SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 issue1The Brazilian Internet's Civil Regulation Process: some ideas about Psychology, Child Pornography, and Pedophilia author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.1 Assis Jan. 2015

 

Artigo

 

Construindo histórias, narrando vidas

 

Building stories, telling about life

 

 

Noemi BandeiraI, Gabriela Neves Paula de SouzaII

I,II Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

 

 


RESUMO

Este relato propõe refletir sobre a contribuição da arte para o cuidado de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial. Trata-se de um estudo que traz uma reflexão sobre a experiência da construção de histórias como estratégia para a escuta desses usuários. Como referencial teórico, foi utilizada a Psicanálise de Freud e Lacan, além dos pressupostos da Atenção Psicossocial. A utilização da arte mostrou-se uma estratégia importante pela possibilidade de fazer emergir, a partir do processo de criação, uma referência, um limiar para o gozo do Outro e uma fonte para um discurso possível do laço social. Concluiuse que o trabalho artístico é um aliado significativo para a Reforma Psiquiátrica do Brasil.

Palavras-chave: saúde mental; psicanálise; reforma psiquiátrica; atenção psicossocial; arte.


ABSTRACT

This paper intends to discuss use of art to produce health care of users in a Psychosocial Care Center. This study presents a reflection about the experience of building stories as a strategy for listening to these users. The theoretical framework was: Freud and Lacan's psychoanalysis and the assumptions of Psychosocial Care Attention. The use of art proved to be an important strategy, mainly for the possibility of making emerge through the creative process a reference, a threshold for the enjoyment of the Other, and a font to create a discourse capable of social bond. We conclude that the process of artistic creation is a significant ally for the Psychiatric Reform Movement in Brazil.

Keywords: mental health; psychoanalysis; psychiatric reform; psychosocial attention; art.


 

 

Para início de conversa

A Reforma Psiquiátrica brasileira nasceu na década de 70 e tomou força a partir do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Esse movimento social de luta pela saúde deu visibilidade às violências cometidas nos manicômios, bem como à comercialização da loucura, liderada por redes privadas de assistência. Além disso, questionou o “saber psiquiátrico” e o modelo hospitalocêntrico, no qual cabia apenas ao médico a incumbência de diagnosticar e tratar usuários de saúde mental com sofrimento intenso.

Em 2001, o Congresso Nacional Brasileiro aprovou a Lei 10.216, que delegava ao Estado a responsabilidade de consolidar a mudança do sistema assistencial, garantindo a todos os usuários da saúde mental um tratamento menos excludente, mais humanitário e resolutivo. Em 2002, as portarias 336 e 189 do Ministério da Saúde regulamentaram e atualizaram as normas de funcionamento dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que devem priorizar a promoção de projetos terapêuticos individualizados e a reabilitação psicossocial dos usuários. (Brasil, 2001)

Segundo Amarante (1995), por haver paradigmas cristalizados que devem ser superados aos poucos, toda mudança histórica enfrenta períodos de adaptação. Em meio a essa transição, a Reforma Psiquiátrica brasileira tem se mostrado um processo político e social complexo, pois as transformações abrangem mais do que códigos de leis e investimento de capital. Trata-se de uma reforma no território do imaginário social em que conceitos, práticas, saberes e valores são questionados.

Desse modo, tal mudança exige dos cuidadores da saúde mental uma requalificação e expansão dos papéis profissionais, pois o serviço deverá ser norteado por uma concepção de trabalho interdisciplinar não hierarquizada. Por isso, se faz necessário que cada profissional, contribuinte em sua especificidade, priorize a não fragmentação do sujeito, visto que qualquer um dos membros de uma equipe pode ser referência para um usuário do serviço de saúde mental. É no cotidiano das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica se dá, caracterizado por conflitos e desafios.

Um dos princípios da Reforma que deve direcionar as ações em saúde mental é o funcionamento das redes de serviços territoriais na lógica da atenção psicossocial, isto é, considerando todas as dimensões da vida do sujeito. O interesse exclusivo é de beneficiar a saúde do usuário, visando a alcançar uma vida qualificada, no cerne da sua comunidade, e apoiado por sua família. Desse modo, deseja-se que o usuário esteja inserido na sociedade, através de atividades culturais, de trabalho, de esporte, lazer, e/ou qualquer outra na comunidade, garantindo um cuidado em ambiente terapêutico aberto pelos meios menos invasivos possíveis. (Brasil, 2001)

O interesse pelo estudo deste tema surgiu em 2011, durante o período de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial. Essa foi uma experiência muito enriquecedora, a qual possibilitou vislumbrar o processo, ainda existente, de transição, do modelo asilar de cuidado vinculado ao hospital psiquiátrico, para o serviço de atenção psicossocial oferecido pelo CAPS.

O impacto dessa mudança tem atingido a todos e, de maneira particularmente significativa, a equipe atuante e os usuários do serviço. O CAPS é mantido por uma organização filantrópica muito antiga na região, que há trinta anos trabalha com a saúde mental, razão pela qual possui certo status na cidade e aprovação social. Nesse momento histórico do município, o CAPS ainda precisa conquistar um lugar valorizado por seu importante papel de reintegração dos usuários à sociedade, pois, por se tratar de um dispositivo novo que convive com o antigo, ainda não alcançou um lugar de proeminência na sociedade local, ficando “escondido” à sombra do hospital psiquiátrico.

A partir da experiência dentro dessa instituição, pôde-se compreender a especificidade do trabalho em saúde mental. A rede idealizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) deve acolher a todos os tipos de sofrimento psíquico, incluindo os graves/severos, na perspectiva de intervenção horizontal, sem imposição de saberes. É nesse contexto que estudos, métodos e técnicas tentam alcançar as idiossincrasias dessa estrutura, e trabalhos inovadores surgem como facilitadores no diálogo psicoterapêutico com sujeitos que, por vezes, se encontram do lado de fora do discurso reconhecido e partilhado como norma social.

Foi assim que surgiram, nas últimas décadas, inúmeras práticas expressivas, criativas e produtivas que, aliadas a abordagens cujos focos são o sujeito e a singularidade, participam do processo de ressignificação da loucura, tanto na dimensão das práticas como na do imaginário social. Essas experiências têm contribuído para o processo de esvaziamento dos hospitais psiquiátricos.

Nesse contexto, este estudo traz uma reflexão sobre a experiência da construção de histórias como estratégia para a escuta de usuários de saúde mental de um CAPS. Ao pensar na arte como uma linguagem possível a todos os discursos, e como produtora de singularização, surgiu a proposta de construir histórias com os usuários. A utilização de expressões artísticas como saída de uma situação estagnada, na psicose, mostrou-se uma estratégia privilegiada pela possibilidade de poder fazer emergir ali, a partir do processo de criação de palavras, uma metáfora delirante ou uma letra, uma referência, um limiar para o gozo do Outro, uma fonte para um discurso possível de fazer laço social.

 

A arte compondo novos significantes

Transferência Poética:

Se não escrevesse poesia,

o que eu faria?

Por onde escoar

tudo o que sinto,

o que calo,

o que minto,

com minha sofisticação?

Se não houvesse poemas

como resolveria o dilema

da minha mente e coração?

Tão civilizada a relação,

enquanto me sinto cocho

pronto pra alimentar

o seu macho.

Acho que se não fosse poeta,

na certa

iria derramar.

Luciene Carvalho

 

Ao longo da história, diferentes formas de arte surgiram como figuras de expressão, demonstrando como cada sociedade percebia o mundo e como o divulgaram e mantiveram ritos e mitos, transformando-os a cada evolução de época. (Gombrich, 1999)

É dentro da perspectiva inovadora da Reforma Psiquiátrica que a prática criativa apresenta-se como método de trabalho privilegiado. Ela abraça o novo modelo de cuidado na saúde mental que, além de possibilitar a reinserção social, amplia habilidades, dá autonomia e, principalmente, valoriza a subjetividade, contribuindo na aceitação das diferenças dentro do ideal democrático em que vivemos. (Valladares, 2004)

Observa-se que a expressão artística vem sendo vista e utilizada como recurso terapêutico em consultórios e instituições, servindo como auxílio no tratamento do sofrimento psíquico. Escrevendo, recortando, atuando, dançando ou pintando, a arte constrói e comunica. De forma sutil, ela torna possível a exteriorização e observação do que é subjetivo, seja na construção de algo inovador, seja no descanso da releitura de uma obra. Onde há criação há também sujeito:

A arte é uma forma de expressão do ser humano e como tal, uma forma de comunicação e linguagem simbólica, é um produto da intuição e da observação, do inconsciente e do consciente, da emoção e do conhecimento, do talento e da técnica, da criatividade. (Andrade, 2000, p. 11)

De acordo com Philippini (1997), a expressão pela arte constitui um caminho lúdico de resgate do universo simbólico e imaginário de cada ser humano, permitindo novas descobertas e elaboração de conteúdos internos. À medida que surge o processo criativo, emerge também a possibilidade de se reinventar, descobrir novos caminhos e novas formas de estar no mundo.

Freud (1911/2010), ao elaborar a formulação sobre o princípio do prazer e o princípio da realidade, aponta a arte como uma forma de continuar sobre o domínio do princípio do prazer, isto é, não agindo para modificar diretamente a realidade. Entretanto, ao produzir um objeto artístico, voltado para o mundo externo, que será aceito como arte pela sociedade, essa manobra engenhosa sobre o princípio de realidade permite ao indivíduo se reposicionar diante da cultura, como um novo sujeito:

A arte efetua, por via peculiar, uma reconciliação dos dois princípios: o artista é originalmente um homem que se afasta da realidade por não poder aceitar a renúncia à satisfação dos instintos que ela inicialmente requer, e concede a seus desejos eróticos e ambiciosos inteira liberdade na fantasia. Mas encontra o caminho de volta desse mundo de fantasia para a realidade, ao transformar suas fantasias, por meio de dons especiais, em realidades de um novo tipo, valorizadas pelos homens como reflexos preciosos do real. De certa maneira, ele se torna assim o herói, o rei, o criador, o favorito que desejava ser, sem tomar o longo rodeio da efetiva mudança do mundo exterior. Mas o consegue apenas porque as outras pessoas partilham a sua insatisfação com a renúncia real exigida . . . (Freud, 1911/2010, p. 118)

Considerando-se a abordagem lacaniana – por meio da qual o sujeito psicótico é constituído por foraclusão1 , isto é, fora da linguagem dita compartilhada e dotada de saber – pode-se vislumbrar, na arte, a possibilidade de saída de uma situação estagnada, uma forma de dizer o que não tem palavras, ou apenas deixar vir, abrir-se à loucura e organizar-se dentro dela. (Noronha, 2008)

Quinet (1997), a partir da teoria lacaniana, desenvolve conceitualmente a respeito da especificidade da psicose (em relação à neurose) que se define pela rejeição da realidade da castração, chamada por Lacan de foraclusão. O que não esteve no simbólico – o não inscrito, ou o foracluído – reaparece como exterior à realidade psíquica: “(...) o Outro não-castrado, todo poderoso, que impõe a lei de seu capricho podendo ser identificado com a figura arcaica da mãe: o Outro absoluto que dita à criança sua lei cega”. (Quinet, 1997, p. 29)

A foraclusão do Nome-do-Pai diz respeito à ausência não do pai real, mas sim à falta do próprio significante. É pelo corte de um terceiro, da função paterna, que se dá a castração. No caso da psicose, a rejeição ou a foraclusão do significante Nome-do-Pai consiste no que subsiste fora da simbolização, na ausência da significação fálica. (Nasio, 1997)

A metáfora paterna para o neurótico é criada a partir do recalcamento, carregada de significantes. O recalcado retorna do inconsciente na forma simbólica, por meio da fala, do sintoma, dos chistes, dos atos falhos, enfim, de toda manifestação para o mundo mediado pela linguagem. O recalcamento se dá pela submissão a um significante primordial, que Lacan chama de metáfora paterna ou função paterna. A psicose resultaria do fracasso em assimilar esse significante primordial que organiza o mundo simbólico da criança. Esse fracasso deixa o indivíduo sem uma ancoragem, um ponto que orienta a linguagem. Sem esse significante primordial, os demais ficam soltos, sem uma âncora, à deriva. Para o psicótico desprovido do significante Nome-do-Pai, é preciso construir, por meio de seu delírio, um significante que o substitua, que faça a suplência, que não será uma metáfora paterna genuína, mas uma metáfora delirante. "Uma metáfora delirante responde à necessidade, para o sujeito psicótico, de estruturar-se como o neurótico”. (Calligaris, 1989, p. 45)

Essa perspectiva é evidenciada nos apontamentos de Gama e Bastos (2010):

Ao invocar o Nome-do-Pai, pela ausência deste recurso simbólico, o psicótico pode responder com o desencadeamento. Uma das formas de compensação à falta de significante é a construção da metáfora delirante, que tem por função organizar o mundo de acordo com uma nova significação (...) (Gama & Bastos, 2010, s/p).

No trabalho com psicóticos, é necessário ouvir o que a sociedade silencia, é preciso fazer emergir o sujeito. O termo ‘Secretário do alienado’ foi cunhado por Lacan para referir-se à posição do analista diante do psicótico, aquele que secretaria/organiza o que o outro traz como certo. (Quinet, 1997)

Nas palavras de Lacan (1955-56/2008):

Vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do alienado. Empregam habitualmente essa expressão para censurar a impotência dos seus alienistas. Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que eles nos contam – o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada. (Lacan, 1955-56/2007, p. 24).

Quinet (1997) aponta para a capacidade do delírio em agenciar certa ordenação no campo simbólico. Existe uma relação de linguagem, ainda que em construção, e de forma problemática o delírio vem com a função de suprir a foraclusão do Nome-do-Pai. “O remanejamento do significante pode ser tão importante quanto à formação de uma nova língua cheia de neologismos (...) em que se encontram todos os fenômenos alucinatórios de código e mensagem”. (Quinet, 1997, p. 21)

Meyer (2008) escreve sobre o discurso delirante na psicose como discurso do inconsciente, por se encontrar amarrado ao significante na sua mais pura literalidade. Numa relação transferencial, quando o usuário transborda seu gozo diante do terapeuta (que se encontra no lugar de suplente), este pode oferecer possibilidades significantes, a partir de um lugar de inscrição desse gozo, como uma testemunha dele, o que pode se configurar como uma tentativa de organização do delírio. Com a escuta da psicanálise e com o poder criativo da arte, pode-se, com os psicóticos, secretariar seu delírio e, quiçá, proporcionar possibilidades significantes para fazer limiar ao gozo sem lei.

A metáfora delirante oferece estabilização e, de certa forma, devolve a função da palavra, organizando um pouco o campo da linguagem. Um delírio estruturado auxilia na estabilização da crise ainda que, por muitas vezes, se faça necessária a reformulação desse delírio, ou a elaboração de outro. (Quinet, 1997)

Segundo Medrado et al. (2009), a metáfora delirante se inicia no segundo tempo do delírio, em que os antigos gozos, aos quais o psicótico tinha sucumbido, dão lugar a um delírio menos perturbador, que permite ao sujeito dar algum significado à sua existência. De acordo com Freud (1911), a formação delirante pode ser interpretada como forma de reconstrução, já que o delírio, considerado patológico por muitos, consiste justamente numa tentativa de restabelecimento do sujeito. Evidentemente que esse recurso se presta mais em casos de psicoses paranoicas, em que há uma abundante produção delirante.

Nesse sentido, a conhecida narrativa do juiz Daniel Paul Schreber (1903/2006), intitulada Memórias de um doente dos nervos, foi alvo de análise de Freud (1911) e trouxe importantes contribuições à teorização da Psicanálise. A obra não só denunciou a estrutura por trás do texto como também evidenciou que a criação de uma metáfora delirante pode ser capaz de diminuir a angústia, diante do Outro invasivo. Organizando e detalhando em papéis sua existência, sua narrativa mostra a estruturação, o empuxo-à-mulher, e a estabilização por meio de um significante que veio fazer suplência ao Nome-do-Pai, isto é, a metáfora delirante. (Quinet, 1997)

Como possibilidade de estruturação para tais sujeitos, surgem as atividades que valorizam a construção de significantes, tais como os trabalhos artísticos.

Medrado et al. (2009, p. 2) depositam na arte:

A capacidade tanto de estabilizar indivíduos pós-surto quanto de permitir que o indivíduo psicótico se conecte com o real sem surtar. No primeiro caso, observa-se que a produção artística geralmente vem acompanhada da formação de uma metáfora delirante, que permite a reintegração do sujeito à sociedade.

Assim como a Luciene Carvalho, autora da poesia Transferência Poética, disposta como epígrafe no início desta seção, muitos foram os sujeitos que encontraram a possibilidade de estabilizar-se nas expressões artísticas. Dois casos notórios são registrados na literatura científica: o caso do James Joyce, tomado por Lacan, e do artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário.

No primeiro caso, o processo de escrita desenvolvido por James Joyce foi considerado por Lacan decorrente da ação relativa da arte sobre o sintoma. Segundo Bulcão (2008), a falência paterna apresentava-se para Joyce como determinante de sua necessidade de escrever e, por meio de uma escrita inventiva, com aglutinação de palavras, Joyce “transita em direção ao real, na tentativa frustrada de tocar o impossível” (Bulcão, 2008, p. 3). Embora Lacan não tenha analisado Joyce, mas sim sua obra, no Seminário 23 - O Sinthoma, ele afirma que “foi a sua arte que supriu a sua firmeza fálica e que ... é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador do seu falo” (Lacan, 1975/76, p. 77), estabelecendo assim a relação da escrita de James Joyce à construção de um sinthoma capaz de fazer suplência à falta de inscrição do Nome-do-Pai.

Com o conhecido caso do Bispo do Rosário foi diferente. Sua busca era a de recriar o universo para apresentá-lo perante Deus, vestindo uma espécie de manto que fabricou durante anos. Ao reinventar objetos cotidianos, Bispo do Rosário criava para si uma significação e também um lugar no mundo da linguagem. Com suas criações, esculturas, faixas e bandeiras, ele inscrevia, com uma linguagem singular, a sua própria história.

Silva e Alencar (2009) colocam as práticas criativas como dispositivo privilegiado dos novos serviços de Atenção Psicossocial no tratamento das psicoses. O usuário deve ficar à vontade para produzir ao acaso, fabricando cifras e desejos em cada produção. A aceitação social da produção é pouco importante diante do trabalho psíquico do sujeito. O trabalho subjetivo, implicado no ato de inventar, de transformar, de se ocupar da materialidade do significante, pode fazer frente ao vazio do Nome-do-Pai.

 

Criando personagens e histórias

A partir do desejo de estimular os usuários que, por muitas vezes, se encontravam numa situação estagnada, apáticos e desinteressados, foi-lhes sugerida a elaboração de histórias, encabeçadas e organizadas por eles mesmos, da forma que lhes fosse possível. De início, a proposta foi endereçada apenas aos usuários com os quais já havia um vínculo estabelecido. Mas, nos momentos de ambiência, tendo como dispositivo alguns livros com histórias narradas (fantasiosas ou reais), o notório interesse de outros usuários pelas histórias deu força ao trabalho.

Existia um prazer pela evolução dos casos e cada usuário representava um desafio. Não se pode negar que houve certa resistência dos participantes durante o trabalho, seja pela inibição, seja pelo receio de se sentirem incapazes de criar. As narrativas se desenrolavam, ora em cenários reais com relatos de vida, ora em delírios que encontravam ali a possibilidade de inscrição/significação.

Transcrevemos aqui uma situação exemplar de um caso interessante: o de um senhor de 57 anos que, há mais de duas décadas, faz uso de forte tratamento medicamentoso. Trata-se de um sujeito cujo quadro é classificado como crônico. Diagnosticado com esquizofrenia, esse senhor já foi internado diversas vezes e, durante o ano de 2011, frequentava o Centro de Atenção Psicossocial. Juntos, construímos várias histórias e todas elas traziam aspectos pessoais de sua vida: ora falava de sua infância no sítio, ora sobre suas inúmeras identidades, ora sobre uma sobrinha querida.

Em processo de transferência, ele atribuía à terapeuta um lugar em seu delírio, tratando-a como se ela fosse a sua sobrinha e, apesar de a chamar pelo nome, dizia “no fundo eu sei que você é minha sobrinha”. É nessa fala, repetida inúmeras vezes, que o sujeito deixa transparecer o saber inquestionável e absoluto que faz parte da estrutura psicótica. Ainda que endereçando seus delírios a ela, por meio das histórias ou no papel da sobrinha, ele deixa claro que tem o saber e coloca a terapeuta no lugar de suplente, lugar de inscrição de uma letra, onde se poderia marcar a diferença, um lugar para remontar a cadeia delirante.

Ele, um sujeito com amplo repertório de palavras, tranquilo em sua fala e também cuidadoso com os detalhes em suas histórias, estava sempre tomado por delírios flutuantes. Alguns dias depois da elaboração da primeira história, numa conversa aleatória, num momento de ambiência, ele retomou o conteúdo da história criada por ele, pedindo à terapeuta que a relesse, procedendo depois à assinatura da história, um indício de que ele se apropriava daquilo como algo dele, apoderando-se de seus significantes. Esse ponto é importante, visto ser difícil para o psicótico assumir as produções como suas.

A partir do início do trabalho com as histórias, elas se tornaram presentes em nossas conversas. Às vezes ele retomava as histórias com desejo de continuá-las e modificar seu fim, ou sugeria a elaboração de novas. Nos períodos em que nos dispúnhamos a criar histórias, ele encontrava a possibilidade da escuta na narração. Ademais, explicava pacientemente as inúmeras conclusões a que chegara a respeito dos mais diversos assuntos, dando possíveis significações a eles.

Há que se destacar que o pouco tempo disponível para a experiência não nos permitiu um acompanhamento longitudinal. Apesar disso, consideramos que foi suficiente para uma pequena marca, além da configuração de uma transferência, que nos permitiu avançar, buscando entender teoricamente o que se vivenciou no decorrer da situação prática.

Etkin (2000) sustenta que, mesmo o psicótico tendo certeza de seu saber, ele precisa falar com alguém, no sentido de convocar o Outro real, que “(...) constituído como efeito do ato de seu dizer, responda como lugar de inscrição de uma letra que o represente”. Ou, ainda, precisa solicitar o outro para lhe deixar sua marca, algo que lhe permita reconhecer-se em um discurso, fora do corpo. Nesse caso, trata-se da criação de um espaço subjetivo, que permitiria descolar a palavra que está literalmente colada ao corpo, a função de mediação no simbólico. Leclaire (2001) afirma que o psicótico encontra-se numa situação embaraçosa quanto à sua própria subjetividade e quanto à subjetividade do outro, porque não reconhece como suas as suas palavras e não relativiza o discurso do outro sem tomá-lo ao pé da letra, isto é, na literalidade. O problema aparece na questão do desejo. O desejo seria uma dimensão que não se coloca no nível da satisfação da necessidade, mas de uma distância, uma diferença, entre a satisfação alucinatória e os vestígios de uma experiência originária. O prazer estaria localizado nessa diferença. Ora, a diferença evocada é propriamente a diferença erógena, que tem um efeito de ruptura. A inscrição de uma letra seria exatamente uma função que vem bloquear esse efeito da ruptura, fazendo uma costura no lugar em que a distância se produziu. Essa letra seria uma abstração para fora do lugar do corpo, onde ela exerce sua função de sutura.

A LETRA2 que constitui essa inscrição desenha o seu traço como apagamento de uma diferença (erógena) e é o primeiro paradoxo dessa função literal fazer da inscrição num lugar o apagamento do outro. Se o lugar do apagamento é, como se viu, facilmente concebível no nível do corpo como diferença erógena (lugar do prazer), subsiste a dificuldade de pensar o lugar da inscrição literal assim definida em sua função paradoxal. (...) as letras são funções que garantem o UM distintivo e permitem constituí-lo como índice da diferença apagada, ou diferença erógena. As letras articuladas em séries, sequências ou redes, constituem por si mesmas o que se pode chamar metaforicamente de seu ‘espaço’: memória inconsciente na terminologia freudiana, e, como tal, lugar exclusivo em que se recolhe verdadeiramente toda inscrição possível na perspectiva do “tempo inconsciente”. (Leclaire, 2001, p. 206)

O fazer histórias com usuários psicóticos não só possibilita a estruturação do delírio e de uma identidade, mas também pode possibilitar um lugar à significação, a partir dos lugares transferenciais possíveis:

As possibilidades da técnica analítica com psicóticos derivam dessas duas alternativas transferenciais – lugar de letra ou aniquilador do gozo do Outro – tentando sempre o analista aos modos discursivos – o estilo – que lhe permitam se oferecer como lugar não especular, mas como papel onde se possam marcar diferenças, situando uma letra, e procurar também, sem questionar o sentido, como diz Michel Crufer, ‘remontar a corrente do delírio’. (Etkin, 2000, p. 4)

A Psicanálise, diante da psicose, desprovida do instrumento de interpretação, que só faz sentido diante de um gozo reprimido, pode proporcionar uma escuta ativa e, com a elaboração de histórias, é capaz de produzir um corte na repetição; o sujeito pode ser aliviado por ter o terapeuta ao seu lado, como lugar de inscrição de uma letra.

Sendo a história um caminho de comunicação de um com outros e consigo mesmo, as palavras encontram o poder de direcionar nas histórias. A elaboração de histórias permite aos usuários o lugar de produtor, ao expressar-se livremente, e deixar sua marca, mesmo que nas páginas de um simples caderno.

Schreber (1903/2006, p. 117), ao escrever seu livro Memórias de um Doente dos Nervos, afirma que: "Se eu tentasse me explicar só oralmente, dificilmente poderia esperar que alguém tivesse paciência de me ouvir numa exposição demorada; menos ainda se considerariam esses pretensos absurdos dignos de uma reflexão".

A manifestação das possibilidades criativas dos usuários e o trazer à luz histórias vividas ou criadas, instigam-nos: além da inscrição de significantes, da marcação de uma letra, da apropriação do gozo, que mais podem produzir? Quantos novos métodos podem ser considerados?

Há muito ainda a se questionar e a se construir nesse campo. Por ora, o que concluímos de nossa experiência foi que a utilização da arte como saída de uma situação estagnada se apresenta como estratégia privilegiada pela possibilidade de se estruturar ali – a partir do processo de construção, transformação e elaboração de suas obras – uma saída, uma referência, um limiar para o gozo do Outro, uma fonte para um discurso. Verifica-se isso, claramente, ao se instituir um espaço transferencial entre as pessoas envolvidas, tendo como mote as histórias produzidas. As histórias se constituíram como um ponto de referência para aqueles sujeitos que passaram a ter um assunto em comum.

O processo de elaboração artística faz surgir da obra o artista, isto é, a emergência de um sujeito produtor que cria o que lhe é possível e, a partir disso, apropria-se de uma marca, uma letra ou um novo significante. Este, por sua vez, lhe permite alguma existência como sujeito e não mais como objeto de um gozo sem lei, sem limites.

 

 

Referências

Amarante, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Andrade, L. Q. de. (2000). Terapias expressivas: arte-terapia – arte-educação – terapia-artística. São Paulo: Vector.         [ Links ]

BRASIL. Decreto-Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Presidência da República: Casa Civil. Brasília, 6 de abril de 2001; 180o da Independência e 113o da República.         [ Links ]

Bulcão, M. S. M. (2008) Sintoma e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce. Escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro. Acessado em 10/10/2015, do http://escolaletrafreudiana.com.br/UserFiles/110/File/carteis2008/sc005.pdf.         [ Links ]

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Carvalho, L. (2007). Sumo da Lascívia. Cuiabá: Instituto Usina.         [ Links ]

Etkin, G. E. (2000). Transferência e Clínica na Fala Psicótica. Escola Lacaniana da Bahia E.L.B.A. Acessado em 12/11/2011, do http://www.elba-br.org/elb-publicacoes/pdf/transferencia-clinica-psicotica.pdf.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de Paranóia. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911).         [ Links ]

Gama, V. C. da & Bastos, A. (2010). A feminização na psicose: empuxo-à-mulher e erotomania. Psicologia Clínica, 22, (1). Acessado em 11/11/2011, do http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652010000100009&script=sci_arttext.         [ Links ]

Gombrich, E. H. (1999). A História da Arte (16. ed.). Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC.         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O seminário, livro 3: as psicoses. 2. ed. Revista. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. [versão brasileira de Aluisio Menezes]. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956).         [ Links ]

Lacan, J. (2007). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1976).         [ Links ]

Leclaire, S. (2001). Escritos Clínicos. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Medrado, A., Lino, A., & Vasconcelos, C. (2009). Psicose e Arte: o papel da metáfora delirante. Acessado em 10/11/2011, do http://www.adonaimedrado.pro.br/principal/index.php?option=com_content&view=article&id=72&Itemid=110.         [ Links ]

Meyer, G. R. (2008). Algumas considerações sobre o sujeito na psicose. Ágora (Rio J.) 11(2). Acessado em 12/10/2011, do http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982008000200009.         [ Links ]

Nasio, J. D. (1997). Lições sobre os sete conceitos cruciais da Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Noronha, M. P. (2008). Teoria Lacaniana da arte, aportações em torno da pintura e do teatro. Goiás: Unidade de Ensino de Jataí. Acessado em 09/11/2011, do http://marciopizarro.files.wordpress.com/2008/08/artigo-doc-cong-teoria-lacaniana-da-imagem-em-torno-da-pintura-e-do-teatro1.pdf.         [ Links ]

Philippini, A. (1997). A construção de espaços criativos através do processo arteterapêutico. Imagens da Transformação, Pomar, v. IV.         [ Links ]

Quinet, A. (1997). Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Schreber, D. P. (1903/2006). Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Silva, T. J. F. da & Alencar, M.L.O.A. (2009). Invenção e endereçamento na oficina terapêutica em um centro de atenção diária. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 12(3). Acessado em 10/10/2011, do http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v12n3/v12n3a08.pdf.         [ Links ]

Valladares, A. C. A. (org.) (2004). Arteterapia no novo paradigma de atenção em saúde mental. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

 

 

Recebido: 21 de abril de 2014.
Aprovado: 29 de novembro de 2014.

 

 

1 Termo cunhado por Lacan (1955-56) para explicar a estruturação psicótica. Lacan empresta a palavra foraclusão da terminologia jurídica, em que esta é sinônimo de preclusão ou prescrição. Na preclusão, algo é atirado para fora do "mundo jurídico" por não ter acontecido dentro dos prazos prescritos em lei. No caso das psicoses, algo é lançado para fora, fora da possibilidade de simbolização.

2 Todos os destaques, itálicos e maiúsculas são do autor.

Creative Commons License