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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.2 Assis Dec. 2014

 

Artigo

 

O fazer como potência: atuação da psicologia no sistema único de assistência social

 

Do as power: performance of psychology in the social assistance system

 

 

Ruth Tainá Aparecida PivetaI, Sonia Regina Vargas MansanoII

I, IIUniversidade Estadual de Londrina

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo investigar o universo da Política de Assistência Social, com vistas a suscitar questionamentos acerca da inserção de psicólogos neste campo de atuação recente. Compreendendo-se o trabalho do psicólogo como eminentemente imaterial e afetivo, faz-se necessário analisar os efeitos dessa atividade relacional na vida desses trabalhadores. Compreender suas práticas exigiu a análise de algumas ferramentas conceituais capazes de promover uma intervenção mais contextualizada, que fosse além das prescrições já existentes, levando em consideração a multiplicidade dos afetos experimentados no cotidiano de trabalho e a implicação política dos profissionais que esse campo demanda.

Palavras-chave: psicologia; assistência social; trabalho imaterial; afeto.


ABSTRACT

This article aims to investigate the universe of Social Assistance Politics, aiming to raise concerns about the insertion of psychologists in this field. Understanding the work of psychologist as eminently immaterial and affective, it is necessary to look more closely at the effects of this activity in relational life of these workers. So, think about such practices, raising our eyes to this professional, demanded the analysis of some conceptual tools able to promote a more contextualized, which was in addition to the existing requirements, taking into account the multiplicity of emotions experienced in everyday life and the political implication of professionals that this field demand.

Keywords: psychology; social assistance; immaterial labor; affection.


 

 

Introdução

A psicologia no Brasil tem ampliado seu campo de intervenção, atuando em espaços anteriormente pouco ocupados por profissionais dessa área. Dentre esses espaços, pode-se destacar o campo das políticas públicas, que vem se expandindo de maneira significativa. O presente artigo tratará da inserção recente dos psicólogos na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). A abertura desse novo espaço de atuação implica um debruçar sobre as questões emergentes no social, bem como um exercício constante de reflexões acerca das possibilidades da Psicologia nesse espaço, pois, apesar do considerável aumento desses profissionais nos órgãos vinculados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), ainda há bastante dúvida, por vezes até ceticismo, sobre seu papel bem como sobre as práticas possíveis e desejáveis. Em vista disso, traçaremos uma cartografia dos conhecimentos teóricos e práticos que permeiam a inserção desse profissional no campo das políticas públicas.

Para isso, o artigo foi dividido em três momentos. Primeiramente, percorremos algumas linhas históricas acerca da criação da PNAS no Brasil. Em um segundo momento, realizamos uma análise dos documentos de referência para o trabalho da Psicologia, nos órgãos ligados ao SUAS, elaborados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Além disso, buscamos compreender a psicologia como profissão, partindo da perspectiva de que esta pode ser entendida como uma modalidade de “trabalho imaterial afetivo” (Hardt & Negri, 2001). Por fim, analisamos alguns conceitos da Psicologia Social e da Filosofia que, em nosso entendimento, podem ser utilizados como referências teórico-metodológicas que contribuem para a compreensão das situações vivenciadas no cotidiano, fazendo alusão a uma “caixa de ferramentas”, tal como compreendida por Deleuze e Foucault (Foucault, 1979).

Assim, o objetivo deste estudo consistiu em cartografar a prática da psicologia no campo emergente das Políticas Públicas de Assistência Social, cujos contornos estão sendo traçados e experimentados por profissionais a ele vinculados.

Psicologia e Assistência Social: um breve percurso histórico

Um olhar analítico para as relações entre a Psicologia e as Políticas Públicas de Assistência Social, bem como para as intervenções e práticas possíveis nesse campo, remete à necessidade de realizar um breve resgate histórico desse espaço de atuação, apontando a emergência dessas políticas no Brasil. Elas surgem para regulamentar uma prática que foi, por muito tempo, desconsiderada pelas políticas estatais: a assistência àquele que fica à margem dos meios de subsistência e que, mais recentemente, é considerado sujeito em situação de vulnerabilidade social ou de risco pessoal e social (Brasil, 2004). As políticas públicas no Brasil, no que concerne à Seguridade Social, consolidaram-se a partir da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), a qual regulamenta as ações estatais do nosso país até os dias atuais. Lançada num momento histórico bastante crítico, que envolvia o fim da ditadura do regime militar e o bojo das lutas dos diversos movimentos sociais pelo direito à democracia, a constituição permitiu um grande avanço em relação à garantia de direitos aos cidadãos brasileiros (Tavares, 2005). A partir da Constituição Federal de 1988, com a consolidação da Lei 8.080 (que regulou as ações do Sistema Único de Saúde, em 1990), da Lei 8.313 (referente à Previdência Social, em 1991) e da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) nº. 8.742, de 1993, foi instituído o tripé da Seguridade Social. Sua premissa é a de que os cidadãos brasileiros sejam assistidos nos diferentes âmbitos da vida, do nascimento à velhice, pela garantia dos direitos sociais, os quais estão descritos no artigo 6º da Constituição Brasileira: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, 1988).

Na década de 90, foram reformuladas as políticas públicas orientadas para a execução dos direitos citados. No que se refere especificamente à Política de Assistência Social, suas ações, por muito tempo, estiveram ligadas ao campo do assistencialismo e às práticas de caridade executadas, em larga escala, pelas instituições religiosas e pela sociedade civil, ambas orientadas pela filantropia. Portanto, no Brasil, a Assistência Social não foi considerada, de início, como campo de atuação do Estado, sendo suas atividades delegadas à caridade religiosa e à filantropia (Cruz & Guareschi, 2009), que se mantinham pela “boa vontade” de uma parcela da sociedade. Esse fato produz desdobramentos atuais: até hoje os usuários dos programas relacionados à Política de Assistência Social, muitas vezes, sentem-se no dever de agradecer às pessoas ou às divindades por um direito que, de fato, lhes é garantido por lei. Embora as constituições anteriores já manifestassem certa preocupação com a questão dos direitos dos cidadãos, prevendo algumas ações de proteção social, muitas dessas ações estiveram vinculadas à questão do trabalho formal, sendo condicionadas ao atendimento à saúde (Iamamoto & Carvalho, 1995).

Além de colocar o trabalho como condição de acesso aos direitos sociais, as ações assistenciais restringiram-se, por um longo período, a intervenções emergenciais e circunstanciais, com o intuito específico de garantir um “estado mínimo para o social” (Brasil, 2007, p. 8), focado na individualização das questões sociais, acarretando uma lógica de problematização e culpabilização do indivíduo e da família. Esse panorama estava bem distante de uma política real de garantia de direitos. Vale ressaltar que a atuação dos assistentes sociais, nesse período, caracterizava-se, em larga escala, como disciplinadora e moralizante no trato com o indivíduo e a família, assumindo os assistentes o papel de educadores e reguladores das diferenças, com vistas à manutenção do status quo (Iamamoto & Carvalho, 1995). Somente com a Constituição de 1988 os direitos sociais adquiriram caráter mais amplo, amparados pelo princípio da universalidade, sendo considerados direitos de todos e não somente daqueles que contribuíam social e economicamente para a previdência. Posteriormente, com a consolidação da LOAS, em 1993, pode-se falar de uma Política Pública de Assistência Social, garantia do direito do cidadão e dever do Estado, que culmina com a criação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), regulamentada em 2004, e com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005.

Observe-se que existe um intervalo de tempo considerável entre a criação da LOAS e a implantação da PNAS, intervalo que teve efeitos consideráveis para a execução da política em questão. Primeiramente, merece atenção a expansão de uma política neoliberal, no governo do nosso país, assumida de maneira mais significativa no início da década de 1990. Esse fato resultou na “restrição de direitos e redução da presença estatal, além do mero descolamento de responsabilidades entre as esferas de governo” (Silveira, 2011, p. 20), refletindo na organização e implementação das políticas públicas após 1988. Outro fato de extrema relevância foi a IV Conferência Nacional da Assistência Social, realizada no ano de 2004, cujas deliberações culminaram na aprovação do projeto da PNAS, que foi então implementado e do qual resultou na criação do SUAS (Cruz & Guareschi, 2009). O SUAS divide-se em dois eixos de intervenção: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, que se diferenciam pelo grau de complexidade de suas ações e pelo público atendido. A Proteção Social Básica agrupa as ações de redução e prevenção de riscos sociais. Está inserida nos territórios municipais considerados de maior vulnerabilidade, normalmente abrangendo regiões delimitadas, visando à criação de vínculos mais efetivos entre os moradores e incentivando o desenvolvimento comunitário. Suas ações são realizadas pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), cuja base está na ação territorial que lhe permite ficar mais próximo das famílias e indivíduos que, por inúmeros motivos, possam vivenciar algum tipo de risco social. Também busca realizar uma política de encaminhamentos, funcionando como mediador entre a população atendida e as demais políticas públicas.

Já a Proteção Social Especial tem como campo de ação aquelas situações nas quais os direitos socioassistenciais foram violados. Podem ser considerados como tendo os direitos violados aqueles que sofreram violência física e psicológica, maus tratos, negligência, discriminações, situações de ameaça e rompimento de vínculos familiares. Sua principal unidade de atendimento é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), direcionado para situações de média complexidade (nas quais o vínculo familiar e comunitário não foi rompido). Outras unidades são os abrigos, casas de passagem, programa família guardiã, casas lares e também aquelas outras voltadas para situações de alta complexidade (nas quais o vínculo familiar e comunitário foi rompido). As ações da Proteção Social Especial são mais específicas: elas intervêm em situações nas quais os indivíduos ou famílias encontram-se extremamente fragilizados e demandam da equipe técnica um cuidado imediato, sensível e pontual.

O trabalho nas unidades de Proteção Social Básica e Especial é realizado por equipes interdisciplinares formadas por distintos profissionais: assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados, educadores sociais. Em ambos os eixos da Proteção Social, as normas técnicas de recursos humanos preveem a presença do psicólogo, fato que proporcionou um aumento significativo de contratação desses profissionais para o campo da Assistência Social desde sua regulamentação. Note-se que, com a complexificação do trabalho, houve um aumento de profissionais e a demanda de novos saberes e olhares sobre esta realidade social que, por vezes, ganha contornos radicais e limítrofes.

As Políticas Públicas de Assistência Social têm como prioridade a atenção à família; sua base é o artigo 226 da Constituição Federal, o qual preconiza que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (Brasil, 1988), pois, no parágrafo 8º do artigo citado, declara-se: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (Brasil, 1988). Todo trabalho realizado pelos agentes ligados a essa política pública visará ao fortalecimento dos vínculos familiares, à reinserção do indivíduo no seio familiar e ao resgate da “função protetiva das famílias”, promovendo o “desenvolvimento de potencialidades” (Brasil, 2009, p.6).

Constata-se, por esse breve percurso histórico, que os profissionais aí inseridos têm como função garantir o acesso dos usuários aos direitos socioassistenciais e constitucionais. Tais profissionais encontram-se diante de um duplo trabalho: garantir o direito e compreender as situações que colaboraram para colocar o usuário na condição vulnerável ou em situação de risco.

Das referências documentais à experimentação: o desafio dos encontros

No que concerne às possibilidades de atuação dos psicólogos na Política de Assistência Social, alguns documentos têm sido elaborados e tomados como referências para a intervenção dos profissionais. Nas análises que se seguem, tomaremos como base três desses documentos: dois elaborados pelo CFP, a saber: o “Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias: referências para a atuação do psicólogo” (2009) e o denominado “Referências técnicas para atuação do psicólogo em Medidas socioeducativas em Meio Aberto” (2010). E também o documento elaborado pelo CREPOP, “Referência técnica para atuação do (a) psicólogo (a) no CRAS/SUAS” (2008).

Um primeiro ponto que chama atenção nessas publicações é o fato de elas serem bastante recentes, o que, mais uma vez, evidencia a atualidade da discussão que se promove nesse campo. Poder-se-ia dizer que se trata de uma atividade que está em movimento e transformação, demandando a criação de ferramentas teórico-metodológicas muito específicas e contextualizadas. Os documentos priorizam o trabalho interdisciplinar como uma das estratégias mais importantes da atuação do psicólogo nos serviços do SUAS. Há uma demanda explícita por saberes a serem compartilhados e construídos por profissionais de diferentes áreas de conhecimento.

No campo do SUAS, onde a área do Serviço Social teve um espaço de atuação mais hegemônico, o psicólogo é convocado a entrar em cena com seu saber sobre o humano, contribuindo para a construção de uma visão mais ampla e multifacetada das relações sociais e afetivas. Na referida interdisciplinaridade, fica evidenciada também a importância do diálogo com o campo jurídico. É necessário, de acordo com os documentos do CFP, que o profissional tenha conhecimento dos marcos legais da Assistência Social, como a LOAS, o documento da PNAS, a Norma Operacional Básica do SUAS (NOB-SUAS), leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, entre outros, para que possa intervir em consonância com as diretrizes que tais legislações propõem, contribuindo para a consolidação e análise crítica dessa política pública.

Outro ponto abordado nos documentos refere-se a uma espécie de crítica ao setting terapêutico tradicional, limitado ao espaço do consultório, com suas regras pautadas na distinção entre terapeuta e paciente. Nas políticas públicas, por vezes, a intervenção do psicólogo precisa ocorrer em inúmeros locais. Fala-se, portanto, de “momentos terapêuticos” (CFP, 2009, p. 53), não necessariamente vinculados a um atendimento realizado em um espaço pré-definido e livre de qualquer interferência, como um consultório. Assim, os atendimentos podem ocorrer na visita domiciliar, num lanche compartilhado ou em uma caminhada pelas ruas do bairro. O mais importante nessa relação “é a formação de vínculos, a possibilidade de interagir com o sujeito, acessar a sua subjetividade, estabelecer relação” (CFP, 2009, p.53).

Em diversos pontos do documento, há demanda pela criatividade e ousadia (CFP, 2012, p.41) do profissional, consideradas como características a serem assumidas pelos psicólogos, no sentido de construir metodologias e saberes que subsidiem novas práticas e coadunem com a realidade ímpar e singular de cada território, de cada população atendida e de cada caso. Entendemos que tais habilidades colaboram para abrir espaço a novas construções e experimentações nas intervenções dessa área. Entretanto, é preciso considerar que tais práticas envolvem dimensões teóricas e metodológicas que implicam posições políticas distintas. Nesse sentido, o criar e o ousar configuram-se como estratégias para dar passagem àquilo que é vivenciado no cotidiano de encontros advindos desse tipo de intervenção. Vale ressaltar que os documentos, em nenhum momento, falam do “como fazer”, mas trazem alguns elementos que o profissional pode tomar em consideração para consolidar as intervenções, como: ser criativo e inovador, ter postura política, saber contextualizar os fenômenos, entre outros. Além disso, embora as referências documentais aqui citadas impliquem descrever e analisar as possibilidades de um trabalho a ser realizado pelos psicólogos no campo da Assistência Social, pouco ou nada falam acerca das inúmeras dificuldades e impasses presentes nesse campo de trabalho.

Trabalhar com a questão da pobreza, da miséria, de situações em que a vida, em qualquer de seus aspectos, está ameaçada pela fome, pela violência, pela falta de perspectivas, pela negligência do Estado, entre tantas outras situações vivenciadas no dia-a-dia dos CRAS e dos CREAS, demanda um envolvimento afetivo que lança o profissional em impasses de difícil trato, o que não é mencionado ou citado nos documentos de referência. É impossível lidar com tantas situações limítrofes sem que isso acarrete algum tipo de sensação, afetação ou repercussão para o corpo desse profissional. Trata-se de uma questão de extrema importância para uma ciência ainda dividida entre a neutralidade do laboratório e a diversidade afetiva gerada pelos encontros sociais. Daí a importância de dar visibilidade àquilo que os encontros com tantas situações delicadas provocam no corpo e na subjetividade dos profissionais.

Uma análise sobre o trabalho do psicólogo nas políticas públicas está muito próxima do que Negri e Hardt (2005) descrevem como sendo “trabalho imaterial”. De acordo com tais autores, as mudanças postas em curso a partir do século XX pelos processos de globalização e avanços da tecnologia promoveram uma expansão de atividades que não exigem tanto a força física do trabalhador, mas demandam outros atributos, como a cognição, os afetos e a história de vida. Além disso, observa-se o aumento de atividades que não estão relacionadas à produção de bens materiais, mas com a produção de um “bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento e comunicação” (Hardt & Negri, 2005, p. 311), que podem ser caracterizadas como trabalho imaterial. A psicologia, profissão que trabalha eminentemente com relações humanas, pode ser compreendida como um tipo de trabalho imaterial, mais especificamente, trabalho imaterial afetivo. Nessa modalidade, a ‘matéria-prima’ primordial consiste na abertura para estabelecer relações sociais e afetivas com o outro e produzir efeitos como, por exemplo, “um sentimento de tranquilidade, bem estar, satisfação, excitação, paixão – ou até mesmo a sensação de estar simplesmente conectado ou de pertencer a uma comunidade” (Pelbart, 2000, p. 36). Não obstante, trata-se de uma profissão que se ocupa eminentemente com a produção de subjetividades, voltando-se para a criação e análise de “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou seja, formas de vida” (Pelbart, 2000, p.36).

Como qualquer outro trabalhador, o profissional da Psicologia sofre os efeitos dos encontros vividos em seu cotidiano laboral. A dificuldade de mensurar resultados, visto atuar-se em situações imprevisíveis, que dificultam a quantificação do trabalho realizado, pode gerar não só intensos questionamentos acerca do real alcance das intervenções realizadas, mas também intensa insegurança. Assim, o esgotamento físico e psíquico gerado pelo envolvimento com o trabalho é um dos efeitos que pode ser amplamente encontrado nessa área de atuação, uma vez que é necessário envolver-se subjetivamente para alcançar, compreender e analisar o sofrimento do outro. Talvez por tal necessidade de envolvimento, essa dimensão gera uma dificuldade de separar o contexto de trabalho e da vida pessoal, pois em muitos momentos as situações vivenciadas no cotidiano demandam, além dos pressupostos teóricos, as experiências pessoais de superação e elaboração. É nesse sentido que se abre a possibilidade de fazer da Psicologia uma arte do encontro: produzir intervenções que favoreçam encontros de abertura a novas formas de olhar e acolher os usuários desse tipo de serviço.

A caixa de ferramentas: construindo uma práxis situada

Partindo de uma Psicologia dedicada à construção de uma arte do encontro, buscamos selecionar e analisar algumas ferramentas teórico-metodológicas que podem configurar-se como estratégias de intervenção no campo da Assistência Social. Partimos aqui de um pressuposto ético-político que compreende as teorias como caixa de ferramentas a serem utilizadas na compreensão e experimentações dos encontros. Nesse sentido, falamos de uma

teoria [que] é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... é preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas (Deleuze. In: Foucault, 1979, p. 71).

Primeiramente, consideraremos as relações de poder, que se configuram como ferramentas conceituais extremamente importantes, uma vez que as práticas da Assistência Social se dão em um campo institucionalizado, onde as relações são bastante hierarquizadas e cristalizadas entre os diversos atores sociais. Entretanto, tal qual considerado por Foucault (1979), o poder não é algo objetivável, que pode ser concentrado nas mãos de certa classe profissional ou de uma única pessoa. Ele só existe em ato, exercido por indivíduos distintos na relação entre as diferenças. Assim, ele “não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (Machado, 2007, p. x). Sendo prática social, pode ser exercido por todos os lados, não apenas verticalmente, mas também horizontal e transversalmente, produzindo efeitos nos encontros mais cotidianos e corriqueiros, por simples gestos e até mesmo olhares. Há que se compreender, portanto, que o poder não é um objeto natural, mas um exercício no próprio corpo social, inscrevendo-se nos corpos individuais e construindo-se política e historicamente.

Assim, a questão do poder está intimamente atrelada ao exercício e produção dos saberes e modos de viver. Os saberes são construídos a todo o momento, e “saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder” (Machado, 2007, p. xx). A Psicologia não está fora dessa função ligada às estratégias de saber-poder. Dentre os diversos saberes elaborados para dar conta de compreender o homem em suas múltiplas dimensões, os saberes psi despontam como mais um dispositivo do poder, valendo-se de um discurso normativo, diagnóstico e prescritivo. Assim, essa área inscreve-se como mais um dispositivo que, por vezes, serve para moldar sujeitos. Nesse sentido, a Psicologia também exerce, indubitável e inevitavelmente, um poder sobre a população. Por outro lado, cabe considerar que existe uma complexa relação entre poder e resistência. A característica relacional e dinâmica do poder demanda que a resistência se exerça também em suas teias, por nunca se estar fora das relações de poder, assim como não se está completamente sujeitado a ela. Poder e resistência são dois componentes que caminham juntos, pois, “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação” (Foucault, 1979, p. 241). Portanto, o exercício da resistência é inerente ao exercício do poder, ou seja, diante de toda relação de poder é possível resistir, fazer diferente, criar novas relações. A luta com o poder apoia-se naquilo sobre o que ele investe, ou seja, na vida e no homem como ser vivo. Diante dos enunciados do poder, podemos delinear uma prática da Psicologia que, atenta para essas relações múltiplas e transitórias, acolhe suas batalhas e busca manter-se distante dos julgamentos morais e ameaçadores que excluem, amedrontam e estigmatizam. Isso implica estar ao lado do outro, encontrar-se com o outro, buscando desverticalizar relações e desmitificar o lugar de poder-saber, no qual os usuários (e, em algumas situações, os demais profissionais) costumeiramente colocam os psicólogos dos serviços da Assistência Social.

É assim que ganha importância a segunda ferramenta conceitual a ser aqui analisada: o devir. Essa ferramenta relaciona-se à constatação de que as pessoas existem em meio a relações de poder, as quais, por serem vivas e transitórias, envolvem um processo ininterrupto de transformação, em detrimento de visões que compreendem o sujeito com base em paradigmas estruturalistas, serialistas ou adaptacionistas que “ora graduam características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças” (Deleuze & Guattari, 1997, p.20). Pode-se compreender o devir como o movimento constante de produção das maneiras de viver e experimentar os encontros. Como movimento constante, o devir não se ocupa de perseguir um resultado final, ou seja, em saber o que vai resultar de tal ou qual processo, mas volta-se para a produção de si e do outro nos encontros, principalmente pelo fato de que não se chega a um resultado final. Pode-se falar, então, de um sujeito que se faz no entre, no interstício inominado do processo e que, justamente por não ter nome nem forma prévia e/ou perene, pode tornar-se algo/alguém na composição entre elementos díspares de que dispõe em um dado momento. Assim, o conceito de devir implica conceber o ser humano como multiplicidade e movimento. Valendo-nos dessa ferramenta, estamos distantes da concepção de um eu unificado, nuclear e ordenado. Rompe-se com a noção de essência e, portanto, de uma estrutura de personalidade. Compreende-se, outrossim, que “cada indivíduo é uma multiplicidade infinita” (Deleuze & Guattari, 1997, p.39).

Pensando no campo da Assistência Social, o conceito de devir evidencia as inúmeras transformações precipitadas nos sujeitos, grupos ou comunidades atendidos, buscando analisar os modos de vida ali produzidos, acompanhando os movimentos desejantes ou mortíferos que se fazem presentes nessa produção. Cabe ressaltar que o devir, em momento algum, se confunde com evolução, no sentido de promover mudanças e/ou transformações em direção a um objetivo previamente definido. Ele se efetiva, como já dito, no entre dos encontros, nas constantes experimentações, buscando dar expressão aos desejos, dúvidas, necessidades, enfim, às maneiras de viver. Não sendo redutível à noção de desenvolvimento ou de evolução, o conceito de devir envolve a ação política de desviar da mera imposição moral que pretende tornar os indivíduos melhores, mais dignos, ou mais adequados, inseridos de maneira formatada na dinâmica social estabelecida. A preocupação primordial consiste em viabilizar espaços de experimentação da vida enquanto movimento, atenuando as cristalizações, seja por meio de grupos nos quais as experiências de vida possam ser trocadas e apreciadas, seja por meio de um atendimento mais reservado, no qual seja possível traçar linhas de produção de novos modos de existência e encontro.

Um terceiro conceito a ser aqui considerado como uma ferramenta é o afeto. No trabalho da Psicologia, o profissional está em contato, a todo o momento, com variações, composições e decomposições que acarretam modificações no seu corpo, marcando-o afetivamente e produzindo, por sua vez, outros afetos. Isso porque, a partir do momento em que se experimenta uma marca afetiva, algo se reconfigura. O cotidiano do trabalho coloca em curso uma espécie de aprendizagem afetiva que aciona não apenas a razão, mas também o corpo sensível. Estamos falando de um corpo vivo que “pode ser afetado por muitas maneiras que acrescem ou diminuem seu poder de agir e também por muitas outras que não tornam seu poder de agir nem maior, nem menor” (Spinoza, 1960, p.139). O afeto, portanto, diz respeito a tudo aquilo que implica variação da potência do corpo, sendo possível conceber e compreender a vida como uma “linha melódica de variação contínua” (Deleuze, 1978, s/p). É como uma música povoada pela mudança incessante das notas, com sua cadência de sons. Da mesma maneira, tomar os indivíduos como variação permite compreendê-los na singularidade afetiva que os povoa. Os encontros, suficientemente fortes, podem aumentar ou diminuir a potência do corpo, compondo ou decompondo suas partes e formando, nesse processo, outros contornos afetivos. Assim, “cada corpo se constitui na imanência dos encontros, variando de acordo com as relações em jogo em cada situação” (Azevedo, 2011, p.2). A cada vez que um encontro ocorre, este pode, em alguma medida, gerar oscilações nos modos de existência. Ademais, cabe considerar que as intervenções desse profissional podem levar a novas composições, precipitadas nos atendimentos com o psicólogo, em grupos de discussões, na participação em uma associação de bairro, entre tantas outras possibilidades de encontros, porque “a questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão” (Deleuze & Guattari, 1997, p.41).

É assim que chegamos ao último conceito-ferramenta a ser analisado neste trabalho: a experiência. Esta consiste em não ter, de antemão, as respostas corretas para as questões trazidas pelos usuários, visto que as respostas vão sendo inventadas nos encontros, nas experiências. Assim, não se trata de “uma perspectiva pautada na díade sujeito-objeto, mas diferente disso, trata-se de uma atenção ao jogo das relações que constitui a ambos na experiência” (Azevedo, 2011, p.1). A ênfase do trabalho na assistência está, assim, no processo, nos detalhes, nas minúcias que cada situação apresenta. Ainda que cheguem a esse tipo de atendimento por situações muito parecidas, quando se olha de perto, percebe-se que há uma infinidade de questões diferentes que estão relacionadas, imbricadas e que de forma alguma podem ser generalizadas, principalmente no tocante às intervenções, que demandam escuta atenta e sensibilidade para acolher as multiplicidades em cena. Nesse sentido, não há como prever quais encontros e experimentações serão possíveis num atendimento. E, menos ainda, quais resultados serão alcançados. Parece fazer mais sentido, nesse caminho, acolher o acaso, o inesperado, como fonte de análise, invenção e criação, dando sustentação aos momentos de tensão e ansiedade que dele advêm.

Trata-se de fazer desse não saber de antemão a potência de uma atuação preocupada eminentemente com os usuários e as singularidades que os acompanham. Falamos de um acolhimento da diferença, em vez do enquadramento em classificações nosológicas e diagnósticas, pois trata-se de uma proposta de rompimento com formas de atenção hierarquizadas e normatizantes. Diante das ferramentas conceituais aqui percorridas, acreditamos ser possível compreender que, para além de um protocolo de intervenção a ser seguido, existem práticas que são comumente criadas e assumidas pelos profissionais em seu cotidiano de intervenção nos serviços de Assistência Social, o que necessariamente coopera para dar contornos políticos a esse tipo de intervenção.

Considerações Finais

Sabemos das dificuldades de conectar teoria e prática em um cotidiano de trabalho marcado por relações sociais que acontecem no limite da necessidade e da existência. Assim, um primeiro ponto a ser considerado são os impasses que encontramos nesse campo de atuação profissional: desde a função de garantir o acesso aos direitos sociais até a função policialesca e ortopédica que ainda está presente na Assistência Social. As discussões atuais realizadas pela área de Psicologia têm-se direcionado à relevância que essa área vem ganhando nas políticas sociais de nosso país.

Partindo-se da crítica da função adaptativa realizada pela profissão e enfatizando-se a necessidade de pensar além das áreas hegemônicas já consolidadas, prioriza-se a construção de novas formas de se fazer psicologia, validando espaços de inserção que anteriormente não eram vistos como possíveis. No entanto, percebe-se que uma postura adaptativa (por vezes onipotente e normatizante) ainda permeia as ações da Psicologia também no campo das políticas públicas e manifesta-se em algumas intervenções que buscam salvar as pessoas, adequá-las socialmente, ensinando-as a cuidar de si e dos filhos. Notamos os traçados de uma espécie de tutela do outro, que tende a reduzir sua autonomia, prescrevendo os bons caminhos.

O que podemos dizer ao final deste estudo é que, a cada intervenção, novas perspectivas se desenham, colocando em xeque práticas consolidadas que, em alguma medida, estão descontextualizadas. O fazer como potência implica a invenção de caminhos que ainda não foram validados ou comprovados, mas que, por isso mesmo, aciona o profissional para um processo de aprendizagem e criação nesse campo de intervenção.

 

Bibliografia

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Recebido: 01 de setembro de 2014.
Aprovado: 12 de dezembro de 2014.