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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.1 Assis Jan. 2015

 

Artigo

 

Algumas reflexões em torno do suicídio de crianças

 

Some reflections about children suicide

 

 

Milena Fiorim de Lima Lemos

Andréia Mansk Boone Salles

 

 


RESUMO

O presente texto é um ensaio sobre o suicídio infantil no Brasil, os serviços disponíveis para atendimento dessa população e pesquisas realizadas dentro dessa temática. O suicídio é um ato intencional para acabar com a própria vida e está relacionado a fatores biológicos, sociais, ambientais e ligados à história do indivíduo, portanto, um fenômeno complexo e multicausal. Diante disso, que questões podem ser levantadas concernentes à prática do suicídio por crianças? Com relação ao suicídio infantil no Brasil, a situação é bastante complicada porque quase não se encontram dados entre os inúmeros trabalhos que se dedicam ao tema e entre os trabalhos de cunho epidemiológico. A escassez de pesquisas e literatura sobre o público em questão dificulta a compreensão do fenômeno, impedindo a melhoria das intervenções realizadas no campo da prevenção e do atendimento aos sobreviventes. A intenção das autoras é ampliar tal discussão, incentivando novos debates e pesquisas.

Palavras-chave: suicídio; infância; psicologia


ABSTRACT

This text is an essay about children suicide in Brazil, the health services available to provide care to this population and the researchers conducted into this subject. Suicide is the act of intentionally ending one’s own life. It is related to biological, social, environmental factors and to the personal history, so, is a complex and multifactor phenomenon. Considering this, what kind of questions can be raised concerning children’s suicide attempts? Considering children suicide in Brazil is quite complicated to answer this question since it is difficult to find data among the numerous studies that focus on this issue, even among the epidemiological studies. The lack of research and literature with this population hinders the comprehension of the phenomenon and so the improvement of interventions in the field of prevention and care for survivors. The authors’ purpose is to expand the discussion into children suicide, encouraging further debate and research in this area.

Keywords: suicide; childhood; psychology.


 

 

De acordo com a Organização Mundial de Saúde – OMS (2002), o suicídio é um ato intencional, portanto consciente, para acabar com a própria vida. Já as tentativas de suicídio se caracterizam como atos também intencionais de autoagressão, mas que não resultaram em morte. Nota-se que a intenção de morrer é elemento-chave em ambas as definições. Vale ainda considerar que há uma espécie de espectro suicida, que inclui o suicídio propriamente dito, as tentativas e, além disso, também as ideações e desejos suicidas.

A OMS (2002) destacou que, no ano 2000, no mundo todo, cerca de 815 mil pessoas se suicidaram, o que representa uma taxa de mortalidade de 14,5 em cada 100 mil pessoas, ou uma morte por suicídio a cada 40 segundos. O suicídio é a décima terceira causa de mortes no mundo. Entre pessoas jovens, de 15 a 44 anos, os ferimentos autoinfligidos são a quarta maior causa de morte, e a sexta maior origem de problemas de saúde e incapacitações.

O suicídio tornou-se um problema de saúde pública também no Brasil. A situação gerou, por parte do Ministério da Saúde, uma Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio que incluiu, dentre outras ações, a publicação da Portaria Nº. 1.876, de 14 de agosto de 2006, que instituiu as diretrizes nacionais para prevenção do suicídio; a elaboração do Manual de prevenção do suicídio para profissionais das equipes de saúde mental; e o levantamento bibliográfico sobre os temas: suicídio, sobreviventes e família. Vale ressaltar que essas ações pouco incluíram a infância.

Apesar de o Brasil não ser um país com altos índices de suicídio, dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2012, 10.321 pessoas se suicidaram, ocorrendo, portanto, uma média de 28 mortes por dia (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde – DATASUS, 2012). Acredita-se, no entanto, que haja uma subnotificação das ocorrências devido, por exemplo, ao estigma que cerca esse tipo de morte e a dificuldade de saber se o fato foi intencional ou acidental, como afirma Barros (1991). Estima-se ainda que cerca de 50 a 80% de pessoas que tentam o suicídio não procuram por assistência médica (Meleiro, Teng & Wang, 2004). Isso indica que a situação deve ser ainda mais grave.

Com relação ao suicídio infantil, a situação se complica porque quase não se encontram dados entre os inúmeros trabalhos que se dedicam ao suicídio, com o objetivo de compreender o fenômeno e, assim, melhorar as intervenções realizadas no campo da prevenção e do atendimento aos sobreviventes. Mesmo entre os trabalhos epidemiológicos essa ausência é sentida. No entanto, dados de outros países indicam que o suicídio entre crianças e adolescentes também tem crescido (Feingold & Quilty, 2000; Palacios-Espinosa, Lora, Rodriguez & Ayala, 2007). Entre os poucos dados estatísticos localizados, Souza (2010, p. 6) afirma que:

No Brasil, 43 crianças de 0-9 anos entre 2000 e 2008 (média anual de cinco) morreram por suicídio, o que corresponde a 0,1% do total de mortes por essa causa. O enforcamento foi a forma utilizada por 80% dos meninos. As meninas utilizaram preferencialmente intoxicação medicamentosa, objetos cortantes e afogamento. No mesmo período, morreram 6.574 adolescentes de 10-19 anos por suicídio. Em média, anualmente, 730 adolescentes morrem por suicídio.

De acordo com Palacios-Espinosa et al. (2007), em revisão de artigos sobre o suicídio infantil, não há autores que se dedicam exaustivamente ao tema do suicídio na infância, uma vez que a grande maioria publicou apenas um artigo sobre o assunto. Apenas a partir deste século é que a literatura sobre suicídio infantil começa a se tornar um pouco mais expressiva. Ao longo de 20 anos (1985 a 2005), 43 artigos foram escritos sobre o tema entre 2001 e 2005, enquanto os outros 41 foram escritos ao longo dos outros 15 anos. Dos 84 artigos revisados, 49 utilizaram como fonte de dados sujeitos humanos. Os principais temas abordados pelos artigos foram: avaliação da população de crianças suicidas, suicídio em crianças e adolescentes e fatores de risco e proteção no suicídio. As técnicas mais utilizadas para coleta de dados foram os instrumentos psicométricos e, em segundo lugar, as entrevistas. Os temas menos encontrados foram: as terapias e fatores cognitivos e emocionais relacionados ao suicídio. Chamam a atenção a falta de tratamento qualitativo para os dados – uma vez que as análises foram predominantemente quantitativas – e a falta de discussão sobre terapias psicológicas possíveis no espectro suicida.

Diante disso, a presente reflexão objetiva elencar alguns tópicos que podem ser considerados na análise do suicídio de crianças. Caberia já perguntar: que particularidades existiriam no suicídio infantil, uma vez que é preciso entender a criança como um sujeito peculiar e não apenas como um vir a ser? Mais complicado ainda: como abordar metodologicamente o suicídio infantil de forma a obter informações consistentes e generalizáveis?

Aponta-se que uma criança que tenta ou comete suicídio é uma criança em sofrimento psíquico. O termo sofrimento psíquico tem sido usado no sentido de ampliar a compreensão do adoecimento na infância, permitindo que novas análises sejam propostas. Além disso, o termo tem sido usado em detrimento das classificações nosológicas clássicas, como o autismo, a psicose, a perversão ou neurose, que pouco tem oferecido para a compreensão da diversidade de formas de existência e mesmo de sintomas que se tem percebido atualmente.

Também de fundamental importância para a compreensão do suicídio na infância é a análise de fatores ambientais, ou seja, dos contextos de desenvolvimento da criança, incluindo-se, por exemplo, as relações parentais, e mesmo escolares e comunitárias.

No que diz respeito à relação entre as relações parentais e o risco de suicídio na infância, Kõlves (2010) afirma que conflitos familiares, principalmente os de pais e filhos, aparecem como importante fator de risco de suicídio entre crianças e adolescentes, sendo tal risco mais frequente quando comparado com os riscos entre adultos. A autora pontua que crescente número de pesquisas tem apontado que doenças mentais em familiares e história de suícidio na família também são fatores de risco de suicídio infanto-juvenil.

Vale ressaltar que estressores externos e violência, por exemplo, são fatores de risco para o suicídio na infância. Referente a isso, Kõlves (2010) menciona que não podemos desconsiderar as crises econômicas que causam impactos em muitas famílias (dentre esses o desemprego), violência contra crianças, qualidade da educação escolar e dos cuidados de saúde (acesso à prevenção e tratamento mental e de saúde em geral), como fatores externos que podem contribuir para a incidência de suicídio infanto-juvenil.

Da mesma forma, Boronat, Nogueira-Lima & Fu-I (2012), revisando trabalhos sobre o tema, indicam como fatores de risco para o suicídio: “abuso físico da criança, violência sexual, abuso de substâncias alcóolicas em adolescentes, abuso de drogas, estresse pós-traumático em adolescentes, transtornos ansiosos, história familiar positiva para o suicídio e comportamento agressivo e/ou impulsivo” (p. 177).

Já Palacios-Espinosa et al. (2007) trazem outras considerações importantes sobre o suicídio infantil, apontando que as teorias psicológicas fazem uma relação entre depressão e suicídio, e que as teorias sociais e biológicas têm empreendido discussões sobre tal tema. Os autores salientam que é preciso desmistificar a ideia de que criança não comete suicídio ou não pensa sobre isso. Discutem os fatores de risco para o suicídio na infância, destacando: problemas acadêmicos, uso abusivo de álcool e outras drogas, pobre acesso a tratamentos específicos e fácil acesso a meios letais, eventos traumáticos, maus-tratos, carência de afeto e de segurança, dentre outros.

Com relação às intervenções possíveis, é importante destacar que o tratamento de crianças com sofrimento psíquico tem ainda estado atrelado à correção de comportamentos considerados disfuncionais e à intensa medicalização, heranças da própria história dos cuidados dispensados às crianças (Guarido, 2007). Portanto, é necessário reconsiderar essa tendência no atendimento de crianças e adolescentes que, em sofrimento psíquico, tentam suicídio.

Da mesma forma, nota-se um crescimento das discussões a respeito de alternativas para o tratamento de crianças, principalmente com o amadurecimento da reforma psiquiátrica e da legislação brasileira, que reordena os serviços. Essas discussões incluem considerações a respeito da necessária construção de uma rede de cuidados (família + comunidade + escola = formação de um território); da manutenção da estabilidade dos serviços = ambiência; da intersetorialidade; da ação inter e transdisciplinar; da ética do cuidado = cuidados mais negociados e particularizados; da formação de recursos humanos, dentre outros temas.

Por fim, cabem outras indagações mais que conclusões: como o Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) tem atendido as demandas do espectro suicida? Como os diversos profissionais que lidam com a infância têm representado o suicídio de crianças, já que é fato não só percebido, mas também relatado por Boronat et al. (2012) que muitos profissionais de saúde, por se angustiarem e/ou sentirem-se agredidos diante da situação, negligenciam o atendimento prestado?

Eis alguns dos desafios para profissionais e pesquisadores da infância.

 

Referências

Barros, M. B. A. (1991). As mortes por suicídio no Brasil. In Cassorla, R. M. S. (Org.). Do suicídio. Estudos Brasileiros. (pp. 41-59). Campinas, SP: Papirus.         [ Links ]

Boronat, A; Nogueira-Lima, G. & Fu-I, L. (2012). Autolesão deliberada e suicídio. In Polanczyk, G.V & Lamberte, M.T.M.R. (Orgs.). Psiquiatria da infância e adolescência. (pp. 174-182). Barueri, SP: Manole.         [ Links ]

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Recebido: 17 de dezembro de 2014.
Aprovado: 22 de abril de 2015.

 

 

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