SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número2O Envelhecimento na Contemporaneidade: reflexões sobre o cuidado em uma Instituição de Longa Permanência para IdososProblematizando a noção de rede, suas origens e algumas de suas aplicações atuais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.2 Assis jul. 2015

 

Ensaio

 

Análise fenomenológica de minhas projeções delirantes

 

Phenomenological analysis of my delusional projections

 

 

Daniel Luporini de FariaI

I UNESP-Marília

 

 


RESUMO

Almeja-se, no presente texto, fornecer um relato fenomenológico minucioso acerca de minhas projeções delirantes, seguindo sistematicamente o que se pôde ler da “Husserliana” (conjunto das obras de Edmund Husserl, composta por 10 volumes até o presente, onde consta não apenas as obras do filósofo publicadas em vida, mas também suas preleções, esboços e reflexões). Sou diagnosticado, desde 2003, como tendo esquizofrenia paranoide (F20.0), sendo o delírio e alucinações de ordem visuais e auditivas, marcas indeléveis de minha psique, algo que talvez suscite interesse, por parte de filósofos, psicólogos e cientistas do cérebro, por este trabalho.

Palavras-chave: esquizofrenia; fenomenologia; delírios; alucinações; projeções.


ABSTRACT

Up aims in this text, provide a detailed phenomenological account about my delusional projections systematically following what one might read the “Husserliana” ( all the works of Edmund Husserl, consisting of 10 volumes to date, where there not only philosopher’s works published in the life, but also lectures , sketches and reflections there of). I am diagnosed since 2003, as having paranoid schizophrenia (F20.0), with delirium and visual and auditory hallucinations order indelible marks of my psyche, something that might arouse interest among philosophers, psychologists and brain scientists for this work.

Keywords: schizophrenia; phenomenology; delusions; hallucinations; projections.


 

 

Introdução

Dadas as divergências do que venha a ser, propriamente, a fenomenologia, partimos do pressuposto de que ela constitui-se, fundamentalmente, num método, numa orientação de análise que não se propõe como dedutiva ou empírica, mas, antes, como um discurso eidético que, quando levado a cabo, evoca imagens, relações, suscitando no fenomenólogo e naqueles que o lêem, toda uma teia de significados e interpretações.

O relato adiante será escrito obviamente em primeira pessoa, dentro de um contexto, creio, de serenidade e sobriedade, com recurso à memória e minuciosa articulação verbal. Seguirá o percurso extraído do conjunto das obras de Husserl (1966, 1975, 1981a, 1981b, 1982, 1986, 2003), partindo da intuição dos fenômenos, passando pelo crivo da redução fenomenológica, e culminando com a ideação dos fenômenos vivenciados.

No processo de intuição, relatarei o fenômeno em si, ou seja, como se dão os pensamentos delirantes e como a excitação por eles provocados, às vezes, disparam alterações visuais e/ou auditivas. Dadas essas verdades dadas imediatamente pela intuição, reduzirei tais verdades imediatas refletindo internamente (reflexão intuitiva) sobre os conteúdos dos meus delírios e alucinações, suspendendo o juízo sobre tais fenômenos e dirigindo minha mente sobre tais conteúdos (intencionalidade). Finalmente, feita a redução fenomenológica, relatarei os produtos de minha contemplação da essência dos fenômenos (ideação), descrevendo o sentido extraído da concatenação de meus pensamentos em todas as suas fases.

Para vivificar a memória no momento de escrever, conto com vasto material oriundo de impressões do “calor da hora”. Tal material, consiste em três cadernos escritos à mão em momentos que percebi que “fantasiava” ou que as coisas ao meu redor não eram como as que as pessoas geralmente vêem. Disponho também de alguns vídeos gravados e postados no facebook, que serão analisados e dos quais espero extrair resultados positivos.

Talvez este relato seja útil e esclarecedor para pessoas que se debruçam sobre os mistérios da mente e conduta humanas, àqueles que se indagam acerca do por quê fazemos A ao invés de B, àqueles que tentam entender o modo como uma pessoa qualquer e que não seja ela própria estrutura e organiza a realidade. Creio que esta curiosidade seja ainda mais inflamada quando aquele que relata suas experiências possui uma mente e comportamento muito diferentes do comum das pessoas, mas que consegue se expressar relativamente bem em palavras e segue um método (o eidético fenomenológico), facilitando a compreensão por parte de terceiros.

Situando brevemente o objeto autorreferido

Sou branco, muito alto, olhos verdes, boa aparência (acho), situado socialmente na classe média e gozei de boa educação desde a pré-escola, com interesses em filosofia, ciências, arte, política e religião (enquanto mero estudo, não possuindo o elemento “fé” ou propensões místicas, mesmo em surto psicótico). Tenho tendências inatas a desordens psíquicas/comportamentais, pois minha mãe é diagnosticada como bipolar (F31.0) e boa parte de meus antepassados possuíam problemas mentais. Ademais, cometi abusos de álcool e drogas ilícitas até 2012, atualmente, me encontrando abstêmio há quase três anos.

Sempre fui “estranho” desde a mais tenra infância, tímido, retraído, de temperamento dócil e de imaginação muito fértil. Após meu primeiro surto psicótico, em 2003, quando cursava o último ano da faculdade de filosofia, quando fui internado pela primeira vez, fui diagnosticado como tendo algum tipo de esquizofrenia; posteriormente, em 2006, após uma série de internações sucessivas (que só cessaram em 2013, por enquanto), meu diagnóstico passou a ser o de esquizofrenia paranoide (F20.0), diagnóstico que se mantém até a atualidade, mais de vinte internações após o primeiro surto.

Ainda em tempo, devo destacar que a idéia para o presente relato fenomenológico partiu de sugestão do psicólogo, fenomenólogo e investigador de estados alterados de consciência, que atualmente leciona psicologia na universidade de Jerusalém, Benny Shanon, que, num simpósio de filosofia em 2008 (mais ou menos) me sugeriu escrever sobre o delírio. Desde então, venho coletando dados em manuscritos e vídeos, e, no presente texto, tentarei seguir a metodologia Husserliana, bem como adequar a esta alguns elementos metodológicos desenvolvidos pelo próprio Benny, esplendidamente desenvolvidos em sua obra: “The antipodes of the mind: charting the phenomenology of the ayahuasca experience” (2002).

Relato Fenomenológico

Parte I - Do Pensamento Delirante

a) Um processo que se inicia e se desenvolve de forma crescente no tempo

Tudo começa com uma leve alteração de humor. Um contentamento pela realização bem sucedida de uma atividade qualquer, uma boa notícia, um sorriso de aprovação por algum feito meu, a sensação de prazer após a prática de alguma atividade esportiva, a sensação aconchegante de quentura após momentos de frio etc., ou então um descontentamento por algum fracasso, um sorriso não correspondido, um mal estar devido ao estresse, um desconforto físico etc.

Quando algo do tipo das situações descritas acima ocorre, coisas que ocorrem o tempo todo, minha imaginação começa a trabalhar, começa a “pular” para um estado seja de aprofundamento de um bem estar (contentamento), seja para a fuga do mal estar em direção a algo reconfortante, que atenue um descontentamento (talvez isso seja um mecanismo de defesa, que, creio, não se circunscreve apenas a pessoas “fantasiosas” como eu).

Conforme o tempo vai passando, tais aprofundamentos do contentamento ou fugas do descontentamento vão se acentuando, ganhando forma, se complexificando. Histórias vão surgindo em minha mente, historinhas com enredo, personagens que conheço (em geral amigos e familiares), onde eu, sempre eu, sou o protagonista, o mais bonito, mais inteligente, mais bem sucedido. Essas histórias se fixam em minha mente, ocupam quase que totalmente o foco de minha consciência, atrapalhando-me em meus afazeres cotidianos. Por exemplo: agora mesmo, ao escrever sobre isso, uma historinha em que imagino o parecerista desta revista gostando e se divertindo com esse relato ocupa parte considerável de minha consciência, fazendo com que eu hesite, me atrapalhe ao escrever. Imagino todos os detalhes dessa história: um professor moreno, calvo e de óculos grossos que gosta do que lê, se diverte. Como é de se esperar, ele aprovará meu texto. Vejam que eu sou o protagonista dessa história e sou exaltado. Tudo isso me atrapalha agora. Tento me concentrar no texto, mas a historinha não me sai da mente, pelo contrário, ela vai se complexificando, evoluindo, ganhando contornos épicos onde eu sou o herói!

b) O pulo gato

Caso minha mãe me telefonasse agora e perguntasse o que estou fazendo, sem hesitar, diria a ela que acabei de receber um parecer favorável para publicação desse texto na revista, pois estou com a historinha do parecerista moreno se divertindo pululando em minha mente. Esse é o “pulo do gato”. O momento em que a imaginação sai da cabeça e concretiza-se em comportamentos e falas. Essa é a transição da imaginação fértil para o delírio, a loucura (não gosto da palavra “mentira”).

c) Da mudança de história

Digamos que minha mãe, ao telefone, acredita no que eu disse e me dá os parabéns. Além disso, ela me diz que o motivo de seu telefonema foi me dar uma boa notícia qualquer, que me faça ter de parar de escrever este texto e me deslocar a algum lugar. Nesse ponto, a história do parecerista divertindo-se às minhas custas é interrompida e uma nova história é imaginada. Contudo, essa história que foi interrompida é memorizada e retomada sempre (ou pelo menos algumas vezes) que eu vier a escrever um artigo e estiver empolgado com a escrita.

Meu repertório de histórias é imenso, elas são continuadas, retomadas esporadicamente ao longo do tempo, vão sendo unidas umas às outras, vão se juntando, parece que minha vida toda é uma grande história, fruto de minha imaginação.

d) Imaginação, delírio e memória

Independentemente do que seja o self, a maneira como me reconheço como sendo eu mesmo se dá por meio da apreensão integrada de minhas memórias. Conforme vou construindo histórias e unindo-as umas às outras, parece que elas vão se cristalizando, assumindo o posto de vivências genuínas, ocupando o posto das memórias factuais. É como dizia o propagandista de Hitler, que quando se mente incessantemente sobre algo, esse algo se torna verdade. Entretanto, no meu caso, de tanto criar histórias e acreditar nelas, me transformei numa pessoa disfuncional, ridicularizada por todos, num mentiroso, um louco.

Como mencionei anteriormente, na primeira seção do relato, em mim, os delírios são desencadeados por uma alteração de humor, seja de contentamento, seja se descontentamento. Conforme minhas histórias vão se desenvolvendo, o sentimento vai aumentando, vou me empolgando com as histórias, os humores vão crescendo, crescendo, até o ponto de eu entrar uma espécie de mania, uma euforia, que, de repente, dependendo da situação, se transforma numa explosão súbita de agressividade. Nesse estado, desfiro socos e cabeçadas em vidros, num ímpeto, começo a me cortar com facas e cacos de vidro, chuto coisas, portas, geladeira, enfim, perco o controle, sem uma razão aparente (pelo menos aos olhos dos outros).

Quando isso acontece, os sentimentos tornam-se confusos, mesclando-se em minha mente. Me é difícil separar e analisar a qualidade de tais sentimentos isoladamente, pois um torvelinho de estados de humor alternam-se muito rapidamente em minha consciência, o que dificulta, se não, impossibilita precisar a direção de minha intencionalidade. A duração desse caos é sempre variada. Quanto mais envolvido na história me encontro, maior a duração desses surtos, quanto menor o envolvimento, menor sua duração no tempo cronológico. Se a intensidade do surto for alta, ocasionando estragos severos, e se o tempo de duração desse episódio for longo, em geral, tenho de ser medicado com antipsicóticos no pronto-socorro ou internado às pressas. Tudo depende da tolerância de meu pai (que é curta) ou de minha namorada (que é um pouco mais compreensível).

e) Perdendo o controle

Percebo que essas perdas de controle se dão quando minha mente fica confusa ao discernir o que é factual do que é uma projeção delirante. Quando estou envolvido numa história, como disse, sou sempre o herói, entretanto, às vezes, ocorre um choque de realidade, alguém me esclarece ou eu deduzo que eu não sou nenhum super-herói, mas um sujeito normal, dotado de algumas virtudes e muitos defeitos. Quando alguém me informa ou eu deduzo que a historinha na qual estou imerso não corresponde aos fatos, entro em colapso, me exalto, fico confuso e, invariavelmente, entro em processo de surto psicótico.

Mas esses choques de realidade pelos quais às vezes passo não resultam apenas em surtos. Às vezes, em vez de quebrar tudo e me flagelar, eu fico tremendamente triste e envergonhado (principalmente quando o choque de realidade me é dado por terceiros), podendo, como às vezes ocorre, entrar numa depressão suicida (dependendo do tempo e intensidade dessa tristeza e decepção comigo mesmo).

f) Depressão

Tentei suicídio três vezes. Na primeira, queria muito mais que olhassem para mim e vissem meu sofrimento, ajudando-me, do que propriamente morrer. Mas mesmo assim quase morri, ficando seis dias internado, vomitando sem parar, até que o veneno saísse de meu organismo. Nas outras duas, estava realmente decidido a morrer, tendo de ser reanimado mediante massagem cardíaca e choques com desfibrilador dados por paramédicos. Os detalhes de cada tentativa não vêm ao caso, bastando que eu diga que os choques de realidade pelos quais passei e que me levaram a entristecer profundamente, chegando ao ponto de tentar dar cabo de minha vida, foram tão intensos, que a única coisa que passava em minha mente era a idéia do que eu deveria fazer para parar de pensar naquilo, e a única solução plausível que se me apresentava era a morte.

É sempre muito difícil descrever a qualidade de um sentimento. Penso que a perspectiva de primeira pessoa é absolutamente inalienável e só faz sentido para o sujeito da experiência, mas, fenomenologicamente, a minha tristeza caracteriza-se essencialmente por imagens repetitivas à exaustão do exato momento em que confronto meus delírios com as coisas factuais. Aquilo fica martelando na cabeça, repetindo-se e gerando um mal estar mental que chega a somatizar-se, causando enjôos e tiques, como o de fechar bem forte os olhos, espremendo as pálpebras, juntamente com a pronúncia (às vezes em grito) de uma palavra qualquer, onde se dá uma tentativa abrupta de mudança de conteúdos mentais. Mas não adianta, pois os novos conteúdos (prazerosos) ficam poucos segundos à luz da consciência, repetindo-se todo o processo, que é circular, incessante, cansativo, angustiante.

g) Da natureza das projeções delirantes

Como disse, as histórias que construo emaranham-se umas às outras, formando uma única grande história (mesmo que com alguns lapsos, que, com o tempo, vão sendo preenchidos). O enredo geral, que unifica todas elas, é o de que eu sou ouvido ou observado o tempo todo. Tenho a “plena certeza” de que algumas pessoas em específico me vêem o tempo todo. Às vezes, fico angustiado com isso e passo o dia inteiro procurando câmeras e escutas pela casa, nunca achando nada. Quando me dizem que eu estou delirando ou deduzo que é absurdo tal tipo de conduta, fico triste ou surto (como disse antes).

Essa paranóia se manifesta de várias maneiras. Às vezes, tenho a “plena certeza” de que estão falando de mim nos noticiários de televisão, ou que as músicas que escuto foram dedicadas a mim. Uma coisa recorrente é a “certeza” de que, ao falar com alguém, essa pessoa ouve meus pensamentos, julgando-os rasos ou equivocados. Tenho receio de me limpar ao defecar, pois “sei” que estão me vendo. Não me masturbo por vergonha de ser observado. Não enfio o dedo no nariz, e tento, o tempo todo, não pensar em coisas idiotas, pois “sei” que estão ouvindo meus pensamentos e sinto-me envergonhado. De 2014 para cá, encuquei que, no CAPS que frequento, colocam algum dispositivo na comida com o intuito de vigiar os pacientes. Desde então, tomo laxantes todos os dias para me livrar desse dispositivo e fico remexendo minhas fezes à exaustão, mas nunca encontrei nada. De alguns meses para cá, tenho a “certeza” de que, enquanto dormia uma noite qualquer, meu psiquiatra instalou algum dispositivo em meu corpo, às vezes fico apalpando minha pele para ver se há algo por baixo dela e nada encontro, ainda.

Uma questão que não me sai da cabeça é que mesmo, no fundo, pensando que tudo isso que vos relatei parece loucura, por que eu não consigo parar de agir como um louco, acreditando em tais bestialidades? Penso que essa é a grande questão da psicologia e da psiquiatria, sobre a qual todo aquele que se propõe a investigar os meandros da mente, numa perspectiva médica, deveria se debruçar. Eu não disponho de uma resposta para tanto, tudo o que sei é que o populacho ao dizer que “o louco não sabe que é louco”, engana-se, pois esquecem-se do fato de que a verdadeira loucura consiste em se saber que se é louco e, mesmo assim, insistir na loucura.

Parte II - Das Alucinações

a) Da natureza alucinatória

Quando minha imaginação ganha asas, quando estou a delirar, às vezes, nem sempre (mais quando estou em processo de surto psicótico), sinto que minhas fantasias como que cristalizam-se, somatizando-se em imagens e sons bem definidos. Normalmente, percebo que estou vendo ou ouvindo coisas que não existem na realidade, que as outras pessoas não percebem, mas, às vezes, esse discernimento me falta; geralmente, quando estou surtando, quando estou no auge da loucura.

Entendo por alucinação uma projeção da mente sobre os sentidos, uma espécie de saída de meus personagens de minhas histórias do palco de minha consciência para o mundo exterior. Mais ou menos como a sombra dos contornos de um objeto colocado contra a luz projetando-se numa parede. Nesse sentido, uma alucinação é um delírio projetado, catapultado da luz da consciência para o mundo, para um lugar onde meus olhos e ouvidos físicos possam percebê-lo. Não há, propriamente, uma diferença qualitativa entre um delírio e uma alucinação. Este é apenas o desdobramento daquele. A única diferença, a rigor, é que um delírio imaginado é “visto” com os “olhos da mente”, ao passo que uma alucinação é vista com os olhos localizados nas órbitas de meu crânio, nada além disso.

b) Dos conteúdos alucinatórios

Como disse, entendo por alucinações projeções mentais somatizadas, de modo que, se tenho a paranóia delirante de achar que um amigo meu de São Paulo me observa mesmo eu estando em outra cidade, e esse delírio é intenso o bastante para me deixar exaltado a ponto de alucinar, então o que acontece frequentemente é que vejo ou ouço esse meu amigo materializado em minha frente, me repreendendo ou elogiando por minhas ações, fazendo parte de uma história projetada de minha mente para o mundo físico.

Um exemplo: quando tentei me matar pela primeira vez, o elemento emotivo que me fez cometer essa besteira foi a desilusão e vergonha por ter flagrado minha namorada transando com um grande amigo meu em minha cama. Não cheguei a quebrar nada ou me machucar, mas entrei numa depressão terrível. Como foi dito antes (seção f da primeira parte), fiquei por dias com aquele filminho dela fazendo sexo com ele rodando em minha mente ininterruptamente e pensando no que fazer para aquilo acabar, sair de minha mente, de modo que, no auge do esgotamento físico e mental, minha namorada (que hoje é ex-namorada) se materializou na minha frente e disse para que eu me matasse tomando o veneno de rato da dispensa. E foi o que fiz.

Percebam que toda a cena já existia enquanto um delírio, um filminho que rodava em minha mente, sendo que o conselho macabro que ela me deu já existia em minha consciência, as coisas apenas objetivaram-se, ganharam contornos de realidade sensível, afinal, eu a vi em minha frente, ouvi sua voz, não houve uma descontinuidade ou salto qualitativo.

c) Da frequência e qualidade das imagens e sons

Alucinações, em geral, só me ocorrem esporadicamente, em momentos de extrema agitação mental ou de surtos. São como a cereja do bolo, algo que coroam o final de todo um processo delirante. Às vezes, percebo quando vou alucinar. Visualmente, observo como que sombras se projetando ao meu redor, vultos em minha visão periférica. Auditivamente, percebo um zumbido dentro da cabeça, mais ou menos como o chiado de um vinil tocando. Em geral, me desespero quando percebo tais prenúncios, sinto que algo ruim está para acontecer. Tento fechar os olhos, acalmar a mente com meditação e controle respiratório; às vezes funciona, mas quase sempre me é impossível evitar as materializações.

Quando elas acontecem, auditivamente, ouço vozes “dentro” da cabeça, algo diferente de ouvir sons em estado de normalidade, que vêm de “fora para dentro”. Visualmente, sinto que algo está errado com as coisas ou pessoas que vejo, mas não consigo identificar exatamente o que está errado, talvez esse estranhamento se deva ao fato de, no fundo, pensar ser inverossímil que aquilo esteja acontecendo, dado o caráter insólito da experiência, mas em termos de qualidade de imagem, só sei que em geral não há diferença, mas às vezes percebo certa opacidade na imagem, talvez menos brilho ou vivacidade, mais ou menos como num sonho, não sei dizer.

Em geral, alterações auditivas são mais frequentes que as visuais, estas, por sua vez, me perturbam muito mais que as sonoras, não sei por que isso acontece.

d) Dos conteúdos e significados

Quanto aos conteúdos alucinatórios, posso dizer que estes caracterizam-se por figuras recorrentes, como, por exemplo, um professor de filosofia da USP, amigo meu, Descartes, ou o que imagino que tenha sido Descartes, Shopenhauer, tal qual aparece em fotografias da maturidade e cachorros bravios de olhos vermelhos.

O meu amigo professor e Descartes são as figuras mais recorrentes, surgindo sempre como interlocutores de uma história em que eu, obviamente, sou o protagonista e aquele que profere as opiniões mais sensatas, tal qual o personagem de Sócrates nos diálogos de Platão. Meu amigo professor (que prefiro não citar o nome para não comprometê-lo), em minha imaginação fértil, tem o poder de saber de tudo o que faço em meus afazeres cotidianos, inclusive detém o poder de ler meus pensamentos mesmo à distância. É com ele com quem mais converso, tanto em fantasia, quanto em realidade, através de e-mails quase que diários.

Essa mistura de contato real e virtual, quase que diariamente, atrapalha minha comunicação real com ele, isto porque nossas conversas, tanto virtuais quanto reais, se confundem numa história só, de modo que eu, invariavelmente, quando passo e-mails para ele ou respondo às suas indagações, presumo toda uma situação que jamais existiu em realidade, tornando meu discurso, às vezes, “sem pé, nem cabeça”. Como ele me conhece muito bem e é dotado de uma inteligência e sensibilidade acima da média, ele compreende minhas confusões e faz o possível para esclarecer os fatos em minha mente, me ajudando a separar o vivido factualmente do imaginado.

Em momentos de terror, quando me sinto sendo vigiado e não consigo encontrar câmeras ou escutas, coisa que me tira a serenidade e me mergulha em profunda paranóia, vejo cães pit bulls, que me cercam e latem para mim, ameaçando-me terrivelmente. Mas isso não é muito frequente, tendo de estar no auge da loucura para isso acontecer, e, quando acontece, sinto enorme necessidade de sangrar, coisa que geralmente faço com facas e vidros.

e) Parâmetros de controle

Como sei, afinal, que, por exemplo, esse meu amigo professor de filosofia realmente existe e mantém contato quase que diário comigo, não sendo mera projeção de minha mente disfuncional? Os principais parâmetros de controle de que disponho são meus próprios pais (especialmente meu pai), que me pergunta regularmente como anda esse meu amigo, quando ele vai tornar a me fazer uma visita aqui em casa, etc. Além disso, conto com a própria materialidade dos e-mails que trocamos regularmente, onde conversamos sobre a vida em geral, bem como sobre questões de filosofia da mente, metafísica, fundamentos da física, psicologia e neurociências. Ademais, disponho de alguns artigos publicados por esse meu amigo, onde este dedica, ao final do texto, agradecimentos dirigidos a mim, bem como disponho da própria memória e confirmação pessoal de uma ex-namorada que foi comigo a uma universidade do interior paulista, para assistir a uma comunicação que proferi em parceria com esse meu amigo e um psiquiatra amigo dele, num simpósio de filosofia da mente (possuo o certificado de apresentação do trabalho no evento). Em suma, em meus afazeres diários, a maior parte de minha energia psíquica é gasta tentando separar fatos de delírios e projeções alucinatórias.

Comentários finais

Como comentários finais, gostaria de lamentar a rapidez com que passei sobre questões que demandariam, se não um trabalho a parte, ao menos um escrutínio maior (que não o fiz dado os limites de páginas), como sobre o que relatei e refleti acerca do papel das emoções na gênese dos saltos delirantes, ou sobre os pormenores vivenciais e significativos da transição dos delírios para sua objetividade alucinatória, só para citar dois exemplos de questões relevantes.

Como disse na introdução do presente texto, eu fiz uso e abuso de álcool e drogas ilícitas até por volta de 2012, coisa que, presumo, tenha agravado minha condição e sendo o estopim ou o coroamento catastrófico de incontáveis processos psicóticos. Talvez a carência de um detalhamento de minha relação com psicotrópicos seja a principal ausência do relato observado nas linhas acima, e que talvez tenha desapontado aos leitores mais atentos. Entretanto, o projeto de um artigo que contemple as diferenças e similaridades entre projeções delirantes e alucinatórias em estado de sobriedade, contrapostas a estados de alteração induzidos por ingestão psicotrópica, está para ser escrito, estando mais ou menos pronto em minha mente.

Diagnósticos, em psiquiatria, são úteis apenas para psiquiatras que acompanham o caso, servindo como parâmetro de entendimento do caso, bem como para fins burocráticos. Ao próprio paciente, penso, diagnósticos não servem para muita coisa, podendo, em alguns casos, ser até prejudiciais, na medida em que, ao rotular-se, o paciente, caso tenha inteligência para pesquisar o modus operandi do comportamento previsto pelo diagnóstico, pode passar a agir da maneira como o diagnóstico ao qual foi submetido prevê que se comporte.

Ao longo dessas mais de vinte internações, tive cinco diagnósticos, alguns isolados, outros associados. Foram eles: esquizofrenia paranoide (F20.0), transtorno afetivo bipolar (F31.0), transtorno de personalidade borderline (F60.31) e transtorno esquizoafetivo (F25.0), bem como alcoolismo (F10). Os que perduraram e perduram por mais tempo são os de esquizofrenia paranoide e alcoolismo. Meu atual psiquiatra não me fala em diagnósticos, por mais que eu pergunte. Tudo o que ele me diz é que eu tenho um transtorno de humor acompanhado de sintomas psicóticos bem pronunciados.

Atualmente, me encontro relativamente bem, tendo sido minha última internação psiquiátrica no segundo semestre de 2013. Estou estabilizado quimicamente, fazendo uso de antipsicóticos, antidepressivos e estabilizadores de humor, bem como fazendo acompanhamento psicológico semanal no centro de atenção psicossocial (CAPS) que frequento três vezes por semana.

 

Bibliografia

HUSSERL, E. (1982) Ideas Pertaining to a Pure Phenomenology and to a Phenomenological Philosophy, First Book: General Introduction to a Pure Phenomenology. Translated by Fred Kersten. The Hague, Netherlands: Martinus Nijhoff.         [ Links ]

HUSSERL, E. (2003) Philosophy of Arithmetic. Psychological and Logical Investigations-with Supplementary Texts from 1887-1901. Husserliana Collected Works 10. Translation by Dallas Willard. Kluwer Academic Publishers.         [ Links ]

HUSSERL, E. (1981) On the Pyschological Grounding of Logic. Translated by Thomas Sheehan. McCormick, Peter and Elliston, Frederick A. (Eds). Husserl: Shorter Works. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press.         [ Links ]

HUSSERL, E. (1986) Ideas relativas a una fenomenologia pura y uma filosofia fenomenológica. México: Fondo de Cultura Economica, 1986.         [ Links ]

HUSSERL, E.(1975) Investigações Lógicas. Sexta Investigação (elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento). Tradução de Zelijko Loparic e Andréia M. Altino de Campos Loparic. São Paulo: Abril Cultural. (Colação “Os Pensadores”).         [ Links ]

HUSSERL, E. (1966) The Idea of Phenomenology. Translated by W.P. Alston and G. Nakhnikian. The Hague, Netherlands: Martinus Nijhoff.         [ Links ]

HUSSERL, E. (1981) Phenomenology. In: Encyclopaedia Britannica. Translated by R. Palmer. McCormick, Peter and Elliston, Frederick A. (Eds.). Husserl: Shorter Works. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981, pp. 21-35.         [ Links ]

SHANNON, B. (2002) The Antipodes of the Mind: charting the phenomenology of the ayahuasca experience. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

***

Agradeço especialmente aos funcionários e amigos do CAPS-Jaguariúna, que me proporcionam grande alegria e um auto-conhecimento cada vez mais profundo dia após dia. Agradeço também ao prof. Dr. Benny Shanon pelo incentivo, anos atrás, a sistematizar minhas experiências fenomenologicamente e tentar publicá-las.

 

 

Recebido: 26 de março de 2015.
Aprovado: 20 de novembro de 2015.

 

 

Creative Commons License