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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.2 Assis Dec. 2014

 

Artigo

 

Compreensão de uma fábula por meninos e meninas de 6 anos: um estudo exploratório

 

Understanding a tale for boys and girls 6 years old: an exploratory study

 

 

Silvia Lorenzoni PerimI

I, II Universidade Federal do Espírito Santo

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva fazer um levantamento dos estudos já realizados sobre o conto de fadas como instrumento de pesquisa e apresentar os dados de um projeto de pesquisa, utilizando uma fábula como ferramenta. A continuidade dos trabalhos com crianças, empregando a fábula como instrumento de investigação, com base na perspectiva piagetiana, busca possibilidades de acesso aos processos cognitivos, afetivos e morais e favorece a compreensão do desenvolvimento psicológico dos participantes. O estudo exploratório foi realizado com crianças de seis anos de idade, e a análise da reconstituição da fábula pelos participantes revelou diferenças entre meninos e meninas. Assim, tal método de pesquisa constitui-se, de fato, como forma privilegiada de acessar e compreender as representações infantis, podendo oferecer contribuições relevantes para os estudos de desenvolvimento humano.

Palavras-chave: infância; representação; fábula; Piaget.


ABSTRACT

This paper aims to survey the studies already done using the fairy tale as a research tool, and present data from a research project using a fable as research tool. The continuity of research with children using the fable as a research tool, based on Piagetian perspective seeks access opportunities to cognitive, affective and moral processes and promotes understanding of the psychological development of the participants. The exploratory study was conducted with six years old children and the analysis of fable reconstitution of the participants revealed differences between boys and girls. In fact, this research method is a privileged way to access and understand children's representations and may offer important contributions to the study of human development.

Keywords: childhood; representation; fable; Piaget.


 

 

Introdução

Muitos são os estudiosos que se interessaram por pesquisar aspectos do desenvolvimento humano com foco na infância. De fato, desde o final do século XVIII e início do século XIX, pensadores como o filósofo alemão Dietrich Tiedmann – um dos pioneiros das observações sistemáticas com crianças a publicar resultados de tais observações – vêm contribuindo para que as pesquisas com crianças ganhem importância e produzindo conhecimento científico (Delval, 2002).

Nos primórdios dos estudos com crianças, de acordo com Delval (2002), a ferramenta principal era a observação pura e, no início do trabalho de Piaget, essa ainda era uma metodologia bastante empregada. Entretanto, os resultados das pesquisas podem ser mais interessantes e consistentes aliando a observação a hipóteses prévias, que irão auxiliar o pesquisador a se fixar no fenômeno para o qual o estudo está voltado. O método da observação, sem inferências ou intervenções do pesquisador, apresenta limitações, pois há risco de o fenômeno de interesse não se apresentar durante a observação e menor possibilidade de acessar o pensamento e as representações infantis.

Quando se trata de pesquisas experimentais com crianças, o referencial teórico piagetiano mostra-se válido, pois, como afirmam Montangero e Maurice-Naville (1998), sua produção é considerada a mais completa teoria do desenvolvimento intelectual, não só na ênfase aos aspectos cognitivos e mas também na consideração aos aspectos afetivos e morais. Outro fator de relevância diz respeito ao fato de que a teoria piagetiana engloba, ainda, todos os períodos do desenvolvimento humano, do berço à idade adulta.

Delval (2002) ressalta que, além do método de observação, que até o século XVIII foi o mais utilizado em pesquisas com crianças, as provas padronizadas para o diagnóstico ou testes também se popularizaram em muitos países. Entretanto, o interesse de Piaget pelo processo – e não pelo resultado – foi o marco para a introdução do método clínico1 como ferramenta de pesquisa nessa área.

Desse modo, validar novos instrumentos e ferramentas de estudo para realizar pesquisas com crianças é de grande relevância para a ciência do desenvolvimento humano, pois contribui para a compreensão dos processos psicológicos que ocorrem na infância.

Souza (1990), em sua tese de doutorado, apresenta o conto de fadas como uma ferramenta de pesquisa com crianças e trabalha com a teoria psicogenética de desenvolvimento humano de Piaget, dando foco principalmente aos aspectos cognitivos e afetivos em seus estudos. Assim, segundo a mesma autora,

considerando a perspectiva psicogenética piagetiana, os contos de fadas podem constituir-se em objetos de conhecimento oferecidos às crianças para pensar, desencadeando nelas diferentes assimilações e acomodações, assim como regulações (no sentido de mecanismos de organização) tanto afetivas quanto cognitivas. Isto porque, ao ouvirem uma história de fadas, as crianças mobilizam aspectos de sua inteligência no sentido de compreender os seus elementos, bem como utilizam os sentimentos desencadeados pelo enredo para efetuar a reconstrução da história. (Souza, 2001, p. 3)

Dessa maneira, Souza (1990) emprega o método clínico piagetiano, o conto de fadas, os testes psicológicos projetivos e as provas operatórias, tendo condições de discutir as interações e correspondências entre aspectos cognitivos e afetivos de uma amostra de crianças com idades entre 9 e 11 anos.

A ferramenta de pesquisa contos de fadas mostra-se passível de ser utilizada para investigar as representações infantis e, conforme Wadsworth (1992), tal capacidade de representar começa a ser desenvolvida nas crianças durante o estágio pré-operacional, pois nesse período elas tendem a desenvolver um funcionamento mais conceitual e representacional, estando aptas a representar eventos internamente por meio do pensamento. Além disso, essa fase do desenvolvimento apresenta como característica marcante o surgimento e desenvolvimento da linguagem oral, a capacidade de representação simbólica, ou seja, de evocar uma situação ausente por meio de um significante, bem como a habilidade de socializar seus pensamentos.

Piaget (1978) investigou em detalhes o processo pelo qual as crianças buscam compreender o mundo ao redor e representá-lo por meio de significantes. A superação da fase em que a inteligência está ligada às ações, à prática e à percepção (sensório-motor) e o alcance de um nível que envolve operações espaço-temporais demandam a utilização de um pensamento pré-conceitual e intuitivo. O emprego da assimilação e da acomodação nos processos cognitivos permite a adaptação da criança ao meio; e a instituição coletiva da linguagem é fator principal para a formação e socialização das representações. Assim, reconhecendo, por meio dos conceitos piagetianos, os processos e fases características do desenvolvimento das crianças, pode-se explorar o campo de pesquisas com tais características, acessando o percurso de seus pensamentos por meio da ferramenta contos de fadas.

Bettelheim (1980) interessa-se em estudar os contos de fadas e compreende que o simbolismo presente nesses textos contribui para o desenvolvimento psicológico da criança, no sentido de desencadear sentimentos e trabalhar desafios que surgem ao longo do seu desenvolvimento. Para o autor, o conto trabalha com a imaginação infantil e contribui para a intermediação entre mundo externo e realidade da criança, que passa a se entender melhor e a ter cada vez mais condições de compreender o outro. Além disso, o conto tende a possibilitar que a criança desenvolva recursos interiores e organize suas emoções para melhor lidar com os problemas do mundo. O autor afirma também que o sentido que o conto tem para a criança pode ser diferenciado a cada vez que ela faz contato com ele em sua vida.

A ideia de empregar o conto de fadas como uma ferramenta de estudo do desenvolvimento infantil mostra-se interessante e válida. Assim, compreender os processos psicológicos que ocorrem na infância, por meio de uma ferramenta lúdica e também atrativa para as crianças participantes, motivou a realização da presente pesquisa, utilizando uma fábula. Tal investigação objetiva não apenas dar continuidade a um trabalho, mas também desenvolver novas pesquisas na área, que contribuam para a utilização do instrumento citado no campo científico, com crianças de ambos os sexos.

O conto de fadas e a pesquisa com crianças

Nos últimos anos, verifica-se (Souza, 1990, 2001, 2008, 2012) um percurso de pesquisas com crianças nas quais se empregam os contos de fadas como principal instrumento.

O objetivo global dos trabalhos realizados pela autora é estudar as relações entre afetividade e inteligência no desenvolvimento psicológico da criança, incluindo os contos de fadas e utilizando a perspectiva da epistemologia genética de Jean Piaget. De 1990 a 2012, podem ser destacados importantes trabalhos de investigação, publicados por Souza, que empregam o conto de fadas como instrumento de pesquisa.

Em 1990, ano de sua primeira investigação, o foco estava voltado para o modo como a criança reconstrói o texto e lida com os efeitos (ressonância) de seu mundo interno sobre o conto e vice-versa. Na análise dos dados, a partir da reconstituição da história feita pelas crianças, foi proposta uma distinção de três níveis ou modos de reconstituição: I – Fantasiosa, II – Concreta, e III – Interpretativa, estabelecendo uma correspondência com os níveis operatórios de Piaget, respectivamente, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal.

Em 1995, a autora deu continuidade a uma nova pesquisa e complementou a anterior, ampliando os estudos dos modos de reconstituição dos contos de fadas para mais faixas etárias e confirmando que os modos de reconstituição do primeiro estudo permaneceram os mesmos. Porém, foi possível encontrar mais níveis de reconstituição intermediários entre eles, favorecendo resultados mais detalhados sobre o tema.

Em 2001, Souza realizou duas pesquisas; na primeira delas, trabalhou com a comparação da representação gráfica e oral de contos de fadas, buscando correspondências entre tais representações. Para tanto, colocou como hipótese que a representação gráfica seria mais precoce que a oral no desenvolvimento da criança, porém isso não se confirmou nos resultados. Houve dificuldade por parte das crianças menores em representar graficamente o conto, enquanto a reconstituição oral funcionou melhor, pois as perguntas da pesquisadora, durante a recontagem, ofereciam diretrizes às crianças. Mais uma vez a pesquisa confirma que investigações com representações de contos de fadas fornecem dados sobre o desenvolvimento do pensamento e julgamento das crianças.

Uma segunda investigação foi realizada também em 2001, trabalhando com o ajuste do protocolo de entrevista e a elaboração de categorias de análise, a partir das quais surgiram indicadores de afetividade nas crianças diretamente ligados aos seus interesses pelos personagens ou aspectos da história. Havia quatro categorias de análise das respostas das crianças: escolha ligada ao gênero, escolha ligada ao conteúdo, aspectos interessantes escolhidos e qualidades admiráveis escolhidas. Os resultados constataram diferenças entre as crianças brasileiras e francesas, participantes das pesquisas.

Em um de seus artigos publicados no ano de 2001, Souza associou os principais resultados de duas pesquisas, nas quais trabalhou com a aplicação de provas operatórias e com a reconstituição de contos de fadas. A análise de dados levou em conta uma comparação entre o nível operatório/características cognitivas e a estrutura da reconstituição do conto, que confirmou a classificação anterior: reconstituição deformada, apegada ao texto original ou interpretativa. Esse trabalho possibilitou o aprimoramento do instrumento de pesquisa/conto de fadas detalhando e aprofundando os tipos de reconstituição, de modo a estabelecer uma nova classificação que verifica níveis intermediários, além dos que já haviam sido categorizados nas pesquisas anteriores. Na análise de dados, as principais comparações realizadas foram entre: idade da criança e nível cognitivo, idade e tipo de reconstituição da história de fadas, e nível cognitivo e tipo de reconstituição, cujos resultados apresentam articulação com a expectativa teórica piagetiana, embora não tenha havido diferenças significativas em termos estatísticos, sugerindo uma demanda de novas pesquisas na área e validando a utilização de contos de fadas como instrumento de pesquisa.

Em 2008, Souza publica dois trabalhos importantes: em um deles, investiga o julgamento das crianças sobre as ações e os sentimentos dos personagens em interpretações de histórias; no outro, faz um estudo que relaciona aspectos cognitivos e afetivos em representações de contos de fadas, ambos com uma abordagem piagetiana.

Dando continuidade às suas publicações utilizando contos de fadas e a compreensão piagetiana, Souza, em 2012, escreve sobre o tema simbolismos infantis e a mágica dos contos de fadas.

A partir dos dados obtidos com os trabalhos realizados por Souza, verificou-se como válida a utilização do conto de fadas como instrumento nas pesquisas com crianças, contribuindo, assim, com novas maneiras de acessar e estudar o universo do desenvolvimento infantil.

Os resultados encontrados nas pesquisas apresentadas anteriormente e as lacunas que surgem a partir de seus resultados, estimulam a continuação de investigações na área. Assim, o objetivo geral da pesquisa é verificar se existem diferenças entre meninos e meninas na reconstituição da fábula, com base em conceitos piagetianos, e tendo em vista os resultados das pesquisas com contos de fadas já realizadas anteriormente.

Metodologia

A presente pesquisa consistiu em um trabalho de investigação com cinco crianças de seis anos de idade, matriculadas no primeiro ano de uma escola particular da Grande Vitória, sendo três do sexo masculino e duas do sexo feminino. Visando a uma padronização na forma de apresentação do instrumento, foi utilizada uma versão multimídia da fábula “A lebre e a tartaruga”, de La Fontaine (1668/2011).

A escolha da idade das crianças participantes da pesquisa tem embasamento nos conceitos de estágio de desenvolvimento cognitivo de Piaget (2010), segundo os quais, na idade de seis anos, as crianças estariam em uma fase de transição entre o denominado nível pré-operatório e operatório-concreto.

Após o término da apresentação da versão multimídia da fábula, foi realizada uma entrevista semiestruturada com cada participante (Quadro 1), com perguntas sobre a fábula, embasadas no método clínico piagetiano. As entrevistas foram gravadas em áudio digital e transcritas na íntegra, sendo posteriormente analisadas pela pesquisadora. Por meio de tal ferramenta, foram levantados dados sobre a compreensão das crianças em relação à fábula, principalmente no que diz respeito ao modo de reconstituição e à identificação com personagens da fábula.

Quadro 1 - Roteiro de entrevista semiestruturada

 

Resultados e discussão

A análise da reconstituição da fábula feita pelas crianças pesquisadas revelou diferenças entre meninos e meninas. As meninas recontaram a história de maneira mais detalhada, incluindo maior quantidade de itens da fábula (personagens e acontecimentos do enredo) e os meninos foram mais objetivos e diretos em seu modo de reconstituir, citando menor quantidade de itens, e ainda assim foram capazes de utilizar elementos suficientes para transmitir seus pensamentos e reconstituir o enredo. De fato, Jacklin (citado por Bee, 1997, p. 231) afirma que “em média, os meninos são melhores no raciocínio numérico e em tarefas de visualização espacial, . . . as meninas saem-se um pouco melhor nas tarefas verbais . . .”

A partir das perguntas da entrevista clínica sobre as ações dos personagens, pode-se destacar que os meninos coincidem nas respostas quando questionados sobre o comportamento de um personagem – “tartaruga é lenta, lerda” -, enquanto as meninas demonstram um pensamento mais mágico, não colocando ideias similares às dos meninos. Uma das meninas justifica a pergunta 2 com a seguinte fala: - “Porque não gosta dela, talvez aconteceu uma briga entre elas.”, indicando algo que não aparece explicitamente na fábula.

Na reconstituição, aparece uma espécie de deformação do enredo da fábula, demonstrando a utilização da intuição na recontagem por parte de uma participante do sexo feminino: - “A tartaruga vê a coelha dormindo e decide continuar a caminhada”. A criança, para Piaget e Inhelder (1986), ao buscar compreender o mundo e adaptar-se a ele, e dar conta de seu equilíbrio afetivo e intelectual, tende a assimilar a realidade de uma maneira mais ou menos pura às necessidades do eu, caracterizando uma espécie de jogo simbólico, que exerce função fundamental em sua vida. Para Souza (2001), a criança ao escutar o conto de fadas mobiliza aspectos de sua inteligência com o intuito de compreender os elementos da história, e os sentimentos que surgem são também utilizados na reconstituição da narrativa. Nas pesquisas de Souza (2001), há uma categorização do modo de reconstituição do conto de fadas para cada faixa etária e seu correspondente nível operatório, estabelecendo que as crianças do período pré-operatório tendem a apresentar o modo fantasioso de reconstituição.

Na amostra estudada, fica evidente que uma das participantes apresenta esse modo de reconstituir a fábula, agregando por conta própria informações que não constam no enredo da fábula a que teve acesso. Como característica na reconstituição do tipo fantasioso “. . . a criança justapõe ideias na tentativa de compreender a história; ou une ideias e sentimentos sem que se possa saber quais os elementos que uniu e por quais relações isso ocorreu. . .” (Souza, 2001, p. 4).

Nas reconstituições realizadas pelas crianças, tanto no relato dos meninos quanto no das meninas, há a presença constante dos conectores: “daí”, “aí” e “e”, para unir as partes da fábula e assim recontá-la, demonstrando uma incapacidade de síntese e uma colocação dos fatos recontados em uma espécie de blocos, unindo as frases por conectores, que se juntam e formam a história, exemplificado na seguinte fala:

“Daí a tartaruga falou que queria apostar uma corrida. Daí a coelha chamou todo mundo da floresta, daí, a corrida era de manhã, daí ela tava correndo, a coelha tava disparando na frente, daí ela dormiu no caminho e tava muito noite, e daí ela falou que ia disparar na frente da coelha, só que ela ainda tava começando a dormir, daí a tartaruga viu...” (participante 2, sexo feminino)

Assim, apresentam pouca exploração da comunicação pela linguagem oral e pouca necessidade de compartilhar seu pensamento, bem como de convencer o outro. Essa forma de reconstituição pela criança encontra embasamento na seguinte afirmação:

A justaposição ocorre, assim, pela incapacidade de fazer sínteses e de compreender a relação entre a parte e todo. Essa tendência a justapor pode ser observada na linguagem da criança, sobretudo a pequena, na qual se observa a ausência de ligações entre os juízos sucessivos pela ausência de conjunções ou, simplesmente, pela colocação do termo ‘e’, sem função conetiva. (Souza, 2001, p. 5)

Quanto à identificação das crianças participantes com os personagens, verifica-se que o valor deles para as crianças tem relação com atributos físicos como “ser rápida” e com a condição de vencedor. As crianças participantes justificam a identificação das seguintes maneiras: “A lebre porque é rápida. A lebre porque é rápida igual a mim. A tartaruga porque venceu.” (participantes 3, 4 e 5, respectivamente)

A maioria dos meninos se identificou com a característica da personagem que era rápida, um menino e uma menina fixaram sua atenção no personagem que venceu a corrida – mesmo não sendo o mais rápido – e uma das meninas fez identificação com um personagem que não era o principal, indicando o gênero como motivação de escolha: “A cobra porque usa vestido” (participante 1). Com exceção dessa identificação pelo gênero, não houve diferença significativa nas identificações por meninos e meninas com os personagens da fábula.

A pergunta 8 da entrevista, que teve o objetivo de investigar aspectos relacionados a simpatia, antipatia e sentimentos interindividuais das crianças sobre atitudes dos personagens, foi respondida com apontamentos sobre sentimentos como: “A lebre ficou chateada por perder, deixou a tartaruga triste, tinha vergonha da tartaruga, queria vencer todas as corridas, tinha um jeito mal, deixou a tartaruga feliz, zoava a tartaruga” (participantes 2, 4, 3, 5, 2, 1 e 2, respectivamente). Essas falas das crianças indicam que “a capacidade de representação possibilita que os afetos durem além da presença dos objetos, assim os sentimentos adquirem estabilidade e duração.” (Piaget, 1981, citado por Wadsworth, 1989, p. 73).

As falas das crianças participantes citadas demonstram suas posições afetivas de simpatia ou antipatia em relação aos personagens, sendo capazes de evocar as cenas da fábula e avaliar as mesmas em função de que:

“com a imagem mental, a memória de evocação, o jogo simbólico e a linguagem, o objeto afetivo está, pelo contrário, sempre presente e sempre atuante, até em sua ausência física, e esse fato fundamental acarreta a formação de novos afetos, sob a forma de simpatias ou antipatias duradouras, no que concerne a outrem, e de consciência ou valorização duradouras de si, no que concerne ao eu.” (Piaget & Inhelder, 1986, p. 98) Assim, nota-se que o conteúdo da fábula desperta nas crianças sentimentos e possibilita que elas demonstrem os valores que atribuem a cada personagem.

Considerações finais

Os contos de fadas e as fábulas como instrumentos de pesquisa revelam-se como interessante alternativa para as investigações com crianças, visto que esse gênero textual possibilita realizar categorizações e correlacioná-las com as teorizações piagetianas sobre o desenvolvimento cognitivo, bem como com aspectos afetivos e morais. Além do conto de fadas e da fábula, propõe-se, para pesquisas futuras, a utilização do desenho/representação gráfica, de modo a enriquecer a coleta e análise de dados, a inclusão de mais faixas etárias e a exploração dos aspectos afetivos presentes no conto. As pesquisas com contos de fadas realizadas até o momento apresentam foco maior na parte estrutural do desenvolvimento, estudando os níveis de desenvolvimento cognitivo e analisando como se dá, concomitantemente, a estruturação do afetivo. Assim, a ideia de ampliar os estudos utilizando o conteúdo do conto como foco da análise e trabalhando com a linguagem gráfica e oral para complementar os relatos das crianças pode agregar novos conhecimentos à área.

Dessa maneira, a reconstituição da fábula feita pelas crianças participantes aponta que “o pensamento egocêntrico não se coloca a serviço da procura da verdade, mas reflete o movimento da inteligência em satisfazer-se imediatamente, assimilando o mundo de maneira deformante” (Souza, 2001, p. 4). Assim, os dados obtidos na pesquisa confirmam essa caracterização proposta pela teoria piagetiana, já que os participantes não apresentam a capacidade de descentrar-se e de compreender as coisas pelo ponto de vista do outro; e esse entendimento do mundo apenas pela sua própria perspectiva não inclui a preocupação em fazer que o outro compreenda seu discurso. Essa característica possivelmente tem reflexos em diversas esferas da vida, interferindo na interação social e no relacionamento humano como um todo, o que sugere constantes estudos voltados para questões do desenvolvimento humano.

 

Bibliografia

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Recebido: 01 de setembro de 2014.
Aprovado: 12 de dezembro de 2014.

 

 

Notas

1 Método clínico é um procedimento para investigar como as crianças pensam, percebem, agem e sentem, que procura descobrir o que não é evidente no que os sujeitos fazem ou dizem, o que está por trás da aparência de sua conduta, em ações ou palavras. (Delval, 2002, p. 67).