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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.1 Assis jan. 2015

 

Artigo

 

Redes de atenção aos usuários de álcool e outras drogas: a visão dos trabalhadores e gestores de serviços de saúde mental de um município do Estado de São Paulo

 

Health Care Networks to alcohol and other drugs users: the points of view of mental health workers and administrative managers of mental health Polices in a city of São Paulo State

 

 

Monique Marques Manfrê I

I Unesp – Faculdade de Ciências e Letras de Assis

 

 


RESUMO

O processo da Reforma Psiquiátrica e as políticas ministeriais colocam novos desafios e formas de produzir cuidados às pessoas que apresentem problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Atualmente pode-se observar a ampliação dessa rede de atendimento, fundamentada em dispositivos extra-hospitalares de atenção psicossocial. É necessário que, acompanhando a ampliação dessa rede, possa haver a articulação e a comunicação entre os serviços a fim de produzir respostas mais significativas em relação ao cuidado do usuário de álcool e outras drogas. Assim, este artigo tem como objetivo investigar a percepção dos gestores e trabalhadores da saúde sobre a rede de atenção à saúde ao usuário de álcool e outras drogas e identificar quais serviços compõem essa rede. Foram realizadas entrevistas com três gestores e três profissionais do Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas, Hospital Psiquiátrico e Direção Regional de saúde (DRS) de um município de grande porte no Estado de São Paulo, no período de outubro de 2013 a março de 2014. Os resultados evidenciam que a rede de cuidado ao usuário, muitas vezes, é compreendida somente como serviços especializados como o CAPSad e lugares para internação.

Palavras-chave: serviços de saúde; serviços de saúde mental, transtornos relacionados ao uso de substâncias.


ABSTRACT

The Psychiatric Reform Process and the Brazilian Health Ministerial policies brought new challenges and ways of producing care to people who have problems arising from alcohol and other drugs use. Currently, we can observe the expansion of mental health care networks made to provide psychosocial care devices. The increase of mental network must happen simultaneously to the improve of articulation and communication between the mental heath services. It is mandatory to create more meaningful and effective responses to the needs of alcohol and other drugs users. The article aims to investigate: a) the point of view of administrative managers of mental health Polices and mental health workers on the network of health care to the user of alcohol and other drugs and, b) identify which services compose this network. Interviews were conducted with three administrative managers of mental health Polices and three professional of Psychosocial Care Centers to Alcohol and drugs user, Psychiatric Hospital and Health Regional Steering (DRS) for a large city in the state of São Paulo, from October 2013 to March 2014. The results showed that the network to the user; it is often understood only as specialized services such as CAPSad and places to hospital.

Keywords: health services; mental health services, disorders related to substance use.


 

 

Introdução

As redes de atenção à saúde são constituídas pelo conjunto de serviços e equipamentos de saúde, disponíveis para atender a população dentro de um determinado território, uma vila, um bairro ou uma cidade. O território não é apenas o lugar geográfico, mas é formado junto com as pessoas que nele habitam, com suas instituições, empresas e cenários (BRASIL, 2004; 2009).

Os serviços de saúde são como os nós de uma rede, composta pela unidade básica de saúde, hospital geral, centro de atenção psicossocial álcool e drogas, hospital psiquiátrico. Mas, para se construir uma rede, não basta apenas ofertar serviços em um mesmo território. É preciso assegurar que a ampliação da cobertura em saúde seja acompanhada de uma ampliação da comunicação entre os serviços para que se construam processos de atenção e gestão mais eficientes, contribuindo para a integralidade da atenção. É necessário que ocorra a interação entre os serviços e, destes, com outros setores e outras redes sociais (BRASIL, 2009).

O Decreto 7.508, de 28 de junho de 2011 (Brasil, 2011), traz uma definição de Redes de Atenção à Saúde1 como “conjunto de ações e serviços de saúde articulados em níveis de complexidade crescente, com a finalidade de garantir a integralidade da assistência à saúde” (item VI, art 2º).

Para Mendes (2008, p.6):

As redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde – prestada no tempo certo, no lugar certo, por custo certo, com a qualidade certa e de forma humanizada – e com responsabilidades sanitária e econômica por essa população.

Para formar essa rede, os mais variados recursos são necessários, envolvendo os afetivos, familiares, serviços de saúde, moradia, escola, esporte, econômico, cultural, religioso e de lazer (BRASIL, 2004).

No âmbito da saúde mental, surgem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), criados como serviços substitutivos às internações em hospitais psiquiátricos. Os direcionamentos atuais da Política de Saúde Mental para os CAPS estabelecem que essas instituições deverão assumir um papel estratégico na articulação das redes, trabalhando em conjunto com as Equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, além de se articularem com outras redes, como escolas, empresas etc. (BRASIL, 2004).

Os CAPS são atualmente regulamentados pela portaria n° 336/GM, de 2002, que elabora as diretrizes de funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial e institui os CAPSad para usuários cujo principal problema é o uso prejudicial de álcool e outras drogas (BRASIL, 2004). No ano de 2004, a Portaria 2.197 redefine e amplia a atenção aos usuários de álcool e outras drogas no SUS, estabelecendo, como principais componentes da rede de atendimento: a Atenção Básica (AB), os CAPSad, os Ambulatórios e outras unidades hospitalares especializadas, a Atenção Hospitalar de Referência e a Rede de Suporte Social, complementar à Rede disponibilizada pelo SUS e composta por associações de ajuda mútua e entidades da sociedade civil.

O que se percebe, porém, é que os CAPS aparecem como realidades distantes dos serviços de atenção básica, visto que não existe a comunicação entre os serviços, não se conhecem as equipes presentes no território, tampouco há possibilidade de realização de trabalhos articulados. Assim, os CAPS, que deveriam assumir um papel estratégico na organização da rede, acabam centralizando a demanda e adentrando, de maneira muito tímida, nos territórios e na comunidade (Bezerra & Dimenstein, 2008).

Observa-se que o CAPS e o CAPSad ficam como ilhas, isolados dos outros serviços, tendo, como consequência, serviços sobrecarregados. Assim, tem-se a ideia de que os CAPSad são os únicos responsáveis pelo atendimento do usuário de álcool e outras drogas, ocorrendo a centralização da demanda e uma rede de serviços pouco articulada. Segundo Barros (2003), devemos nos perguntar sobre a existência de uma rede, pois o que se tem vivido, na maioria da vezes, é uma inexistência de portas de saída. Os pacientes chegam, são atendidos, e não há para onde encaminhá-los, ocorrendo uma permanência ilimitada de tempo dos usuários no interior dos serviços substitutivos. Ao que se tem visto funcionar não se pode chamar de rede e sim de um conjunto de pontos, ligados frágil e burocraticamente.

Metodologia

Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista- CEP/FCL/UNESP (Parecer n. 414.969).

Foram realizadas reuniões com os trabalhadores e gestores, separadamente, em horários determinados por eles, para a apresentação do projeto e do objetivo da pesquisa. Aqueles que manifestaram interesse, durante a reunião, em participar da pesquisa foram selecionados.

Assim, esta pesquisa contou com seis participantes. Entre eles, três gestores e três trabalhadores da saúde. As entrevistas foram realizadas com os profissionais que tinham contato, em seu processo de trabalho, com a demanda de usuários de álcool e outras drogas, a fim de compreender essa rede destinada à atenção dada a essas pessoas e, consequentemente, poder desvelar quais serviços e ações e/ou encaminhamentos têm-lhes sido ofertados.

Foi utilizado, como instrumento de coleta de dados, o roteiro de entrevista aberta, que contempla questões norteadoras acerca dos serviços e equipamentos oferecidos aos usuários de álcool e outras drogas, os objetivos desses serviços e o fluxo entre eles. A fim de que os participantes pudessem produzir as narrativas, foram feitas as seguintes questões: Qual a demanda de usuários de álcool e outras drogas? Atendem-se esses usuários ou encaminham-nos para outros serviços? Quais os limites e as potencialidades da Rede destinada ao usuário de álcool e outras drogas no Município?

A opção por esse percurso metodológico justifica-se, pois os dados coletados, a partir de diferentes técnicas, sejam elas entrevistas, questionários e grupos focais, mostram maneiras de narrar (dos participantes da pesquisa e do próprio pesquisador ao expor os dados de sua análise e suas conclusões) conforme certa posição narrativa. A posição narrativa não pode ser separada das políticas que estão em jogo, sejam as políticas de saúde, políticas de subjetividade, políticas cognitivas. Convém ressaltar que o conceito de política implica um sentido ampliado, não estando restrito somente ao domínio específico das práticas relativas ao Estado (Passos & Barros, 2009).

As entrevistas somente foram realizadas após esclarecimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido pelo participante do estudo. A pesquisa de campo foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), um Hospital Psiquiátrico, em uma Unidade Básica de Saúde e na Direção Regional de Saúde de um município de grande porte no Estado de São Paulo, no período de outubro de 2013 a março de 2014.

Os dados apresentados são resultados de uma única entrevista realizada com cada participante. A fim de garantir o aprofundamento da pesquisa, foi feita, a partir das entrevistas com gestores e trabalhadores da saúde, uma análise das narrativas, buscando a compreensão dessa rede destinada à atenção aos usuários de álcool e outras drogas. Para isso, foram realizadas várias leituras do material, explorando, nas narrativas, o que era mais significativo para eleger a unidade temática: a rede, considerando o encaminhamento e a articulação entre os serviços.

Os sujeitos foram codificados no intuito de preservar sua identidade.

Resultados e discussões

Pra mim, o que eu entendo, é a rede através do CAPS do AA, mas é algo que eles têm que buscar, né? Nós entendemos que, se eu der o encaminhamento para ele e ele não for, né? Não tem como eu cobrar isso dele. Então eu não sei. Às vezes eu tenho a impressão que falta alguma coisa nesse encaminhamento, sabe? Nesse direcionamento. Não sei se a gente pode trabalhar numa forma de direcionar. Olha esse paciente saiu de alta. Vocês podem... tentar entrar em contato, mas a demanda é muito grande. Não temos perna para fazer isso também [...] Existe articulação se a gente quer entrar em contato com o CAPS, com o AA existe (MAÍSA, trabalhadora da saúde).

Pode-se observar, pelo trecho transcrito, que a rede é compreendida como existência de encaminhamento desses usuários. Dessa maneira, o acesso dos usuários ao serviço ocorre por encaminhamentos, o que pressupõe uma rede de serviços hierarquizada e organizada a partir de um sistema de referência e contra referência. A existência dessa lógica de funcionamento produz múltiplos atravessamentos, como o impedimento da articulação das ações de cuidado realizadas pelos diversos dispositivos (Luzio, 2010).

Compreende-se que a forma pela qual os serviços se relacionam faz toda a diferença para que as responsabilidades não sejam definidas de uma forma burocrática, engessada e com pouca interação. Assim, o apoio matricial pode ser uma estratégia para melhorar o fluxo dessa rede, propiciando um espaço de trocas de experiências e saberes entre os seus profissionais. Quanto maior a interação entre os serviços, áreas e equipes, maiores as possibilidades de desenvolvimento de modos de trabalhar que causem maior impacto na vida desses usuários (Bezerra & Dimenstein, 2008; Brasil, 2009).

Sobre os encaminhamentos e a rede de atenção ao usuário de álcool e outras drogas, destaca-se a inclusão dos grupos de autoajuda nessa rede, como o Alcoólicos Anônimos (AA) e o Narcóticos Anônimos (NA). Talvez isso queira indicar que a instituição deseja tornar disponível para os usuários de álcool e outras drogas um leque de opções de modelos de atenção. Mas também pode indicar uma aproximação com o modelo baseado na abstinência. Ainda hoje, as práticas de saúde mental trazem um forte componente que se orienta pela perspectiva da abstinência. Por exemplo, o programa Doze Passos foi desenvolvido pelos grupos de autoajuda, e muitas vezes esses modelos são adaptados nas instituições de modo acrítico (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).

...] Então nos orientamos sobre o CAPS, sobre o AA, sobre o NA, sobre os grupos de autoajuda, né? Então, tanto o paciente, quanto a família, é orientado disso. Ele não sai daqui com um encaminhamento, mas ele sai daqui orientado a buscar [...] (MAÍSA, Trabalhador de saúde).

[...] O que eu vejo é que a gente tem o CAPS. Nós temos o CAPSad que funciona de segunda a sexta das 8 às 17. Nós temos os grupos de autoajuda que funcionam na parte da noite, que é Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Amor Exigente. De alcoólicos anônimos são seis grupos, um de NA e um de AE. Então são 8 grupos na parte da noite. Existe o Hospital das Clínicas, né, que dá o suporte também. Se a pessoa chega lá, pode até ser providenciado uma internação pra ele, né. Tem psiquiatra lá vinte e quatro horas por dia. Tem as unidades básicas de saúde, né? Que, quando necessário, como eu disse, eles fazem o encaminhamento pro CAPS, né? É basicamente isso, que eu me lembre agora. Então a gente considera isso uma rede. Onde qualquer pessoa chegando num lugar desse pode obter informações sobre o serviços existentes na cidade, né? Então eu vejo com muito bons olhos isso, né? Tanto é que a gente tenta encaminhar os pacientes daqui para os grupos de autoajuda. Nós encaminhamos eles e orientamos para que eles, se sentindo fissura ou vontade de usar, estejam passando mal, algum momento existencial complicado, procure o Pronto Socorro [...] (ANDRÉ, Trabalhador de saúde).

No que tange aos limites e às potencialidades da rede destinada aos usuários de álcool e outras drogas no município, um dos gestores destaca a desinstitucionalização e a desospitalização como uma das potencialidades dessa rede. Outro gestor destaca que as ações acontecem de maneira isolada, além de haver resistência encontrada por parte dos equipamentos, quando existe necessidade de encaminhar o usuário de álcool e outras drogas.

[...] A potencialidade é que até hoje tem uma política, né, que é a rede de atenção psicossocial que investe nesses espaços, né, da questão até da desospitalização, da desinstitucionalização e de resgatar principalmente a questão da atenção básica. Então a gente tem hoje [...] o município com uma cobertura boa da atenção básica, tem os núcleos de apoio à estratégia de saúde da família. Então assim tem essa potencialidade pra tá explorando dentro do município pra ta fazendo essa, vamos supor, o matriciamento, né. Hoje também o Ministério ele acaba investindo no agente comunitário e mais no auxiliar de enfermagem pra fazer esse acolhimento pra atender lá, entender o que que tá no território [...] (ANA, gestor).

Princípio que nós não temos uma rede estruturada. Então fica difícil eu responder essa pergunta pensando na lógica de rede. As ações são muito isoladas ainda, né. O município, a regional de saúde e a secretaria estão em movimento de criar uma rede, da gente estabelecer. Então não há um fluxo, né das pessoas. Olham, faça esse caminho, faça esse percurso, que a rede se dá. O que que a gente percebe de dificuldade. Toda vez que você precisa encaminhar um paciente nosso, dependente de algum tipo de droga pra qualquer outro serviço, né. Há uma resistência porque ele tem um diagnóstico de dependência, independente se ele está em abstinência ou não, né. Então, por exemplo: A pessoa tem um transtorno mental, eu preciso encaminhá-lo para um outro equipamento que trabalha com transtornos mentais, né, que o paciente fique algum período lá. Então há uma resistência muito grande por causa do histórico, mesmo que a gente coloque: olhe, ele tá em abstinência, não tá usando, vai continuar fazendo o acompanhamento aqui [...] Mas a rede em si não funciona na lógica de rede (CAIO, Gestor).

Ainda sobre a questão da rede, quanto à articulação existente entre os serviços, um dos profissionais destaca:

[...] Não há uma articulação boa entre esses serviços, poderia melhorar muito mais. É um serviço complementando o outro, né? O diálogo [...] (ANDRÉ, trabalhador de saúde).

Muitas vezes essa demanda fica centrada somente em alguns equipamentos, e outro importante desafio refere-se à construção da Rede de Atenção Psicossocial RAPS.

[...] Uma rede furada [...] Parece assim. Eles mandam pra nós e a gente tem que solucionar tudo. O CAPS é o responsável, tem que fazer tudo, né. [...] Tem um grupo de pessoas aqui no município, inclusive são os municípios que tá tentando formar uma rede de assistência psicossocial que é RAPS, mas isso tá muito no papel ainda, né. As unidades básicas junto com o CAPS, formar realmente uma rede, mas isso ainda não existe. Tá, não existe, tá muito no virtual, tá muito no conhecimento [...] Os serviços das UBS, USF não conhecem o CAPS, não sabem o que a gente faz (SARA, Gestor).

[...] Agora, como que esses serviços, eles estão se relacionando. É, eu percebo que está incipiente. Então, tá começando até através de um próprio grupo condutor de ver a rede de atenção psicossocial, a gente acaba buscando isso, né. Tá muito no começo, mas assim como que a gente vai fazer essa conversa, que a gente vê que assim você tem alguns pontos, mas como que isso tá se conversando. E como tá dando essa sequência, essa rede mesmo. A gente vê que ainda não tem nada muito efetivo. É bem assim alguma coisa começando aqui, outra ali, mas precisa ir amarrando, né (ANA, gestor).

Em 2011, o Ministério da Saúde, pela Portaria nº 3088, instituiu a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS, no âmbito do SUS. Essa Rede é direcionada para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, de modo a ampliar o acesso da população e garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território. Assim, a RAPS é formada pelos seguintes componentes: Unidade Básica de Saúde, equipes de consultório na Rua, Centros de Convivência, Centros de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades, atenção de urgência e emergência, Núcleos de apoio à saúde da família, entre outros.

Podemos constatar, pelo relato de dois gestores, a fragilidade da rede destinada às mulheres usuárias de álcool e outras drogas no município. Durante a coleta de dados, observa-se que, nos serviços destinados aos dependentes químicos, a grande maioria dos usuários que frequentam esses serviços é de usuários do sexo masculino.

[...] Bom, gênero feminino não tem onde internar, primeira coisa, tá. Clínica, comunidade terapêutica. Uma mulher hoje que queira internar-se para desintoxicar ou ela vai no [hospital psiquiátrico X], fica no hospital, ou ela tenta no [hospital psiquiátrico y]. Não tem comunidade terapêutica pra mulher, não tem nenhum serviço que acolha mulher. Por exemplo tem a [fundação b][...] que acolhe moradores de rua, homens. Mulheres moradoras de rua não têm onde ficar. Atualmente tem o centro POP, que eu até esqueci de falar, que é um centro que acolhe moradores de rua [...] e lá as pessoas podem ficar tanto homens quanto mulheres, acho que já melhorou um pouco, porque não tinha nem onde ficar, né? Homens iam para o albergue, passavam a noite no albergue. De manhã falavam com a assistente social e eram encaminhados para a [fundação b], né? Agora, as mulheres não tinham onde ficar. Hoje já tem no centro POP, onde eles passam o dia e as pessoas que querem tratamento vêm para o CAPS e começam fazer tratamento [...] (SARA, Gestor).

[...] Nós temos muito poucos leitos para mulheres, né? Isso é no Brasil inteiro, né? Então, se você for procurar os hospitais e as clínicas que internam. Elas têm. A grande maioria dos leitos são para homens. Então, internação de mulheres, quando precisa, é difícil, né? Os tratamentos todos são direcionados para o universo masculino, né? O que é um problema também porque a mulher dependente ela tem outras características, de ser mãe, de ser dona de casa, de ter que cuidar de filhos. Um pouco diferente do dependente masculino homem, né? A mulher tem todo esse outro lado. E aí os programas deveriam ser, ou as abordagens deveriam ser, um pouco mais diferenciadas. Mas, predominantemente, ainda é o universo masculino, apesar de ter aumentado o número de mulheres, mas aqui no nosso serviço 95% que você atende em um ano é masculino[...] (CAIO, gestor).

Uma outra questão que chama a atenção é que, na maioria das vezes, quem procura a Unidade Básica de Saúde (UBS) são os familiares. E os casos são encaminhados para o CAPSad ou, em caso de crises, são encaminhados para o hospital geral. Desse modo, prevalece a lógica dos encaminhamentos e os CAPSad aparecem, como, praticamente, o único recurso para o tratamento a que se tem acesso.

Quando vem o encaminhamento pra cá, nós mandamos ou pra unidade de origem, pra que eles encaminhem pro CAPSad, de álcool e drogas, que é um trabalho especializado em álcool e drogas [...]. Às vezes vem, sabe? Às vezes vem a mãe reclamar que o filho tá usando, que quer se tratar. Então a gente faz o encaminhamento se precisar, ou se passa pela médica. Os profissionais, os médicos, eles já sabem. Então já faz o encaminhamento. Aqui dificilmente aparece. Quando aparece é porque a mãe tá preocupada [...]. É mais a família insiste em que o filho seja tratado, mas muitas vezes ele não está muito afim. Mas a mãe, preocupada, insiste. Aí vem procurar ajuda aqui. Muitas vezes, eles não sabem aonde procurar [...] É encaminhado pro CAPSad [...] ou, se tá em surto, a gente manda pro HC que tem o atendimento de crise [...] (LISA, trabalhadora de saúde).

A Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, lançada em 2003, preconiza que a assistência prestada ao usuário de álcool e outras drogas seja baseada em dispositivos extra hospitalares de atenção psicossocial como o CAPS, devidamente articulado com a atenção primária e outros setores da sociedade (BRASIL, 2003). Vale ressaltar que o CAPSad é um dos componentes dessa rede, assim como também são a atenção básica e as unidades hospitalares, que são fundamentais para o cuidado destinado aos usuários de álcool e outras drogas.

[...] O CAPS pode funcionar como agenciador das demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos na atenção se destacam, em determinado momento, de acordo com o andamento do Projeto terapêutico de cada usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se movimente para dar sustentação às necessidades dos usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar em um suporte efetivo para as dificuldades que esses usuários possuem (Figueiredo & Onocko Campos, 2008, p.145).

Por outro lado, um dos gestores destaca a necessidade de capacitação da atenção básica.

[...] A atenção básica [...] precisa ser capacitada, né, para poder atender essas pessoas e poder acompanhar. Não atender na fase aguda, não atender pra fazer ficar em abstinência, mas pra manutenção de abstinência, das pessoas que saíram de internação, que passaram pelo CAPSad, poderiam se beneficiar muito com o retorno lá, aliviando os serviços que acaba acompanhando essas pessoas, às vezes por anos, que não haveria necessidade. Manteria um vínculo lá na unidade, próximo à residência, alguma coisa assim. Mas não há uma capacitação pra isso. Essa capacitação deveria começar pela própria equipe do CAPSad de poder ajudar, né, pra poder estabelecer um cronograma. Mas acho que isso tem que ser estabelecido junto com a área de saúde mental do município (CAIO, gestor).

A atenção básica lida diariamente com uma enorme demanda de saúde mental, porém, na maioria dos casos, os profissionais se sentem despreparados para lidar com essa questão. (Bezerra & Dimenstein, 2008). Essa questão aparece na fala de um dos gestores que sente muitas vezes essa dificuldade entre os profissionais da atenção básica.

[...]O que eu percebo é que existe, não sei, não sei a palavra de, não é medo. Mas assim, como fazer esse atendimento, sendo que a gente sabe que não é simples. Tem toda uma questão de tratamento aí, né, de adquirir a confiança e tudo [...] Mas de repente ele acha que é tão assim específico trabalhar com alcoolista que ele acha melhor encaminhar. Então acho que o que falta, é você ter mesmo alguém que te apoie pra você dar sequência nesse tratamento [...] (ANA, gestor).

Alguns autores têm destacado a importância do Apoio Matricial como dispositivo importante para a articulação da rede e para aumentar o grau de resolutividade da Atenção Básica. Bezerra e Dimenstein (2008), em estudo realizado no município de Natal-RN, com os trabalhadores de saúde mental inseridos em CAPSII e CAPSad sobre a proposta de matriciamento da equipe do PSF, destacam que os entrevistados consideram o apoio matricial uma estratégia potente para conjugar os diferentes dispositivos de atenção, melhorando o fluxo resolutivo da rede, além de excluir a lógica dos encaminhamentos, pela articulação e assessoramento da rede básica.

Entretanto, a mudança da lógica do trabalho proposta pelo apoio matricial não ocorre de maneira automática, tampouco é fácil de ser assumida pelas equipes. Assim, o que se destaca é a importância de espaços coletivos para que a saúde e a saúde mental sejam interligadas e complementares (Figueiredo & Onocko Campos, 2008).

Pelos relatos dos gestores e trabalhadores da saúde, podem-se apontar algumas das fragilidades dessa rede destinada aos usuários de álcool e outras drogas: a pouca articulação entre os serviços e as instituições – que dispensam alguma forma de atenção ao usuário de álcool e outras drogas – faz que acabem atuando isoladamente; a dificuldade de encaminhar o usuário que frequenta o CAPSad para outros serviços provoca a centralidade da demanda nos equipamentos, e, além disso, leva a pensar a rede para o usuário de álcool e outras drogas somente como meio de serviços especializados, como o CAPSad e lugares destinados à internação. Quanto às potencialidades, pode-se constatar, na fala de alguns desses participantes, a necessidade de se pensar a RAPS e o apoio matricial a fim de potencializar essa rede destinada aos usuários de álcool e outras drogas.

Considerações Finais

Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPSad) adquirem importância relevante no contexto das políticas públicas de saúde. Atualmente, constituem um dos principais serviços destinados aos usuários de álcool e outras drogas. É indubitável, porém, que a atenção nesse campo não se pode restringir somente a um serviço específico. O que se propõe é um conjunto de serviços que possam atuar de maneira articulada porque “a construção de uma rede na saúde implica mais do que ofertas de serviços num mesmo território: implica colocarmos em questão como eles estão se relacionando” (BRASIL, 2009, p.13).

O CAPSad torna-se especialmente importante para a construção dessa rede, principalmente quando não é pensado apenas como um serviço, mas sim como uma estratégia2, como parte de uma rede de cuidados que acontece no território e que visa resgatar a subjetividade e a história desses sujeitos. Para que essa rede funcione, precisa haver a articulação entre os setores envolvidos na atenção aos usuários de álcool e outras drogas e que se vise à construção de estratégias de cuidado compartilhado, auxiliando na resolubilidade da atenção.

Para Yasui (2006, p. 107):

[...] O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o principal instrumento de implementação da política nacional de saúde mental, deve ser entendido como uma estratégia de transformação da assistência que se concretiza na organização de uma ampla rede de cuidados em saúde mental. Neste sentido, não se limita ou se esgota na implantação de um serviço. O CAPS é meio, é caminho, não fim. É a possibilidade da tessitura, da trama, de um cuidado que não se faz em apenas um lugar, mas é tecido em uma ampla rede de alianças que inclui diferentes segmentos sociais, diversos serviços, distintos atores e cuidadores.

Nesse sentido, esperamos que os achados deste estudo possam contribuir para o debate no campo de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, em especial na construção de redes de atenção à saúde a esses sujeitos.

 

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Recebido: 14 de dezembro de 2014.
Aprovado: 20 de dezembro de 2014.

 

 

Notas

1 A proposta de organização em redes de atenção à saúde foi incorporada à legislação do SUS pelo Decreto 7.508/2011. (MENDES, 2013)

2 Conforme conceito utilizado por Silvio Yasui (2010)

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