas de cada lado. Comentei que a limusine era grande como a casa (desenhada anteriormente) e então cabiam muitas pessoas. Ele disse que ia dirigir, disse ainda que o carro ia ter dois volantes. Então ele disse: 'Não... Tem que ter quatro volantes'. Estagiário: Por quê? Felipe: Um pra mim, um pro meu pai, um pro meu outro pai e um pra minha mãe.

O caso de André também apresenta esse aspecto. Ele e o estagiário que o atendia estavam utilizando as tampas das tintas para representar as pessoas da família, quando o seguinte diálogo se segue:

Estagiário: E agora você sabe dos seus outros pais (pegou dois potinhos enquanto falava) e onde você vai pôr eles? Ele os colocou juntos com a família: Vou tentar juntar.

No caso de Gabriela esse desejo também apareceu:

(...) ela foi até seu armário pegou lápis de cor e folha sulfite sentou e começou a desenhar, primeiro desenhou uma casa pequena, depois uma grande e ai juntou as duas dizendo que queria que todo mundo morasse na mesma casa com uma grande família, perguntei (estagiária) se ela sabia por que isso não pode acontecer ela disse que sim que é por que agora ela tem uma outra família.

Como Felipe foi adotado por um tio e continuou tendo proximidade com o genitor, essa ideia somatória de família poderia apresentar-se devido a essa situação de manutenção do contato entre eles. Gabriela foi adotada com seis anos e tinha muitas lembranças das demais irmãs, apresentando em suas falas grande preocupação com o bem estar delas. Já André foi adotado quando recém-nascido e não teve, até o período em que permaneceu em atendimento, contato com seus genitores.

Paralelamente, percebe-se por parte de alguns pais a tentativa de que seus/suas filhos(as) não se aproximem dos(as) genitores(as). O que foi justificado pelo medo de que as crianças se machuquem, se frustrem ou por receio de algo que possa estar relacionado justamente à questão que apareceu (e que foi transformada em uma subcategoria): "O que torna uma pessoa pertencente a uma família?" Seria o nascimento, um sobrenome, uma decisão judicial, a convivência, os laços biológicos, os afetivos? O que realmente legitima uma filiação? Essa é uma das grandes questões trazidas pela adoção.

Questão que resvala, inclusive no receio apresentado por diversos pais e mães por meio da adoção, de que os genitores(as) de seus filhos(as) os(as) queiram de volta. A mãe de Lucas demonstrou, em uma conversa com a estagiária que o atendia, seu receio quanto à genitora dele, que na transcrição apareceu da seguinte forma:

(...) Começou a dizer do medo dela sobre a "mãe"(genitora) do L., que andava rondando a escola (dele) e que eles (pai e mãe) estavam com medo de que ela sumisse com L.,pois ela é usuária de drogas e nunca se sabe o que "esse povo pode fazer". "Tenho medo mesmo, pode até ser coisa da minha cabeça mas eu tenho que cuidar do que é meu"

Essa afirmação parece ecoar a busca de segurança de seu direito como mãe, que vem acompanhada, nesse caso, além do receio da "força" do biológico, também, do possível uso que a genitora faz de drogas. Esse temor de que a genitora pudesse querer a criança novamente, levou os pais de Lucas, inclusive, a mentirem para ela, dizendo que não seriam eles quem ficariam com o garoto, mas que eram apenas "mediadores" do processo, e que ele seria adotado por uma outra família.

Weber (2007), em sua pesquisa sobre conceitos e preconceitos acerca da adoção verificou que 72% dos(as) entrevistados(as) teriam medo de ao adotar uma criança os(as) genitores(as) a quererem de volta, como acima apresentado. O ECA, no artigo 48 (BRASIL, 1990) garante que a adoção seja irrevogável. Portanto, esse medo de que os genitores possam reaver a criança/adolescente não se concretizará. Porém, percebemos que três famílias de nossa pesquisa apresentaram esse medo apesar de serem famílias já constituídas por meio da adoção. O ECA data de 1990, logo, pode-se considerar recente o fato de a adoção ser irrevogável, e é provável que isso corrobore para que apesar da garantia da lei, as pessoas ainda apresentem receio de que "o sangue fale mais alto" e os(as) genitores(as) tenham preferências. Esse aspecto sinaliza o quanto a produção discursiva resultante da matriz bioparental historicamente marcou o imaginário popular quanto às formas de constituição familiar e aponta para o fato de que ainda há trabalho a ser feito quanto à conscientização e divulgação de informações sobre o tema para que haja possibilidades de que esse processo de percepção da adoção de uma forma diferente se dê.

Por fim, alguns pais trouxeram críticas quanto ao processo de adoção e as condições de abrigo pelas quais passaram seus filhos(as), que se aproximam de verdadeiras denúncias quanto à demora, burocracia, impedimentos, despreparo e preconceito por parte de funcionários(as) e profissionais da área. Os pais de Bruna contaram que

Em um período de férias do 'orfanato', ela ficou com uma família (programa de férias). Ela se apegou muito ao filho do casal e ao casal. Quando o período de férias acabou, Bruna ficou muito triste, assim como o filho do casal, o menino ficou doente após a separação, por isso a família pegou Bruna novamente até o menino melhorar e entender que ela precisava voltar para o 'orfanato'. Os pais, principalmente Sr. J. contou esse fato extremamente bravo, disse que ninguém estava se importando com Bruna, apenas com o menino, que nem ligaram se ela estava bem ou não.

Diante desse tipo de situação percebe-se a necessidade de maior divulgação, esclarecimento e preparo dos(as) envolvidos(as) no processo, desde as pessoas que entram em contato diretamente com as crianças/adolescentes institucionalizados(as), com os(as) genitores(as) e com as famílias adotantes para que esse contato estabelecido não seja mais um instrumento a favor da segregação, perpetuação e disseminação de preconceito.

Nota-se que a figura dos(as) genitores(as) apareceu com frequência e de forma bastante variada no decorrer da pesquisa. Houve também menções por parte das crianças/adolescentes quanto a sentimentos de revolta e raiva direcionados a estes(as). Para reflexão quanto a este aspecto, podemos retornar ao mito do amor materno (Badinter, 1985) e notar o quanto pessoas que passam pelo processo de entrega de crianças/adolescentes para a adoção tendem a ser discriminadas e incompreendidas pela sociedade (Motta, 2005) que, apoiada nesse mito espera que, sob quaisquer condições, os(as) genitores(as) fiquem com as crianças geradas. Esses sentimentos podem também apoiar-se em lembranças de vivências desagradáveis ao lado destes(as).

 

Bloco B: Estigmas em relação à adoção

 

Referente aos preconceitos que rondam a prática da adoção, percebemos que mesmo na atitude dos pais que chegam a contar sobre a adoção para os(as) filhos(as), mas depois não retomam o assunto, justificando que desde então não houve mais demonstração de interesse por parte da criança, já há resquícios de tais preconceitos. Essa atitude parece relacionar-se a um medo de que a adoção não seja uma forma legítima de filiação, fazendo com que dentro da própria família haja um véu de encobrimento sobre o assunto. Assim, o tema não é abordado com naturalidade, como o seria, por exemplo, se se tratasse de uma filiação biológica. Por exemplo, neste caso, não é incomum que nas famílias vinculadas biologicamente os pais reiteradamente recontem as histórias do nascimento dos(as) filhos(as), da gestação, da escolha dos padrinhos, do enxoval, enfim, a partir destas histórias naturalizem a perfiliação da criança no seio da família. Tal fato geralmente não ocorre do mesmo modo com as crianças adotadas. Acreditamos que a razão desse "silenciamento" por parte dos pais advenha não necessariamente do fato de que os mesmos tenham pouco a contar sobre essa fase, por não terem gerado a criança, mas provavelmente, de uma incitação discursiva à legitimação da perfiliação a partir dos laços biológicos que para impor-se como tal, necessita obscurecer qualquer dissidência a esta norma. Dessa forma, abre-se espaço para o receio, nas famílias, de falarem sobre seu processo de constituição como tal, bem como sobre os(as) envolvidos(as) neste. Assim, a invisibilização da adoção é reforçada pelo discurso de validação genética da parentalidade/perfiliação.

A fantasia de roubo relacionada à entrega da criança/adolescente em adoção que apareceu entre as crianças aponta para mais um preconceito quanto a essa prática visto que sugere uma ideia de disputa entre genitores e pais que parece ser recorrente ao tema. O parentesco em nossa sociedade é, geralmente, afirmado pelos laços sanguíneos, o Estado garante aos pais direitos e deveres diante de seus filhos, e isso é baseado nesse parentesco e legitimado pelo mesmo. Portanto, os(as) genitores(as) "naturalmente" têm privilégios e responsabilidades quanto à criança, e quando isso por algum motivo é transferido à outra pessoa, pode haver esse questionamento, mesmo que velado, de que não seja algo "natural" ou "legítimo". Como se um direito "nato" do(a) genitor(a) estivesse sendo negado ou negligenciado em favor de alguém que não tem laços sanguíneos com a criança, portanto, algo que pode remeter a uma fantasia de roubo.

Levinzon(2004) ao abordar tal tema, aponta que

Fantasias de roubo podem se identificadas em pais adotantes, e foram descritas por diversos autores (Wieder, 1978; MacDonell, 1981; Garma et al, 1985, Grinberg, 1982). Os pais sentem inconscientemente como se tivessem "roubado" a criança, e apresentam temores (…) como se pudessem perder o filho a qualquer momento (...) Os pais biológicos são imaginados inconscientemente como personagens que podem voltar a qualquer momento para reaver o filho que lhes teria sido surrupiado. Isso pode ser observado, por exemplo, nos pais que estão permanentemente assustados com idéias de perder a criança, e que passam a superprotegê-la. Este temor corresponde ao mundo fantasmático dos pais adotivos e também se apoia em alguns fatos reais, como os casos de mães biológicas 'arrependidas' que querem seus filhos de volta" (p. 27).

Aqui é possível perceber o reforço da matriz bioparental ao incidir, inclusive à nível subjetivo dos indivíduos, sugerindo a estes quem pode ser pai/mãe e quem não o pode, pautada na reprodução e na heteronormatividade. Esse discurso ao ser internalizado por esses pais e mães parece influenciar em sua forma de sentir e viver sua paternagem/maternagem afetiva, trazendo receios e inseguranças, não porque o vínculo em si seja inseguro, mas porque há um discurso muito predominante que assim o diz.

Percebeu-se também pelos discursos, que há entre os pais, grande insegurança quanto ao futuro de seus/suas filhos(as) adotados(as), receio de que não consigam ser independentes, ter sucesso e/ou que se revoltem. Isso parece baseado na crença de que a adoção em si, sempre traz ou trará algum problema. Weber (2007) aponta que "muitas pessoas acham que 'crianças adotadas, cedo ou tarde, trazem problemas' como se filhos biológicos viessem ao mundo com seguro e garantia..." (p. 22). O medo do desconhecido parece fundamentar esse raciocínio que vem acompanhado do fantasma dos problemas herdados ("filhos dos marginais e das prostitutas") e dos possíveis "desajustes" causados por uma "privação" do "amor materno" sofrido pela criança/adolescente que passa pelo processo de entrega à adoção. Parece haver uma crença na existência de "traumas" oriundos das primeiras experiências da criança, vistos, inclusive, como nunca possíveis de superação, mesmo diante de um novo ambiente propício para o desenvolvimento emocional e de laços familiares.

Motta (2005) assinala que

A criança entregue em adoção parece receber duplo estigma: um quando é 'entregue' ou, como dizem, abandonada, outro quando é salva de sua condição de desfavorecida e deficiente que, no entanto, pode marcá-la e identificá-la por toda a vida. Esta criança será sempre o adotado, alguém diferente que foi salvo de um destino terrível. Alguém que, mesmo tendo sido 'salvo', será sempre diferente ou deficiente se comparado aos demais. É esta perspectiva que tenderá a remeter o adotado a uma visão que o prejudica e o estigmatiza..." (p.173).

O mito do amor materno pode refletir também na atitude dos(as) adotados(as) quando estes(as) apresentam por si sentimentos de dó diante de sua condição de "abandonados(as) por seus/suas genitores(as)". Isso aponta para o fato de que há ainda dificuldades na percepção da adoção como algo bom para os(as) envolvidos(as); há falta de um olhar para os aspectos positivos que essa prática pode proporcionar, por exemplo, como a garantia de direitos das crianças/adolescentes e a realização de desejos dos adultos de constituir/expandir sua família. Mediante a adoção, os/as genitores/as têm a possibilidade de fazer algo dentro da lei, em benefício da criança, garantindo os direitos desta.

Na brincadeira de duas crianças pode-se notar a menção a uma disputa entre os(as) pais/mães e os(as) genitores(as). Nesses dois casos o imaginário infantil pareceu apontar para algo próximo às subcategorias "Fantasia de roubo quanto à entrega na adoção" e "medo dos genitores quererem a criança de volta". O princípio norteador parece ser o mesmo em ambas as subcategorias, pois as crianças, ao que tudo indica nesses casos, percebem os(as) genitores(as) como pessoas de direito sobre elas, assim como seus pais e que, portanto, uma disputa nesse sentido seria possível. A ideia de que "essa outra mulher" (nos dois casos as disputas eram entre as mães e as genitoras) possa aparecer e requerer a criança sugere a percepção de que a biologia asseguraria esse direito, pelo menos de igualdade, entre pais/mães e genitores/genitoras.

Parece ser importante para a maioria das crianças o conhecimento de sua história, mesmo que seja uma referência, um nome. Muitos pais têm poucos dados sobre os antecedentes da criança e/ou de seus genitores(as). A maioria não mantem contato com estes(as), o que também pode dificultar a busca de informações. Há também famílias que não são completamente sinceras quanto a tudo o que sabem sobre o passado da criança, isso se deve a muitos motivos, como por exemplo, ao receio de que possa ser doloroso para ela entrar em contato com essa parcela de sua história, ou pela própria insegurança dos pais/ mães do que essa busca possa significar para o(a) filho(a). O trecho a seguir é de um diálogo que houve entre André e o estagiário que o atendia:

Estagiário: ... E mais alguma vez você falou com seus pais sobre isso? André: Só uma vez que perguntei pra minha mãe o nome deles (referindo-se aos genitores), mas ela não sabia. Estagiário: E você pensa neles? André: Imagino que minha mãe seja loira e meu pai moreno que usa óculos...

Atualmente há muitas discussões referentes às mudanças nos regulamentos, por exemplo, quanto aos dados recolhidos dos(as) genitores(as) mediante a entrega da criança, como problemas de saúde da família de origem. Isso parece apontar para tentativas de se assegurar o direito ao conhecimento de dados básicos de sua história.

Weber (2007) acrescenta que "poucos filhos têm desejo real de conhecer sua família biológica, mas a maioria absoluta quer encontrar sua identidade passada, conhecer suas raízes. As fantasias podem ser mais danosas que a cruel realidade..." (p. 26).

Essas referências à curiosidade sobre momentos anteriores à adoção apresentada pelas crianças/adolescentes, vieram acompanhadas também por receio da reação dos pais/mães diante deste fato. Exatamente em decorrência das famílias não terem o assunto adoção tratado com naturalidade, seus/suas filhos(as) parecem responder, apesar de sua curiosidade sobre suas origens, de forma também insegura, temendo que os pais tenham sentimentos ruins diante de tais interesses.

O diálogo abaixo entre André e o estagiário que o atendia nos dá uma demonstração de como isso pode ocorrer:

Estagiário: E onde seus pais estão? (...) Estagiário: E seus outros pais? (referindo-se aos genitores) André: não sei, por aí... Estagiário: Você queria saber? André: sim Estagiário: Já conversou com alguém sobre isso? André: não Estagiário: Nem com seus pais? André: não, tenho medo que eles fiquem tristes. Estagiário: e eles já conversaram com você? André: só falam que me amam todo dia...

A falta de comunicação mais clara sobre o tema, de forma que todos(as), tanto pais/mães quanto filhos(as) possam falar de seus medos, anseios, inseguranças e desejos de forma aberta, em um espaço acolhedor e compreensivo, parece ser um empecilho para que tais sentimentos possam ser verbalizados e elaborados dentro da própria família. Assim a fantasia toma o lugar dos dados de realidade, e pais/mães e filhos(as), nessa relação entrecortada por tais receios, têm que lidar com o que imaginam que o(a) outro(a) sente ou pensa. E talvez essa curiosidade apresentada pelas crianças/ adolescentes esteja relacionada à pouca informação que têm a respeito de sua história anterior à adoção.

Cabe ressaltar aqui que essa dificuldade de comunicação não é característica apenas da filiação adotiva, mas parece ser referente a nosso modelo de constituição familiar e à manutenção de algumas regras entre seus membros. A família nuclear é fortemente marcada por uma ideia patriarcal que pressupõe a hierarquia entre pais e filhos assim como certo distanciamento entre as gerações, o que parece resultar diretamente na comunicação estabelecida. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, com o fato de que muitas famílias têm dificuldades em falar sobre sexualidade, com questionamentos sobre quando falar, o que falar e de que forma. Assim conclui-se que a maioria das famílias tem limitações em dialogar abertamente sobre diversos assuntos, e quando se trata de adoção tendem a reproduzir a mesma dinâmica, principalmente pelo preconceito ainda existente em torno do tema.

Como nos apontam os dados, os temas segredo e desconfiança apareceram nas brincadeiras e falas de quatro das crianças/adolescentes da amostra, sendo recorrente essa referência a algo a ser ocultado, mantido em segredo por diversos motivos. Consideramos que isso se deva a inúmeros fatores que podem exercer influência no imaginário das crianças, (e aqui caberia a contribuição de pesquisas que tragam dados a respeito do imaginário infantil quanto a tais temáticas). Porém, chama-nos a atenção o fato desses temas serem recorrentes na história de crianças em que, como podemos perceber anteriormente, há dificuldade de suas famílias em falar sobre a adoção, o que pode contribuir para a geração de uma atmosfera de não-ditos e, possivelmente, algumas incertezas e curiosidades. Nesse sentido Teixeira- Filho (2010) traz alguns questionamentos importantes:

Em uma cultura na qual os laços de sangue fossem irrelevantes será que existiriam as categorias "mãe/pai biológica/o" e "mãe/pai adotiva/o"? Afinal, o que define a parentalidade? A quem importa a diferença entre o afeto e a biologia, tomados em nossa sociedade como realidades concretas, distintas e desiguais? Do mesmo modo, caso os laços de sangue não fossem importantes, será que se produziria o desejo de se "fazer segredo" sobre a adoção? (p. 244).

Curiosamente, um dos casos em que a pessoa em atendimento não tinha clareza sobre sua adoção, pois lhe foi dito quando pequena que era "filha do coração" e depois a família não mais retomou o assunto, se esforçando inclusive para manter sigilo a esse respeito, temas como mentira e segredo apareceram de forma ainda mais constante em suas falas e brincadeiras. Uma das queixas iniciais dos pais era sua preocupação com o fato de que ela mentia muito, o que pode ser percebido inclusive durante os atendimentos.

 

Bloco C: Preponderância dos laços afetivos na construção da família

Notamos que foi recorrente a percepção das crianças, assim como a de seus pais, de que os laços biológicos não são responsáveis pela validação da constituição de uma família. As crianças demonstraram isso, por exemplo, por meio de brincadeiras em que a adoção era vista como uma solução ou uma alternativa pela qual elas optavam, adotando filhos(as), ou sendo adotadas.

No caso de Gabriela, por exemplo, a estagiária perguntou como ela se sentia, e notamos no fragmento da transcrição abaixo, sua preocupação com uma das irmãs que ainda morava com o genitor, sobre o desejo de ter notícias dela, e de que esta também pudesse ter sido adotada:

"Gabriela me disse que estava mais tranquila, mas ainda preocupada com a irmã, pois a irmã que era responsável por cuidar delas já devia ter se casado e então essa (outra) irmã não teria quem cuidasse dela, de repente Gabriela para, pensa e me diz "Ah! Ela deve ter sido adotada também!" e encerrou a conversa dando uma solução (...) para os problemas da irmã e consequentemente a preocupação dela. Pontuei (estagiária) que essa seria a solução que ela gostaria que a irmã teria tido, mas a gente não tem certeza. Então ela me disse que queria sim que a irmã tivesse sido adotada como ela por uma família que cuidasse dela e desse amor."

Gabriela em outra sessão contou que sua mãe estava namorando e planejando casar-se, a estagiária então perguntou "se ela não se importava da mãe dela se casar com ele, ela disse que não e que até iria gostar de ter um pai". (Grifo nosso). Percebe-se aqui como para ela pareceu simples identificar uma pessoa com quem convive e que lhe dedica cuidados, como família (pai) a despeito de qualquer vinculação biológica. Assim verifica-se o que Almeida (2003) escreve sobre o fato de que "ser filho é algo mais que ser geneticamente herdeiro de seu genitor, portanto a figura paterna pode não ter contribuído biologicamente para o nascimento daquele que é seu filho, porém possibilitou que o vínculo fosse construído sobre outras bases, que não genéticas" (p.179).

Ainda nesse sentido, pode-se notar que as crianças e seus pais, atribuíram sentimentos bons como o de alegria, à filiação constituída por meio da adoção. Dizendo por exemplo, que ao chegar à casa, a criança se tornou a alegria da família. Isso aponta para o fato de que a adoção além de ser uma forma de encontrar famílias para crianças e adolescentes, é também uma forma, não de caridade, como fortemente pensado historicamente, mas de realização de desejos e planos que dizem respeito também às famílias adotantes.

Portanto, percebe-se aqui um rompimento com a matriz bioparental onde essas famílias têm conseguido dar outros sentidos à sua forma de arranjo familiar e às vivências provenientes deste, que vão muito além do que esta matriz traz como possibilidades. Dentro dessa compreensão de que uma família pode ser constituída por outros laços, que não os biológicos, podemos pensar na relativização do mito do amor materno (Badinter, 1985).

O amor materno pode ser percebido pelas crianças como algo relativo, apontando para outro olhar que a adoção possibilita diante da figura feminina, não restringindo-a apenas à uma capacidade de procriar e cuidar de filhos(as). Isso pode ser um indicativo de que as crianças são capazes de notar diferença entre pessoas que geram filhos(as) e pessoas que os(as) acolhem e cuidam ao perceberem, por exemplo, que há quem terá filhos(as) e não conseguirá, de acordo com os padrões de cuidado estabelecidos, cuidar deles(as) da maneira esperada. Esse aspecto pode ser observado em uma das transcrições dos atendimentos de Gabriela em que encontramos o seguinte trecho:

"ela (Gabriela) foi fazer um parto onde a mãe não sabia cuidar da criança, então entregou o bebê para ela (Gabriela) cuidar. Ela chega em casa dizendo que o bebê vai ficar em casa até que ele cresça e a mãe saiba cuidar. Tentei (estagiária) argumentar o fato de uma mãe entregar o seu filho a outra mulher cuidar, mas ela simplesmente disse "deu por que não sabia cuidar" com uma aparente naturalidade".

Percebe-se que esse mito é pouco questionado por grande parte da população, que ainda pensa a maternidade como algo intrínseco e natural à mulher "saudável" estigmatizando aquelas que não podem, não conseguem ou não querem exercer a maternagem/paternagem. Esse discurso pode gerar e contribuir para a perpetuação de preconceitos quanto às genitoras que entregam crianças para adoção. Isso pode ser evidenciado durante o processo de destituição do poder familiar, por exemplo, em que a genitora é tratada como ré.

Duas famílias participantes de nossa pesquisa demonstraram que tiveram algum tipo de contato com especialistas que perceberam suas queixas com relação às crianças/adolescentes não apenas como sendo de origem orgânica, mas considerando também aspectos psíquicos e relacionais possivelmente envolvidos, relativizando assim o poder do genético. Segue-se um trecho do atendimento de André que traz a conversa do estagiário com a mãe do garoto sobre a queixa que levou-a a procurar atendimento psicológico para o filho:

A queixa da mãe é a dor de cabeça que ele sente desde muito pequeno e que depois de passar por vários médicos e fazer vários exames, o pediatra e o neurologista a orientaram a procurar ajuda psicológica. Ela disse que ele sente muita dor de cabeça e que às vezes vomita e ela também tem que buscá-lo na escola.

Consideramos tal atitude como um demonstrativo de que há profissionais que têm obtido uma formação que lhes permite um olhar multidisciplinar percebendo que as questões de um indivíduo podem estar relacionadas a inúmeros aspectos, em que todos devem ser considerados, e não apenas os orgânicos.

e seus/suas filhos(as) mediante a adoção. Duas famílias o fizeram afirmando que desde o princípio, e em um dos casos mesmo antes do encontro, já havia um sentimento especial de carinho pela criança a ser adotada. A mãe de Vivian "relata que quando a conheceu se apaixonou, o pai disse que foram ao 'orfanato' para conhecer as crianças, que na hora adoraram Vivian e na semana seguinte voltaram para buscá-la". Quanto a Bruna, seus pais "afirmaram gostar dela antes de conhecê-la, só pelas histórias que a Assistente Social contou, não só por todo o sofrimento, mas por dizer que ela era uma menina sorridente, carinhosa..." Essas atitudes parecem apontar para a grande disponibilidade afetiva e desejo desses(as) adotantes em acolher e constituir família por meio da adoção demonstrando que o que aproxima os membros de um grupo familiar são os laços afetivos e não os consanguíneos. Essas experiências demonstram que, na vida cotidiana, as famílias têm vivências que contestam a matriz bioparental e seus desdobramentos.

Esse bloco de categorias permite-nos observar as possibilidades de rompimentos encontradas pelas famílias de nossa amostra nas brechas do discurso bioparental, e a manutenção dessa dissidência por meio de outras vias de legitimação de sua forma de constituição familiar.

 

Bloco D: Mídia, religião e adoção

 

A mídia é reconhecida como forte meio de disseminação de ideias e formadora de opinião e, na presente pesquisa, ela aparece nos discursos das crianças e de seus familiares como participante na formação de suas concepções sobre a adoção. É comum acompanhar nas novelas grandes tramas que envolvem o tema da adoção e também programas em que reportagens a esse respeito são apresentadas. Assim, a mídia televisiva pode contribuir para o esclarecimento e transmissão de informações sobre o assunto de forma a diminuir o estigma e preconceito ou pode, por outro lado, ser usada como forma de propagá-lo.

O fragmento a seguir foi retirado de uma transcrição feita pela estagiária que atendia Vivian, e demonstra como a mídia pode influenciar no imaginário, inclusive das crianças/adolescentes, conforme os temas por ela abordados. Vivian comentou que assistia à novela "A Favorita", da rede Globo, e que adorava essa novela.

Eu (estagiária) disse a ela que também assistia essa novela, e perguntei qual a personagem que ela mais gostava. Ela disse que gostava de Flora, então eu completei, que ela era mãe biológica da Lara. Perguntei o que ela achava da Donatela a mãe adotiva da menina. Ela disse que não gostava da Donatela, porque ela era má. Vívian disse: 'eu gostei disso!'. Então eu perguntei do que ela havia gostado. E ela disse: 'disso de mãe adotiva e mãe biológica'. Perguntei se ela sabia qual era a diferença, ela respondeu que mãe adotiva era quem roubava a criança. Disse para ela que mãe biológica era quem tinha o bebê, a que carregava o bebê na barriga. E que a mãe adotiva era a que cuidava como se fosse seu, caso a mãe biológica, por algum motivo, não pudesse cuidar da criança.

Ela continuou afirmando que a mãe adotiva era a que roubava a criança. Perguntei se ela achava que era sempre assim. E ela disse que sim, porque na televisão era sempre assim.

O aspecto religioso apareceu também uma única vez relacionado à adoção, o que sugere mais uma mudança quanto à forma como essa prática tem sido percebida, não mais como um gesto caridoso em favor de desamparados(as), mas uma escolha consciente de uma ação que possibilita ganhos para ambos os(as) envolvidos(as).

Motta (2005), explica que o cristianismo era o campo de referência para as normas de organização familiar e para criação e manutenção de instituições como a Roda dos Expostos (lugar nas Santas Casas de Misericórdia em que as crianças eram deixadas por seus/suas genitores(as) desde o período Colonial até a República). Dessa forma percebe-se que o aspecto religioso por vezes traz consigo uma visão moral que desde o período da Roda pode ser bastante percebida. O reflexo disso sobre a adoção é visível quando pensamos em aspectos como o estigma sobre a figura dos(as) genitores(as) e o olhar vitimizador e receoso lançado à criança/adolescente adotada(o).

 

Bloco E: Diferentes faces do biológico

 

As dificuldades em aceitar as diferenças referentes à filiação adotiva e à biológica podem, inclusive, relacionar-se ao fato de que muitas famílias, na tentativa de explicar para os(as) filhos(as) sobre sua adoção, fazem um paralelo entre o nascimento da "barriga" e o do "coração", o que em muitos casos parece confundir as crianças sobre como isso se dá. O exemplo de Vivian pode nos ajudar a perceber melhor essa questão:

Estagiária (durante brincadeira de quebra-cabeça): é difícil encaixar certas peças do quebra-cabeça. Tem peças de sua vida que você está tentando encaixar? Vivian: Como assim? Estagiária: A gente junta as peças do quebra-cabeça para montar um desenho, então na vida nós também temos pecinhas que juntas formam a nossa história. Tem peças que você descobriu que fazem parte da sua história e está tentando encaixar? (Vivian foi pedindo as peças pra estagiária e ia perguntando pra ela se estava encaixando no lugar certo. Pareceu ficar um pouco angustiada.) Vivian: Vou te contar uma coisa. Eu não nasci da barriga da minha mãe, eu nasci do coração. Estagiária: Quem te contou? Vivian: A minha mãe Estagiária: E como foi? Vivian: Ah, eu não me lembro, eu devia, deixa eu ver, ter uns 6 anos Estagiária: E o que você acha que é ser filha do coração? Vivian: Ah, eu não sei, como é que pode ser filha do coração? Se cortar o coração ela morre, não morre? Deixa eu escrever que é melhor: Se eu vim do coração da minha mãe. Como eu posso vir da barriga de outra pessoa? Estagiária: Vivian nasceu do coração da mãe E. e da barriga de outra mamãe Vivian: Não, eu nasci da barriga da minha mãe, eu nasci do coração e fui descendo até a barriga. Vivian desenha um coração com um bebê dentro, e uma barriga com um bebê dentro Estagiária: E você pensa na outra mãe, na mãe da barriga? Vivian fez que sim com a cabeça. Estagiária: Você conta pra sua mãe que você pensa nela? Vivian: Não, é um segredo. Estagiária: Quando a gente tem um segredo, a gente guarda de alguém. De quem que você guarda esse segredo? Vivian: De todo mundo da minha casa.

Questões referentes ao nascimento parecem ser as mais frequentes nas dúvidas das crianças de nossa amostra, o que parece remeter ao fato de que a matriz bioparental o tem como marca fundamental e inquestionável do pertencimento de alguém a uma família.

Bruna também trouxe o aspecto do nascimento em suas sessões. Vejamos como isso se passou em uma das sessões de psicoterapia:

Durante uma brincadeira que envolvia figuras de animais, ao ver os pares de macho e fêmea a estagiária perguntou: Você já percebeu o que acontece quando um bicho macho se junta com uma fêmea? Bruna: Aí fazem filhinho Estagiária: É sim, mas é só assim que os casais podem ter filhos? Bruna: Não, existem também como eu. Fez uma pequena pausa e disse: Eu nasci da minha mãe e do meu pai Estagiária: Da mãe E., e do pai J. (adotivos)? Bruna: É...

Nesse trecho do diálogo fica perceptível que pode haver para a criança uma dificuldade em reconhecer e/ou compreender, por exemplo, que nasceu de outra mulher que não a sua mãe, apesar de saber de sua adoção. Isso pode ser justificado pelo fato de a filiação biológica ser tida como "natural" em nossa sociedade.

A matriz bioparental apareceu novamente como um dos atravessadores nas questões da adoção, visto ter sido bastante recorrente no discurso dos pais e especialistas a atribuição de problemas explicitamente vinculados às questões relacionais (como dificuldade dos pais de impor limites a seus filhos ou o próprio ocultamento de questões referentes à adoção) às questões biológicas, ou a fases anteriores à adoção. Isso demonstra o preconceito das famílias ao justificarem os comportamentos indesejáveis da criança/adolescente por meio da crença de uma herança comportamental relacionada aos(as) genitores(as), ao período de vivência da criança com estes(as), ou em instituições de abrigo. Ou seja, se algo deu "errado" foi antes da entrada da criança na família atual.

Percebe-se aqui uma tentativa de eximir-se da participação e contribuição no surgimento e/ou manutenção de um sintoma da criança que esteja relacionado à família adotante (o que poderia ocorrer em qualquer família, seja ela de vínculos afetivos e/ou biológicos) e a seu funcionamento. A distinção entre filho(a) biológico(a) e filho(a) adotivo(a) fica mais clara quando questionamos que tipo de alternativa uma família usa para explicar esses comportamentos indesejados quando não há caso de adoção, ou seja, em uma filiação biológica. Geralmente as famílias não recorrem à questão genética como justificativa, porque assim, o problema recairia nelas mesmas, e se o fazem é apenas para destacar a semelhança negativa da criança com um membro isolado da família, que será usado como a origem ou o polo do problema, novamente gerando o distanciamento de aspectos como a educação e o meio em que a criança vive e a relação destes com seus comportamentos. Para Weber (2007)

Na verdade, tentar atribuir certas características comportamentais aos genes às vezes é muito cômodo, porque nos livra da responsabilidade de ter construído ou contribuído para tal comportamento... Nas famílias adotivas, se o comportamento da criança está 'de acordo' com o que os pais adotivos esperam, eles acabam creditando o sucesso à sua educação; mas se algo não vai bem, muitas vezes, e até de maneira não consciente, colocam a responsabilidade nos genes do 'outro', no 'sangue ruim' que esta criança pode ter trazido (p.23).

O fato de em três casos as diferenças genéticas serem notadas e bem aceitas por parte dos(as) adotados(as) parece um indicativo de que a adoção pode ser compreendida e aceita por estes(as), inclusive quando crianças. O que indica que a adoção é um processo que envolve a desnaturalização dos referenciais biológicos tanto por parte da criança/adolescente quanto de sua família, que ao apropriarem-se dessa constituição familiar, criam suas redes de pertencimento, de identificações e vão dando sentido às suas vivências.

Perceber, por exemplo, que ter aspectos físicos diferentes de seu pai e de sua mãe não é necessariamente um problema, mas apenas uma diferença, assim como inúmeras existentes entre os componentes de uma mesma família, demonstra a superação do discurso bioparental. Tal percepção e aceitação da diferença parece algo a ser conquistado por cada membro da constelação familiar.

 

Considerações Finais

Entendemos a adoção como um processo de construção familiar dissidente da matriz bioparental. Ainda que seja um processo constituído por lei garantido na Constituição Brasileira, sua dissidência se revela no contexto social na medida em que neste, há prioridade dos laços biológicos em detrimento dos afetivos na construção da família.

Neste estudo, as categorias elaboradas nos permitem corroborar esta tese tanto de forma a enfrentá-la quanto à ela se submeter. Das cinco categorias gerais elencadas, o bloco A, B e E apresentam preocupações quanto aos laços biológicos pregressos à adoção. Esta relevância também pode ser percebida na frequência com que estes temas apareceram nas sessões em contraste com a categoria C, que revela um dos únicos momentos de tentativa de validação e afirmação dos laços afetivos em detrimento dos biológicos. Não obstante isso, também encontramos na categoria do bloco D a forte influencia dos discursos midiáticos e religiosos que também reafirmam a importância dos laços biológicos na construção da família.

A Matriz Bioparental confirma sua presença como estruturante do imaginário sobre os laços familiares, haja vista que as famílias que a nós chegaram já vinham com a ideia de que a "verdadeira" família se organiza, primeiramente, a partir do biológico e não por outros laços. Isso implica em dizer que a adoção, para o grupo amostral aqui investigado, constituiu-se como uma outra forma de organização familiar em substituição à primazia do biológico. Nesse contexto, encontramos que boa parte das dificuldades elencadas pelas famílias que vieram ao CPPA, diziam respeito ao modo como cada grupo familiar lidou com essa dissidência, o que demandou de cada família modos diferenciados de elaboração desta. Assim, por exemplo, não é possível afirmarmos que em todos os casos de adoção aparecerão nos pais a fantasia de roubo da criança ou a fantasia de união dos genitores e dos pais por parte das crianças. Cada categoria encontrada diz respeito especificamente a essa amostra e as particularidades dela decorrentes, já que nenhum processo de adoção foi igual ao outro.

As categorias temáticas elencadas contribuíram para alcançarmos nosso objetivo principal que foi analisar os efeitos da matriz bioparental e sua incidência sobre as crianças/adolescentes da amostra e seus familiares, bem como perceber as possibilidades de escape aos assujeitamentos dessa matriz. Nos casos estudados não foi possível fazermos uma interpretação levando-se em conta marcadores sociais de diferença tais como gênero, raça, classe social, dentre outros, já que a escolha da amostra levou em consideração, sobretudo, o número e o detalhamento das sessões transcritas e realizadas e não o perfil sócio-demográfico nem dos adotantes nem dos(as) adotados(as). Todavia, não fechamos os olhos para o fato de que a maioria dos adotantes são de classe media, brancos, heterossexuais e que estão em acordo com o imaginário social de que uma criança necessita ser criada em um contexto sócio-econômico que lhe garanta subsistência e bem-estar.

Uma dificuldade encontrada no decorrer da escrita desse material, que nos parece significativa, foi quanto à escolha do termo usado para fazer distinção entre organização social a partir dos laços biológicos e dos afetivos. Isto é, para nós família é quem cuida. Logo, substituímos o uso comum de "pai biológico" e "mãe biológica" por "genitor/genitora", visando apontar a diferença entre essas duas funções: pais/mães são as pessoas que se dedicam à convivência, cuidado e educação das crianças/adolescentes; e genitores/genitoras são aqueles(as) que os(as) geram. Nosso intuito, foi dar visibilidade ao fato de que uma função não vem obrigatoriamente acompanhada da outra. Assim, acreditamos ser um equívoco a utilização do termo "família extensa" para nos referirmos aos tios, avós, primos biológicos da criança. Para nós, "família extensa" deveria também ser utilizada como uma terminologia que fizesse referência aos laços afetivos para com a criança. Porém, nesta pesquisa, ainda não conseguimos um substituto conceitual para contemplar este tipo específico de ligação entre uma criança posta à adoção e os parentes de seus genitores. Como acreditamos que as palavras têm sua importância por transmitirem ideia, valores, crenças que se quer defender ou refutar, pensamos ser significativo não haver em nosso vocabulário uma palavra específica que defina o tipo de relação que uma criança colocada em adoção passaria a ter com os familiares de seus genitores. Isso força-nos a pensar na necessidade de uma nova terminologia e aponta, mais uma vez, que ainda há muito a se falar sobre adoção e as diferentes formas de parentesco.

As categorias apontaram-nos vários aspectos que podem ser significativos para a compreensão dos atravessamentos discursivos relacionados à prática da adoção. Percebe-se a grande ambivalência que permeia o assunto, pois em determinados momentos os efeitos da matriz bioparental são muito visíveis influenciando na forma de pensar e agir das pessoas, e em outros há notável rompimento com essas diretrizes biológicas. Por exemplo, no bloco B, a subcategoria "Pouca abertura/resistência para falar sobre adoção dentro da família" apareceu 32 vezes em todos os casos analisados, contrastando com a subcategoria "Superioridade dos laços afetivos", no bloco C, que apareceu 32 vezes em 5 dentre os 7 casos analisados.

Tal dado revela que há uma discrepância entre o que diz e o que se faz relativamente às práticas de cuidados junto às crianças adotadas. Se, de um lado, observamos que os familiares buscam racionalmente valorizar os laços afetivos, de outro lado, suas práticas e crenças, ainda estão respaldadas em modos de subjetivação que priorizam o discurso biológico. Tal fato denuncia um campo tensionado e conflitivo que provavelmente vulnerabiliza as famílias que buscam priorizar os laços de afeto, o que justificaria, portanto, que não houve unanimidade nesta subcategoria do bloco C. Mas, ainda que não seja unanimidade, é reconfortante e motivador perceber o poder de resistência dos indivíduos às verdades absolutas que regem suas formas de sentir, filiar-se e/ou exercer sua parentalidade, como demonstrado em alguns casos do estudo nos quais as próprias crianças, em suas brincadeiras, apontaram a adoção não apenas como a alternativa mais adequada, mas também, a mais desejada.

Evidencia-se, portanto, o quão necessária se faz a ação dos profissionais da psicologia e a instauração de redes de apoio para prepararem e acolherem as famílias que se aventuram na subjetivação pela via da adoção, especificamente, para ajudar-lhes a enfrentar os estigmas decorrentes da matriz bioparental. Isso implica em dizer que mais estudos se fazem necessários para que possamos desconstruir a suposta "verdade", ou ainda, legitimidade das constituições familiares advindas prioritariamente dos laços biológicos de modo a fazer com que as pessoas só pensem na adoção como última alternativa da constituição de laços familiares. Isto é, a adoção não precisa ser pensada como suplência a uma falta, mas antes como um desejo de ampliação das possibilidades de existência e subjetivação.

 

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Recebido: 02 de outubro de 2012.
Aprovado: 17 de outubro de 2013.

 

 

Notas

1 À época, quando do primeiro censo no Brasil (1872), éramos foramdos por cerca de 65% de não brancos, sendo que 1 ano antes havia sido promulgada a Lei do Ventre Livre que tornavam livres todas as crianças de pais escravos.
2 Conferir http://www.arpensp.org.br/principal/index.cfm?tipo_layout=SISTEMA&url=noticia_mostrar.cfm&id=10873 Acessado em 18/08/2014.