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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.2 Assis dez. 2014

 

Artigo

 

Vivências emocionais de pacientes oncológicos submetidos à quimioterapia

 

Emotional experiences of cancer patients undergoing chemotherapy

 

 

Catarina Possenti SetteI, Silvia Mayumi Obana GradvohlII

I, IIUniversidade São Francisco

 

 


RESUMO

O impacto do diagnóstico do câncer e o tratamento desencadeiam emoções nos pacientes e familiares, necessidade de reestruturação da vida a partir das mudanças impostas e para que ambos possam se ajustar da melhor maneira possível o psicólogo tem importante papel neste momento. O presente estudo tem por objetivo apresentar uma visão sobre Psicologia no contexto da Oncologia, bem como relatar o trabalho realizado a partir de um campo de estágio da Psicologia Hospitalar, desenvolvido em uma clínica particular de um município do interior de São Paulo. Serão apresentadas as atividades realizadas, que foram intervenções junto aos pacientes e familiares, com caráter de acolhimento psicológico. A vivência demonstrou a importância do trabalho com os pacientes oncológicos, principalmente visando a qualidade de vida.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; psico-oncologia; câncer; atuação do psicólogo.


ABSTRACT

The impact of cancer diagnosis and treatment brings emotions in patients and families, it make necessary to pacients and relatives rebuild their lives from the changes imposed by the diagnosis. The psychologist executes an important role at this time to help pacient and families be able to fit in the best possible way after that. The present study aims to present an overview of psychology in the context of oncology, as well, as report on the work carried out from a field of Hospital Psychology Internship, developed in a private clinic of a tonw of São Paulo's state. Tha paper will descibre the activities, which were interventions with patients and families with psychological character during the user acceptance. The experience demonstrated the importance of working with cancer patients, mainly to improve the quality of life.

Keywords: hospital psychology; psycho-oncology; cancer; psychologist performance.


 

 

Introdução

O diagnóstico de câncer traz alterações na vida do paciente e de sua família, implicando uma reestruturação das expectativas e da vida diária para todas as partes envolvidas. As mudanças podem ocorrer nas mais diversas dimensões, tais como alterações físicas e nos relacionamentos interpessoais, bem como na percepção que o indivíduo tem de si mesmo. O paciente começa a vivenciar o medo da mutilação corporal, da dor, do futuro e da morte. Além disso, seu equilíbrio psicológico passa a ser ameaçado por todas as vivências e mudanças na vida cotidiana, necessárias durante a doença e o tratamento (Gaviria, Vinaccia, Riveros & Quiceno, 2007; Ridder & Schreurs, 2001; Todd, Roberts & Black, 2002 citados por Souza & Araújo, 2010).

A maior parte dos pacientes se ajustará de forma gradual a essa situação de crise, porém outros apresentarão dificuldades para se adaptar. O ajuste psicossocial ou adaptação ao câncer é um processo no qual cada paciente busca manejar seus sofrimentos, solucionar os problemas e conquistar certo controle acerca dos acontecimentos gerados pela doença. Quando os pacientes conseguem reduzir ao mínimo os transtornos de funcionamento em suas vidas, regulam o sofrimento emocional por meio de pensamentos e comportamentos e continuam a ter uma vida social, pode-se dizer que a adaptação foi eficiente (National Cancer Institute, 2008; Souza & Araújo, 2010).

A má noticia abarcada pelo diagnóstico engloba grandes mudanças na vida do paciente e faz emergir questionamentos direcionados à vida, à doença e à morte. Esses pensamentos tornam-se mais evidentes durante o tratamento, seja na cirurgia, na quimioterapia ou na radioterapia. A vivência de atendimento psicológico a pacientes oncológicos durante a terapêutica quimioterápica sugere que a adesão ao tratamento causa uma movimentação na dinâmica de vida do paciente, bem como na de seus familiares. Essas mudanças geram modificações nos aspectos psicológicos, podendo acarretar sofrimento adicional àqueles que já se encontram fragilizados e vulneráveis perante o diagnóstico (David, Windlin & Gaspar, 2013).

Nesse sentido, é possível observar que a quimioterapia pode acarretar uma crise na vida do paciente, causando impactos de ordem psíquica. É neste contexto que o trabalho da escuta psicológica se insere e torna-se muito importante e fundamental. As funções do psicólogo devem ser: favorecer a adaptação aos limites, às mudanças impostas pela doença e à adesão ao tratamento; ajudar na tomada de decisões, bem como no manejo da dor e do estresse; preparar o paciente para procedimentos invasivos e dolorosos, e no enfrentamento das possíveis consequências de tais terapêuticas; promover melhoria da qualidade de vida; auxiliar a aquisição de novas habilidades ou retomadas das já existentes; bem como oferecer revisão de valores para o retorno à vida familiar, social e profissional, ou para o final da vida (David, Windlin & Gaspar, 2013; Scannavino, Sorato, Lima, Franco, Martins, Júnior, Bueno, Rezende & Valério, 2013).

Os salões de quimioterapia servem como setting para o trabalho do psicólogo, porém o profissional não deve esquecer que esse lugar tem sua dinâmica própria, diferente da do consultório. Nesse local, o paciente está rodeado de profissionais de saúde e, muitas vezes, de outros pacientes, além de, geralmente, conectado a um medicamento. Estar entre os indivíduos ali presentes faz marca no discurso do paciente, visto que esses demais indivíduos, semelhantes em situação de doença, de tratamento, são, porém, diferentes, e podem estar em condições clínicas piores ou melhores que o próprio paciente. Além disso, a experiência do outro também irá influenciar na própria vivência do paciente e no seu estado psicológico, podendo servir como esperança, consolo, ou, ao contrário, com mais sofrimento, desespero e frustação. A presença do outro e também a do medicamento é um lembrete de que o próprio corpo não está no seu estado mais saudável, ou seja, no salão de quimioterapia o paciente concretiza seu adoecimento e, por vezes, só naquele momento consegue entrar em contato com esta realidade, pois ali a doença se apresenta como fato real. (David, Windlin & Gaspar, 2013).

O momento da infusão pode ser um momento muito angustiante, mas também pode ser visto e experienciado com tranquilidade, como período de reclusão e de descanso. Angustiante porque, para muitos pacientes, pode significar uma prisão, ou impedimento de realizar as tarefas. Por essa razão, é um período considerado uma paralisação do curso “normal” da vida. Também é recorrente o discurso de tédio, pela falta do que fazer. Até mesmo o silêncio assume o papel de estar em uma longa, inerte e repetitiva espera (David, Windlin & Gaspar, 2013). Dentro desse contexto, o papel do psicólogo é muito importante para que esses pacientes tenham melhor adaptação à doença e, consequentemente, qualidade de vida.

Objetivo

O objetivo do presente trabalho é relatar a experiência de um estágio da Psicologia Hospitalar desenvolvido em uma clínica particular de Oncologia, buscando apresentar as intervenções realizadas, bem como identificar os aspectos emocionais vivenciados pelos pacientes em tratamento quimioterápico.

Metodologia

Público

Foram atendidos 10 pacientes e seus familiares.

Local

Clínica de Oncologia em um município do interior de São Paulo.

Procedimentos

Foram realizados 32 acolhimentos psicológicos durante a infusão da quimioterapia.

Período de intervenção

O estágio foi realizado durante os meses de setembro a novembro, com duração total de 24 Horas.

Resultados e Discussão

Assim como o câncer, seu tratamento também é carregado de estigma, pois não é só a doença que está no imaginário dos pacientes como sinônimo de morte. Também se passa a acreditar que a quimioterapia causa algum mal, como exemplo, os pacientes trouxeram a queda de cabelo como uma preocupação maior que a própria doença, as dores nas costas ao ficar muito tempo sentado na sessão e outros efeitos colaterais, como ânsia, diarreia e cansaço. De fato, o tempo que os pacientes ficam ali é o momento para refletir sobre o processo, pois eles não têm mais nada para fazer, e a doença está presente. Alguns pacientes talvez não estejam preparados psicologicamente para enfrentar tudo isso, principalmente no caso de pacientes considerados “fortes”, como, por exemplo: pai de família, mulher que criou os filhos sozinha. Na maioria das vezes, os pacientes concretizam o seu adoecimento no ato e momento da infusão e não, necessariamente, ao receber o diagnóstico. É importante que o paciente fale sobre a experiência que vivencia cada vez que vai a clínica ou às consultas, pois, ao falar sobre esses momentos, possibilita o trabalho das questões psicológicas emergentes. Nesses casos, o psicólogo pode atuar como um catalisador do processo de construção e elaboração de toda essa vivência (David, Windlin & Gaspar, 2013). Em alguns momentos, o paciente vai rejeitar o atendimento psicológico. Faz-se necessário compreender e aceitar essa atitude como forma de respeito ao sofrimento do paciente, mas também é preciso estar ali à disposição para quando o paciente quiser conversar.

Ainda nesse contexto, vários pacientes relataram ter imaginado que, após a cirurgia, não iriam precisar realizar outro tratamento, durante tanto tempo, já que a cirurgia retirou todo o tumor, ou seja, esses pacientes trazem uma visão de que a cirurgia é a cura total do câncer, sem saber que a quimioterapia é um tratamento coadjuvante importante para a cura efetiva, e que ainda passarão alguns anos em acompanhamento. Esse fato pode expressar a vontade enorme de se ver livre dessa doença que carrega tanto estigma, pois, após a cirurgia, o paciente não é mais considerado doente, na perspectiva dele. Observou-se que a necessidade de realizarem quimioterapia por longos meses faz que eles ainda entrem em contato com todas as emoções que vivenciaram desde o diagnóstico e se sintam doentes, precisando de cuidados, mas, ao mesmo tempo, é muito difícil de aceitar a rotina do tratamento, sabendo que não têm mais o tumor.

Foi possível observar que, em grande parte dos atendimentos, a religião esteve muito presente nos relatos e utilizada, principalmente, como maneira de apoio para enfrentar a doença. De acordo com Inocenti, Rodrigues e Miasso (2009), a religião traz ao paciente uma sensação de acolhimento e serve como força de inspiração para enfrentar os obstáculos. Alguns pacientes se remetiam a Deus, como forma de se apegar a algo que irá confortá-lo, que o faça aceitar a realidade, pois, para muitas religiões, se Deus quis assim, não há como mudar. É um apoio psicológico necessário para alguns pacientes suportarem todo o processo de câncer, que envolve muitas perdas. A família também atua como apoio para o paciente, dando-lhe conforto e atenção, ajudando em casa e com todos os procedimentos necessários. Essa família também lhe oferece de volta todas as coisas boas que o paciente fez por eles durante toda a vida, como uma relação de troca, na qual o mais forte ajuda o mais fraco.

De acordo com Santos e Sebastiani (2011), para a maioria das pessoas, a família representa um importante aparato para a estruturação de seus vínculos afetivos e nos referenciais de segurança de apoio. Perante o diagnóstico de câncer, uma patologia crônica, o paciente vivencia diferentes situações emocionais que o remetem a condições primitivas e à necessidade de sentimentos de amparo e de proteção. Assim, o paciente começa a solicitar de diversas formas essas figuras que já ocuparam este papel, ou seja, que já lhe forneceram proteção e apoio.

Dentro do contexto da família, também é necessário compreender que, além do apoio, os familiares irão necessitar se reestruturar para conseguir enfrentar tal situação. Com o tratamento do câncer, uma nova rotina será imposta tanto para o paciente como para os membros da família. Os familiares muitas vezes o acompanham nas consultas ou nas sessões de quimioterapia, também pelo fato de os efeitos colaterais fazerem os pacientes sentirem-se indispostos ou cansados e, com isso, não terem forças para as tarefas domésticas. Nesses casos, a família precisa se organizar para poder suprir a necessidade da casa. Nesse novo contexto, os familiares também necessitam se cuidar, para que seja possível todo esse processo, pois, em alguns momentos, eles irão se deparar com sua própria finitude, o que pode resultar em alguma dificuldade na comunicação com o familiar doente. Em alguns atendimentos realizados com familiares dos pacientes, observou-se que muitos deixaram de viver a sua vida para poder acompanhar o parente, levar às consultas e sessões de quimioterapia, bem como em casa, onde a maior parte dos trabalhos é responsabilidade da família, principalmente em pacientes mais idosos.

Outro fator importante e muito presente nos relatos diz respeito ao fato de alguns pacientes não conseguirem dizer a palavra Câncer, e sempre se referir à “doença”. Isso é comum, visto que, quando dão nome à doença, os pacientes sentem que a validam e, em decorrência, tornam real várias coisas e condições que terão de enfrentar, pois mesmo com o avanço da medicina nessa área, muitas pessoas ainda a associam o câncer a muito sofrimento, perdas e morte. Nesse sentido, ao não falar o nome da doença, talvez os pacientes acreditem que não precisam lidar com esse fato, não entram tanto em contato com a sua condição de doente.

Por fim, outro ponto evidenciado nos atendimentos refere-se à importância de um profissional da psicologia junto com os pacientes durante esse tempo. De acordo com relatos dos sujeitos atendidos, com a ajuda do psicólogo o tempo passa muito mais rápido e eles até esquecem que estão recebendo quimioterapia. O psicólogo está ali para dar um suporte emocional ao paciente e fazer que ele consiga enfrentar melhor todas as mudanças implicadas na doença. O fato de, em alguns momentos, eles relatarem sobre o passado, rotina ou acontecimentos do país foi compreendido como uma necessidade de mostrar que não são caracterizados só pela doença, mas que são serem humanos completos. Trata-se também de um mecanismo de defesa para não entrar em contato com os aspectos emocionais. Nesses atendimentos, também ficou explícito que eles veem na estagiária alguém para conversar coisas além da rotina da doença. Isso foi possível porque o psicólogo não fica questionando-os sobre os fatos concretos das mudanças, ou seja, sobre a doença e seus desdobramentos, como os outros profissionais ali presentes, pois foi respeitado o limite e ouvido aquilo que o paciente estava disposto a conversar. Alguns pacientes ficam, às vezes, sem entender a finalidade dos acolhimentos psicológicos, pois, no início, muitos relatavam os efeitos colaterais que tiveram durante a semana e quais remédios tomaram para melhorar. Porém, com o decorrer do estágio, já conseguiam se comunicar melhor e aproveitar esse espaço.

Considerações finais

A psicologia, no contexto da saúde, vem crescendo e conseguindo mostrar a importância com o cuidado ao paciente adoecido e seus familiares. A escuta psicológica demonstrou que pacientes oncológicos foram forçados a mudar principalmente a rotina, em decorrência do diagnóstico e de algumas emoções que emergem nesse contexto da doença, como, por exemplo, angústia, medo, raiva, insegurança, ansiedade, limitação das atividades e alteração da imagem corporal. Dessa forma, nota-se que é importante o acompanhamento psicológico, principalmente nesses momentos de crise, ou seja, de interrupção do curso normal da vida. A atenção psicológica é fundamental no caso do paciente oncológico, mais especificamente, em tratamento quimioterápico, para que seja possível compreender a forma que esse tratamento impacta o paciente e o que ele pensa acerca dessa situação. Além disso, o psicólogo oferece um espaço para que o paciente possa falar sobre sua experiência e, com isso, tornar possível que ele se reestruture e enfrente o adoecimento da melhor maneira possível, ou seja, o psicólogo irá contribuir para que o paciente tenha uma boa adaptação à sua nova condição de vida.

 

Bibliografia

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David, A., Windlin, I. & Gaspar, K. C. O paciente oncológico e a terapêutica quimioterápica: uma construção da psicologia. In Angerami-Camon, V. A. & Gaspar, K. C. (2013). Psicologia e Câncer. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Inocenti A, Rodrigues I. G., Miasso A. I. (2009) Vivências e sentimentos do cuidador familiar do paciente oncológico em cuidados paliativos. Rev. Eletrônica Enfermagem;11(4), 858-65. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista.         [ Links ]

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Santos, C. T. dos & Sebastian, R. W. (2011). Acompanhamento psicológico à pessoa portadora de doenças crônicas. In Angerami, V. A. (Org.). E a psicologia entrou no hospital (3ª ed., pp. 147-176). São Paulo: Pioneira.         [ Links ]

Scannavino, C. S. S., Sorato, D. B., Lima, M. P., Franco, A. H. J., Martins, M. P. Bueno, P. R. T. et al.(2013). Psico-oncologia: Atuação do psicólogo no hospital de câncer de Barretos. Psicologia USP, 24(1), 35-53, 2013.         [ Links ]

 

 

Recebido: 01 de setembro de 2014.
Aprovado: 12 de dezembro de 2014.