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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.1 Assis Jan. 2015

 

Resenha

 

"A mulher até no seu rir é sujeita as regras"

 

 

Catia Paranhos MartinsI, Natali PortelaII

I UNESP/Assis

II Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

 

 


VIEIRA, Elisabeth Meloni A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2ª reimpressão: 2015. 1ª reimpressão: 2008 (1ª edição: 2002).

O encontro entre as práticas médicas e as mulheres produziu e ainda produz inúmeras ressonâncias. A história da transformação do corpo feminino em objeto da medicina foi contada pela professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Elizabeth Meloni Vieira. O livro "A medicalização do corpo feminino", relançado em 2015 (primeira edição de 2002) pela editora Fiocruz, ilumina o debate sobre o consumo desenfreado de procedimentos de saúde e os aspectos da vida que foram apropriados pela medicina.

No prefácio Schraiber conta um fato dos bastidores da pesquisa. Uma mulher questionada sobre quando deveria ir ao médico para ter uma boa saúde, responde: 'sempre... todo dia'. Ao longo do livro, entendemos como esta resposta foi produzida, como funcionam as estratégias de construção de um corpo reduzido a função de procriação e transformado em "natureza" feminina.

Ao debruçar-se na história da medicina a partir das contribuições de Foucault, Vieira, no 1° capítulo, utiliza-se do nascimento da clínica e da configuração da medicina como uma estratégia biopolítica para nos apresentar as sujeições que o corpo das mulheres foi submetido nos últimos séculos. O cenário é composto pelo projeto da sociedade capitalista e da consolidação do Estado Moderno. É no final do século XVIII que a medicina inaugura uma nova maneira de olhar e falar sobre o que se torna visível, o corpo anatomopatológico. E ao longo do século XIX assistimos o processo de consolidação da profissão médica em liberal e ao monopólio legal do saber sobre a saúde. Em conformidade ao projeto social, a medicina contribuiu para o saneamento dos espaços públicos, ordenação da vida familiar, manutenção da força de trabalho e aprimoramento da população e da raça na produção de indivíduos adequados.

Vieira compartilha da difundida tese de Illich sobre a medicalização da sociedade ocidental, e acrescenta ingredientes para ampliar o debate. A transformação de eventos fisiológicos em doenças é uma poderosa fonte da ideologia sexista na nossa cultura que fez da gravidez, 'loucura menstrual' e menopausa acontecimentos a serem tratados. O parto requer cuidados cirúrgicos e a amamentação, instruções. As normas terão a tarefa de regulação e controle do que foi configurado como a "natureza", a "essência" do corpo feminino.

No 2° capítulo, temos os debates das escolas médicas brasileiras do século XIX e início do século XX. Argumentos evolucionistas foram utilizados para justificar a condição natural de inferioridade delas. A determinação biológica explica questões sociais e a maternidade, o instinto maternal e a divisão sexual do trabalho são atributos naturais à divisão de gêneros na sociedade. A autora debruça-se sobre as "Theses Inaugurais", obrigatórias para a obtenção do título de médico, apresentadas as faculdades da Bahia e do Rio de Janeiro que representam o discurso científico alinhado ao projeto higienista.

Viera, como em um garimpo, encontra pérolas, como a dúvida se haveria desenvolvimento cerebral nas mulheres; as medidas cerebrais menores justificadas pela energia corporal centrada no desenvolvimento reprodutor; e a capacidade maternal excluía as qualidades não maternais. Destacamos Marie Renotte, médica francesa que atuou no Brasil, em 1895 criticava a repressão: "correr não convém, gritar é proibido, enfim escrava de suas emoções mais inocentes, a mulher até no seu rir é sujeita as regras".

Na época, uma vida considerada saudável era em matrimônio para fins reprodutivos. Relações extraconjugais, masturbação, homossexualidade e prostituição significavam doenças e as medidas de cura defendidas no século XIX e início do seguinte incluíam resoluções cirúrgicas como retirada do clitóris, aderência dos grandes lábios e até a camisola de força. E, em consonância com a divisão de classes, a medicina considerava que as ricas tinham menor disposição à dor, sendo mais frágeis.

No terceiro capítulo temos o desenvolvimento da tecnologia como fundamental para a construção e o monopólio da obstetrícia. A exclusão das mulheres das práticas de cuidado com execução das curandeiras e caça às bruxas foram estratégias da Igreja e do Estado com vistas a construção deste monopólio. A competição entre cirurgiões e parteiras inicia-se no Renascimento e durou séculos. Data do século XVI a aproximação dos médicos ao cenário do parto. Mas somente no século XIX que os cuidados às mulheres se torna uma competência médica com o deslocamento do conhecimento das mãos de parteiras para as dos médicos. Os conhecimentos sobre a infecção puerperal são somados aos avanços da anestesia, fórceps e assepsia, que transformaram a cesariana, de um ato de desespero a uma técnica para resolução dos partos. E, em benefício do desenvolvimento da nova especialidade, houve a hospitalização do parto.

No Brasil o parto era de responsabilidade das comadres e aparadeiras. Com a instalação da Corte, chegaram as parteiras estrangeiras subordinadas ao Cirurgião-Mor do Reino. Ainda no final do século XIX, apesar da instalação de faculdade de medicina, o ensino da obstetrícia sofria com a falta de investimentos. Além disso, havia resistência das mulheres em enfrentar o olhar masculino no hospital. Elas preferiam as irmãs de caridade, mas que eram proibidas pelo sacerdócio de olharem as partes pudendas e o trabalho de parto se fazia às escuras.

Vemos então florescer, no século XX, duas dimensões da medicina que estão interligadas: a ampliação de seu campo de competência e a organização para o acesso e o consumo de serviços de saúde. As "doenças das senhoras" desenvolveu-se na prática liberal e nos serviços médicos de seguro social em nosso país. As ações de saúde pública preocuparam-se com o crescimento urbano e o controle sanitário da população. Data de 1920 as ações sistematizadas para o grupo materno-infantil pela necessidade de regulação da classe trabalhadora. Já em 1960 as políticas de saúde privilegiam o ciclo gravídico-puerperal e inicia-se as ações de planejamento familiar centradas na anticoncepção exclusivamente feminina. Desde 1970 observa-se o crescimento das cesarianas, inclusive com a via de acesso para esterilização, embora seja sabido que contribui para a mortalidade materna.

Temos assim a vida de mulheres medicalizada para a concepção, parto e contracepção, mas sem o efetivo acesso aos cuidados universais. E o modelo médico se constrói em resposta a falta de alternativas para a solução de questões sociais. O controle populacional emerge como problema cujas respostas são médicos e cirúrgicas, e não como ponto de uma política demográfica. Usa-se a tecnologia, característica da Modernidade, como solução em detrimento à educação que poderia privilegiar a saúde e os direitos humanos.

As vozes de Cecília Donnangelo, Maria Lucia Mott, Heleieth Saffioti, Madel Luz, Ana Maria Canesqui, Lilia Schaiber, Elizabeth Badinter, Joan Scoot, dentre outras, compõem a genealogia das sujeições do corpo feminino produzida por Vieira. Elas denunciam o lugar destinado às mulheres ao questionarem as colagens excessivas que reiteram um corpo sempre ou em vias de adoecimento.

Com esta resenha, embora tardia mas com tema atualíssimo, reafirmamos a potência deste livro no debate sobre a "epidemia de césarea" (Diniz, 2014), sobre as gestantes negras ainda receberem menos analgesia durante o parto (Leal et al., 2005), assim como para as lutas do movimento feminista pelo direito ao aborto, ao próprio corpo, ao parto domiciliar e contra as violências obstétricas.

 

Referências

Diniz, S. (2014). O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 18(48), 217-220. Acessado em 07/06/2015, do http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0910.         [ Links ]

Leal, M. C. et al. (2005). Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, 39(1), 100-107. Acessado em 1/06/2015, do http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000100013.         [ Links ]

 

 

Recebido: 09 de junho de 2015.
Aprovado: 09 de junho de 2015.

 

 

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